Capítulo
DOIS

A Kristy ligou para a Liz Lewis, apenas porque era o primeiro número que aparecia no panfleto.

– Está a chamar – sussurrou para nós, colocando uma mão sobre o auscultador. – Um… dois… três. Estou sim? Posso falar com a Liz Lewis, por favor?... Oh, olá Liz. O meu nome é Candy, Candy Kane1… Não, não é uma piada… Recebi o vosso panfleto a anunciar a Agência de Baby-Sitters. Eu estou encarregue de tomar conta do meu irmão mais novo amanhã e – a Kristy fez uma pausa e nós conseguimos ver o seu cérebro a trabalhar para inventar uma razão – acabei de ser convidada para um encontro.

A Mary Anne começou a rir-se. Teve de pegar numa almofada da cama da Claudia para colocar à frente da boca e abafar o som. A Kristy teve de se virar para não ver e não se desmanchar também a rir.

– Das três às cinco – disse a Kristy. (A Liz deve-lhe ter perguntado quando era suposto ela estar a tomar conta do irmão.) – Ele tem sete anos. Chama-se, hum, Harry… Vinte e oito Roper Road. És tu que vais ser a baby-sitter? O panfleto diz… Oh, estou a perceber… Hum-hum… Sim, é o 555-3231. Oh, mas será apenas por dez minutos. Depois tenho… tenho outro encontro… Com quem?

Por esta altura já a Claudia também se estava a rir e eu estava a fazer um grande esforço para não o fazer. A Kristy olhou para nós desesperada, sem saber o que dizer. Depois acabou por inventar um nome.

– Com o Winston Churchill – acabou por dizer, com esperança de a Liz não saber quem ele era. Aparentemente não sabia mesmo. – Sim, ele anda no liceu – continuou a Kristy num tom indiferente, entrando na sua nova identidade. – Está no décimo ano. Joga futebol… Eu? Eu estou no sétimo… Pois é, eu sei.

Tive de sair do quarto. Já não conseguia aguentar mais um minuto sem estragar o telefonema da Kristy. Fechei a porta atrás de mim, corri para a casa de banho para me rir e depois voltei.

– Está bem, cinco minutos… – estava a Kristy a dizer quando entrei de novo no quarto. – Sim, até já – despediu-se ela. Desligou o telefone e começou a rir-se. – Malta! – exclamou. – Não se comecem a rir quando eu estou ao telefone.

– Mas Winston Churchill? – disse no meio de uma gargalhada. – O rapaz do liceu que tu estás a namorar?

– Pronto, então, pelo que eu percebi a agência funciona da seguinte maneira – afirmou a Kristy quando nos acalmámos. – Os clientes ligam para a Liz ou para a Michelle quando precisam de uma baby-sitter. A seguir a Liz e a Michelle apenas encontram alguém disponível para o trabalho. Por outras palavras, elas poupam aos seus clientes o tempo que perderiam a fazer as chamadas para arranjar alguém. Acho que elas também devem ficar com algumas crianças de vez em quando, mas quando não ficam, provavelmente, recebem parte do dinheiro ganho pela baby-sitter que elas arranjaram.

– Não admira que as amas da agência sejam mais velhas – declarou a Mary Anne. – Tudo o que a Liz e a Michelle têm de fazer é ligar para raparigas mais velhas.

– Sim – respondeu a Kristy taciturna. – Nós também poderíamos ter feito o mesmo, se nos tivéssemos lembrado. – Ela fez uma pausa. – A Liz parecia mais interessada no meu encontro do que em encontrar uma baby-sitter.

– Quem imaginaria – ironizou a Claudia.

O telefone tocou.

– Eu atendo. Deve ser a Liz – afirmou a Kristy.

A Mary Anne voltou a pegar na almofada.

– Boa tarde, Clu- Estou sim? – A Kristy quase disse «Boa tarde, Clube das Baby-Sitters», que é como atendemos o telefone durante as reuniões. – Sim, é a própria… Oh, excelente… Quantos?... Uau. Que idades têm?... Está bem… Patricia Clayton… Okay… Combinado, muito obrigada. Ficarei à espera da Patricia amanhã… Tchauzinho. – E desligou a chamada.

– Tchauzinho? – repetiu a Mary Anne.

– É assim que a Liz se despede.

– Então? – perguntei.

– Ela conseguiu encontrar três baby-sitters disponíveis – contou a Kristy. – Deu-me a escolher qual é que eu queria. Não conheci nenhum dos nomes, mas dois tinham treze anos e uma tinha quinze. Um até era rapaz. Eu escolhi a de quinze anos. As pessoas vão adorar a agência. Não estou brincar. Nós não oferecemos uma variedade de idades como elas, não temos rapazes no nosso clube e não podemos ficar para além das dez da noite, nem mesmo aos fins de semana.

Olhámos umas para as outras descontentes até que a Mary Anne se levantou.

– Já passa das seis. Tenho de ir para casa – disse ela. O Sr. Spier gosta que a Mary Anne esteja em casa à hora combinada em ponto. Fiquei espantada por ela se ter deixado ficar mais uns minutos para além da hora. Isso mostrava como ela estava realmente chateada com tudo isto.

– Eu também devia ir andando – afirmei.

– Também eu – declarou a Kristy.

Despedimo-nos as três da Claudia e saímos do quarto.

– Até amanhã malta! – exclamou apressadamente a Mary Anne quando chegámos ao alpendre da casa dos Kishi. Do outro lado da rua estava o pai dela à sua espera em frente da porta de casa.

– Bem. – Olhei para a Kristy.

– Bem.

– Vamos ultrapassar isto, Kristy. Somos boas baby-sitters.

– Eu sei – respondeu ela. Mas foi tudo o que disse. Achava que a Kristy tivesse uma atitude mais positiva. Quer dizer, o clube era mais dela do que qualquer uma de nós. Pensei que ela fizesse qualquer coisa por ele. Eu faria.

Mas talvez isso fosse porque, para mim, o clube era mais do que um projeto ou um negócio. Eram as minhas amigas. Foi a única coisa boa que me aconteceu no terrível último ano.

Corri para casa.

*

Não sei como, mas consegui jantar nessa noite. Não foi fácil. Para começar, desde que descobri que sou diabética, tenho de ter tanto cuidado com aquilo que como, que qualquer comida perdeu toda a graça para mim. Muitas vezes, quando tenho fome, não penso naquilo que vou comer. Apenas como para matar a fome. E, como nessa noite eu estava tão chateada por causa da Agência de Baby-Sitters, nem sequer sentia fome. Mas a minha mãe observa tudo aquilo que levo à boca como um falcão, especialmente desde que recentemente perdi um pouco de peso. Por isso, forcei-me a engolir o que considerava um jantar razoável.

Assim que tive autorização, levantei-me e fui para o meu quarto. Fechei a porta e sentei-me no sofá a pensar. Foi apenas há um ano que comecei a ter os primeiros sintomas da diabetes. No início, pensámos que não seria nada de grave. Eu estava com fome o tempo todo – e quando digo com fome, era mesmo faminta, nada parecia encher a minha barriga – e também tinha muita sede.

– Bem, és uma rapariga a transformar-se numa mulher – dizia a minha mãe. – Parece-me que estás apenas a crescer. Vamos medir-te.

Verdade seja dita, tinha realmente crescido três centímetros. Mas, apesar de andar a comer e a comer, também comecei a perder peso e não me sentia bem. Ficava cansada facilmente e, por vezes, sentia-me fraca fisicamente. E fiz xixi na cama duas vezes. (Na segunda vez estava a dividir a cama com a minha ex-melhor amiga, a Laine Cummings, numa festa pijama.) Quando isso aconteceu, a minha mãe deixou a teoria do crescimento de parte e começou a dizer que eu estava era a ter um problema psicológico. Levou-me a um psiquiatra chique de Nova Iorque. Durante a primeira sessão, ele perguntou-me sobre os dois acidentes que tive durante a noite, ouviu que eu estava a perder peso e viu-me a beber três sumos. Foi ele que percebeu o que se estava a passar comigo e disse à minha mãe para marcar uma consulta com o meu médico. A mãe assim o fez. Duas semanas depois estava a aprender como injetar insulina em mim própria e como monitorizar o meu nível de açúcar no sangue.

A diabetes é uma doença que temos quando há um problema com uma glândula do nosso corpo que se chama pâncreas. O pâncreas produz uma hormona que tem o nome de insulina. Esta hormona absorve o açúcar e o amido que o nosso corpo recebe daquilo que comemos e usa-o para nos dar energia e desfazer outras comidas. Quando o pâncreas não produz insulina suficiente para fazer o seu trabalho, a glicose dos açúcares e amidos acumula-se no sangue, fazendo-nos doentes. E não é só uma pequena doença. Se não se tratar da diabetes da forma adequada pode-se morrer.

Bem, eu quase morri quando soube isso. Mas depois o médico explicou que posso dar insulina a mim mesma todos os dias, de forma a ter a quantidade suficiente no meu corpo para ele desfazer o que como. Se tomar insulina e ter uma dieta controlada, posso ter uma vida normal.

É uma grande responsabilidade. Tenho de ter muito cuidado com o que como e certificar-me que estou a dar ao meu corpo a quantidade certa de insulina. Por muito que quisessem, nem a minha mãe nem o meu pai podiam fazer isso por mim. Mesmo assim, sinto-me desconfortável quando tenho de verificar (ou, por vezes, injetar) insulina em frente aos meus amigos. Não gosto que eles pensem em mim como uma amiga doente.

Antes de ter diabetes, tinha uma vida bastante boa. Sou filha única. Desde que tenho memória que vivia num grande apartamento, num bonito e seguro prédio com porteiro, no Upper West Side, em Nova Iorque. Das grandes janelas do meu quarto conseguia ver todo o Central Park. Frequentava um colégio privado. E, apesar de não ter nenhum animal de estimação, ou, claro, irmãos ou irmãs, nunca estava sozinha. Tinha montes de amigos na escola e no prédio em que vivia, e os meus pais deixavam-me convidá-los sempre que eu queria. Os meus pais pareciam ser pais superfixes. Talvez um bocadinho intrometidos e mais envolvidos na minha vida do que aquilo que eu gostaria, mas isso é normal. Eles deixavam-me vestir-me como me apetecesse, sair com os meus amigos depois da escola e ouvir música alto desde que os vizinhos não reclamassem.

Depois, mesmo antes de eu começar a ficar doente, a minha mãe descobriu que ela e o meu pai não podiam ter mais filhos. Eles andavam a tentar dar-me uma irmãzinha ou um irmãozinho há muito tempo. Foi azar eles terem recibo essa notícia uns dias antes de se saber que eu tinha diabetes. E se eu morresse? Eu deixaria de estar aqui com eles e eles não podiam ter outro filho. De repente, eles podiam ficar sem filhos, pelo menos sem filhos biológicos.

Este era um pensamento triste e o resultado destas duas notícias foi os meus pais tornarem-se superprotetores do dia para a noite – e não apenas em relação à comida ou à insulina. De repente, começaram a preocupar-se quando eu não estava em casa. A minha mãe começou a ligar para casa dos meus amigos para saber se eu estava bem. Chegou a um ponto em que ligava todas as tardes para a escola, até que a diretora lhe sugeriu que isso talvez não fosse muito saudável para o meu crescimento e relembrou-a que a escola tinha uma simpática e competente enfermeira, caso fosse preciso.

A seguir começou a saga com os médicos. Os meus pais convenceram-se de que eles podiam encontrar uma cura milagrosa ou um melhor tratamento para mim. Nunca duvidaram de que eu tinha realmente diabetes, apenas ficaram obcecados comigo e com a doença. O seu novo objetivo de vida era Ajudar a Stacey.

Infelizmente, eles não me estavam a ajudar de todo. Os meus amigos começaram a afastar-se e o facto de estar sempre a ser tirada da escola para ir a consultas com novos médicos não estava a melhorar a minha vida. A Laine Cummings começou a odiar-me desde que fizera xixi na cama que ambas partilhávamos na dita festa. Não a culpava por estar zangada, mas porque é que tinha de ficar zangada durante tanto tempo? Éramos as melhores amigas desde os cinco anos. A Laine disse que a razão pela qual ela estava tão chateada era porque eu tinha passado a maior parte daquela festa pijama a falar com a Allison Ritz, a nova aluna. Mas não sei se era mesmo esse o problema. Ela começou a agir de forma estranha depois da festa e ainda mais estranha depois da primeira vez em que tive de ficar internada no hospital e comecei a ir a todos aqueles médicos. Talvez eu lhe devesse ter contado sobre o que se andava a passar comigo, mas, por alguma razão, os meus pais esconderam a verdade dos seus amigos e eu fiz o mesmo. Para ser sincera eu não contei a verdade a ninguém até termos deixado Nova Iorque e nos termos mudado para Connecticut para recomeçarmos de novo. Só contei o meu segredo à Claudia, à Kristy e à Mary Anne. Mas a Laine ainda não sabe e os pais dela, apesar de serem os melhores amigos dos meus, também não. Eu não entendo porque é que é um grande segredo mas, de qualquer forma, acho que isso já não é importante.

No início da minha doença, as visitas ao hospital não podiam ser evitadas. Precisava de fazer exames, de ter uma dieta planificada e de saber a quantidade de insulina que o meu corpo precisava que eu injetasse. Uma vez desmaiei na escola, porque tive uma hipoglicemia e tive de ser levada para o hospital St. Luke’s de ambulância. Se uma das minhas amigas ficasse assim tão doente ligar-lhe-ia para saber como estava, enviar-lhe-ia cartões com as melhoras e iria visitá-la assim que estivesse em casa. Mas a Laine não fez nada disso. Pelo contrário, parecia ter medo de mim (apesar de o tentar esconder agindo de forma pretensiosa e fria). E todas as minhas outras amigas fizeram o mesmo que a Laine fez, pois ela era a líder do grupo. A delas. A minha. E nós éramos as suas seguidoras.

Esse ano escolar foi piorando e piorando. Eu desmaiei mais duas vezes na escola, causando uma grande cena e atraindo a atenção de todos os meus colegas. E, todas as semanas, perdia pelo menos uma manhã para ir com os meus pais a um novo médico, ou uma nova clínica ou algo do género. A Laine chamou-me bebé, mentirosa, hipocondríaca e várias outras coisas que indicavam que ela pensava que eu e os meus pais estávamos a fazer uma tempestade num copo de água.

Mas se ela pensava realmente que não era nada de mais, porque é que tinha deixado de vir a minha casa? Porque é que não queria mais partilhar as sandes ou ir ao cinema comigo? E porque é que afastou a sua secretária da minha? Eu andava confusa, infeliz e doente e, graças à Laine, já não tinha amigas.

Odiava-a.

Em maio, os meus pais anunciaram que nos íamos mudar para Connecticut. Eu não conhecia ninguém cá, mas também já não tinha amigas em Nova Iorque, portanto que mal tinha? Eles disseram que nos íamos mudar porque o meu pai queria transferir-se para outro ramo da empresa onde trabalhava, mas, de alguma forma, eu sabia que nos íamos mudar por minha causa; para me tirar da cidade, para longe daquele ambiente barulhento, cheio de fuligem e pó, para longe daquelas memórias más e tempos difíceis. Eles estavam a exagerar e eu sabia disso.

Mas não me importava.


1 A Kristy diz que o nome inventado não é uma piada, porque parece, candy cane são as bengalas doces do Natal, em inglês. (N. da T.)