Chega a segunda-feira e cabe a ele levar o menino à nova escola. Chegam lá bem antes das oito horas. As portas do estúdio estão abertas, mas o estúdio está vazio. Ele se senta no banco do piano. Juntos, esperam.
A porta dos fundos se abre e a señora Arroyo entra, vestida como antes, de preto. Ignorando-o, ela desliza pelo chão, para diante do menino, pega as mãos dele. “Bem-vindo, Davíd”, ela diz. “Vejo que trouxe um livro. Quer me mostrar?”
O menino oferece a ela seu Dom Quixote. Ela o examina com a testa franzida, folheia e devolve a ele.
“E trouxe suas sapatilhas de dança?”
O menino tira as sapatilhas de dentro do saco de algodão.
“Bom. Você sabe o que chamamos de ouro e prata? Chamamos de metais nobres. Ferro, cobre e chumbo nós chamamos de metais escravos. Os metais nobres ficam acima, os metais escravos abaixo. Assim como há metais nobres e metais escravos, há números nobres e números escravos. Você vai aprender a dançar os números nobres.”
“Não são de ouro de verdade”, diz o menino. “É só uma cor.”
“É só uma cor, mas as cores têm significado.”
“Vou embora agora”, diz ele, Simón. “Volto para pegar você à tarde.” Dá um beijo no topo da cabeça do menino. “Até logo, meu menino. Até logo, señora.”
Com tempo livre, ele entra no museu de arte. As paredes têm poucas obras. O desfiladeiro Zafiro ao pôr do sol. Composição I. Composição II. O bebedor. Os nomes dos artistas não lhe dizem nada.
“Bom dia, señor”, diz a voz familiar. “Qual a sua impressão?”
É Dmitri, sem quepe, tão desmazelado que poderia ter acabado de levantar da cama.
“Interessante”, ele responde. “Não sou especialista. Existe uma escola de pintura em Estrella, um estilo Estrella?”
Dmitri ignora a pergunta. “Eu vi quando trouxe seu filho. É um grande dia para ele, o primeiro dia com os Arroyo.”
“É.”
“E você deve ter tido a chance de falar com a señora Arroyo, Ana Magdalena. Que bailarina! Tão graciosa! Mas sem filhos, pena. Ela quer ter filhos dela mesma, mas não consegue. É uma fonte de sofrimento para ela, de angústia. Ninguém diria, olhando para ela, não é? Angústia? Seria de se pensar que ela é um dos anjos serenos que vivem de néctar. Um golinho aqui, outro ali, mais nada, obrigado. Mas aí tem os filhos do señor Arroyo, do primeiro casamento, que ela cria. E os internos também. Tanto amor para dar. Conheceu o señor Arroyo? Não? Não ainda? Um grande homem, um verdadeiro idealista que vive só para a música. Você vai ver. Infelizmente ele nem sempre tem os pés no chão, se é que me entende. A cabeça nas nuvens. Então é a Ana Magdalena que fica com o trabalho pesado, fazendo as crianças dançarem, alimentando os internos, cuidando da casa, dos negócios da Academia. E ela faz tudo! Maravilhosamente! Sem uma palavra de reclamação! Sempre calma e elegante! Uma mulher em mil. Que todo mundo admira!”
“E tudo isso fica no mesmo lugar: a Academia de Dança, o internato, a casa dos Arroyo?”
“Ah, tem muito espaço. A Academia ocupa o primeiro andar inteiro. Você e sua família de onde são?”
“De Novilla. Moramos em Novilla até pouco tempo atrás, até mudarmos para o norte.”
“Novilla. Nunca estive lá. Eu sou de Estrella e nunca saí daqui.”
“E sempre trabalhou no museu?”
“Não, não, não… tive tantos empregos que nem me lembro. É a minha natureza: uma natureza inquieta. Comecei como porteiro num mercadinho. Depois passei um tempo trabalhando nas estradas, mas não gostei. Durante um longo tempo trabalhei no hospital. Terrível. Horas terríveis. Mas movimentado também: as coisas que a gente vê! Então veio o dia em que a minha vida mudou. Sem exagero. Mudou para melhor. Eu estava parado na praça, pensando na vida, quando ela passou. Eu não podia acreditar no que via. Pensei que era uma aparição. Tão linda. Do outro mundo. Dei um pulo e fui atrás dela, segui feito um cachorro. Durante semanas fiquei rodeando a Academia, só para ver um relance dela. Claro que ela não prestou a menor atenção em mim. Por que prestaria? Um cara feio que nem eu. Então vi um anúncio de emprego no museu, na limpeza, o fundo do poço, e para encurtar a história comecei a trabalhar aqui e estou aqui até hoje. Promovido primeiro para assistente e depois, ano passado, assistente principal. Por causa do meu empenho e pontualidade.”
“Não sei se entendi direito. Está falando da señora Arroyo?”
“Ana Magdalena. Que eu adoro. Não tenho vergonha de confessar. Você não faria a mesma coisa se adorasse uma mulher, não ia atrás dela até o fim do mundo?”
“O museu não é bem o fim do mundo. O que o señor Arroyo acha da sua adoração pela mulher dele?”
“O señor Arroyo é um idealista, como eu disse. A cabeça dele está em outra coisa, na esfera celestial onde giram os números.”
Ele estava farto daquela conversa. Não pediu confidências ao sujeito. “Tenho de ir embora. Tenho de cuidar dos meus negócios”, ele diz.
“Achei que queria ver a escola de pintores de Estrella.”
“Outro dia.”
Ainda faltavam horas para o fim da aula. Ele compra um jornal, senta num café na praça, pede uma xícara de café. Na primeira página, uma fotografia de um casal mais velho com uma gigantesca abóbora em seu jardim. Ela pesa catorze quilos, diz a reportagem, superando o recorde anterior em quase um quilo. Na página 2, uma reportagem de crime relata o roubo de um cortador de grama de um barracão (sem tranca) e o vandalismo num banheiro público (uma pia quebrada). As deliberações do conselho municipal e seus vários comitês ocupam grande espaço: o subcomitê de amenidades públicas, o subcomitê de ruas e pontes, o subcomitê de finanças, o subcomitê encarregado de organizar o próximo festival de teatro. Então vem a página de esportes, que analisa o ponto alto da temporada de futebol, o esperado choque entre Aragonza e Vale Norte.
Ele vasculha as colunas dos classificados de emprego. Pedreiro. Azulejista. Eletricista. Bibliotecário. O que está procurando? Trabalho leve, talvez. Paisagismo. Nenhuma procura por estivadores, claro.
Ele paga o café. “Existe um Departamento de Relocação na cidade?”, pergunta à garçonete. “Claro”, ela diz, e lhe dá o endereço.
O centro de relocação em Estrella não chega nem perto da grandiosidade do de Novilla: nada além de um pequeno escritório atravancado, numa rua lateral. Atrás da mesa, um rapaz de rosto pálido e aparência bastante tristonha com uma barba rala.
“Bom dia”, diz ele, Simón. “Acabei de chegar aqui em Estrella. Durante o último mês e pouco estava empregado no vale, fazendo trabalho temporário, colhendo frutas principalmente. Agora estou procurando alguma coisa mais permanente, de preferência na cidade.”
O rapaz pega um fichário de cartões e põe em cima da mesa. “Parece muita coisa, mas a maior parte dos cartões é bobagem”, ele confessa. “O problema é que as pessoas não informam quando preencheram uma vaga. Que tal isto aqui: Optima Lavagem a Seco. Sabe alguma coisa de lavagem a seco?”
“Nada. Mas deixe eu pegar o endereço. Tem alguma coisa mais física, trabalho ao ar livre, talvez?”
O escriturário ignora a pergunta. “Estoquista numa loja de ferragem. Interessa? Não precisa experiência, só cabeça para números. Você tem cabeça para números?”
“Não sou matemático, mas sei contar.”
“Como eu disse, não posso prometer que ainda exista a vaga. Está vendo como a tinta está desbotada?” Ele levanta o cartão para a luz. “Isso quer dizer que o cartão é velho. E este aqui? Datilógrafo num escritório de advocacia. Sabe datilografar? Não? Então tem este: faxineiro no museu de arte.”
“Essa vaga já está preenchida. Conheci o homem que pegou o emprego.”
“Já pensou em fazer retreinamento? Pode ser a melhor opção: se inscrever num curso que treine o senhor para uma nova profissão. Enquanto estiver em treinamento, continua a receber seu seguro-desemprego.”
“Vou pensar”, ele diz. E não menciona que não se registrou para desemprego.
Quase três horas. Ele volta para a academia. Dmitri está na porta. “Veio buscar seu filho?”, Dmitri pergunta. “Eu faço questão de estar aqui quando os pequenos saem. Livres afinal! Tão excitados, tão cheios de alegria! Queria sentir esse tipo de alegria de novo, só por um minuto. Não me lembro nada da minha infância, sabe, nem um minuto. Um vazio total. Lamento a perda. Dá base, a infância da gente. Dá raízes no mundo. Eu sou igual a uma árvore derrubada pela tempestade da vida. Sabe o que quero dizer? Seu menino tem sorte de ter uma infância só dele. E você? Teve infância?”
Ele balança a cabeça. “Não, eu cheguei já pronto. Deram uma olhada em mim e marcaram como meia-idade. Sem infância, sem juventude, sem lembranças. Limpo.”
“Bom, não adianta chorar. Pelo menos temos o privilégio de conviver com os pequenos. Quem sabe algum pó de anjo acabe sobrando para nós. Ouça! Acabou a dança por hoje. Agora eles estão agradecendo. Eles sempre encerram o dia com uma oração de agradecimento.”
Juntos, eles ouvem. Um tênue zumbido que desaparece no silêncio. Então as portas da Academia se abrem e as crianças descem ruidosamente a escada, meninas e meninos, loiros e morenos. “Dmitri! Dmitri!”, eles gritam, e em um minuto Dmitri está cercado. Ele procura nos bolsos e tira punhados de doces, que joga para o alto. As crianças caem em cima deles. “Dmitri!”
Último a sair, de mãos dadas com a señora Arroyo, olhos baixos, excepcionalmente contido, Davíd com suas sapatilhas douradas.
“Até logo, Davíd”, diz a señora Arroyo. “Até amanhã de manhã.”
O menino não responde. Quando entram no carro, ele vai para o banco de trás. Em um minuto adormece e não acorda até chegarem à fazenda.
Inés está esperando com sanduíches e chocolate. O menino come e bebe. “Como foi o dia?”, ela pergunta afinal. Nenhuma resposta. “Você dançou?” Ele assente, distraído. “Depois você mostra para a gente como dançou?”
Sem responder, o menino sobe na cama e se encolhe numa bola.
“O que houve?”, Inés sussurra para ele, Simón. “Aconteceu alguma coisa?”
Ele tenta tranquilizá-la. “Ele está um pouco confuso, só isso. Passou o dia inteiro entre estranhos.”
Depois do jantar, o menino está mais comunicativo. “A Ana Magdalena ensinou os números”, ele conta. “Mostrou o Dois e o Três e você estava errado, Simón, e o señor Robles estava errado também, vocês dois estavam errados, os números estão no céu. É lá que eles moram, com as estrelas. Tem de chamar para eles descerem.”
“Foi isso que a señora Arroyo te disse?”
“Foi. Ela mostrou como chama o Dois e o Três. Não pode chamar o Um. O Um tem de vir sozinho.”
“Você quer mostrar como se chama esses números?”, diz Inés.
O menino balança a cabeça. “Tem de dançar. Tem de ter música.”
“E se eu ligar o rádio?”, ele, Simón, sugere. “Talvez tenha música para dançar.”
“Não. Tem de ser música especial.”
“E o que mais aconteceu hoje?”
“A Ana Magdalena serviu biscoito e leite. E passas.”
“Dmitri me contou que vocês fazem uma oração no fim do dia. Para quem vocês rezam?”
“Não é uma reza. A Ana Magdalena toca o arco e a gente tem que entrar em harmonia com ele.”
“O que é o arco?”
“Não sei, a Ana Magdalena não deixa a gente ver, diz que é segredo.”
“Muito misterioso. Vou perguntar quando encontrar com ela. Mas parece que foi um bom dia. E tudo por causa da bondade da señora Alma, da señora Consuelo e da señora Valentina, que se interessaram por você. Uma academia de dança onde você aprende a chamar os números das estrelas! E você ganha biscoitos e leite das mãos de uma linda dama! Que sorte a nossa de ter vindo parar em Estrella! Não acha? Não acha que é sorte sua? Não se sente abençoado?”
O menino assente.
“Eu me sinto assim sem dúvida nenhuma. Acho que devemos ser a família mais feliz do mundo. Agora está na hora de escovar os dentes e ir para a cama, dormir bem para de manhã estar pronto para dançar de novo.”
Os dias ganham uma nova rotina. Às seis e meia ele acorda o menino e lhe dá o café da manhã. Às sete estão no carro. Há pouco tráfego nas ruas; bem antes das oito, ele o deixa na Academia. Então estaciona o carro na praça e passa as sete horas seguintes procurando empregos e inspecionando apartamentos a esmo ou, o que é mais comum, simplesmente sentado num café lendo o jornal, até a hora de pegar o menino e levar para casa.
Às perguntas dele e de Inés acerca de sua vida escolar, o menino dá respostas breves e relutantes. Ele gosta, sim, do señor Arroyo. Estão, sim, aprendendo algumas músicas. Não, não tiveram nenhuma lição de leitura. Não, não fazem somas. Sobre o arco misterioso que a señora Arroyo toca ao fim do dia ele nada diz.
“Por que vocês ficam toda hora perguntando o que fiz hoje?”, ele pergunta. “Eu não pergunto o que vocês fizeram. De qualquer jeito, vocês não iam entender.”
“O que nós não íamos entender?”, Inés pergunta.
“Vocês não entendem nada.”
Depois, disso, param de interrogá-lo. Que ele conte sua história no seu ritmo, eles dizem a si mesmos.
Uma noite ele, Simón, entra sem pensar no dormitório feminino. Inés, de joelhos no chão, olha para ele com desprazer. O menino, só de cueca e sapatilhas douradas, para no meio do movimento.
“Saia daqui, Simón!”, o menino exclama. “Você não pode ver!”
“Por quê? O que eu não posso ver?”
“Ele está ensaiando uma coisa complicada”, diz Inés. “Precisa se concentrar. Saia. Feche a porta.”
Surpreso, intrigado, ele se retira e fica atrás da porta, ouvindo. Não há nada para ouvir.
Mais tarde, quando o menino está dormindo, ele pergunta a Inés. “O que estava acontecendo de tão privado que eu não podia ver?”
“Ele estava praticando os passos novos.”
“Mas o que tem de segredo nisso?”
“Ele acha que você não vai entender. Acha que vai caçoar dele.”
“Mas se eu mandei o menino para uma academia de dança, por que iria caçoar da dança dele?”
“Ele diz que você não entende os números. Diz que você é hostil. Hostil aos números.”
Ela mostra para ele uma tabela que o menino trouxe: triângulos que se intersectam, os ápices marcados com números. Ele não consegue perceber o sentido daquilo.
“Ele diz que é assim que aprendem os números”, Inês conta. “Através da dança.”
Na manhã seguinte, a caminho da Academia, ele puxa o assunto. “Inés me mostrou sua tabela de dança”, ele diz. “O que são os números? A posição dos pés?”
“São as estrelas”, diz o menino. “É astrologia. Você fecha os olhos enquanto dança e pode ver as estrelas dentro da cabeça.”
“E contar os tempos? O señor Arroyo não conta os tempos para vocês enquanto dançam?”
“Não. A gente só dança. Dançar é igual a contar.”
“Então o señor Arroyo só toca e vocês só dançam. Não parece com nenhuma aula de dança que eu conheça. Vou perguntar para o señor Arroyo se eu posso assistir a uma aula dele.”
“Não pode. Você não pode. O señor Arroyo disse que ninguém pode assistir.”
“Então quando eu vou ver você dançar?”
“Você pode me ver agora.”
Ele olha para o menino. O menino está sentado quieto, olhos fechados, um ligeiro sorriso nos lábios.
“Isso não é dançar. Você não consegue dançar sentado dentro de um carro.”
“Eu consigo. Olhe. Estou dançando de novo.”
Ele balança a cabeça, perplexo. Chegam à Academia. Dmitri emerge das sombras da porta. Ele afaga o cabelo do menino caprichadamente escovado. “Pronto para mais um dia?”