O que você fez?

“O que aconteceu aqui?”, perguntou a sra. Pierce. Eu estava sentada nos bancos atrás do cabideiro.

“Eu não sei. Minha cabeça ficou quente.”

“Isso já tinha acontecido antes?”

Eu nunca tinha visto seu rosto tão sério. Ela disse: “A gente tem que conversar sobre isso. Com o seu pai. Eu gostaria que você pedisse para ele vir me ver o quanto antes. Mas agora preciso continuar a aula. Você quer ir para casa?”.

Fiz que sim.

“Tudo bem”, falou a sra. Pierce. “Vou arranjar alguém para ir junto com você.”

“Não”, eu disse. “Não precisa. É pertinho.”

“Não”, rebateu a sra. Pierce, “espere aqui que vou pedir para a Anna ir com você.”

Quando ela saiu, eu me levantei e fui embora.

Não me lembro de ter andado até em casa, mas devo ter andado. Não lembro se estava chovendo, ventando ou nevando, mas uma dessas coisas devia estar. Não me lembro de não ter visto a Sue e de ter que atravessar a rua sozinha, mas acho que fiz isso também. Não me lembro de ter virado na nossa rua, passado pelo portão, destrancado a porta, nem de ter subido a escada ou me sentado diante da Terra Gloriosa, mas devo ter feito todas essas coisas, porque me lembro de ter ficado encarando a figura que fiz de Neil Lewis, de ter me levantado e pisoteado o boneco. Eu me lembro da sensação do boneco embaixo do meu pé e dos urros na minha cabeça e de me ouvir dizer coisas que eu nunca tinha dito, como, por exemplo, “Secarei o derradeiro sangue de suas veias” — embora eu não soubesse o que era “derradeiro” ou se tinha a ver com as veias ou se não tinha a ver com nada. Eu não sabia nem se estava falando, porque não sentia minha boca, nem ouvia minha voz, e, quando me vi de relance no mar, também não reconheci meu rosto. E, então, os urros foram diminuindo e não me lembro de mais nada depois disso.

Quando abri os olhos, fiquei com a sensação de que tinha batido a cabeça e de que minha língua era grande demais para caber dentro da boca. A luz do poste da rua caía sobre os campos, as colinas e as cidades da Terra Gloriosa. Uma voz estava falando: “O que você fez?”.

Ela dizia: “Acho que dessa vez você foi longe demais”.

“Não, eu não fiz nada”, rebati.

“Olhe bem”, disse a voz.

Peguei o boneco de Neil Lewis e fiquei olhando para ele. A cabeça dependurada, uma perna mais comprida que a outra, faltava um braço. O rosto em pedaços.

Enfiei o braço no corpo, mas não parou no lugar. Empurrei a cabeça, mas ela caiu de novo. Não tinha como consertar o rosto. Eu me encostei na parede e fechei os olhos. “Não quer dizer nada”, eu disse.

“O incêndio também não queria dizer nada?”

“Vou refazer tudo.”

“O que Eu falei sobre refazer as coisas?”

“Não estou nem aí!”, eu disse. “Vou fazer. Vou fazer tudo direitinho.”

Peguei fio, lã e massa de modelar. De novo medi o fio e remodelei a cabeça, mas minhas mãos estavam tremendo. Refiz as mãos e os pés, vesti o homenzinho mais uma vez com suas roupas e sua peruca, repintei seu rosto, mas os olhos ficaram menores, o nariz mais fino e as bochechas mais cheias do que deveriam. Eu não tinha mais líquido corretivo para fazer as listras brancas nas calças e o novo boneco ficou uns dois centímetros mais baixo.

Joguei o boneco de lado. “Não significa nada”, eu disse. Mas sabia que, de todas as coisas que eu já tinha feito, essa era a que mais significava.