4.

Passam-se dias, o vento de inverno começa a soprar. Bengi e seus parentes vão embora. Roberta se ofereceu para levá-los de carro até a estação rodoviária, onde vão tomar o ônibus para o norte e procurar trabalho em uma das fazendas das grandes planícies. Maite e as duas irmãs, usando suas roupas idênticas, vêm se despedir. Maite traz um presente para Davíd: uma caixinha que ela fez com papelão duro, pintada com um desenho delicado de flores e vinhas pendentes. “É pra você”, ela diz. Bruscamente e sem nem uma palavra de agradecimento, Davíd aceita a caixa. Maite oferece o rosto para um beijo. Ele finge não perceber. Coberta de vergonha, Maite dá a volta e sai correndo. Até mesmo Inés, que não gosta da menina, fica com pena de sua aflição.

“Por que você trata Maite com tanta crueldade?”, ele, Simón, pergunta. “E se você nunca mais se encontrar com ela? Por que deixar que ela leve uma lembrança tão ruim para o resto da vida?”

“Eu não posso perguntar pra você, então você não pode perguntar pra mim”, diz o menino.

“Te perguntar o quê?”

“Perguntar por quê.”

Ele, Simón, balança a cabeça, intrigado.

Nessa noite, Inés encontra a caixa pintada jogada no lixo.

Eles esperam para saber mais sobre as academias, a Academia de Canto e a Academia de Dança, mas Roberta parece ter esquecido. Quanto ao menino, ele parece perfeitamente feliz sozinho, correndo pela fazenda, ocupado com as coisas dele ou sentado no beliche, absorto em seu livro. Mas Bolívar, que no começo o acompanhava em todas as suas atividades, agora prefere ficar em casa, dormindo.

O menino reclama de Bolívar. “O Bolívar não gosta mais de mim”, diz.

“Ele gosta de você como sempre”, diz Inés. “Só não é mais tão novo como era. Não acha mais divertido ficar correndo por aí o dia inteiro como você. Fica cansado.”

“Um ano de cachorro é igual a sete anos da gente”, diz ele, Simón. “O Bolívar está na meia-idade.”

“Quando ele vai morrer?”

“Não vai ser logo. Ele ainda tem muitos anos pela frente.”

“Mas ele vai morrer?”

“Vai, ele vai morrer. Cachorros morrem. São mortais, como nós. Se quiser um bicho de estimação que viva mais que você, precisa conseguir um elefante ou uma baleia.”

Mais tarde, nesse mesmo dia, quando está serrando lenha (uma das tarefas que assumiu), o menino vem a ele com uma nova ideia. “Simón, sabe aquela máquina grande no barracão? A gente pode pôr as azeitonas lá dentro para fazer azeite de oliva?”

“Acho que não vai funcionar, meu menino. Você e eu não temos força suficiente para girar as rodas. Antigamente usavam um boi. Amarravam o boi num pau e ele andava em círculos, girando as rodas.”

“E aí davam azeite de oliva pra ele beber?”

“Se ele quisesse azeite de oliva davam azeite de oliva. Mas geralmente bois não bebem azeite de oliva. Eles não gostam.”

“E ele dava leite?”

“Não, são as vacas que dão leite, não os bois. O boi não tem nada para dar além de trabalho. Ele gira a prensa de azeitonas ou puxa o arado. Em troca disso ganha nossa proteção. A gente protege o boi dos inimigos dele, os leões e tigres que querem matá-lo.”

“E quem protege os leões e tigres?”

“Ninguém. Leões e tigres se recusam a trabalhar para nós, então não damos proteção a eles. Eles têm de se proteger sozinhos.”

“E tem leões e tigres aqui?”

“Não. O tempo deles já passou. Os leões e tigres foram embora. Ficaram no passado. Se quiser encontrar leões e tigres, vai ter de procurar nos livros. Bois também. O tempo dos bois praticamente acabou. Hoje nós temos máquinas que fazem o trabalho por nós.”

“Deviam inventar uma máquina pra colher azeitona. Aí você e Inés não iam precisar trabalhar.”

“É verdade. Mas se inventarem uma máquina para colher azeitonas, os colhedores de azeitonas como nós vão ficar sem emprego e, portanto, sem dinheiro. É uma discussão bem antiga. Algumas pessoas tomam o partido das máquinas, outras o partido dos colhedores manuais.”

“Eu não gosto de trabalhar. Trabalhar é chato.”

“Nesse caso, você tem sorte de ter pais que não acham ruim trabalhar. Porque sem nós você ia morrer de fome e não ia gostar disso.”

“Eu não ia morrer de fome. A Roberta me dava comida.”

“Daria, sem dúvida, por bondade dela, ela te daria comida. Mas você quer mesmo viver assim: da caridade dos outros?”

“O que é caridade?”

“Caridade é a bondade dos outros, a generosidade dos outros.”

O menino lhe lança um olhar estranho.

“Você não pode contar para sempre com a bondade das pessoas”, ele continua. “Tem de dar assim como recebe, senão não é equilibrado, não é justo. Que tipo de pessoa você quer ser: o tipo que dá ou o tipo que recebe? Qual é melhor?”

“O tipo que recebe.”

“É mesmo? Você acha mesmo isso? Não é melhor dar do que receber?”

“Leões não dão. Tigres não dão.”

“E você quer ser tigre?”

“Eu não quero ser tigre. Só estou dizendo pra você. Tigres não são ruins.”

“Tigres não são bons também. Eles não são humanos, então estão fora da bondade ou da maldade.”

“Bom, eu também não quero ser humano.”

Eu também não quero ser humano. Ele conta essa conversa para Inés. “Me perturba quando ele fala desse jeito”, diz. “Será que cometemos um grande erro tirando-o da escola e trazendo-o para fora da sociedade, deixando que corresse solto com as outras crianças?”

“Ele gosta de animais”, diz Inés. “Não quer ser como nós, que ficamos sentados preocupados com o futuro. Ele quer ser livre.”

“Não acho que seja isso que ele quer dizer quando fala que não quer ser humano”, diz ele. Mas Inés não está interessada.

Roberta chega trazendo uma mensagem: eles foram convidados a tomar chá com as irmãs, às quatro horas, na casa-grande. Davíd deve ir também.

De sua mala, Inés tira o melhor vestido e sapatos que combinam. Ela fica aflita com o estado de seu cabelo. “Não vejo cabeleireiro desde que saímos de Novilla”, ela diz. “Estou parecendo uma louca.” Ela faz o menino vestir a camisa de babados e o sapato com botões, embora ele reclame que estejam muito pequenos e machuquem seus pés. Ela molha o cabelo dele e o alisa com a escova.

Pontualmente às quatro horas se apresentam na porta da frente. Roberta os conduz por um corredor até os fundos da casa, a uma sala cheia de mesinhas, banquinhos e bricabraques. “Esta é a sala de inverno”, diz Roberta. “Pega o sol da tarde. Sentem. As irmãs já vêm. E por favor, não falem dos patos, vocês lembram?, os patos que o outro menino matou.”

“Por quê?”, o menino pergunta.

“Porque elas vão ficar chateadas. Têm bom coração. São pessoas boas. Elas querem que a fazenda seja um refúgio para a vida silvestre.”

Enquanto esperam, eles inspecionam os quadros nas paredes: aquarelas, paisagens (ele reconhece a represa onde os malfadados patos nadaram), bem-feitinhas, mas amadoras.

Entram duas mulheres, em seguida Roberta com uma bandeja de chá. “Aqui estão eles”, Roberta anuncia. “A señora Inés, seu marido, o señor Simón, e o filho deles, Davíd. Señora Valentina e señora Consuelo.”

Ele adivinha que as mulheres, claramente irmãs, estão nos seus sessenta anos, são grisalhas e se vestem sobriamente. “Muito honrado, señora Valentina, señora Consuelo”, ele diz, com uma reverência. “Permitam que eu agradeça por nos darem um lugar para ficar em sua bela propriedade.”

“Eu não sou filho deles”, Davíd diz com voz calma, controlada.

“Ah”, diz uma das irmãs com falsa surpresa, Valentina ou Consuelo, ele não sabe qual é qual. “De quem você é filho então?”

“De ninguém”, Davíd responde com firmeza.

“Então você não é filho de ninguém, rapazinho”, diz Valentina ou Consuelo. “Muito interessante. Uma condição muito interessante. Quantos anos você tem?”

“Seis.”

“Seis. E não vai à escola, pelo que sei. Você não gostaria de ir à escola?”

“Eu já fui na escola.”

“E?”

Inés intervém. “Nós pusemos o menino na escola no último lugar onde moramos, mas ele teve professores ruins lá, então resolvemos que seria educado em casa. Por enquanto.”

“Eles fazem provas com as crianças”, ele, Simón, acrescenta, “provas mensais, para avaliar o progresso delas. Davíd não gostava de ser avaliado, estão escrevia coisas sem sentido nas provas, o que causou problemas para ele. Problemas para nós.”

A irmã o ignora. “Você gostaria de ir à escola, Davíd, e conhecer outras crianças?”

“Prefiro aprender em casa”, Davíd responde, elegantemente.

Enquanto isso, a outra irmã serve o chá. “Com açúcar, Inés?”, ela pergunta, Inés nega com a cabeça. “E você, Simón?”

“É chá?”, pergunta o menino. “Eu não gosto de chá.”

“Então você não precisa tomar”, diz a irmã.

“Inés, Simón, vocês devem estar se perguntando”, diz a primeira irmã, “por que foram convidados a vir aqui. Bom, a Roberta tem nos falado do seu filho, do quanto ele é esperto, esperto e falante, como está perdendo tempo com os filhos dos colhedores de frutas, quando devia estar aprendendo. Nós discutimos o assunto, minha irmã e eu, e achamos que gostaríamos de fazer uma proposta a vocês. E se vocês estão querendo saber, a propósito, onde está a terceira irmã, uma vez que eu sei que nós somos conhecidas por todo o distrito como ‘as Três Irmãs’, informo que a señora Alma infelizmente está indisposta. Ela sofre de melancolia e hoje está num daqueles dias em que a melancolia toma conta dela. Um dos seus dias negros, como ela diz. Mas ela concorda inteiramente com nossa proposta.

“Nossa proposta é que vocês matriculem seu filho em uma das academias particulares de Estrella. Acredito que a Roberta contou um pouco sobre as academias para vocês: a Academia de Canto e a Academia de Dança. Nós recomendamos a Academia de Dança. Conhecemos o diretor, señor Arroyo, e a esposa dele, e podemos garantir que são boas pessoas. Além do treinamento em dança, eles oferecem uma excelente educação geral. Nós, minhas irmãs e eu, nos responsabilizamos pela mensalidade enquanto ele estudar lá.”

“Eu não gosto de dançar”, diz Davíd. “Gosto de cantar.”

As duas irmãs trocam um olhar. “Nós não temos nenhum contato pessoal com a Academia de Canto”, diz Valentina ou Consuelo, “mas acho que temos razão para dizer que eles não fornecem uma boa educação geral. A função deles é formar pessoas para serem cantores profissionais. Você quer ser um cantor profissional, Davíd, quando ficar mais velho?”

“Não sei. Ainda não sei o que eu quero ser.”

“Não quer ser bombeiro ou maquinista de trem como os outros meninos pequenos?”

“Não. Eu queria ser salva-vidas, mas eles não deixam.”

“Quem não deixa?”

“O Simón.”

“E por que Simón é contra você ser salva-vidas?”

Ele, Simón, fala. “Não me oponho a que ele seja salva-vidas. Não me oponho a nenhum dos planos ou sonhos dele. No que me diz respeito — a mãe dele talvez pense diferente —, ele pode ser salva-vidas, pescador, cantor, ou o homem da lua, conforme escolher. Não conduzo a vida dele, nem finjo mais lhe dar conselhos. A verdade é que ele é tão voluntarioso que nos cansou, à mãe dele e a mim. Ele é como um trator. Passou em cima de nós. Fomos esmagados. Não temos mais resistência.”

Inés olha para ele boquiaberta, atônita. Davíd sorri para si mesmo.

“Que estranho desabafo!”, diz Valentina. “Não ouço um desabafo assim há anos. E você, Consuelo?”

“Há anos”, diz Consuelo. “Bastante dramático! Obrigada, Simón. Agora, o que você diz de nossa proposta de matricular o jovem Davíd na Academia de Dança?”

“Onde fica essa academia?”, Inés pergunta.

“Na cidade, no centro da cidade, no mesmo prédio do museu de arte. Infelizmente vocês não poderiam ficar aqui na fazenda. É muito longe. A viagem seria demais. Vocês teriam de encontrar acomodações por lá. Mas vocês não gostariam de ficar na fazenda realmente, agora que acabou a colheita. Iam achar muito solitário, muito entediante.”

“Não achamos nada entediante”, diz ele, Simón. “Pelo contrário, estamos florescendo. Gostamos de cada minuto que passamos aqui. Na verdade, eu combinei com a Roberta de ajudar nos serviços gerais enquanto ficamos nos barracões. Sempre tem alguma coisa para ser feita, mesmo fora de temporada. Podar, por exemplo. Limpar.”

Ele olha para Roberta em busca de apoio. Ela olha firme para longe.

“O que você chama de barracões são os dormitórios”, diz Valentina. “Os dormitórios vão ficar fechados durante o inverno, portanto vocês não podem ficar lá. Mas Roberta pode aconselhar onde vocês podem encontrar alojamento. E se nada der certo, tem sempre a Asistencia.”

Inés se levanta. Ele a acompanha.

“Vocês não deram uma resposta”, diz Consuelo. “Precisam de um tempo para discutir o assunto? O que você acha, rapazinho? Não gostaria de ir para a Academia de Dança? Vai conhecer outras crianças lá.”

“Eu quero ficar aqui”, diz o menino. “Não gosto de dançar.”

“Infelizmente”, diz a señora Valentina, “você não pode ficar aqui. Além disso, como você é muito novo e não tem conhecimento do mundo, só preconceitos, não tem condições de tomar decisões sobre o seu futuro. Minha sugestão”, ela estende a mão, engancha um dedo debaixo do queixo dele, ergue sua cabeça de forma que ele tem de olhar diretamente para ela, “minha sugestão é que você deixe seus pais, Inés e Simón, discutirem a nossa oferta, e então se conformar com a decisão que eles tomarem, com espírito de obediência filial. Entendido?”

Davíd olha firme para ela. “O que é obediência filial?”, ele pergunta.