Na segunda-feira seguinte estava um dia tão quente e solarengo que mais parecia estarmos no a meio de um mês de primavera/verão do que em novembro. Eram exatamente 15h30 quando toquei à campainha da casa da Charlotte Johanssen com o meu Kit Infantil nas mãos. A Charlotte tem sete anos e é uma das crianças que prefiro para tomar conta. A sua mãe é médica e o pai engenheiro. Ela é filha única e uma menina muito esperta, mas também muito envergonhada, por isso, não tem muitos amigos. Compreendo-a bem como por vezes se sente sozinha.
A doutora Johanssen abriu a porta.
– Olá Stacey – cumprimentou num tom alegre apesar do seu ar cansado. Devia estar de folga porque, normalmente, ela está no Hospital de Stoneybrook, onde trabalha. Mas os horários dela mudam de mês para mês.
– Olá – respondi.
– Como te tens sentido? – A doutora Johanssen pergunta-me sempre isso. Irrita-me muito quando o fazem, exceto quando é a mãe da Charlotte.
– Esfomeada – afirmei. – E perdi peso.
– Tens tido algum problema com a insulina ou com a glicemia.
– Não. Acho que só preciso de comer mais. Afinal de contas tenho doze anos.
– Parece-me sensato. Mas o que é que andas a fazer para resolver o problema?
– A minha mãe ligou ao doutor Frank hoje só que ele não atendeu. Presumo que consiga falar com ele entretanto e tenha uma resposta quando eu chegar a casa.
– Stacey! Olá Stacey! – A Charlotte correu pelo corredor até mim, com um grande sorriso. Ela fica sempre muito feliz quando me vê.
– Olá! – disse.
– O que é que trazes nessa caixa?
– Uma coisa especial. Mostro-te assim que a tua mãe sair.
– Vai mãe, vai trabalhar! – exclamou a Charlotte. Ela nunca quer que os seus pais vão embora, até mesmo quando sou eu a baby-sitter.
– Isso é uma sugestão? – questionou a doutora Johanssen, pegando no casaco.
– Acho que sim – declarei.
– Muito bem, meninas. Esta reunião será rápida, espero. Devo estar em casa entre as cinco e as cinco e meia.
– Até logo, mãe. – A Charlotte quase que empurrou a mãe porta fora. – Já posso ver? – perguntou-me.
– Deixa-me só tirar o casaco. – Pendurei o casaco no roupeiro junto à porta, enquanto a Charlotte saltitava impaciente de um lado para o outro. Depois sentámo-nos as duas no chão da sala. – Consegues ler o que diz? – perguntei apontando para as palavras escritas na tampa.
– Kit Infantil – leu a Charlotte inclinando-se para a frente para ver bem todas as letras. – É muito bonita.
Tinha decorado a minha caixa com flores feitas de tecido azul e colei fita ziguezague branca no rebordo. Depois, num pedaço de tecido verde, recortei as letras para escrever «Kit Infantil».
– Obrigada. Esta caixa andará sempre comigo. – Levantei a tampa. – Há um monte de coisas divertidas aqui dentro. Irei mudar o seu conteúdo todos os meses.
– Oh, fixe – declarou a Charlotte calmamente enquanto ia tirando algumas das coisas que estavam lá dentro. – Serpentes e Escadas… Letra a Letra… Um Grilo em Nova Iorque. Como é esta história?
– Ah, acho que tu vais adorar este livro. É sobre um grilo chamado Chester que, sem querer, vai parar a Nova Iorque e torna-se amigo de um rato chamado Tucker, de um gato chamado Harry e de um menino chamado Mario. Podemos ler um capítulo de cada vez que eu vier cá a casa. E posso falar-te mais sobre Nova Iorque. – A Charlotte adora ouvir sobre a minha vida na grande cidade. – Depois de acabarmos este livro, podemos ler A Casa de Campo do Tucker e O Cachorrinho de Estimação do Gato Harry. São outras histórias da mesma coleção.
– Boa. – A Charlotte continuou a explorar a caixa vendo todos os lápis de cor, giz, papel para desenhar, puzzles, autocolantes e blocos magnéticos.
– Podemos fazer o que quiseres – disse-lhe –, mas, apesar de ter trazido o Kit Infantil, tenho uma outra ideia para passarmos o tempo.
– O que é?
– Está um dia tão bonito. Podíamos ir passear; espreitar as montras; ver quais são os filmes que estão no cinema e, talvez, parar no parque que há junto da escola.
A Charlotte observou-me da mesma forma que observaria alguém que tivesse dois gelados enormes nas mãos, um de cada sabor preferido dela, e lhe tivesse dito que ela só podia ter um. Olhou pela janela para ver o sol brilhante lá fora, tamborilou os dedos na caixa uma última vez e depois voltou a olhar para mim.
– Vamos passear – disse por fim. – Mas tens de prometer que trazes o Kit Infantil da próxima vez.
– Prometo – respondi enquanto fazia o sinal de promessa de escuteiro com os dedos.
Vestimos os casacos e saímos de casa. A baixa de Stoneybrook não fica longe da casa da Charlotte. Se fôssemos a correr estaríamos lá em dez minutos e se fôssemos a andar num passado mais apressado chegaríamos em menos de vinte, mas nós não estávamos com pressa, por isso, fomos andando com calma. A Charlotte parou várias vezes para apanhar bolotas.
– Devia guardar estas bolotas – declarou ela. – Assim, se um dia tiver um esquilo de estimação posso alimentá-lo com elas.
– E o que farias com um esquilo de estimação – quis eu saber.
– Falava com ele.
– Mas já tens o Carrot. Podes falar com ele. – (O Carrot é o schnauzer da família Johanssen.)
– Seria bom ter mais do que um amigo para falar.
– Não tens amiguinhos Charlotte? Quero dizer, amigos-pessoas?
A Charlotte abanou a cabeça. Parou, apanhou uma grande bolota e guardou-a no bolso quando se voltou a endireitar.
Olhei para ela. É muito engraçada. Tem o cabelo castanho, do tom das avelãs, uns grandes olhos castanhos escuro e, quando sorri, aparecem umas covinhas nas suas bochechas. Para além disso, é inteligente, atenciosa e simpática. O que é que havia de errado com ela? Porque é que não tinha nenhum amigo?
– As outras crianças não gostam de mim – contou-me ela. – E eu também não gosto delas.
– As crianças da tua turma? – interroguei. – Porque é que não gostas delas?
– Porque elas não gostam de mim.
– E porque é que elas não gostam de ti?
A Charlotte encolheu os ombros. Depois espetou um dos polegares e enfiou-o na boca enquanto agarrava na minha mão com a outra. Caminhamos em silêncio até chegarmos à baixa.
– O que queres fazer primeiro? – perguntei-lhe.
Ela olhou em volta e tirou o dedo da boca.
– Vamos à loja dos doces!
– Está bem.
A Loja de Doces da Polly é espetacular no que toca a lojas de doces no geral. Consegue ser bem melhor do que muitas das lojas de doces que há em Nova Iorque. É compreensível porque é que a Charlotte lá queria ir. Parece que estamos num país encantado. E em novembro, com as férias quase a começarem, ainda se parece mais incrível.
A única coisa que eu não gosto na Loja de Doces da Polly é da própria Polly. Ela deve ter uns cem anos e ainda gere a loja. A sua irmã mais nova, que parece tão velha quanto a Polly, ajuda-a nessa tarefa. Sempre que as crianças lá entram, elas fixam os olhos nelas e só tiram quando as veem de novo no lado de fora. Mas eu e a Charlotte íamos preparadas para enfrentar as duas irmãs.
Aproximamo-nos da loja. Ainda antes de chegarmos à porta sentimos o cheiro a chocolate. Inspirámos fundo.
– Hum, que cheirinho delicioso – declarei.
– Sim, que cheirinho delicioso – repetiu a Charlotte.
Decidimos ir espreitar as montras. A primeira estava preparada para o Dia de Ação de Graças. Tinha o maior peru feito em chocolate que eu alguma vez vi, rodeado por perus de chocolate mais pequeninos deitados numa cama feita de gomas e rebuçados.
Eu e a Charlotte trocámos um olhar e sorrimos.
– Vamos ver a outra – disse a Charlotte.
Passámos pela porta para irmos até à segunda montra.
– Já é Natal? – questionou a menina, com os olhos postos numa árvore de Natal, com o Pai Natal e os presentes. Tinha um ar perplexo e sonhador ao mesmo tempo. – Quanto tempo falta, Stacey? Quantos dias?
– Muitos Char. Cinco semanas, mais ou menos. As lojas gostam de se preparar com antecedência. Anda, vamos entrar.
Atravessámos a porta e fiquei mais aliviada por ver que estava mais gente na pequena loja. Havia outros três clientes para além de nós e a Polly e a sua irmã estavam ocupadas a atendê-los, o que significava que não poderiam estar a observar cada movimento nosso.
O exterior da Loja de Doces da Polly cheirava a chocolate. O interior cheirava a chocolate e muito mais: gengibre, canela, alcaçuz, maçapão, chantilly, framboesas, nozes caramelizadas, passas, cerejas e açúcar em pó. O ar era quente e inebriante. Era quase mais do que aquilo que eu podia aguentar. Tentei imaginar o mal que me faria se comesse um quadradinho de chocolate branco.
– Olha, Stacey! – disse entusiasticamente a Charlotte. Correu para um expositor com elaboradas casinhas de gengibre decoradas com vários tipos de doces e cobertura branca. – Oh, elfos! E ratinhos. Olha para todas aquelas pequenas criaturas que vivem nestas casas… Oh!
Ela agarrou a minha mão e levou-me até às prateleiras que continham as caixas dos vários rebuçados, gomas e chocolates. Salivámos ao ver cada uma das embalagens de doces: gomas em forma de ursinhos, tiras de alcaçuz, rebuçados de fruta e mentol, bombons de chocolate, caramelos…
– Podemos comprar um Stacey, por favor? Apenas um? – implorou a Charlotte.
Reparei nuns quadradinhos de chocolate branco e quase consegui sentir um a derreter-se na minha boca.
Pus a mão no bolso. Tinha dois dólares, mais do que suficiente para comprar dois quadrados.
– Por favor?
Tirei o dinheiro e posei-o no balcão. Nesse preciso momento o relógio de cuco da Polly tocou. Eram quatro e meia. Lentamente, voltei a guardar o dinheiro no bolso e respirei fundo. Nem acreditava no que quase fizera.
– É melhor não – respondi. – Depois tira-te o apetite para o jantar. De qualquer forma, a tua mãe não gosta de que comas doces.
– Eu sei – afirmou a Charlotte. – Apenas pensei…
– Não faz mal. Eu também queria um doce, mas não és a única que não os podes comer. Anda, vamos embora.
Saímos da loja, mas a Charlotte não conseguia parar de olhar sobre o seu ombro.
– Ei – chamei eu –, ainda temos tempo de ir ao parque antes de irmos para casa.
– Boa!
Estava a escurecer, mas achei que ainda podíamos brincar durante dez minutos sem haver perigo. Fiquei animada quando chegámos ao parque e vimos um grupo de crianças penduradas nas barras junto ao escorrega.
– Anda – disse, mas a Charlotte não se mexeu.
– Não.
– Está tudo bem, ainda não é de noite. E estão ali mais meninos.
– Não, quero ir para casa. Vamos.
Tarde de mais. As crianças já tinham visto a Charlotte.
– Olhem, está ali a Char-Char – gozou um deles.
– Ei, menina querida da professora! Sai daqui!
– Sim! Charlotte, Charlotte, vai embora e não voltes nunca mais!
– Menininha da professora, menininha da professora…
– Eu não sou menininha da professora! – gritou a Charlotte. A seguir virou-se e começou a correr em direção a casa.
– Ei! Espera! Charlotte? – Consegui apanhá-la rapidamente.
– Deixa-me em paz.
– Sou eu, a Stacey.
– Eu disse para me deixares em paz.
– Não posso, sou a tua baby-sitter. Tenho de ficar contigo.
A Charlotte andava com a cabeça erguida, queixo espetado para a frente e com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.
– Aqueles meninos estavam a gozar contigo porque te viram com uma baby-sitter?... Charlotte? – Estava a tentar acompanhar o passo dela.
– Não – fungou ela por fim. – Eles não sabem que tu és a minha baby-sitter.
– Porque é que estás zangada comigo?
A Charlotte parou.
– Não estou zangada contigo.
– Estás só chateada porque eles estavam a gozar contigo?
– Sim.
– Porque é que o fizeram?
– Não sei.
– Eles chamaram-te menininha da professora.
– Não quero falar sobre isso.
– Ei, ouve-me, também gozaram muito comigo o ano passado.
– Em Nova Iorque?
– Sim, em Nova Iorque.
– Quem é que gozou contigo?
– A minha melhor amiga. Bem, ela costumava ser a minha melhor amiga. Agora é a minha ex-melhor amiga.
– Porque é que ela gozava contigo?
– É uma longa história.
– Também não queres falar sobre isso?
– Não.
Já estávamos próximas da esquina que dava para a rua da casa de Charlotte. Ela tinha parado de chorar e dava-me a mão novamente. De repente, deu um guinchinho enquanto apontava para algo.
– Olha ali!
Eu olhei para onde ela apontava, mas tudo o que conseguia ver com a pouca luz do dia que restava era um monte de balões de hélio a vir na nossa direção. Semirrei os olhos e percebi que havia alguém atrás deles. Era isso, ou aqueles balões tinham ganho um par de pernas que vestiam umas calças de ganga e calçavam uns ténis.
– Olá – cumprimentaram os balões.
Olhei por trás dos balões. A agarrar firmemente nas fitas dos balões estava uma rapariga bonita, uns anos mais velha do que eu, alta e magrinha, que trazia uma camisola supergira.
Ela tirou um balão vermelho dos vários que trazia e deu-o à Charlotte. Em seguida olhou para mim.
– Chamo-me Liz Lewis – apresentou-se –, a presidente da Agência de Baby-Sitters. Espero que me ligues se um dia precisares de alguém para ficar com a tua irmãzinha. – A Charlotte riu-se – O nosso número está no balão. Tchauzinho! – E foi embora.
Senti um arrepio na espinha e, de repente, comecei a suar.
A Charlotte, que estava a agarrar no balão com as duas mãos, virou-o para ver o que tinha escrito.
– A Agência de Baby-Sitters – leu lentamente. – Ligue para Liz Lewis 555-1162 ou para Michelle Patterson 555-7548. – A seguir olhou para mim. – Mais baby-sitters? O que é uma agência, Stacey?
– É outra longa história. Anda. Vamos para casa.
Sabia que tinha de falar outra vez com a Kristy esta noite.