No sábado, saímos para pregar no centro da cidade com os novos panfletos. Ficamos na avenida principal, do outro lado da igreja Batista. Margaret segurava um cartaz que dizia: “Você está vendo os sinais?”, de um lado, e “Cristo morreu por você”, do outro. Tio Stan tinha um megafone, e o Pai e Alf usavam placas sobre os casacos com as palavras “O fim de todas as coisas está chegando” escritas. Nel insistiu para ter uma placa também, então encostamos uma em sua cadeira de rodas, mesmo que não desse para ver o rosto dela atrás da placa. O resto de nós ficou entregando folhetos.
Fazia muito frio. O sol brilhava na vitrine de cada loja. Um vendedor falou: “Vão pregar o evangelho de vocês noutro lugar!”, mas tio Stan respondeu que tínhamos tanto direito de estar ali quanto qualquer outra pessoa e, depois disso, ficamos competindo com o vendedor para ver quem gritava mais alto.
Por duas vezes gritaram “Fura-greve!”, e algumas pessoas cuspiram no chão quando passaram por nós. Tio Stan ficava vermelho, mas continuava berrando, e Margaret estufava o peito e levantava ainda mais o cartaz. O pescoço de Gordon se enterrava na gola do casaco, seus olhos estavam meio fechados e ele batia os dentes.
Somente duas pessoas pegaram o folheto, apesar de eu estar segurando do jeito que o Pai mandava, e não escondendo os folhetos na mão, e apesar de estarmos empregando as perguntas instigantes. Na capa do folheto, pessoas felizes caminhavam por um jardim. Na parte de dentro, havia raios e chuva de pedras, prédios caindo e carros desaparecendo. As pessoas esbravejavam contra o céu. Alguns erguiam as mãos para se proteger. Os homens usavam bandanas, tatuagens e jeans. Alguns carregavam rádios. As mulheres vestiam minissaias, saltos e muita maquiagem. Eu ficava confusa vendo o desenho, porque nem todos os Irmãos se pareciam com as pessoas felizes e nem todas as pessoas do Mundo seguravam um rádio ou usavam minissaias; a tia Jo, irmã do Pai, por exemplo, vestia jeans e botas Dr. Martens nas fotos que ela tinha mandado pelo correio, e a sra. Pierce não se maquiava.
Ao meio-dia, o tio Stan disse: “Belo trabalho”. Não pareceu notar que tínhamos tantas caixas de folhetos quanto no início. Carregamos as caixas de volta para o seu carro, no terreno baldio atrás da Cooperativa, aí o Pai e eu falamos tchau e fomos tomar uma xícara de chá no Station Cafe.
Rachamos uma fatia de bolo. Lambi a cobertura dos dedos e perguntei: “Você acha mesmo que o Armagedom está chegando?”.
“Acho”, disse ele.
“Acha que o Mike vai se salvar?”
“Só Deus sabe a resposta.”
“E a senhora Pew?”
“Não tenho a menor ideia.”
“E Joe e a senhora Browning e Sue Lollipop?”
“Judith, não adianta ficar especulando sobre essas coisas. Só Deus pode ler os corações.”
“E a tia Jo?”, perguntei, sem olhar para ele.
O Pai bateu a mão na mesa. Depois falou: “Judith, você já perguntou isso... como é que eu vou saber? Todos terão chance”.
“Como é que a gente sabe?”, perguntei.
“Porque Deus prometeu que vai salvar todos que merecerem a salvação.”
“Ainda bem que não sou Deus”, falei e sorri para o Pai, mostrando a ele que eu não queria mais chateá-lo e queria que ficássemos de bem.
“Ainda bem que também não sou”, disse o Pai.
Dei risada. “Eu não iria saber quem salvar e quem não salvar.”
Ele sorriu, mas o sorriso estava cansado e cheio de lágrimas. Pensei que, se fosse para sorrir assim para alguém, era melhor nem sorrir. Acabamos de comer e fomos para a Cooperativa.
Alguns minutos depois, estávamos empurrando o carrinho para o caixa quando dois homens surgiram. Pareciam ter acabado de sair da imagem do panfleto — teria sido engraçado, se eu não estivesse com tanto medo. Um deles tinha cabelo comprido e usava bandana, mas não estava carregando um rádio. O outro era Doug Lewis.
Os olhos dos homens brilhavam que nem bolas de gude. Eles me lembraram os olhos do cachorro da casa vinte e nove quando ele vê Oscar em cima do muro. Doug empinou o queixo. Parecia fazer que sim com a cabeça. Pôs a mão na frente do nosso carrinho e disse: “Os fura-greves também comem, olha só”.
Os olhos do Pai ficaram sombrios, mas quando ele falou, sua voz saiu firme. Ele disse: “Vai me esperar no caixa, Judith”, mas meus pés não se mexeram.
O Pai falou: “Me deixe terminar minhas compras, Doug. Não estou machucando você”.
Mas Doug não tirou as mãos do carrinho. Seu rosto estava vermelho. Ele e o Pai olhavam um para o outro e continuaram andando e olhando um para o outro até que fiquei com vontade de gritar. E, então, de repente, Doug empurrou o carrinho para o lado. O carrinho balançou, mas o Pai não o deixou cair. O peito de Doug subia e descia. O homem de cabelo comprido deu um murro na palma da mão. Aí ele falou para Doug: “Vamos nessa”. As narinas de Doug se dilataram. Depois de uns segundos, ele jogou o carrinho de lado e foi atrás do amigo.
Fomos até o caixa. Meu coração parecia estar mergulhado em chumbo quente, meus braços e pernas estavam se perdendo de mim. O Pai não parecia ter percebido o que acabava de acontecer. Começou a colocar as coisas na esteira. Aí levantou os olhos e disse: “Tudo bem, pessoal, o show acabou”, e vi que ele tinha percebido, sim, e que o supermercado inteiro estava olhando para nós. Para mim ele falou: “Vai empacotar as coisas”, e fiquei feliz porque eu não sabia direito o que fazer. Depois ele me olhou e sorriu, um sorriso adequado agora, mas dessa vez não consegui sorrir de volta.
*
Não falamos sobre o que aconteceu pelo resto do dia e pelo resto do dia senti o coração doer, sentia que minhas pernas e braços não me pertenciam.