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A aplicação prática da teoria de Jung

O duplo aspecto da psicologia de Jung

A psicoterapia junguiana não é um procedimento analítico no sentido usual desse conceito, embora se mantenha rigorosamente dentro dos pressupostos ordenados pela medicina, pelas ciências, e confirmados pela experiência de todas as pesquisas determinantes. É um “caminho de cura” no duplo sentido da palavra. Tem todos os pré-requisitos para curar as pessoas de seu sofrimento psíquico e dos sofrimentos psicogenéticos ligados com isso. Possui todo instrumentário para suspender o mínimo dos distúrbios psíquicos, ponto de partida para a formação das neuroses, assim como fazer frente aos mais complexos desenvolvimentos de enfermidades psíquicas e suas consequências, com resultados positivos. Mas, ao lado disso, sabe o caminho e tem os recursos para levar o ser humano singular a alcançar sua “cura”, àquele conhecimento e plenitude de sua própria pessoa, que foi desde há muito tempo a meta e o fim de toda busca espiritual. Segundo sua essência, esse caminho se retrai de todas as explicações abstratas. Isso porque, através da concepção e da explicação teóricas, só se pode fazer jus ao edifício de pensamento de Jung apenas até certo ponto; para compreendê-lo integralmente é preciso ter experimentado em si seu efeito vivo. Todavia, a esse efeito, assim como a todo “acontecimento” que transforma o ser humano, só se pode apontar. Enquanto “cura da alma”, só pode ser vivenciado ou, dito com mais precisão, “sofrido”. Também esse caminho, como toda vivência psíquica, é propriamente uma experiência pessoal. Sua subjetividade é precisamente sua verdade mais efetiva. Essa experiência da psique é única, por mais que também se repita, e só se abre à compreensão racional dentro desses seus limites subjetivos.

À psicoterapia junguiana, ao lado de seu aspecto medicinal efetivo, é própria também uma capacidade eminente de orientar a psique, educar e formar a personalidade. Ambas as vias podem, mas não necessariamente devem ser trilhadas ao mesmo tempo. Pertence à natureza da coisa em questão que bem poucos querem e estão determinados a seguir esse “caminho de cura”, e também “esses poucos trilham o caminho apenas por necessidade interior, para não dizer por premência; isso porque esse caminho é mais estreito que um fio de navalha”129.

Mas Jung não propôs uma receita genérica para a infinidade múltipla de doentes que se dedicaram a sua terapia. Os métodos empregados e sua intensidade variam de acordo com as condições do caso singular, a adequação psíquica e a compleição própria do paciente. Jung reconhece a função decisiva que desempenham a sexualidade e a busca de poder no ser humano. De acordo com isso, há também inúmeros casos nos quais o sofrimento por distúrbios deve ter suas raízes num desses fatores instintivos e que, por isso, devem ser abordados a partir de pontos de vista de Freud ou de Adler. Mas, enquanto para Freud o princípio esclarecedor é principalmente o princípio do prazer, e, para Adler, a vontade de poder, Jung vê ao lado desses ainda outros fatores, igualmente essenciais, como elementos mobilizadores do psíquico, rejeitando decididamente, assim, o postulado da predominância de um único fator propulsor em todos os distúrbios psíquicos. Ao lado desses dois, seguramente importantes, há para ele ainda outros fatores propulsores muito importantes, e, principalmente e acima de tudo, aquele atribuído apenas ao ser humano: a necessidade espiritual e religiosa inata à psique. Essa concepção de Jung é uma parte constitutiva decisiva de sua teoria que a identifica frente a todas as outras teorias, determinando seu direcionamento prospectivo sintético. Isso porque “o espiritual aparece na psique também como instinto, como paixão verdadeira. Não é um elemento derivado de outro instinto, mas um princípio sui generis, a saber, a forma indispensável da força instintiva”130.

Com isso, desde o princípio, em Jung se estabelece um contrapolo equitativo ao universo dos instintos naturais, à natureza biológica originária em nós, formando, configurando e desenvolvendo essa natureza originária, e é própria apenas ao ser humano. O polimorfismo da natureza instintiva primitiva e o caminho de formação da personalidade estão postados um frente ao outro, como pares contrapostos chamados de natureza e espírito. Esse par de contrapostos não é apenas a expressão eterna, mas talvez também a base daquela tensão de onde emana a energia psíquica131. Representa, por assim dizer, os dois tons básicos sobre os quais se constrói a estrutura da psique dividida em dois ramos como contrapontos. “Do ponto de vista desse modo de consideração, os processos psíquicos aparecem como balança entre espírito e instinto, sendo que de princípio fica totalmente obscuro se um processo pode ser designado como espiritual ou instintivo. Essa avaliação ou interpretação depende totalmente do ponto de vista ou do estado da consciência [...]. Os processos psíquicos se comportam, assim, como uma balança que desliza ao longo da consciência. Uma vez encontra-se próxima dos processos instintivos e assim é influenciada por esses; outra vez se aproxima do outro extremo, onde predomina o espírito, e até dos processos instintivos a ele contrapostos”132.

Todavia, aqui, não se deve compreender os conceitos “natureza” e “espírito” no mesmo sentido em que são usados em geral na filosofia. Jung emprega o conceito “instinto” (Trieb), que em parte alguma aparece definido univocamente, sempre no sentido de uma “ação ou acontecimento instintivo”, ou seja, de um funcionamento autônomo sem motivação consciente. Assim, por “tensão” entre natureza e espírito, ele compreende essencialmente e sobretudo uma “contraposição eventual entre consciência e inconsciente, isto é, o instintivo”, uma vez que do ponto de vista empírico é só o conflito desse último que pode ser testemunhado. “Na representação e no sentir instintivo, espírito e matéria estão contrapostos no nível psíquico. Tanto matéria quanto espírito aparecem na esfera psíquica como propriedades designativas de conteúdos da consciência. Segundo sua natureza última, as duas são transcendentais, ou seja, invisíveis, na medida em que a psique e seus conteúdos representam a única realidade que nos é dada diretamente”133.

A relação com as ciências exatas

Aqui encontramo-nos num ponto decisivo, que dá a direção, o matiz e a profundidade a toda doutrina de Jung, transformando-a naquele sistema despreconceituoso que não fecha o acesso a novas problemáticas, em qualquer direção, que se embrenha por si na descoberta de um novo país psíquico. O leitor atento acreditará encontrar contradições conceituais nos livros de Jung. Todavia, o conhecimento da psique precisa reproduzir os fatos do modo que os encontra previamente. E ele não os encontra como um “isso ou aquilo”, mas precisamente, como afirmou certa vez Jung, como “tanto isso quanto aquilo” e, assim, também a pesquisa junguiana da verdade é simultaneamente conhecimento e contemplação.

Ora, aqui, quando vemos surgir, então, em contraposição a Jung, a palavra “místico”, mais ou menos carregada de objeções, isso só demonstra que ali se esquece totalmente que a mais rigorosa das ciências modernas da natureza, a física teórica, em sua forma atual, não é mais nem menos mística que a teoria de Jung, que dentre todas as ciências da natureza apresenta as analogias mais próximas a ela. O que se chama na psicologia de Jung de uma contradição sustenta-se em toda física teórica atual como um real “ou isto e ou aquilo” do dualismo, que muitas vezes tem de afirmar-se apenas com auxílio de construções lógicas artificiais, simplesmente porque a realidade o impõe. Esse dualismo na formação conceitual da física moderna torna-se visível quando nela se tem de trabalhar, por exemplo, com hipóteses contraditórias sobre a natureza da luz (como onda ou corpúsculo)134, ou quando fracassam todas as tentativas de unificar em uma forma logicamente livre de objeções à Teoria da Relatividade de Campo e a Teoria Quântica. Mas nem por isso alguém irá objetar que os físicos modernos carecem de capacidade e lisura lógicas, justamente porque a natureza dos fatos físicos, que parece não ser lógica, leva a se reconhecer elementos inconciliáveis, sim, até paradoxais; naturalmente, não sem a esperança e a busca de alcançar unidade, mesmo que não possa ser forçada.

Também para a psicologia a dificuldade reside no fato de que, partindo da empiria e não a abandonando, depara-se com um âmbito no qual a expressão linguística provinda da experiência tem de permanecer naturalmente inadequada e um mero ensaio. Nesse sentido, Jung é tão pouco um “metafísico” quanto o foi um cientista da natureza, pois também seus enunciados dizem respeito sempre apenas a conquistas e achados empíricos, restringindo-se rigorosamente ao que pode ser apreendido empiricamente. Mas aqui, não diferente do que se dá nas ciências modernas da natureza, há um limite onde finda a empiria e começa a metafísica. As admissões de Planck, Hartmann, Uexküll, Eddington, Jeans et al. atestam isso. Todavia, já a partir de sua essência, o âmbito de experiência aberto na psicologia junguiana, pesquisado e processado sistematicamente dentro da ciência segundo determinados pontos de vista, afasta-se do sentido usual do modo de consideração das ciências da natureza até o presente e suas exigências de uma apreensão conceitual abstrata do que deve ser expresso. Observe-se paralelamente, também nas ciências exatas modernas, apenas aquela que mais avançou conceitualmente, por ser relativamente a mais simples, a física, tem a possibilidade de apreender suas hipóteses ousadas, que não podem mais ser verificadas pela visão, na linguagem pura, livre de associações, da matemática.

Assim, toda psicologia profunda moderna tem em última instância uma cabeça de Jano, uma face dupla, das quais uma está voltada para a experiência viva, a vivência, e a outra ao pensamento abstrato, o conhecimento. Não será por acaso que, precisamente, tantos pensadores fundamentais e profundos, que viveram no universo conceitual e de linguagem da Europa – seja um Pascal, um Kierkegaard ou Jung –, esbarraram necessariamente e com fecundidade em paradoxos ao se ocuparem com questões que não tratam de uma região unidirecional, da essência da psique, que comporta sentido duplo e uma dupla face.

O grande avanço de Jung e a justificativa para o conceito de “síntese”, como é compreendido por ele, reside precisamente em ter saído do pensamento causal unidirecional da velha psicologia – a saber, em seu conhecimento de que o espírito não deve ser considerado como um mero epifenômeno, como “sublimação”, mas como princípio sui generis, como princípio formador e assim supremo, unicamente através do que se torna possível, psíquica e talvez também fisicamente, a forma135. Sem que precisemos procurar aqui, precocemente, paralelos, indique-se que precisamente o conceito de causalidade e suas dificuldades lógicas características frente a novas experiências foram o que provocaram a tensão revolucionária na física. A discussão moderna do conceito de causalidade, em relação ao “causal em sentido estrito”, mostrou ser impossível apresentar a relação causal como causa e efeito, mas que sob isso se poderia compreender apenas “sequências ordenadas”. Jung já havia mostrado que o conceito de causalidade, como é empregado em geral na ciência, não poderia ser suficiente para a psicologia. Em seu prefácio ao “Collected Papers on Analytical Psychology”136, ele já dissera: “Causalidade, porém, é apenas um princípio, e a psicologia, segundo sua essência, não pode ser esgotada apenas através de explicações causais, uma vez que a psique tem também determinação finalista”. Essa determinação finalista fundamenta-se numa lei interior, desconhecida à nossa consciência, que radica por seu lado na manifestação e atuação de símbolos que sobem do inconsciente. Como já foi mencionado à p. 83s. – a partir daí Jung dedicou diversos estudos ao problema da acausalidade, propondo-o como um princípio específico de esclarecimento de determinados fenômenos, que ele resumiu sob a denominação de “coincidência de sentido” (sinnvolle Koinzidenz). Mas tampouco o elemento criador em nossa psique e suas manifestações podem ser atestados ou explicados causalmente. “Nesse ponto decisivo, a psicologia está além da ciência da natureza. É bem verdade que tem em comum com essa o método de observação e a constatação empírica dos fatos. Falta-lhe, porém, o ponto arquimediano fora, e assim a possibilidade de uma medição objetiva”137. Não há propriamente nenhum ponto arquimediano a partir de onde se pudesse julgar, visto que a psique não pode ser distinguida de sua manifestação. A psique é o objeto da psicologia e infelizmente ao mesmo tempo também seu sujeito. Não podemos fugir desse fato”138. Isso porque as consequências que podem tirar pensadores como Whitehead e Eddington, a partir da própria física, dirigem-se às forças espirituais primárias, que configuram as formas, que se poderiam igualmente qualificar de “místicas” e que já foram também efetivamente assim qualificadas.

Assim, já não precisamos sentir aquela repulsa usual frente à palavra “místico” – e sobretudo não se deve confundi-lo com um irracionalismo barato –, uma vez que é precisamente a ratio que aqui se choca conscientemente com seus próprios limites, como também a lógica moderna procura aqui um ponto delimitador honesto. Não, por exemplo, recusando o conceito de “místico”, mas, com fundamentação lógica, reconhecendo sua autonomia, e quando se define e assim se delimita corretamente o conceito de “conhecimento”, reconhecendo a soberania do “místico”.

Naquele país que faz limite entre conhecimento e vivência, onde se movimenta necessariamente toda “psicologia profunda” e que tem de criar natural e frequentemente dificuldades insuperáveis à linguagem conceitual, Jung se esforça constantemente, com a força criadora de sua expressão de linguagem, por um discernimento necessário e legítimo, muito embora o esforço nem sempre seja coroado com sucesso por causa do ardil do objeto. O que perfaz propriamente o “metafísico” é precisamente a confusão entre conhecer e vivenciar e o autoequívoco em que se incorre quando se crê poder reproduzir o último como o primeiro; um erro que Jung busca evitar com rigor.

Uma identidade curiosa da expressão que usam a lógica moderna e a psicologia junguiana talvez represente mais que um mero acaso, a saber, a expressão o “supervisionar os problemas”, como ambas chamam com as mesmas palavras – onde já não mais se trata propriamente de questões respondíveis, mas apenas de problemas vivenciáveis, aqueles problemas que formam também o conteúdo da orientação psíquica junguiana e experiência junguiana da psique. De certo, e isso jamais deve ser desconsiderado, a “equiparação subjetiva”, à qual está submetido qualquer um, mesmo um espírito que tem um grau científico supremo, tem aqui igualmente sua validade, impondo assim a todo e qualquer enunciado seus limites adequados.

Modos de consideração causal e final

Se confrontarmos esquematicamente as três correntes psicoterapêuticas de ponta hoje, de acordo com seus pontos de vista de vanguarda139, poderíamos dizer: Sigmund Freud procura por causae efficientes, as causas do distúrbio psíquico posterior, Alfred Adler considera e elabora a situação de partida no sentido de uma causae finalis, e ambos consideram os instintos como causae materiales. Jung, muito embora também ele inclua naturalmente as causae materiales e igualmente aceite as causae finales como ponto de partida e de meta140, acrescenta alguma coisa a mais e algo extremamente importante através das causae formales, portanto, aquelas forças formadoras que são representadas sobretudo pelos símbolos, como mediadores entre inconsciente e consciência ou entre todos os pares contrários psíquicos. A teoria de Jung “mantém em vista o resultado final da análise e considera as intenções e impulsos fundamentais do inconsciente como símbolos, que apontam uma determinada linha do desenvolvimento futuro. Temos de admitir não haver justificativa científica para a aplicação dessa hipótese, uma vez que nosso estágio científico atual se fundamenta totalmente no princípio da causalidade. Todavia, causalidade é apenas um princípio, e a psicologia, já em vista de sua essência, não pode se esgotar apenas numa explicação causal, visto que a psique também tem uma determinação finalista. Todavia, ao lado desse argumento filosófico discutível há um outro muito mais essencial em favor de nossa hipótese, a saber, aquele da necessidade de vida. É impossível, pois, viver conforme as tendências de um hedonismo infantil ou de um impulso infantil de poder. Se essas devem ser incluídas no plano de vida, então devem ser concebidas simbolicamente. A partir da concepção simbólica de impulsos infantis surge um comportamento que pode ser chamado de filosófico ou religioso, cujos conceitos também caracterizam o direcionamento do desenvolvimento do indivíduo. Por um lado, o indivíduo é um complexo fixo e imutável de fatos psíquicos, mas, por outro, é também uma essencialidade extremamente mutável.

As tendências primitivas da personalidade são reforçadas por uma redução exclusiva a causas; mas isso só é útil se, ao mesmo tempo, essas tendências primitivas foram mantidas em equilíbrio através do reconhecimento de seu conteúdo simbólico. Análise e redução conduzem a verdade causal. Mas, em si, isso não representa nenhum suporte para a vida, gerando apenas resignação e desespero. Todavia, o reconhecimento do verdadeiro valor de um símbolo, ao contrário, leva a uma verdade edificante e nos ajuda a viver. Fomenta a esperança e as possibilidades de um desenvolvimento futuro”141; e, mais tarde, ele afirmou142: “Ao esclarecer um fato psicológico é preciso recordar que o psicológico exige um modo de consideração duplo, a saber, o modo causal e o final. Falo deliberadamente de final, para evitar uma confusão com o conceito do ‘teleológico’. Por finalidade quero designar meramente a busca imanente de um fim psicológico. Em vez de “busca de um fim”, poderia ser dito também sentido de meta”. Expresso de modo um pouco diverso, soaria o mesmo: Freud lança mão de um método redutivo, Jung de um prospectivo. Freud trata do material analiticamente, dissolvendo a atualidade no passado, Jung trabalha sinteticamente, edificando a partir da situação atual, rumo ao futuro, na medida em que procura estabelecer relações entre consciência e inconsciente, ou seja, entre todos os pares psíquicos contrapostos, para prover a personalidade de uma base sobre a qual se possa edificar um equilíbrio psíquico duradouro.

O procedimento dialético

O método de Jung, portanto, não é um “procedimento dialético” na medida em que é um diálogo entre duas pessoas e como tal um efeito mútuo entre dois sistemas psíquicos. É dialético também em si, enquanto um processo que, conduzindo os conteúdos da consciência até os conteúdos do inconsciente, portanto do ego ao não ego, provoca um confronto e embate entre essas duas realidades psíquicas que têm em vista uma transição dessas duas em algo terceiro, portanto numa síntese, e nessa desembocando. Ali, do ponto de vista terapêutico, torna-se um pré-requisito indispensável o psicólogo reconhecer esse princípio dialético com a mesma incondicionalidade. Ele não “analisa” um objeto, mantendo uma distância teórica, mas está dentro da análise tanto quanto o paciente143.

Por isso, e também por causa da atuação autônoma, independente do inconsciente, a “transferência”, a projeção cega de todas as representações e sentimentos do paciente no analista, é um recurso terapêutico menos inevitável dentro do método junguiano do que em outros métodos analíticos. Em certas circunstâncias, quando assume formas exageradas, Jung considera a transferência inclusive como um empecilho no caminho para o progresso efetivo do tratamento. Em todo caso, ele considera que uma “ligação” a um terceiro, por exemplo, na forma de uma relação amorosa, como uma “base” apropriada para uma solução analítica de neuroses ou para um embate com o inconsciente no interesse de um desenvolvimento psíquico, como, por exemplo, a “situação de transferência” referida ao analista, vista por Freud como indispensável. Não é importante apenas o “reviver” a emoção traumática de outrora, sofrida na infância, que forma a base de toda neurose, como pensa Freud, mas em geral o “vivenciar” suas dificuldades atuais num tu concreto, para poder confrontar-se com elas. Aqui é bom que ambos se “doem”, analista e analisando, mas também só é possível na medida em que ambos conservam sua objetividade.

O tratamento é um influenciar inconsciente mútuo, e o encontro de duas personalidades é como a mistura de dois corpos químicos; se como tal surgir uma ligação, ambos terão sido modificados. No âmbito do procedimento dialético, “o médico tem de sair de seu estado anônimo para prestar contas de si mesmo, exatamente aquilo que ele exige de seu paciente”144. A função que cabe ao terapeuta no método junguiano, portanto, não é como no método freudiano, certa função passiva, mas se constitui numa intervenção ativa, um fomentar, um mostrar a direção, um confronto e embate pessoal. Nessa forma de influência, que significa um impulso específico para o processo de transformação da psique, uma vez que influi no acontecimento vivo através do elemento igualmente vivo, fica claro que têm muita importância a personalidade do médico, sua envergadura e amplidão, sua limpidez e força. Desempenha na terapia junguiana um papel muito mais importante e ativo do que em todos os outros métodos de psicologia profunda, razão pela qual também Jung exige uma assim chamada “análise didática” (Lehranalyse), ou seja, o analista deve ser analisado profundamente, como conditio sine qua non do exercício profissional da psicoterapia. Isso porque, mais que para qualquer outra situação, aplica-se aqui a frase: Todo guia de almas só poderá levar seus orientandos até o ponto em que ele próprio chegou. Onde, porém, deve-se observar que mesmo um terapeuta de muito destaque e hábil não poderia sacar de seu paciente mais do que as possibilidades existentes nele em potência, dadas pela disposição natural, onde nenhum esforço em favor da psique poderá estender os limites da personalidade interior para além do que lhe é dado de nascença. Assim, a possibilidade de desenvolvimento psíquico do indivíduo permanece sempre condicionada por sua estrutura individual, e a meta a ser alcançada será sempre a melhor possível dentro desses limites.

Caminhos do inconsciente

Segundo Jung, “há quatro métodos para se investigar o desconhecido num paciente”.

I. O primeiro método e o mais simples é o método de associação. Seu princípio é investigar os principais complexos, os quais se desvelam através de distúrbios no experimento da associação145. É um método altamente recomendável para iniciantes para introdução na psicologia analítica e na sintomatologia dos complexos.

II. “O segundo método, o método da análise dos sintomas, possui um valor meramente histórico. Através do recurso da sugestão procura-se fazer e deixar com que o paciente reproduza certos sintomas patológicos com base em recordações ali remanescentes. O método pode ser muito útil naqueles casos em que o fator principal da neurose é um choque, uma ferida psíquica ou um trauma [...] foi sobre esse método que Freud fundamentou sua antiga teoria onírica da histeria.

III. A terceira teoria, a análise anamnética, tem uma grande importância tanto como terapia quanto como método de pesquisa. Consiste praticamente numa anamnese ou recordação cuidadosa do desenvolvimento histórico da neurose [...]. É muito frequente acontecer de só esse procedimento ter grande valor terapêutico, uma vez que habilita o paciente a compreender os fatores principais de sua neurose, ajudando-o assim, sob certas circunstâncias, a modificar decisivamente sua atitude. Naturalmente que é inevitável e necessário que o médico não só faça perguntas, mas que dê certas dicas e esclarecimentos, apontando para conexões importantes, inconscientes ao paciente.

IV. O quarto método é a análise do inconsciente [...]. Só começa quando se esgotou os materiais da consciência [...]. Muitas vezes, o método anamnético representa uma introdução para esse quarto método [...]. Ali o contato pessoal é de fundamental importância, pois forma a única base a partir de onde se pode ousar enfrentar o inconsciente [...]. De modo algum é fácil estabelecer tal contato, e não é possível fazê-lo de outro modo a não ser através de uma comparação cuidadosa dos dois posicionamentos, com o máximo possível de ausência de prejulgamento de ambos os lados [...]. A partir daí começamos a nos ocupar com o processo psíquico vivo, a saber, com os sonhos146.

O sonho

O caminho mais viável e mais efetivo para conhecer o mecanismo e os conteúdos do inconsciente passa necessariamente pelo sonho, cujo material consiste de elementos conscientes e inconscientes, conhecidos e desconhecidos. Esses elementos podem surgir nas mais diversas misturas e ser tomados de toda parte, a começar pelos assim chamados “restos do dia” até conteúdos profundos do inconsciente. Seu arranjo dentro do sonho, segundo Jung, está além de toda e qualquer causalidade. Tampouco espaço e tempo podem ser-lhes aplicados. Sua linguagem é arcaica, simbólica, pré-lógica; uma linguagem em imagens, cujo sentido só pode ser descortinado através de um procedimento próprio de interpretação. – Jung atribui ao sonho uma importância extraordinária, concebendo-o não apenas como o caminho que leva ao inconsciente, mas como uma função através da qual o inconsciente, em grande parte, anuncia sua atividade reguladora. Isso porque o sonho expressa a cada vez o “outro lado”, o lado contraposto à atitude consciente.

“O único conceito possível que se me ofereceu para formular esse comportamento foi o conceito de compensação, o único que está em condições, segundo me parece, de recolher, com sentido, todos os modos de comportamento do sonho. Deve-se distinguir com rigor a compensação da complementação. O complemento é um conceito por demais restrito e restritivo, que não é suficientemente capaz de explicar com adequação a função do sonho, uma vez que por assim dizer designa um comportamento complementar compulsivo. Na medida em que significa ao mesmo tempo um refinamento psicológico da complementação, a compensação, ao contrário, é uma contraposição e comparação de diversos dados e posicionamentos, através do que surge um equilíbrio ou uma correção147. Essa função compensatória inata à psique, que atua no sentido da individuação, ou seja, no sentido do desenvolvimento da psique rumo à “inteireza”, parece ser um dom exclusivo do ser humano; talvez represente até aquela atividade psíquica que podemos designar como algo especificamente humano, pura e simplesmente.

Em vista dessa função compensatória do sonho altamente importante, que não só expressa medos ou desejos, mas intervém em todo comportamento psíquico, Jung rejeita também a ideia de estabelecer uma listagem de “símbolos estandardizados”. Os conteúdos inconscientes são sempre multívocos, e seu sentido tanto depende do contexto no qual ocorrem quanto da respectiva situação de vida e psíquica específicas de cada indivíduo que sonha. Muitos sonhos, inclusive, ultrapassam a problemática pessoal do indivíduo que sonha, e se constituem em expressão de problemas que retornam na história da humanidade e tratam do todo coletivo humano. Muitas vezes têm caráter profético e também hoje são considerados pelos primitivos como assunto pertinente a todo clã e interpretado abertamente em grandes cerimônias.

Ao lado do sonho, Jung distingue ainda fantasias e visões como portadoras da manifestação do inconsciente. São aparentadas com o sonho e aparecem num estado de consciência diminuído. Denunciam um conteúdo de sentido manifesto e um de sentido latente, provêm do inconsciente pessoal ou coletivo, oferecendo por isso um material de igual valor ao sonho para a interpretação psicológica. A sua variabilidade é ilimitada, passando dos sonhos usuais diários e sonhos de desejos, até visões dos estáticos, carregadas de significado.

Para Jung, o instrumento principal do método terapêutico, portanto, é formado pelo sonho, enquanto aquele fenômeno psíquico que oferece o acesso mais fácil aos conteúdos do inconsciente, habilitando-se assim de maneira específica a clarear e explicitar os nexos interiores através de sua função compensatória. Isso porque “o problema da análise dos sonhos está estreitamente dependente da hipótese do inconsciente; sem este, o sonho não passa de um conglomerado de restos desintegrados do dia”148. Jung utiliza igualmente as fantasias e visões dos pacientes no mesmo sentido que o sonho. A seguir, se falamos apenas do sonho, por razões de facilidade, ali também estão as fantasias e as visões.

A interpretação do sonho

Ao lado da discussão e processamento do respectivo material, ele mesmo, por meio do contexto ou de associações, fornecidos não só pelo paciente, mas também pelo terapeuta, a interpretação dos sonhos, visões e de toda espécie de imagens psíquicas assume um posto central no processo dialético do procedimento terapêutico. Todavia, é só o paciente que decide, em última instância, sobre a interpretação dada ao material trazido pelo paciente. Sua individualidade é decisiva aqui. Isso porque deve surgir nele uma vivência clara de anuência, que não é um dizer sim racional, mas uma vivência real, a fim de que a interpretação possa ser considerada corroborada. “Quem quiser evitar sugestionalidade deve, portanto, encontrar aquela fórmula que alcança a concordância do paciente”149. Do contrário, o próximo sonho ou a próxima visão volta inevitavelmente a trazer à linguagem o mesmo problema. E continua trazendo-o até que a pessoa tome uma nova atitude em consequência do que “vivenciou”. A objeção frequentemente ouvida de que o terapeuta poderia influenciar sugestivamente com a interpretação só pode ser feita por uma pessoa que não conhece a natureza do inconsciente; pois “a possibilidade e o perigo do prejulgamento é superestimado. O psíquico-objetivo, o inconsciente, é independente em máximo grau do ponto de vista da experiência. Se não fosse assim, tampouco poderia exercer sua função própria, a saber, a compensação da consciência. A consciência pode ser adestrada como um papagaio, mas não o inconsciente”150. Se o médico e o paciente se equivocam na interpretação, com o tempo são rigorosa e inapelavelmente corrigidos pelo material inconsciente, que opera sempre de forma autônoma e que ininterruptamente dá continuidade ao processo.

Jung diz: “Não se pode explicar o sonho com uma psicologia retirada da consciência. É um funcionar determinado que independe de querer e desejar, de intenção ou estabelecimento consciente de uma meta pelo eu. É um acontecimento sem intencionalidade, assim como se dá com tudo na natureza [...]. É bastante provável que nós sonhemos constantemente, mas quando estamos acordados a consciência faz tanto alarido que não mais ouvimos. Se conseguíssemos anotar sem interrupções, poderíamos ver que o todo descreve uma determinada linha”151. Com isso se disse que o sonho é um fenômeno psíquico natural, mas de uma espécie autônoma própria, com um caráter finalista desconhecido para a consciência. Tem sua própria linguagem e suas próprias leis, às quais não podemos nos aproximar com a psicologia da consciência, por assim dizer como sujeito. Isso porque “não somos nós que sonhamos, mas somos sonhados. “Sofremos” o sonho, somos os objetos”152. Quase poderíamos dizer que no sonho conseguimos vivenciar os mitos e contos que lemos quando estamos acordados, como se fossem reais. Mas isso é algo essencialmente distinto.

As raízes do sonho

As raízes do sonho, na medida em que somos capazes de constatá-las, residem em parte nos conteúdos conscientes – impressões da véspera, restos do dia – e, em parte, em conteúdos constelados do inconsciente, que podem ser acionados através de conteúdos conscientes ou de processos inconscientes espontâneos. Esses últimos processos, que não permitem reconhecer qualquer relação para com a consciência, podem provir de qualquer lugar. Podem ser fontes somáticas, acontecimentos físicos ou psíquicos no mundo circunstante ou acontecimentos passados ou futuros; quanto a essas últimas, basta pensarmos, por exemplo, em sonhos que vivificam um acontecimento histórico há muito tempo já passado ou que antecipam profeticamente um acontecimento futuro (como pode ser o caso, por exemplo, em sonhos fortemente arquetípicos). Há sonhos que, originariamente, tinham uma relação com a consciência, mas a perderam, como se jamais tivessem passado por isso, e agora trazem à tona fragmentos incompreensíveis, totalmente sem conexão; depois há ainda aqueles que representam os conteúdos psíquicos inconscientes do indivíduo, sem que possam ser reconhecidos como tais.

Como já foi dito na primeira parte dessa apresentação, Jung designa o arranjo das imagens dos sonhos como estando fora das categorias de espaço e de tempo, e não estando submissas a nenhuma causalidade. O sonho é uma “mensagem enigmática de nosso lado noturno”153. Jamais é uma mera repetição de vivências ou acontecimentos já passados – com exceção de certa categoria de sonhos-choque ou sonhos reativos, nos quais certos acontecimentos objetivos causaram um trauma psíquico, como, por exemplo, ataques de granadas ou de bombas na guerra – tampouco ali onde pensamos reconhecer isso. Assim, esses sonhos que essencialmente representam apenas uma reprodução do trauma ou da vivência do choque tampouco podem ser concebidos como compensatórios. Também sua conscientização não poderá fazer desaparecer o abalo que determinou o trauma. “O sonho vai tranquilamente ‘reproduzindo’ repetidamente o fato, ou seja, o conteúdo do trauma, que se tornou autônomo, opera por si e quiçá até que o apelo traumático esmoreça por completo”154. Ademais, o sonho “sempre está ligado ou é modificado de acordo com uma meta, mesmo que muitas vezes sem chamar a atenção, mas de uma maneira diferente do que se correspondesse a metas da consciência ou da causalidade”155.

Os diversos tipos de sonho

A possibilidade de significado dos sonhos pode ser reduzida aos dois seguintes casos típicos:

Como reação do inconsciente a uma determinada situação consciente, surge um sonho que aponta de maneira bem clara para impressões do dia, complementando ou compensando, de tal modo que se torna visível que esse sonho jamais teria surgido sem uma determinada impressão do dia da véspera.

O sonho não surge de uma determinada situação consciente, que – de forma mais ou menos clara – teria provocado seu surgimento, mas em virtude de certa espontaneidade do inconsciente, sendo que, a uma determinada situação concreta, esse acrescenta outra, que é tão distinta da primeira, surgindo um conflito entre ambas. Enquanto no primeiro caso o descenso se encaminha da parte mais forte, consciente, em direção à parte inconsciente, nesse segundo caso se estabelece equilíbrio entre os dois.

Todavia, se a contraposição, exposta pelo inconsciente, for mais forte que a posição consciente, então surge um descenso que parte do inconsciente rumo à consciência. Então, chega-se àqueles sonhos significativos que, sob certas circunstâncias, podem modificar inteiramente uma atitude consciente, e até invertê-la.

Esse último tipo, no qual toda a atividade e peso significativo se encontram exclusivamente no âmbito inconsciente, e que fornece os sonhos mais característicos, mais difíceis de interpretar, mas os mais importantes, apresenta processos inconscientes que já não deixam entrever qualquer relação com a consciência. O sonhador não os compreende e, em geral, admira-se sobre a razão de sonhar isso, uma vez que nem sequer se pode perceber alguma conexão condicional. Mas justo esses sonhos possuem muitas vezes um caráter irresistível, justamente por serem arquetípicos; frequentemente eles têm também caráter de oráculos. Às vezes esses sonhos se manifestam igualmente antes da irrupção de doenças mentais e neuroses acentuadas, onde irrompe de repente um conteúdo que impressiona profundamente quem sonha, mesmo quando ele não o compreende156. A concepção de muitas pessoas, segundo a qual quanto mais sonhos arquetípicos se tem, melhor, não é convincente na maioria das vezes; isso porque, muito pelo contrário, seu aparecimento frequente testemunha justamente uma mobilidade superforte das profundezas coletivas inconscientes, que está ligada com o perigo de explosões e reviravoltas repentinas, razão pela qual, em tais casos, na análise aconselha-se proceder com calma e extrema cautela. Por mais rico de benefícios que possa se mostrar um sonho arquetípico quando se consegue compreender e integrar corretamente seu conteúdo no momento certo, também pode se tornar ameaçador quando o eu de quem sonha ainda é por demais estreito, ainda muito fraco para defrontar-se com ele e buscar resolvê-lo.

Na distinção desses diversos tipos de sonhos, o peso incide nas proporções que se encontram as reações do inconsciente em relação à situação consciente. Isso porque se podem constatar as mais variadas transições, desde uma reação do inconsciente ligada aos conteúdos da consciência até a manifestação espontânea das profundezas inconscientes157.

O arranjo dos sonhos

Qual é, pois, o sentido do sonho e quais são os recursos para interpretar o sonho?

Toda interpretação não passa de uma hipótese, uma mera tentativa de decifração de um texto desconhecido. É muito raro se interpretar um sonho isolado sem transparência mesmo que seja com uma segurança mesmo que aproximada. Uma relativa segurança alcança uma interpretação só numa série de sonhos, quando os sonhos sequentes corrigem os erros de interpretação dos precedentes. Jung foi o primeiro a investigar séries completas de sonhos. Ali ele partia da hipótese de que os “sonhos têm uma sequência como um monólogo sob a cobertura da consciência”158, muito embora sua sequência cronológica nem sempre coincida com a real sequência interna de sentido. Não corresponde, portanto, necessariamente a uma sequência, na qual o sonho B resultaria do sonho A e o sonho C do sonho B. Isso porque o real arranjo dos sonhos é radial; ele se agrupa ao redor de um “ponto central significativo”. Os sonhos rebrilham a partir de um centro, como por exemplo, assim:

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Onde o sonho C pode acontecer antes do A e o sonho B pode dar-se tanto depois quanto antes do sonho F. Quando esse ponto central for descortinado e trazido à consciência, então deixa de atuar, e os sonhos surgem a partir de outro ponto central, e assim adiante. Por isso é extremamente importante aconselhar os pacientes para que, por assim dizer, continuem “anotando” seus sonhos e a interpretação dos mesmos, através do que se assegura certa continuidade e “o paciente aprende a negociar corretamente com seu inconsciente”159. Nisso a orientação psicoterapêutica não se mantém passiva, mas se transforma numa colaboração ativa, que intervém no acontecimento, apontando para o possível sentido do sonho, explicando e orientando a direção ao paciente segundo a qual o paciente tem de processar e assimilar conscientemente a interpretação160. A verdadeira interpretação do sonho é, via de regra, uma tarefa muito exigente. Pressupõe tato psicológico, capacidade combinatória, intuição, conhecimento do mundo e do ser humano e sobretudo um saber específico, no qual importa ter tanto conhecimentos bastante amplos quanto certa intelligence du coeur161.

A multiplicidade de significados dos conteúdos do sonho

Todo conteúdo de sonho sempre apresenta muitos significados e, como já foi dito, está condicionado à individualidade da respectiva pessoa que sonha. A hipótese de se tomar símbolos estandardizados, que poderiam ser traduzidos como que a partir de um dicionário, estaria em contradição direta com a concepção junguiana de essência e de estrutura da psique. Para poder interpretar correta e efetivamente um conteúdo é preciso confrontá-lo tanto com o conhecimento perfeito da situação de vida e da psicologia manifesta, consciente da pessoa que sonha, quanto com a reprodução precisa do contexto do sonho – e é precisamente este o trabalho da análise, com seus recursos de associação e amplificação. O contexto psicológico de conteúdos oníricos consiste naquela “trama de relações na qual o conteúdo do sonho está inserido naturalmente. Do ponto de vista teórico, jamais se poderá conhecer esse conteúdo de antemão, e todo sentido de sonho e cada uma de suas partes devem ser pressupostos como sendo desconhecidos”162. É só depois de se ter feito um levantamento cuidadoso do contexto que se poderá fazer a tentativa de uma interpretação. É só depois de se ter estabelecido no teor do sonho o sentido encontrado, com base no levantamento do contexto, e de se ter constatado a reação de sentido, ou seja, do fato que mostra até que ponto se deu um sentido satisfatório, que se poderá verificar algum resultado. Todavia, em nenhuma circunstância se deve admitir que o sentido assim encontrado corresponda à expectativa subjetiva, isso porque a solução do sentido é muitas vezes surpreendentemente diferente do que seria de se esperar subjetivamente. Ao contrário, uma correspondência a essa expectativa daria todas as razões para se desconfiar da interpretação. Isso porque o inconsciente é na maioria das vezes inesperadamente “outro”. Sonhos paralelos, cujo sentido coincide com a atitude da consciência, são extremamente raros163.

Jung afirma que é só raramente que se pode concluir a partir de um único sonho sobre a situação integral da psique; no máximo se poderá concluir de um problema agudo momentâneo ou de um aspecto do mesmo. Assim, é possível alcançar uma imagem completa da causa e do decurso do distúrbio só através da observação, perquirição e exploração de uma série de sonhos relativamente longa. A série substitui, por assim dizer, aquele contexto que a análise freudiana procura descortinar através da “livre associação”. Assim, em Jung, a “associação dirigida” ajuda a clarear e regular o processo psíquico, por um lado, motivado e orientado pelo médico, e, por outro, através da corrente das manifestações do inconsciente que se tornam visíveis nos sonhos etc.

O aspecto compensatório do sonho

Em geral, o posicionamento do inconsciente é complementar ou compensatório em relação à respectiva situação da consciência. “Quanto mais unilateralmente e quanto mais a atitude consciente se afasta das possibilidades vitais ótimas, tanto maior chance de ocorrerem sonhos vivos de um aspecto fortemente contrastante, mas com uma finalidade compensatória, como expressão de uma autorregulação psicológica do indivíduo”164. Ali, naturalmente, o caráter da compensação está intimamente ligado com todo o ser da respectiva pessoa. “É só a partir do conhecimento da situação da consciência que se torna possível distinguir que presságio se deve atribuir aos conteúdos inconscientes [...]. Entre a consciência e o sonho há uma proporção relacional do mais fino equilíbrio [...]. Nesse sentido, pode-se explicar a Teoria da Compensação como uma regra fundamental para o comportamento psíquico em geral”165.

Paralelamente ao comportamento compensatório frente à situação da consciência, que é a regra geral para pessoas normais sob condições externas e internas normais, os conteúdos oníricos podem exercer ainda uma função redutiva ou prospectiva, na medida em que, de forma negativo-compensatória, “rebaixam o indivíduo, de certo modo, à sua insignificância humana e à sua condição fisiológica, histórica e filogenética”166 (é esse material que foi pesquisado, em primeira linha, por Freud de modo mais acentuado), ou ainda de forma positivo-compensatória, enquanto uma espécie de “imagem-guia” da atitude consciente, autodesvalorizadora, fornecendo uma direção “melhorada”, sendo que as duas formas podem ser “sadias”. A função prospectiva do sonho deve ser distinguida de sua função compensatória. Essa última significa, em princípio, que o inconsciente, considerado em relação à consciência, em relação à situação da consciência, incorpora em sua articulação todos aqueles elementos que foram reprimidos e desconsiderados e que fazem falta para a formação da integridade. “No sentido de autorregulação do organismo psíquico, a compensação deve ser designada como finalista. A função prospectiva, ao contrário, é uma antecipação de desempenhos conscientes futuros, antecipação que se manifesta no inconsciente, constituindo-se como que num pré-exercício ou como um plano projetado com antecedência”167.

Como se depreende de toda a concepção da estrutura do sonho, da inserção da situação atual da consciência, do contexto e conceito do grau de valor, da propriedade do próprio acontecer do sonho, que não está ligada com as categorias de espaço e tempo etc., na interpretação junguiana do sonho – ao contrário do que se dá em Freud –, o conceito de causalidade só pode ser empregado em sentido restrito. “Ali não se trata de negar as causas do sonho, mas está em questão outra interpretação dos materiais reunidos no sonho”168, e, como veremos mais adiante, trata-se também de outro método para alcançar a interpretação de seu sentido. Em primeira linha, Jung não procura pelas causae efficientes; ele acha, inclusive, que “sonhos são muitas vezes antecipações, que, consideradas de forma puramente causal, perdem completamente seu verdadeiro sentido. Esses sonhos antecipadores, muitas vezes, fornecem uma informação inequívoca sobre a situação analítica, cujo conhecimento correto é da maior importância para a terapia”169. Isso se aplica sobretudo para sonhos iniciais, aqueles sonhos, portanto, que se tem no começo de uma análise, pois todo sonho é um órgão informativo e de controle170.

O sonho como “reino infantil”

Na análise o caminho seguido conduz para o “reino infantil”, ou seja, para aquela época na qual a consciência racional da atualidade ainda não se separou da alma histórica, do inconsciente coletivo; portanto, não apenas para aquele reino em que os complexos de infância têm sua origem, mas para um reino pré-histórico, que foi o berço de todos nós. A separação do indivíduo do “reino da infância” é inevitável, muito embora conduza para uma tal distância daquela psique que despertava dos tempos primitivos que surge ali uma perda dos instintos naturais. “A consequência disso é a ausência de instintos, e com isso a desorientação nas situações humanas gerais. Mas a separação também tem como consequência que o “reino da infância” permanece definitivamente infantil, tornando-se assim uma fonte constante de tendência e impulsos infantis. É claro que esses intrusos são extremamente indesejáveis para a consciência, que por isso os reprime. Essa repressão simplesmente aumenta a distância da origem, intensificando assim a falta de instintos até o ponto de perder a alma. A consciência, portanto, ou se vê inundada pela infantilidade, ou tem de se defender constantemente contra ela sem haurir resultados. A atitude racional unilateral da consciência, apesar de seu êxito inegável, deve ser vista como inadaptada e adversa à vida. A vida está ressequida e anseia pela fonte, mas a fonte só pode ser encontrada no “reino da infância”, onde, como antigamente, pode-se receber instruções do inconsciente. Infantil não é só quem permanece por muito tempo criança, mas também quem se afasta da infância, pensando que com isso parou de existir. Isso porque ele não sabe que todo psíquico possui uma face dupla. Uma olha para frente, a outra para trás. É ambígua e por isso simbólica, como toda realidade viva [...]. Na consciência encontramo-nos num cume e pensamos de maneira infantil que a sequência do caminho nos conduzirá a uma altura mais elevada além do cume. Essa é a ponte quimérica do arco-íris171. Todavia, para alcançar o próximo pico a gente desce – tem de descer, se quiser conseguir chegar lá – para aquela terra onde os caminhos começam a se dividir”172. “A resistência da consciência frente ao inconsciente, assim como sua subestimação, são uma necessidade de desenvolvimento histórica, pois do contrário a consciência jamais poderia ter-se diferenciado do inconsciente”173. Só que a consciência do homem moderno já se distanciou por demais de suas origens, do inconsciente, esquecendo inclusive que esse de modo algum funciona no sentido de nossas intenções conscientes, mas funciona de forma autônoma. É por isso que, em pessoas de cultura, a aproximação ao inconsciente, sobretudo por causa da semelhança ameaçadora com os distúrbios psíquicos, está ligada na maioria das vezes com um pavor e pânico. “‘Analisar’ o inconsciente como um objeto passivo não traz nada de suspeito para o intelecto; ao contrário, tal atividade corresponderia à expectativa racional; todavia, ‘deixar’ o inconsciente ‘acontecer’ e ‘vivenciá-lo’ como uma realidade, isso é algo que ultrapassa a coragem e a capacidade do homem europeu mediano. Ele prefere simplesmente não compreender esse problema. A vivência do inconsciente é propriamente um mistério pessoal, partilhável com muita dificuldade a bem poucas pessoas”174.

Em consequência do acento exagerado do lado consciente, e como consequência disso a repressão e desconexão do lado inconsciente da psique do homem moderno, por meio do qual esse como que transborda, o problema da aproximação ao inconsciente e sua estrutura orgânica se tornou um problema especificamente ocidental e moderno, que hoje ganhou uma importância eminente não apenas para o indivíduo, mas para todos os povos. O estabelecimento da relação entre consciência e inconsciente se apresenta de maneira totalmente distinta ao homem oriental, e é bem provável que também para o africano etc.

Segundo Jung, a consciencialização e integração dos conteúdos infantis deve preceder o trabalho de processamento do material do inconsciente coletivo: “primeiramente deve-se liberar sempre o inconsciente pessoal, ou seja, torná-lo consciente”175; do contrário o caminho para o inconsciente coletivo fica desfigurado. Isso significa que todo conflito tem de ser apreendido primeiramente sob o aspecto pessoal e considerado à luz das próprias experiências, sendo que se deve colocar a ênfase na vida privada do indivíduo e nos conteúdos psíquicos pertinentes, adquiridos, antes que ele possa voltar-se para o confronto com problemas gerais da existência humana. Esse caminho que leva à ativação dos arquétipos e à unificação, ao correto equilíbrio entre consciência e inconsciente, é o da “cura”, e, visto a partir do lado técnico, o caminho da interpretação dos sonhos.

As etapas da interpretação

A técnica de decifração de um sonho, portanto, pode – novamente resumindo – ser desmembrada nas seguintes etapas: descrição da situação atual da consciência e dos acontecimentos precedentes, tomada do contexto subjetivo; em temas arcaicos, anexar paralelos mitológicos, e por fim, em situações complexas, prover-se de informações objetivas da parte de terceiros. Ao contrário disso, o caminho que têm de percorrer os conteúdos do inconsciente em sua conscientização segue as seguintes sete etapas: a) baixar o limiar de entrada da consciência a fim de que os conteúdos do inconsciente possam surgir176; b) os conteúdos do inconsciente se elevam nos sonhos, visões, fantasias; c) os conteúdos são percebidos e fixados pela consciência; d) pesquisa, esclarecimento, interpretação e concepção do sentido dos conteúdos singulares; e) inserção desse sentido na situação psíquica total do indivíduo; f) apropriação, incorporação e elaboração do sentido encontrado pelo indivíduo; g) a integração do “sentido”, sua estruturação orgânica na psique torna-se tão completa que ele por assim dizer “penetra no sangue”, transformando-se num saber assegurado instintivamente.

A estrutura do sonho

Jung descobriu que a maioria dos sonhos possui certa semelhança estrutural. Ele apreende mesmo sua construção de maneira totalmente diversa de Freud, vendo a maioria dos sonhos como uma espécie de “inteireza”, como um acontecimento “arredondado”, cuja estrutura apresenta uma construção com caráter de drama e por isso admite um agrupamento de seus elementos segundo o esquema de um drama clássico. O desmembramento de um sonho segundo esse esquema ficaria então assim: 1) Lugar, tempo, dramatis personae, portanto, o começo do sonho, que frequentemente informa o lugar onde a ação do sonho se dá, e as pessoas do ato do sonho; 2) Exposição, isto é, a apresentação do problema do sonho. Aqui, de certo modo, apresenta-se o conteúdo que forma a situação fundamental do sonho, a questão, o tema, configurado no sonho pelo inconsciente, e sobre o que irá se expressar então; 3) Peripécia, que apresenta a “espinha dorsal” de todo sonho, amarrar a ação de um nó, a elevação do acontecimento a um ponto alto, ao clímax ou à mudança, que porém pode consistir também de uma catástrofe; 4) Lysis, isto é, a solução, o resultado do sonho, o sentido que aparece em sua conclusão, sua indicação compensatória. Esse esquema grosseiro, segundo o qual se constrói a maioria dos sonhos, forma uma base apropriada para o decurso da interpretação177. Sonhos que não apresentam nenhuma lysis permitem que se conclua sobre um desenvolvimento não sadio da vida de quem sonha. Mas aqui se tratam de sonhos bem específicos, e não podem ser confundidos com aqueles sonhos dos quais o sonhador se recorda apenas de fragmentos, ou que ele reproduz de maneira incompleta e por isso ficam sem lysis. Isso porque, naturalmente, é raro poder ler imediatamente aquela fase em um sonho. Necessita muitas vezes de um aprofundamento cuidadoso, antes que se revele a alguém sua estrutura por completo.

O condicionalismo

Jung introduziu na interpretação do sonho o conceito e a metodologia do condicionalismo178, ou seja, “sob as condições que podem estar constituídas desse ou daquele modo podem ser apropriados esses ou aqueles sonhos”179. O ponto decisivo, portanto, é sempre a respectiva situação com os condicionamentos epocais e atuais. Dependendo do contexto global, o mesmo problema, a mesma causa pode ter um significado cada vez diferente; de acordo com o ponto de vista do condicionalismo, podem ser multívocos, não podem, portanto, significar sempre apenas a mesma coisa, sem levar em consideração a situação e a diversidade de seus modos de manifestação.

O condicionalismo é uma forma de ampliação da causalidade, é a interpretação multívoca de relações causais, e nesse sentido representa uma tentativa de “apreender a causalidade rigorosa através de uma mútua atuação de condições, ampliando a univocidade do nexo de causa e efeito através da multivocidade da conexão de atuação. Todavia, com isso não se suspende a causalidade em sentido geral; ela é adaptada ao material pluriestratificado do vivo”180, portanto, ampliada e completada. Correspondentemente a isso, também o significado de um determinado tema onírico não é explicado apenas a partir de sua condicionalidade causal, mas igualmente a partir de seu “grau de valor”181 dentro do contexto inteiro do sonho.

O método de amplificação

Jung não emprega o método da “livre associação”, mas o processo que ele chama de “amplificação”. Ele pensa que poder fazer a livre associação, apesar de poder levar “sempre a um complexo, não assegura se é precisamente esse o sentido que perfaz o sonho [...]. De algum modo, sempre podemos naturalmente chegar aos nossos complexos, pois são o atrativo que tudo atrai”182. Mas é possível também que o sonho mostre precisamente o contrário do conteúdo do complexo, buscando, com isso, acentuar, por um lado, aquele funcionar natural que seria capaz de libertar alguém do complexo, e, por outro, apontar para o caminho a ser seguido. Ao contrário do método freudiano da reductio in primam figuram, amplificação não significa, portanto, uma corrente ininterrupta de associações voltadas para trás, obrigatoriamente ligada a causas, mas uma ampliação e enriquecimento do conteúdo do sonho com todas as imagens semelhantes, possíveis e análogas. Ademais, distingue-se da livre associação no fato de que as associações não são controladas apenas pelo paciente ou por quem sonha, mas também pelo analista. Muitas vezes é esse, inclusive, que determina a direção, trazendo ao caso analogias, que depois alinhavam as associações dos pacientes. Por mais diversificadas que possam ser também as imagens e analogias, elas devem estar sempre numa relação de sentido e mais ou menos estreitadas com o conteúdo do sonho a ser interpretado; nesse caso, não é possível estabelecer limites além dos quais a livre associação não poderia ir, e determinar distanciamentos além dos quais ela não poderia se afastar do conteúdo do sonho.

A amplificação deve ser empregada em todos os elementos do conteúdo do sonho, e só então poderá surgir aquela imagem inteira a partir da qual se poderá deduzir o “sentido”. No método de amplificação de Jung, os temas singulares do sonho são enriquecidos, através de um material análogo, com sentido aparentado, de imagens, símbolos, contos, mitos etc., e assim demonstrados em todas as nuances de sua possibilidade de sentido, de seus diversos aspectos, até que seu significado apareça em sua clareza plena. Cada elemento de sentido singular, assim assegurado, volta a ser ligado então com o próximo até que toda a cadeia do tema onírico fique clara, e por fim possa experimentar ela própria uma última verificação em sua unidade. Portanto, por exemplo, como se procura mostrar no diagrama XV a seguir, em relação a um sonho.

Diagrama XV

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Para o método de amplificação, como princípio, o decisivo não é a verificabilidade histórico-científica ou a coincidência temporal etc. na alocação e no emprego de analogias, mas a igualdade do núcleo significativo. Partindo do fato de que tudo que uma vez foi apreendido em imagem ou em palavra pelo ser humano possui realidade psíquica absoluta, não importa se surgiu nessa ou naquela época, como uma ideia que ocorreu uma única vez ou como resultado de uma longa tradição ou pela pesquisa científica, toda analogia, na medida em que contém aspectos arquetípicos do tema onírico a ser esclarecido, fornece maior precisão e esclarecimento, um reforço na interpretação. Dessa forma, a amplificação apresenta um novo método científico para a pesquisa de psicologemas, mitologemas e configurações psíquicas de toda espécie, podendo temporalizar resultados extraordinariamente fecundos.

Assim, a amplificação representa uma espécie de trabalho de associação limitado, concatenado e direcionado, que retorna sempre e cada vez de novo para o núcleo de significado do sonho, e busca revelá-lo como que rodeando-o. “A amplificação se dá sempre que se trata de uma vivência obscura, cujas indicações escassas precisam ser multiplicadas e ampliadas através do contexto psicológico, para tornar-se compreensíveis. É por isso que na psicologia analítica se lança mão da amplificação na interpretação do sonho; isso porque, em vista da compreensão, o sonho representa uma indicação muito escassa, que, por isso, precisa ser enriquecido através de material associativo e análogo e reforçado até tornar-se inteligível”183.

A interpretação redutiva

A apresentação do método de amplificação em sua contraposição para com a reductio in primam figuram pode ser visualizada figurativamente, em linhas muito simplificadas, no diagrama XVI e no diagrama XVII. Tomam-se como ponto de partida quatro elementos diversos, conteúdos oníricos A, B, C e D. A amplificação liga-as entre si seguindo todos os direcionamentos possíveis, com todas as possíveis correspondências, analogias etc., até alcançar o maior âmbito de alcance possível e sua essencialidade cognoscível derradeira; por exemplo, ela complementa, amplia e enriquece a figura do pai real, que apareceria como elemento do sonho, até atingir a “ideia” do “paterno” pura e simplesmente. A redução, que supõe que os elementos singulares do sonho representam uma “desfiguração” de conteúdos originariamente diferentes, conduz de volta os quatro pontos através de uma cadeia da livre associação, até que eles, capturados pela coação da ligação causal, desembocam naquele ponto X único donde partiram, o qual eles têm como tarefa “desfigurar” e “encobrir”. A amplificação “esclarece” assim todos os possíveis significados dos quatro pontos no sentido atual que eles têm para quem sonha agora, e a redução os remete simplesmente de volta para um ponto do complexo. Na redução, Freud pergunta pelo “por quê?”, “donde?”, “de quê?”; na interpretação do sonho, Jung, ao contrário, pergunta sobretudo pelo “para quê?” O que tinha em mente o inconsciente, o que queria dizer ao sonhador, propondo a ele precisamente esse e não outro sonho? Um intelectual, por exemplo, sonha que passa por baixo e atravessa um arco-íris. Atravessa por baixo e não pela ponte, sobre o que ele fica bastante admirado. Mas, com isso, o sonho quer indicar que esse homem gostaria de resolver seus problemas além da realidade, e lhe mostra o caminho que ele tem de seguir. A saber, não acima, pela ponte, mas atravessando por baixo184. Para intelectuais que pensam poder simplesmente desligar sua natureza instintiva, “resolver pelo pensar” sua vida ou de algum modo “arranjar-se pensando”, ou seja, domá-la pelo intelecto, esse sonho é muitas vezes uma indicação bastante necessária. Por isso esse sonho atua como exortação, abrindo os olhos de quem sonha para sua real situação.

Diagrama XVI

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Diagrama XVII

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O aspecto dinâmico do sonho

O sentido válido do sonho, com todas as suas particularidades, só pode ser descortinado naturalmente através de um procedimento de interpretação preciso, como foi descrito há pouco. Mas a partir do pouco que foi adiantado aqui já se pode ver que esse sonho tinha uma “meta” determinada, a saber, mostrar um fato que a pessoa do sonho não percebe ou não quer perceber185.

Naturalmente, tais sonhos são relativamente fáceis de interpretar, pois são “parábolas” que, como tais, contêm um aviso, e esse é a expressão de uma tendência dinâmica no inconsciente, que está por trás das manifestações do sonho como força atuante. Ele faz elevar-se à consciência novos conteúdos, os quais, por sua vez – supondo que possam ser assimilados pela personalidade –, numa ação retroativa, modificam o campo de força do inconsciente. Esse processo dinâmico, impossível de ser visto num único sonho, mas que pode facilmente ser pesquisado numa série de sonhos, também oferece uma garantia de que o processo entre as “reuniões” de análise não sofre interrupção nem perda, e permite empreender uma análise com reuniões um tanto distanciadas uma da outra. Mas, na medida em que essa tendência dinâmica – como já foi mencionado – possui ao mesmo tempo também um direcionamento de meta significativo, que surge da tendência de autogoverno natural da psique, ele assegura também que, quando se interpreta erradamente um ou mais sonhos, virão posteriormente outros sonhos que irão corrigir o erro, colocando a análise novamente na via correta.

De acordo com o princípio já mencionado anteriormente da conservação da energia, no psíquico nada se perde, mas todos os elementos estão uns para com os outros numa troca de energia, de modo que tudo está inserido e referido num conjunto integral determinado, pleno de sentido, mas em constante desenvolvimento. Isso porque “o inconsciente está constantemente atuante e cria combinações de seus materiais que servem para determinar o futuro. Produz combinações subliminares, prospectivas, assim como acontece com nossa consciência; só que são significativamente superiores às combinações conscientes no que diz respeito à finura e alcance. Assim, pode tornar-se num guia incomparável para o ser humano, quando esse não se deixar desviar do caminho”186. Nos sonhos, portanto, não conseguimos ler apenas a situação momentânea de quem sonha, mas também o progredir do processo analítico assim como sua eventual suspensão. Mas, sem levar em conta o contexto e as informações mais detalhadas sobre a pessoa que sonha, eles não causam muita impressão. Mas para aquele que tem os sonhos e para o problema que eles contêm e iluminam, uma vez tendo sido compreendidos e trabalhados, eles podem ser extraordinariamente efetivos, e até atuar no processo de libertação. “Uma interpretação de sonho colocada em papel parece ser, talvez, arbitrária, confusa e até artificial; todavia podem representar, na realidade, um pequeno drama de um caráter realístico insuperável”187.

Sentido individual e coletivo

O que produz o sentido subjetivo, individual do sonho, é a amplificação subjetiva, isto é, o interrogar quem sonha sobre o significado que tem cada elemento do sonho para ele pessoalmente. O sentido coletivo surge então através da amplificação objetiva, ou seja, enriquecendo os elementos singulares do sonho com os materiais universais, simbólicos dos contos, mitologias etc. na medida em que esses ilustram o aspecto universal do problema que se aplica para cada pessoa humana.

Aqueles sonhos constituídos de elementos imagéticos detalhados, com aguda precisão, provavelmente mostrem, acima de tudo, uma problemática individual; pertencem ao âmbito do inconsciente pessoal, refletem ao mesmo tempo, por assim dizer, a diferenciação do estado de consciência da vida em vigília, à qual os sonhos expõem as imagens do inconsciente, com contornos bem-definidos, como sendo os conteúdos do “outro lado” reprimido. Mas os sonhos equipados com particularidades confusas e imagens simples, ao contrário, comunicam por seu turno uma visão nos grandes nexos universais, representam aspectos do todo, as leis eternas da verdade e da natureza; a partir delas, na maioria das vezes, podemos deduzir na pessoa que sonha uma consciência não diferenciada, que se tornou até autônoma, amplamente cindida do inconsciente, à qual elas contrapõem imagens abrangentes, arquetípicas do inconsciente coletivo, como compensação.

O sonho, enquanto uma expressão que não é influenciada pela consciência, apresenta a verdade e a realidade interna “do modo que elas são, e não como eu as suponho e não como eu gostaria que fossem”188. Assim, o conteúdo manifesto do sonho, para Jung, não é uma fachada, mas uma realidade factual que mostra a cada vez o que o inconsciente tem a dizer sobre a situação momentânea, e diz sempre e precisamente aquilo que tem em mente. Quando no sonho, por exemplo, aparece uma serpente, o sentido está, então, precisamente em ser uma serpente e não um touro, uma vez que a serpente foi escolhida pelo inconsciente porque sua riqueza significativa e seu aspecto específico conseguem expressar à pessoa que sonha precisamente aquilo que tem em mente o inconsciente com essa imagem. O que significa, pois, a serpente para quem sonha não é investigado a partir de uma cadeia de associações, mas apenas por meio da amplificação, portanto, através do complemento do símbolo da serpente com todos os sinais e conexões que apresenta, por exemplo, nos mitos, que são importantes para sua essência como serpente, e que correspondem à respectiva constelação subjetiva de quem sonha. Pois, precisamente porque a serpente não é considerada como “figura encobridora” – como a concebe Freud, por exemplo –, mas é vista no significado atual e real que tem para a pessoa que sonha, a clarificação do sentido do sonho ainda oculto não se dá investigando aquilo que possivelmente estaria sendo encoberto por ela. Pelo contrário, busca-se incluir e investigar todo o ambiente circunstante, o contexto no qual ela se encontra. E assim como o valor representativo de uma cor só pode ser deduzido de sua inserção no contexto da imagem – uma vez que o que decide se uma mancha cinza representa um pedaço de sombra ou um reflexo de luz ou um fio de cabelo, um ponto de sujeira, é apenas o ambiente circunstante, as cores e formas de toda a imagem –, assim também a função e o sentido de um símbolo onírico só podem tornar-se visíveis depois de se ter definido o grau de valor e de significado dentro do contexto. E se, além disso, levarmos em consideração ainda a estrutura psíquica específica da pessoa que sonha, assim como o conjunto de sua situação e sua atitude psicológica consciente, à qual o conteúdo do sonho mostra ser complementar na experiência, o verdadeiro sentido da figura, em sua referência subjetiva, irá mostrar-se por si mesmo.

Sem associações pessoais e o levantamento do contexto, os elementos do sonho só podem ser interpretados num certo alcance, ou seja, apenas na medida em que são de natureza coletiva, ou seja, que representam problemas gerais humanos. Com outras palavras: Todos os temas de natureza puramente arquetípica podem ser investigados e interpretados desse modo, mas apenas esses. É por isso, também, que é estultice acreditar que se possa dizer alguma coisa de decisivo sobre a vida da pessoa que tem o sonho, quando se expõe um sonho assim, despido de todo contexto pessoal. Em tais casos só se podem esclarecer exclusivamente o sentido arquetípico do sonho, e temos de renunciar a estabelecer qualquer sentido específico e atual na referência pessoal com quem sonha. Isso porque nos arquétipos, nas figurações de nosso instinto, ou como diz Jung, nos “órgãos de nossa alma”, as imagens da própria natureza, ainda não há qualquer interpretação; como “ponto de partida”, precisamos sempre do ser humano, para poder estabelecer uma interpretação correta ou falsa. Assim, fica claro com facilidade que o mesmo tema, por exemplo, sonhado por uma criança ou por uma pessoa de cinquenta anos de idade, irá significar essencialmente algo cada vez distinto.

Formas de interpretação

Jung distingue duas formas ou níveis de interpretação: a interpretação no nível subjetivo e no nível objetivo. A interpretação no nível subjetivo interpreta as figuras e os acontecimentos oníricos simbolicamente, como figurações de fatores intrapsíquicos e situações do sonhador. As personagens do sonho representam então tendências psíquicas ou funções da pessoa que sonha, e a situação do sonho, sua atitude em relação a si mesmo e à realidade psíquica dada. Assim concebido, o sonho aponta para dados interiores. A interpretação no nível objetivo quer dizer que as figuras oníricas devem ser compreendidas, como tais, concretamente e não simbolicamente. Representam aí a atitude do sonhador em relação a dados e personagens exteriores com os quais se relaciona. Buscam expor como algo é visto a partir do outro lado, aquilo que conscientemente só vimos a partir de um lado, ou querem mostrar aquilo que até o momento ainda não percebemos. Quando, por exemplo, sonhamos com o próprio pai, o qual consideramos como bom e nobre, mas no sonho aparece como desarrazoado, cruel, egoísta e descontrolado, então, no nível subjetivo, isso significaria que a pessoa que sonha esconde em sua própria alma tais propriedades, mas não tem consciência delas, atribuindo-lhe inclusive um significado que não concorda com a situação real. Interpretado no nível objetivo, o sonho estaria representando o pai real, que é mostrado à pessoa que sonha em seu modo verdadeiro, ao qual até o momento ela não conhecia.

Quando num sonho aparecem personagens com os quais o sonhador está numa relação vital, então – ao lado de seu eventual significado como aspectos parciais da psique, internos, personificados, portanto, no sentido de seu significado no nível subjetivo – deveriam ser interpretados sempre também no nível objetivo. Na interpretação no nível subjetivo devemos conceber os conteúdos oníricos como representação de imagens de natureza subjetiva, como configurações ou projeções de complexos no inconsciente do próprio paciente. Assim, determinada figura, um amigo, por exemplo, que apareça no sonho de uma paciente, pode ser concebido como a imagem do masculino nela, que não é reconhecido conscientemente, encontrando-se no inconsciente, e aparece transferido, projetado num personagem. O sentido dessa figura onírica reside no fato de que, através dela, a paciente se dá conta de seu próprio lado masculino, de propriedades sobre cuja existência até o presente ela se empenhara em se enganar. Isso tem uma importância especial numa pessoa que se porta de forma extremamente melindrosa, sensível e feminina, como por exemplo no conhecido tipo da velha preciosa solteirona.

“Tudo que é inconsciente é projetado; ou seja, aparece como propriedade ou comportamento do objeto. É só através do ato de autoconhecimento que os conteúdos correspondentes são integrados ao sujeito, desvinculados assim do objeto e reconhecidos como fenômenos psíquicos”189.

A projeção

O fenômeno da projeção é uma parte constitutiva que integra o mecanismo do inconsciente, e na medida em que toda psique possui um alcance inconsciente mais ou menos estreito ou amplo, também não há qualquer vida psíquica sem um certo grau de projeção. Seja em estado de sonho ou de vigília, em indivíduos ou grupos, seja frente a pessoas, coisas ou situações – ela se encontra totalmente além da vontade consciente. “Projeção jamais é feita, ela acontece!”190 Jung a define como “deslocar para fora um processo subjetivo, colocando-o num objeto”191, em contraposição à introjeção192, que consiste num “puxar o objeto para dentro do sujeito”.

A atitude psicológica frente ao mundo que tinha o romantismo alemão, por exemplo, pode ser qualificada melhor como introjeção; pois busca afastar-se do mundo exterior, feio e insuficiente para seu sentimento, de cuja realidade, apesar disso, eles tinham plena consciência, e voltar-se a um mundo ideal e voluntarioso de sua própria fantasia, através do qual submetiam também a uma modificação aquele mundo exterior ou o adaptavam às moções subjetivas de seu ânimo. “A consciência da realidade, como ela é de fato, já estava perfeitamente presente no romantismo, mas essa realidade foi tomada dentro do âmbito do conto: isso é introjeção”, afirma Jung193. Podemos ver que, através dessa supervalorização do ponto de vista subjetivo, em virtude de uma superabundância de imagens interiores, o eu consciente está constantemente ameaçado de ser engolido.

O não poder distinguir-se do objeto é um estado no qual vivem ainda hoje não apenas os povos primitivos, mas também as crianças. No homem ingênuo – no homem primitivo e na criança – os conteúdos da psique individual ainda não estão distintos e não estão contrapostos aos conteúdos da psique coletiva, mas estão constantemente numa “participação”. Isso porque “a projeção dos deuses, demônios etc. não era compreendida por eles como uma função psicológica, mas eram realidades aceitas sem maiores reflexões. Seu caráter projetivo não era reconhecido. Foi só na época do Iluminismo que se começou a achar que os deuses não existem, mas seriam apenas projeções. Mas com isso eles também se sentiam liberados. Todavia, a função psicológica que correspondia a essa realidade de modo algum estava resolvida, mas recaía no inconsciente, envenenando assim as pessoas com aquele excesso de libido, que antes era colocado no culto da imagem dos deuses”194.

Se a consciência não está suficientemente estabelecida e articulada ou se não há nela um núcleo da personalidade forte o bastante para acolher, compreender e processar os conteúdos inconscientes e suas projeções, então poderá ser inundada e até ser engolida pelos materiais inconscientes ativados até então e inflacionados. Os conteúdos psíquicos, então, não só tomam o caráter de realidade, mas espelham o conflito aumentado no elemento mitológico, ou de forma tosca no primitivo-arcaico, e com isso abre-se o caminho para a psicose. Por isso, a interpretação no nível subjetivo se constitui num dos mais importantes “instrumentos” do método junguiano de interpretação de sonho. Ela possibilita compreender as dificuldades e conflitos do indivíduo no e com o mundo exterior como um espelhamento, como figuração de seu acontecer intrapsíquico, podendo levar assim a uma retenção das projeções e à solução dos problemas no âmbito da própria psique. É só quando refletimos para onde conduzem as infindas projeções das próprias propriedades e complexos sobre outros, que estão fora, no mundo, que podemos mensurar corretamente a importância extraordinária desse método junguiano de conhecimento.

O símbolo

Como já se depreende de tudo que foi dito, aquele fenômeno que foi designado no geral com o conceito de símbolo195 desempenha uma função central na interpretação junguiana do sonho. Jung designou o símbolo também como “alegoria da libido” porque transpõe energia, e com isso tem representações capazes de expressar de forma equivalente a libido e precisamente através disso transferi-las a uma forma diferente da original196. As imagens psíquicas, tanto no sonho como em todas as outras manifestações, são essências e figurações da energia psíquica; de forma não diversa, por exemplo, de como uma queda de água representa pura e simplesmente a essência e a figuração da energia. Isso porque, sem energia, ou seja, força física (tomada porém apenas como hipótese de trabalho), não haveria queda de água, cuja essência ela perfaz; mas também em seu modo de ser assim externo, essa água representa ao mesmo tempo uma figuração dessa energia, que sem a queda de água de modo algum proporcionaria uma observação e constatação. Isso pode soar um tanto paradoxal; no entanto, precisamente o paradoxo pertence à essência profunda de todo psíquico.

Os símbolos têm ao mesmo tempo um caráter de expressão e de impressão, na medida em que, por um lado, expressam esse acontecimento – depois de terem se tornado em imagem, como que se “encarnaram” num material imagético – e, por outro, impressionam esse acontecimento através de seu conteúdo de sentido e assim dão propulsão à torrente do decurso psíquico. Por exemplo, o símbolo da árvore da vida seca, que teria de tornar visível uma vida humana superintelectualizada, a qual teria perdido sua ligação natural com os instintos197, expressaria em imagem, por um lado, esse sentido, colocado frente à visão do sonhador, e, por outro, ao colocar isso na visão do sonhador, impressioná-lo, influenciando seu acontecer psíquico na medida em que lhe fornece um direcionamento. Os símbolos são, portanto, os verdadeiros transformadores de energia do acontecimento psíquico.

No curso de uma análise é possível constatar como os motivos singulares de uma imagem condicionam-se mutuamente ou impulsionam-se mutuamente para frente. No começo surgem ainda envoltos no material de experiência pessoal, trazem os traços de recordações da infância ou lembranças de outro tipo, por exemplo, aqueles que surgem de acontecimentos recentes. Mas quando a análise avança para as camadas mais profundas, tanto mais claramente se mostram os efeitos dos arquétipos quanto mais claramente o símbolo domina sozinho o campo; pois o símbolo possui um arquétipo, um núcleo de significado invisível, mas carregado de energia em si. Ocorre o mesmo quando, por exemplo, extraem-se imagens de uma chapa: a primeira imagem é extraordinariamente nítida, seus detalhes são reconhecíveis até as últimas particularidades e seu significado está fixado de forma inequívoca; mas as seguintes já são mais pobres em detalhes e menos claramente definidas; até a última imagem ainda percebível, cujos contornos e detalhes já estão totalmente difusos, e continua reconhecível apenas ainda a forma fundamental, deixando em aberto ou unidos em si, porém, todos os possíveis aspectos. Por exemplo, aparece na série do “feminino” em primeiro lugar a imagem onírica da mãe real ainda em seus traços singulares, desenhada nitidamente e em seu significado atual estreitamente delimitado; depois esse significado se aprofunda e se multiplica para um símbolo da mulher em todas as variações como companheira do sexo oposto em geral; avançando para uma camada ainda mais profunda a imagem traz traços mitológicos, é uma fada ou um dragão; até que no material da experiência humana coletiva, universal, que se encontra no mais profundo, aparece como caverna escura, como submundo, como mar, para em seu último significado ampliar-se para uma metade da criação, no caos, nas trevas, no concebente absoluto. Esses símbolos provindos do inconsciente, seja que se mostrem como sonhos, visões ou fantasias, visualizam por assim dizer uma espécie de “mitologia individual”, que encontra suas analogias mais próximas nas configurações típicas da mitologia, das sagas e do mundo dos contos198. “Por isso, é de se admitir que correspondam a certos elementos estruturais coletivos (e não pessoais) da psique humana em geral, como são herdados os elementos morfológicos do corpo humano”199.

“Os símbolos jamais foram concebidos conscientemente, mas produzidos pelo inconsciente no caminho da assim chamada revelação ou intuição”200. Símbolos podem representar os mais diversos conteúdos. Em roupagem simbólica, podem ser representados tanto processos e acontecimentos naturais quanto processos intrapsíquicos. O surgir do sol pode, por exemplo, visualizar para o homem primitivo o acontecimento natural exterior concreto e para o homem moderno, psicologicamente orientado, pode representar um acontecimento semelhante, igualmente normativo em seu mundo interior. O símbolo do “renascimento”, por exemplo, sempre representa a ideia originária da transformação psíquica, apareça no rito de iniciação primitivo, como batismo no significado do cristianismo primitivo, ou na imagem onírica correspondente de um indivíduo moderno. Só que o caminho para se chegar a esse “renascimento” é cada vez distinto, dependendo da situação histórica e individual da consciência. Por essa razão é, pois, necessário avaliar e interpretar cada símbolo de um lado coletivamente, mas, de outro, individualmente, se quisermos fazer jus a seu significado de fato em cada caso particular. “Imagens mitológicas jamais aparecem isoladas, pertencem originariamente sempre a um contexto objetivo e a um contexto subjetivo: em estreita conexão com o que é trazido à luz e na conexão desse com aquilo que promove esse trazer para fora”201. O contexto pessoal e o princípio do momento psicológico individual, porém, devem continuar sendo sempre o decisivo na interpretação.

Símbolo e sinal

O conteúdo de um símbolo jamais poderá ser expresso racionalmente de forma completa. Ele provém daquele “âmbito intermediário da realidade sutil que pode ser expressa, de forma suficiente, única e precisamente através do símbolo”202. Uma alegoria é um sinal, uma expressão sinônima para um conteúdo conhecido; mas o símbolo sempre abarca também algo não exprimível através da linguagem, portanto através do instrumental da ratio. É por isso que Freud não tem razão em chamar “aqueles conteúdos conscientes que permitem pressentir um plano de fundo inconsciente”, de símbolos, uma vez que em sua teoria eles “só desempenham a função de sinais ou sintomas de processos do plano de fundo”203. Contrariamente a isso, por exemplo, quando Platão “expressa todo o problema da Teoria do Conhecimento na Alegoria da Caverna, ou quando Cristo expressa o conceito do Reino de Deus em suas parábolas, trata-se ali de símbolos autênticos e verdadeiros; a saber, tentativas de exprimir uma coisa para a qual ainda não existe nenhum conceito prévio”204. A palavra alemã para exprimir símbolo (Symbol) chama-se imagem de sentido (Sinnbild), e com essa junção vocabular expressa magistralmente que seu conteúdo provém de e pertence a ambas as esferas: enquanto sentido está subordinado à consciência, ao racional enquanto imagem, ao inconsciente ao âmbito irracional. Com essa sua peculiaridade consegue informar mais adequadamente também sobre os processos no todo da psique, e tanto expressar o mais contraposto e mais complexo estado de coisas na psique quanto influir sobre o mesmo. “Em princípio, o que decide se algo é um símbolo ou não é a atitude da consciência que observa”205, afirma Jung; portanto, depende de o observador ter o dom ou estar interiormente constituído de tal forma que consegue reconhecer um objeto, por exemplo, uma árvore, não meramente em sua aparição concreta como tal, mas, por exemplo, como símbolo de uma vida humana, ou seja, também como imagem de sentido de algo mais ou menos desconhecido. Aqui é bem possível que o mesmo fato ou objeto represente para uma pessoa um símbolo, enquanto que para outra represente apenas um sinal. Todavia, segundo Jung, há produtos cuja concepção se impõe como símbolo, imediata e obrigatoriamente, a todo observador, como o caso de um triângulo, incluindo um olho. É claro que, no geral, depende do tipo de pessoa, se ela se apega preferentemente em fatos concretos ou se aborda esse produto com um sentido para o simbólico.

A imagem de sentido não é uma alegoria e nem um sinal, mas a imagem de um conteúdo que em grande parte transcende a consciência. De qualquer modo, símbolos podem sempre “degenerar” em sinais, tornando-se em “símbolos mortos”, na medida em que o sentido oculto no símbolo é desnudado inteiramente, suspendendo sua carga significativa, uma vez que agora podemos apreendê-lo completamente pela razão. Isso porque um símbolo autêntico jamais pode ser interpretado sem deixar restos. Podemos deduzir da consciência sua parte racional, e de sua parte irracional apenas “aproximar-se com o coração”. Por isso, um símbolo fala sempre ao mesmo tempo ao todo da psique, sua parte consciente e também inconsciente, assim como a todas as suas funções. É por isso que Jung insistia tenazmente com seus pacientes para que gravassem suas “imagens internas” não apenas na linguagem ou por escrito, mas também que as reproduzissem em sua manifestação originária, na qual recebe um significado individual específico; não apenas o conteúdo da imagem, mas também suas cores e sua distribuição206. É só assim que se poderá, propriamente, fazer plenamente jus à função que ele tem para o paciente, e aproveitar de sua configuração assim como de seu conteúdo como fator efetivo para o processo psíquico de consciencialização207.

Configurações imagéticas

Como exemplo, pode servir a figura 1 (cf. caderno de ilustrações). É a representação simbólica de uma psique, “olhada internamente”, como ela busca tornar-se consciente, tensionada entre suas quatro funções psíquicas, mas, apesar de tudo, permanecendo eternamente presa no círculo da serpente, das imagens de sentido dos instintos originários. As quatro funções são simbolizadas pelas quatro cores diversas – azul, amarelo, vermelho, verde – da auréola, a busca de tornar-se consciente através das quatro tochas de fogo. A “explicação” dessa imagem, assim como das seguintes, não pode ser feita com precisão. Compõe apenas uma tentativa de revestir com palavras aproximadas os sentimentos e pensamentos da pessoa que quis “figurá-la”. Todas essas figurações não passam de meros símbolos e pertencem à essência inerente do símbolo; seu conteúdo jamais pode ser totalmente racionalizado e reportado em palavras. Uma parte decisiva se retrai da reprodução discursiva e só pode ser apreendida pela via da intuição, o que tem validade onde um artista agraciado consegue compor tais símbolos em “imagens-palavras”. Também esses esclarecimentos presentes devem servir apenas para, de certo modo, introduzir o leitor naquele “reino intermediário de realidades sutis”, que falam a nós nos símbolos, para facilitar um pouco sua compreensão.

Um segundo exemplo do forte caráter expressivo dessas imagens podemos ver na figura 2. A “serpente da paixão”, como símbolo do universo instintivo não diferenciado no ser humano, no curso do processo psíquico deixou o santuário imerso no mar do inconsciente, onde se conservava cuidadosamente encarcerada pela repressão, erguendo-se para o alto. De sua garganta irrompe um verdadeiro feixe de raios de fogo abrasador, ardente; no entanto, sua cabeça traz o sinal da cruz que anuncia a redenção, visualizando assim seu duplo aspecto como poder destrutivo e salvador. A saturação e força das cores empregadas indicam a forte emoção com a qual surgiu a imagem e que a fez deslanchar.

Em tais imagens não é preciso “que se trate naturalmente de arte, mas de algo diferente que mera arte, a saber, atuação viva no paciente”208, ele mesmo – ou naquele que produziu a imagem (portanto, também em pessoas sadias). Por isso, também, é totalmente indiferente se tal imagem é boa ou ruim no sentido de uma avaliação artística, podendo até acontecer que um artista perfeito no pintar e desenhar faça essas imagens com mão pouco hábil de criança, de forma primitiva e representativa muito pior do que alguém que jamais tenha pego um lápis ou um pincel, mas cujas imagens interiores são tão fortes e vivas que ele consegue “figurá-las” de forma perfeita209. Aquilo que foi pintado e desenhado desse modo são “fantasias ativas; é aquilo que atua interiormente no ser humano que as faz [...]. Além disso, a configuração material da imagem força a uma consideração prolongada da mesma em todas as suas partes, de tal modo que só por isso já pode desenvolver perfeitamente sua atuação [...] e aquilo que atua então no paciente é ele próprio, mas não mais no sentido do equívoco antigo, onde ele tomava seu eu pessoal por seu si-mesmo, mas num sentido novo, estranho a ele até o presente, onde seu eu se lhe aparece como objeto do que atua nele210.

“A atividade meramente representativa, em si, é insuficiente”. Para além disso, é necessário ainda uma compreensão intelectual e emocional das imagens, porque elas não só são integradas na consciência pelo entendimento, mas também pela moral. Depois devem ser submetidas ainda a um trabalho de interpretação sintético. Todavia, aqui, movemo-nos ainda num país novo, no qual importa primeiro de tudo adquirir uma rica experiência. Todavia, aqui está em questão um processo vital da alma fora da consciência, que podemos observar de maneira indireta. E ainda não sabemos até que grau de profundidade penetra aqui nosso olhar”211. Todavia, quem uma vez na vida, numa necessidade premente e profunda da alma, já experimentou o efeito libertador de uma disposição de humor trazida à luz desse modo ou de uma imagem interior apreendida e conservada de tal modo que não possa ser revestida de palavras, sabe que alívio ilimitado isso pode proporcionar. Pessoas que jamais pegaram em mãos pincel e lápis, desse modo, no curso de uma análise, acabam se transformando em atores hábeis dos conteúdos da psique, que jamais podem ser descritos em palavras, e, assim, de certo modo podem participar do mesmo arrebatamento do artista, que faz erguer-se da profundeza de seu inconsciente uma imagem, para então fixá-la conscientemente e dar-lhe forma.

A “fixação” assim articulada de um símbolo significa de certo modo sua objetificação, concede forma ao que, do contrário, é inexprimível e indeterminado e nos possibilita penetrar até seu conteúdo verdadeiro, compreendê-lo, e, na medida em que dele nos conscientizamos, integrá-lo. Assim fixado, o símbolo possui uma espécie de força mágica, que, no mais, é proporcionada também pelo fundamento psicológico da maioria dos recursos de mágica, amuletos e sinais de adivinhação das épocas antigas, assim como de fórmulas, lemas e imagens semelhantes, mesmo que muitas vezes não sejam reconhecidos como tais. Pertencem aqui, também, os diversos emblemas, bandeiras, brasões e logomarcas, com sua simbologia de imagem e de cores, muitas vezes com efeito mágico, e sua forma arrebatadora das massas, como são utilizadas na arena política e na concorrência econômica (por exemplo, como a forma mais moderna de influenciar os consumidores através do assim chamado motivational research).

Princípios fundamentais da análise

A situação analítica – assim podemos dizer, portanto – possui quatro aspectos: a) o analisando apresenta, com suas próprias palavras, a imagem consciente de sua situação; b) os sonhos ou fantasias do analisando fornecem ao psicoterapeuta a imagem complementar correspondente do inconsciente; c) a situação de relação na qual se encontra o analisando através do fato de ter diante de si um contraponto no psicoterapeuta acrescenta o lado objetivo aos dois outros lados subjetivos; d) o debate com os materiais levantados em a, b, c, assim como as amplificações e explicações acrescentadas pelo psicoterapeuta, complementam a respectiva imagem da situação psicológica, que na maioria das vezes se encontra num contraste vivo para com o ponto de partida da personalidade do eu, levando assim a todas as reações e problemas ideais e emocionais possíveis, que premem por respostas e soluções.

Como Freud e Adler, também Jung considera que conscientizar e manter conscientes os conflitos é conditio sine qua non do sucesso terapêutico212. Só que ele não reduz os conflitos em geral a um único fator instintivo, mas considera-os como consequências do distúrbio do jogo conjunto de todos os fatores da psique total: portanto, dos fatores que pertencem à estrutura pessoal e àquela que pertence à estrutura da parte coletiva de nossa totalidade psíquica consciente e inconsciente. Outra diferença de princípio consiste no fato de Jung tentar solucionar a maioria dos conflitos a partir de seu significado atual e não a partir daquele significado que tinham no momento de seu surgimento, sem levar em consideração se esse momento se encontra distante no passado ou não. Pois, segundo ele, cada situação de vida e cada estágio da idade condicionam e exigem sua solução própria, e por isso um conflito possui cada vez uma função e uma significação diversa para o indivíduo, mesmo que sua origem continue sendo sempre a mesma. O modo como alguém de cinquenta anos tem de resolver o complexo com seus pais é, portanto, totalmente diferente daquele que possui vinte anos de idade, muito embora em ambos o complexo se encontre na mesma vivência infantil.

O método de Jung é finalista, seu olhar está sempre voltado para a inteireza da psique, muito embora mesmo o mais limitado dos conflitos coloque em relação a totalidade do psíquico. E nessa totalidade psíquica, ao inconsciente não cabe apenas a função de um sistema de levante para os conteúdos reprimidos da consciência, mas ele forma sobretudo a “mãe eternamente criativa dessa consciência”213. Tampouco constitui um “truque da psique”, como diz Adler antes, ao contrário, é a instância primária e criativa do ser humano, a fonte de toda arte e de todo criar humano, que jamais seca.

Essa concepção de inconsciente e de suas configurações arquetípicas, como figurações simbólicas da “unificação dos contrários”, permite a Jung empreender a interpretação dos conteúdos do sonho, tanto do ponto de vista redutivo quanto do prospectivo, construtivo, na medida em que ali não se ocupa “apenas com as fontes que jazem ao fundo do produto inconsciente ou com materiais iniciais, mas procura trazer o produto simbólico a uma expressão geral e compreensível. As ideias que ocorrem livremente em relação ao produto inconsciente, portanto, são consideradas em vista da direção finalista e não de sua proveniência [...]. Esse método parte do produto inconsciente como que de uma expressão simbólica, o qual, antecipando-se, representa uma parcela prévia de desenvolvimento psicológico [...]”214. Segundo Freud, que restringe o conceito de inconsciente ao âmbito da “história de vida individual” do paciente, os símbolos, assim, só poderiam ser concebidos, no melhor dos casos, como sinais ou alegorias, e apenas como “figuras encobridoras”. Foi só a concepção junguiana de símbolos como formas de expressão do “rosto” de todo acontecimento psíquico, voltado ao mesmo tempo para trás e para frente, do paradoxo do “tanto isso quanto aquilo”, que possibilitou um trabalho analítico na psique, que não parte apenas – como em Freud – buscando suspender seus bloqueios e congestionamentos e não busca apenas sua normalização, mas, através da exigência consciente da formação simbólica e da abertura de seu sentido, enriquece a psique com germes de crescimento, e assim se empenha em abrir para ela aquelas fontes de força que podem mostrar-se criativas para a futura configuração de vida do paciente.

Sobre o sentido da neurose

Assim, Jung consegue ver a neurose não apenas como algo negativo, uma moléstia importuna, mas considerá-la positivamente como um fator gerador de saúde, como motor formador da personalidade. Isso porque tanto faz se somos forçados a reconhecer nossa superficialidade, conscientizando-nos de nosso tipo atitudinal ou tipo de função, ou que tenhamos de lançar mão das profundezas do inconsciente para equilibrar nossa consciência parcial ou totalmente exacerbada. Com isso sempre vêm ligados uma ampliação e aprofundamento de nossa consciência215, ou seja, uma ampliação de nossa personalidade. Por isso, uma neurose pode também servir como chamada de emergência, enviada por uma instância interior superior, para nos chamar a atenção de que estamos precisando urgentemente ampliar nossa personalidade e que podemos alcançá-la se abordarmos corretamente nossa neurose. A orientação junguiana possibilita ao neurótico sair de seu isolamento ao ser levado a dar vida aos arquétipos presentes nele através do afrontamento de seu inconsciente, “aqueles arquétipos que perfazem aquele plano de fundo longínquo de nossa psique, que nos foram dados em herança desde os nebulosos tempos primevos. Caso haja essa alma supraindividual, tudo que se traduz em sua linguagem de imagens deveria ser abstraído ao pessoal. E quando isso se torna consciente, então, sub specie aeternitatis, isso não mais apareceria como meu sofrimento, mas como o sofrimento do mundo, não mais como uma dor pessoal isolada, mas como uma dor sem amargura, que liga a todos nós, seres humanos. E não precisamos procurar maiores demonstrações de que tal coisa possa curar”216.

Mas Jung está longe de negar haver também neuroses de origens traumáticas, cujas causas se encontrariam nas vivências decisivas da infância, e que então, correspondentemente, deveriam ser tratadas segundo o ponto de vista freudiano. Em inúmeros casos, também, Jung emprega esse método, que é considerado o mais correto sobretudo em neuroses de pessoas jovens, na medida em que sua causa é traumática. Todavia, nega de forma absoluta que todas as neuroses sejam desse tipo, precisando, consequentemente, serem assim tratadas.

“Tão logo falamos do inconsciente coletivo, encontramo-nos numa esfera e num nível de problemas que, para a análise prática de pessoas jovens ou daqueles que permaneceram por muito tempo como infantis, está em princípio fora de cogitação. Aonde ainda se tem de superar a imagem de pai e de mãe, em que uma parcela de nossa vida, que naturalmente o humano médio possui, ainda deve ser conquistada, ali seria melhor não falarmos de inconsciente coletivo e do problema dos contrários. Mas onde foram superadas as transferências dos pais e as ilusões da juventude, ali teríamos de falar do problema dos contrários e do inconsciente coletivo. Aqui nos encontramos além das reduções de Freud e de Adler; uma vez que aqui já não mais estamos às voltas com a questão sobre como podemos nos livrar de tudo que pode estar impedindo a pessoa no exercício de uma profissão ou no casamento ou de alguma outra coisa que represente uma expansão de sua vida, mas estamos diante da tarefa de encontrar aquele sentido que possibilita a progressão geral da vida, na medida em que esse sentido deva ser mais do que resignação e retrospectiva nostálgica”217.

É por isso que se emprega preponderantemente um ponto de partida redutivo em todos aqueles casos em que se está às voltas com ilusões, ficções e exageros. Assim ganha importância um ponto de partida construtivo, prospectivo em todos aqueles casos em que a atitude consciente está mais ou menos em ordem, mas é capaz de alcançar maior plenitude e refinamento, ou onde tendências inconscientes do inconsciente, com capacidade de desenvolvimento, são malcompreendidas e reprimidas pela consciência. “O ponto de partida redutivo sempre leva de volta ao primitivo e elementar; o construtivo, ao contrário, procura atuar, construir sinteticamente, voltando seu olhar para frente”218.

Sobretudo em idade avançada, os condicionamentos para uma neurose podem encontrar-se também totalmente localizados na própria situação atual. Na juventude uma consciência do eu ainda não bem firmemente articulada e desenvolvida é, no fundo, algo natural, assim como, na época de tornar-se varão, uma atitude da consciência unilateral pode até constituir-se numa necessidade. Todavia, quando se trata da idade da velhice, ao contrário, se ainda persistirem, essas duas formas podem deslanchar neuroses tão logo a pessoa não mais esteja em condições de adaptar-se a uma situação presente, uma vez que seus instintos, seu inconsciente, ainda não estão ligados “naturalmente” com ele. Em certas circunstâncias, as causas disso devem ser buscadas na infância, mas podem estar ancoradas também perfeitamente na situação momentânea. Aqui, na vivência das imagens e símbolos que vão surgindo, que ampliam a consciência e levam avante o acontecer psíquico, inicia-se aquele modo de consideração de enfoque finalista, prospectivo, que volta seu olhar sobretudo para a formação de um novo equilíbrio na psique do paciente, com base na situação atual.

O aspecto prospectivo

A neurose intenciona a algo positivo – esse é o ponto crucial da concepção junguiana – e não a uma persistência na enfermidade como um fim em si, como muitas vezes pode dar a impressão. Isso porque, “através da neurose, as pessoas são impingidas a sair de sua pasmaceira, muito frequentemente contra sua própria preguiça ou contra sua resistência desesperada”219. No curso da vida, a energia bloqueada em consequência da unilateralidade da consciência, assim como um estado de inconsciência que não se adaptou às exigências do mundo exterior, podem levar, por si mesmos, a uma neurose mais ou menos aguda. De qualquer modo, apesar de tudo, nem todos incidem no destino de uma neurose, mesmo que, entre os assim chamados intelectuais, o número parece estar crescendo numa proporção assustadora atingindo as regiões mais amplas do Ocidente. Talvez sejam, inclusive, “as pessoas verdadeiramente grandes, mas que, por alguma razão, permaneceram por demais tempo num estágio inadequado”220, aos quais sua natureza já não mais os suporta, porque, provavelmente sob a pressão do mundo externo tecnificado, já não conseguem fazer frente às exigências das realidades interiores. Mas por trás disso não precisamos imaginar haver um “plano” do inconsciente. “A razão propulsora disso, na medida em que podemos conceber tal motivo, parece ser essencialmente apenas um instinto de autorrealização [...] poderíamos falar também de um amadurecimento tardio da personalidade”221.

Assim, em certas circunstâncias, a própria neurose se torna num aguilhão para a luta em prol da inteireza da personalidade, que para Jung se constitui tanto em tarefa quanto em meta, formando a mais elevada saúde terrena que o ser humano pode conseguir; um fim que não depende de qualquer ponto de vista terapêutico-medicinal.

Se quisermos suplantar uma neurose ou um distúrbio do equilíbrio psíquico em geral é preciso que trilhemos o caminho da ativação, descoberta e assimilação de determinados conteúdos do inconsciente na consciência. Isso porque, na medida em que os reprimimos, e começa a oscilar nosso equilíbrio, com o crescer da idade aumenta a periculosidade de nosso inconsciente. Por assimilar e integrar, compreende-se uma interpenetração mútua de conteúdos conscientes e inconscientes, assim como sua edificação interna no conjunto total da psique e não uma avaliação desses conteúdos. Mas acima de tudo não se devem ferir os valores essenciais da personalidade consciente, ou seja, do eu; do contrário, não restaria ninguém ali que pudesse cumprir a tarefa de integrar. Isso porque “a compensação através do inconsciente só é efetiva quando coopera com uma consciência íntegra”222. Quem exerce a função do tratamento analítico acredita, implicitamente, no sentido e valor da consciencialização, porque partes inconscientes da personalidade são submetidas à escolha e crítica conscientes. Por meio disso a pessoa que está buscando a cura é colocada diante de problemas e estimulada a julgar conscientemente e tomar decisões conscientes. Mas isso não significa nada menos do que uma provocação direta da função ética, por meio da qual acaba sendo posto em ação o todo da personalidade”223.

O desenvolvimento da personalidade

Alcança-se a inteireza da personalidade quando os principais pares de contrários estão relativamente diferenciados, quando portanto as duas partes do todo da psique, consciência e inconsciente, estão mutuamente interligados, e estão numa relação mútua viva, pelo que se assegura o gradiente energético, o seguimento imperturbado da vida psíquica através do fato de que o inconsciente jamais poderá tornar-se totalmente consciente, mantendo sempre a plenitude energética mais forte. A inteireza, portanto, permanece sempre relativa, e continuar a trabalhar na mesma continua sendo uma tarefa para toda a vida. “A personalidade, como uma realização plena da inteireza de nosso ser é um ideal inalcançável. Mas o caráter inalcançável jamais representa uma razão que se contraponha ao ideal; isso porque ideais nada mais são do que indicadores de caminho e jamais finalidades”224.

O desenvolvimento da personalidade é ao mesmo tempo graça e maldição. É preciso pagar caro por eles, pois significa solidão. “Sua primeira consequência é a separação consciente e inevitável do ser singular da indistinção e da inconsciência do rebanho”225. Mas não significa apenas isolamento, mas também fidelidade para com a própria lei. “Somente quem conscientemente consegue dizer sim ao poder da determinação interna que lhe vem ao encontro poderá tornar-se personalidade”226, e é só essa que poderá encontrar seu lugar correto na coletividade, e ela também possui força real formadora de comunidade, ou seja, a capacidade de formar uma parte integradora de um grupo humano e não só um número na massa, que consiste sempre apenas da adição de indivíduos, e jamais poderá se tornar num organismo vivo, como uma comunidade, que conserva e distribui vida. Por isso, tanto na referência a mais pessoal e individual quanto na coletiva, extrapessoal, a autorrealização se torna numa decisão moral, e é essa que confere as forças ao processo de tornar-se si-mesmo, que Jung chama de caminho de individuação.

Por isso, pesquisar a si mesmo e levar a si mesmo à realização são – ou melhor, deveriam ser! – o pressuposto indispensável para a adoção de compromissos mais elevados, e também seria o único pressuposto para realizar o sentido da vida individual da melhor forma possível e no máximo alcance, o que, de qualquer modo, a natureza sempre faz, todavia, sem a responsabilização, que é a determinação de destino e divina do ser humano”. Individuação significa: “Tornar-se ser singular, e na medida em que, por individualidade, compreendemos nossa unicidade própria mais íntima, derradeira e incomparável, tornar-se si-mesmo227. Todavia, individuação de modo algum significa individualismo, no sentido estrito, egocêntrico dessa palavra, pois a individuação transforma o ser humano apenas naquele ser único que ele é, pura e simplesmente. Com isso ele não se torna “egoísta”, mas apenas realiza sua característica própria de ser, que não pode ser confundida com egoísmo e individualismo. A inteireza que ele alcançou, através de elementos conscientes e inconscientes, como ser singular e coletivo, está referida à inteireza do mundo. Mas isso não significa um acentuar individualista do suposto modo de ser característico e próprio em contraposição aos deveres e compromissos coletivos, mas, como foi exposto acima, a realização desse modo de ser próprio dentro de sua inserção no arranjo do todo. “Isso porque só surge um conflito real com a norma coletiva quando se instaura um caminho individual para a norma, o que constitui a intenção própria do individualismo extremo”228.

O processo de individuação

Em sua inteireza, o processo de individuação é um decurso dentro da psique, potencialmente dado a todo e qualquer ser humano, espontâneo, natural e autônomo, mesmo que na maioria das vezes esse não tenha consciência disso. Na medida em que não é impedido, barrado ou desviado por distúrbios específicos, enquanto “processo de maturação ou de desenvolvimento”, forma o paralelo psíquico ao processo de crescimento e de envelhecimento do corpo. Sob certas circunstâncias, como no trabalho prático da psicoterapia, ele pode ser provocado, intensificado e conscientizado, vivenciado conscientemente e processado, ajudando a pessoa com isso a alcançar maior “plenitude”, um “arredondamento” de seu ser. Em tais casos, constitui um trabalho analítico intensivo que, sob a mais rigorosa integridade e direção da consciência, concentra-se no processo intrapsíquico através de uma máxima ativação dos conteúdos do inconsciente, revolvendo todos os pares contrapostos, experimentando vivamente sua estrutura e atravessando todas as desventuras de uma psique que saiu dos eixos, e vai perpassando, camada após camada, até conduzir àquele centro que representa a fonte e o último fundamento de nosso ser psíquico: o núcleo interno, o Si-mesmo229. Como já foi mencionado, esse caminho não é aconselhado nem pode ser trilhado por todos. Também não pode ser feito de qualquer jeito, necessitando de um rigoroso controle do parceiro ou do médico, assim como da própria consciência, para preservar a integridade do eu frente aos conteúdos que irrompem de maneira poderosa do inconsciente e poder estabelecer sua ordenação, dando-lhe um fim consciente. É por isso, também, que esse caminho só deve ser trilhado “no tempo certo”. A tentativa de percorrê-lo sozinho, como pode acontecer em muitos lugares em esforços análogos, mas sob condições internas e externas totalmente distintas, precisamente para o homem ocidental seria nefasto, se é que ele conseguiria fazê-lo230.

O querer pautar-se apenas sobre si mesmo leva facilmente a orgulho espiritual, a um maturar estéril e isolamento no eu próprio. O ser humano precisa de um contraposto, do contrário a base da vivência é pouco real. Tudo flui internamente e é sempre respondido apenas pela própria pessoa e não por um outro, diverso. O “diálogo”, que o catolicismo costuma ser cultivado com o cura d’almas na confissão, é por esse motivo também uma instituição infinitamente sábia; para o fiel praticante, seus recursos alcançam ainda mais profundamente. Mas para aqueles muitos que não se confessam ou que não conhecem a confissão por não pertencerem a nenhum âmbito religioso, o trabalho com psicoterapeutas se constitui num auxílio necessário. No entanto, a diferença é bastante acentuada, na medida em que esse não é um sacerdote que fala em nome de um poder superior nem se constitui em autoridade moral absoluta – e tampouco pode se fazer passar por tal –, mas, no melhor dos casos, como uma pessoa de confiança, com alguma experiência de vida, e um saber aprofundado a respeito da essência e leis da psique humana. “Ele não exorta ao arrependimento, na medida em que o paciente já não a faz por si mesmo, não dá penitência, sendo que o próprio paciente – como, no entanto, é o caso, quase que invariavelmente – já não se tenha colocado numa enrascada, tampouco dá absolvição se Deus não tem piedade dele”231. Se devemos estabelecer como fim o crescimento natural da “inteireza”, ou seja, a realização da personalidade nata originalmente no analisando, então o psicoterapeuta deve auxiliar colaborando compreensivamente para essa finalidade. Mas se ela não crescer a partir de si, tampouco poderá ser provocada arbitrariamente.

O decurso da individuação está pré-delineado em traços primários e apresenta uma normatividade formal. Consiste de duas grandes secções, que trazem sinais prévios contrários, condicionando-se e complementando-se mutuamente: a parte da primeira e a da segunda metade da vida. Se a primeira, como tarefa, representa a “iniciação na realidade exterior”, que se conclui com a firme formação completa do eu, com a diferenciação da função principal e do modo predominante de atitude, assim como com o desenvolvimento da persona correspondente, tendo portanto como finalidade uma adaptação e arranjo do ser humano em seu ambiente circunstante, a segunda parte leva a uma “iniciação na realidade interior”, a uma visão de si mesmo aprofundada, e conhecimento humano, a um “retorno” (reflectio) aos traços do ser que até o presente permaneceram inconscientes ou que assim se tornaram à sua conscientização e, com isso, a um consciente estar-referido interior e exteriormente do ser humano à conjuntura terrena e cósmica do mundo. Jung dedicou sua atenção e seus esforços sobretudo a essa última parte, abrindo assim ao ser humano, na guinada de sua vida, a possibilidade de uma ampliação de sua personalidade, que pode ser considerada também como uma preparação para a morte. Quando fala do processo de individuação, em primeira linha, ele tem em mente precisamente essa segunda seção.

Como indicadores e marcos de caminho de tal processo de individuação, descrito e observado por Jung, podem ser apontados determinados símbolos arquetípicos, cujo modo de configuração e de manifestação varia de indivíduo para indivíduo. Também aqui, o que decide é o modo de ser próprio da pessoa. Uma vez que “o método representa apenas o caminho e a direção que alguém trilha, mas o como de seu agir permanece sendo a expressão fiel de seu ser e sua essência”232. Expor esses símbolos na imensa variedade de seus modos de manifestação exigiria um profundo conhecimento e lançar mão das diversas mitologias e representações simbólicas da história da humanidade. Sem essas, não poderiam ser descritos e explicitados em todos os seus detalhes. Por isso, a seguir, será suficiente que apresentemos apenas um breve esboço, que expõe apenas aquelas configurações simbólicas que são características para as etapas principais do processo. É evidente que, ao lado desses, aparecem também inúmeras outras imagens e símbolos arquetípicos, que em parte ilustram problemas paralelos, em parte representam variações das figuras principais.

A sombra

A primeira etapa leva à experiência da sombra, que visualiza nosso “outro lado”, nosso “irmão escuro”, que, apesar de ser invisível, pertence inseparavelmente a nós, a nossa inteireza. Isso porque “a forma viva precisa de sombra escura para aparecer plasticamente. Sem a sombra ela permanece uma miragem superficial”233.

A sombra é uma figura arquetípica que surge na representação dos primitivos, e aparece ainda hoje personificada em muitas formas. Ela também é parte do indivíduo, uma espécie de cisão de seu ser, ligada a ele, porém, “como sua sombra”. Por isso, para os primitivos, quando alguém pisa em sua sombra significa azar, e isso só pode ser corrigido através de uma série de cerimônias mágicas. Também na arte a figura da sombra é um tema predileto e bastante trabalhado. Em seu criar e na escolha de seu tema o artista é amplamente alimentado pelas profundezas de seu inconsciente e, por seu lado, com aquilo que ele cria toca de volta o inconsciente de seu público, onde também, em última instância, encontra-se o mistério de sua atuação. Isso porque são as imagens e as figuras do inconsciente que se elevam nele e falam poderosamente às pessoas, muito embora não saibam de onde provém seu “arrebatamento”. Peter Schlemihl, de Chamissos, O lobo da estepe, de Hermann Hesse, Frau ohne Schatten (A mulher sem sombra), do Hoffmannsthal de Straus. Frey Eminence, de Aldous Huxley, o belo conto de Oscar Wilde Der Fischer und seine Seele (O pescador e sua alma), mas também Mefisto, o tentador obscuro de Fausto, são exemplos do emprego artístico do tema da sombra.

O encontro com a sombra coincide muitas vezes com a conscientização do tipo de função e de atitude ao qual se pertence. A função indiferenciada e o modo de atitude desenvolvida de modo inferior são nosso “lado escuro”, aquela disposição originária em nossa natureza que, por razões morais, estéticas ou outras, rejeitamos e não deixamos surgir, porque se contrapõem aos princípios conscientes. Mas na medida em que a pessoa só diferenciou sua função principal e usa quase que exclusivamente esse lado de seu órgão da vivência, de sua psique, para apreender os dados externos e internos, suas três funções restantes permanecem obrigatoriamente no escuro, ainda estão na “sombra”, e como que pedaço por pedaço precisam ser separadas dessa e afastadas da contaminação com as diversas figuras do inconsciente.

Mesmo tendo um acento diferente, trabalhar a sombra corresponde, em grandes traços, àquilo que objetiva a psicanálise com a descoberta da história de vida, e sobretudo com a descoberta da história da infância do indivíduo; por isso as concepções e pontos de vista freudianos conservam sua validade, em muitos pontos, também para Jung, na medida em que se trate de pessoas que se encontrem ainda na primeira metade da vida, nas quais no tratamento se está às voltas com a conscientização das propriedades da sombra.

Podemos encontrar-nos com nossa “sombra” numa figura interior, simbólica, ou uma figura exterior, concreta. No primeiro caso, a sombra aparece no material do inconsciente, por exemplo, como uma figura do sonho, que representa propriedades psíquicas personificadas, únicas ou ao mesmo tempo múltiplas, da pessoa que sonha; no segundo caso, será uma pessoa do mundo circunstante, que por determinadas razões estruturais se torna sujeito da projeção dessas propriedades, únicas ou múltiplas, abscônditas no inconsciente.

Mas, na maioria dos casos e segundo o que é mais óbvio, a sombra se mostra como pertencendo a nós mesmos, como nossa propriedade a mais própria, muito embora – se é que o fazemos – a muito contragosto estamos dispostos a reconhecê-la como tal. Quando somos tomados por um ataque de ira, por exemplo, e começamos imediatamente a praguejar e nos comportamos de forma desrespeitosa e bruta, frequentemente, contra nossa vontade, procedemos de maneira associal, ou então somos avarentos, mesquinhos, resmungões, somos covardes ou atrevidos, insensíveis e desavergonhados, assim denunciamos propriedades que nas circunstância usuais reprimimos e escondemos cuidadosamente e cuja existência em nós, na maioria das vezes, nós próprios desconhecíamos. Mas quando essas propriedades se tornam visíveis e constatáveis através da emoção que tomou conta de nós, então já não podemos mais ignorá-las, e frente a esses traços de caráter temos de nos perguntar admirados e incrédulos: Sim, como é possível isso tudo? Estaria tal coisa realmente escondida em nós?

Jung distingue duas formas de sombra, muito embora nomeie as duas igualmente. A primeira forma é a da “sombra pessoal”, que contém os traços psíquicos do indivíduo não ou quase não vivenciados. A segunda é a “sombra coletiva”, que já pertence às figuras do inconsciente coletivo, e corresponde, por exemplo, a uma figura negativa do velho sábio ou do lado obscuro do si-mesmo; visualiza por assim dizer o “lado de trás” do espírito do tempo vigente, seu contraposto oculto. As duas formas são atuantes na psique humana.

Dependendo se pertence ao âmbito do eu ou do inconsciente pessoal, ou ao inconsciente coletivo, a sombra possui uma forma de manifestação pessoal ou coletiva. Por isso, pode surgir tanto como uma figura de nosso círculo da consciência, como, por exemplo, nosso irmão mais velho (ou irmã), nosso homem de confiança ou, por exemplo, como no Fausto, o Fâmulo para Wagner, ou seja, como aquele ser humano que representa nosso contraposto, assim como também numa forma mítica – quando se trata de representações do inconsciente coletivo – como no caso de Mefistófeles, um fauno, Hagen, Loki, entre outros234. Correspondentemente, pode ser igualmente o irmão gêmeo ou o “melhor amigo” ou a figura de uma obra de arte como Virgílio, que acompanha Dante como seu companheiro fiel por seu caminho através do inferno. “Eu e sombra”, como par, são um tema arquetípico bem conhecido; Gilgamesh e Enkidu, Castor e Pollux, Caim e Abel podem ser mencionados como paralelos.

Mas, como alter-ego, a sombra – por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista – também pode ser representada por uma figura positiva, por exemplo, quando o indivíduo, cujo “outro lado” ele personifica, vive na vida exterior consciente, por assim dizer, “abaixo de seu nível”, abaixo das possibilidades que lhe são dadas; são portanto seus aspectos positivos que produzem uma existência obscura de sombra235. No aspecto individual a sombra representa o “obscuro pessoal”, como a personificação dos conteúdos de nossa psique não admitidos, rejeitados e reprimidos durante nossa vida, que em certas circunstâncias podem ter também um caráter positivo; sob o aspecto coletivo, representa o lado escuro geral-humano em nós, a disposição estrutural para o inferior e obscuro que habita dentro de todo ser humano. Dentro do trabalho na psique encontramos a sombra de imediato e preponderantemente naquelas figuras que pertencem ao âmbito do inconsciente pessoal, e devemos em primeiro lugar e sempre considerá-la e interpretá-la em seu aspecto totalmente pessoal e só depois, em segunda linha, em seu aspecto coletivo.

A sombra está por assim dizer no limiar de passagem para as “mães”, para o inconsciente. É o verdadeiro contraponto de nosso eu consciente, sim, cresce e se intensifica, por assim dizer passo a passo com o eu. Com sua massa escura, composta do material das vivências jamais admitidas ou quase não admitidas à vida, ela nos barra o caminho para chegar às profundezas criativas de nosso inconsciente. É por essa razão, também, que vemos aquelas pessoas que querem se manter “no alto”, agarrando-se com acrobacias de uma vontade assustadora, acima de suas próprias forças, que não confessam sua fraqueza nem a si nem aos outros, caírem vítimas de uma longa e repentina esterilidade. Seu nível espiritual e moral não cresceu de forma natural, mas são uma armação forjada artificialmente e mantida de pé pela força, correndo constante perigo de romper-se já sob a mínima ofensa. Vemos como essas pessoas têm dificuldades ou até são incapazes de afrontar sua verdade interior, manter um relacionamento correto ou prestar um trabalho vivamente elaborado, e como se veem cada vez mais fortemente enredados nos tentáculos da neurose, quanto mais material reprimido se acumula em sua camada de sombra. Isso porque, na juventude, essa camada está naturalmente ainda bastante fina, e por isso também mais fácil de ser suportada; no entanto, se no curso da vida for se acumulando cada vez mais material, com o tempo, acaba, muitas vezes, se tornando numa barreira intransponível.

“Todo mundo é seguido por uma sombra, mas quanto menos incorporada for essa sombra na vida consciente do indivíduo, tanto mais escura e densa se torna”236. “Ora, se as tendências reprimidas da sombra nada mais fossem que más, não haveria problemas. Mas, em geral, a sombra é apenas algo baixo, primitivo, inadequado e precário, e não absolutamente mau. Contém também propriedades infantis e primitivas, que em certo sentido vivificariam e embelezariam a existência humana; mas nos chocamos com regras produzidas”237, com preconceitos, com decência e costumes, com questões de prestígio de todo tipo; e, porque estão estreitamente ligadas com o problema da persona, especialmente essas últimas podem desempenhar uma função nefasta, impedindo qualquer desenvolvimento da psique. “Buscar curar-se da sombra através de mero recalque seria a mesma coisa que buscar curar a dor de cabeça cortando-a fora [...]. Quando um toma consciência de um sentimento de inferioridade sempre tem a chance de corrigi-lo. Mesmo que ele esteja sempre em contato com outros interesses, de modo a estar constantemente submisso a modificações. Mas quando é reprimido e isolado da consciência, jamais poderá ser corrigido”238.

Assim, o confronto com a sombra significa, sem poupar a si mesmo, criticamente tomar consciência de seu próprio ser. Mas condicionada pelo mecanismo da projeção, a sombra nos aparece como tudo que nos é inconsciente, nos aparece transferida num objeto, razão pela qual, também, “o outro é sempre culpado”, quando não se reconhece conscientemente que o obscuro se encontra em nós mesmos. Por isso, a conscientização da sombra no trabalho analítico tem de contar necessariamente, na maioria das vezes, com grande resistência da parte do analisando, que frequentemente não consegue suportar e aceitar todo esse obscuro como igualmente pertencente-a-si-mesmo, temendo constantemente ver ruir sob o peso desses conhecimentos o edifício de seu eu consciente, construído e mantido com esforço239.

É por isso, também, que muitos analisandos fracassam pelo fato de, já nesse estágio do trabalho, não suportarem o confronto com os conteúdos do inconsciente, interrompendo, nesse entremeio, o trabalho, a fim de se refugiar na segurança de seu autoengano ou de sua neurose. Uma vez que, infelizmente, isso pertence a casos bastante comuns! ­­– aquele que está de fora desse processo jamais deverá deixar de levar isso em consideração na avaliação e julgamento das análises aparentemente “fracassadas”!

Por mais amargo que seja o cálice, ninguém deve ser poupado. Pois é só quando tivermos aprendido a distinguir-nos de nossa sombra, tendo conhecido e reconhecido sua realidade como uma parte de nosso ser, e manter sempre presente esse conhecimento, é que o confronto e embate com o restante dos pares de contrários da psique poderá ter sucesso. É propriamente só então que se inicia aquela atitude objetiva frente à própria personalidade, sem a qual não poderá haver progresso no caminho rumo à inteireza. “Mas quando nos representamos alguém suficientemente aplicado para suspender todo o conjunto (allesamt) de suas projeções240, então surge um indivíduo que está consciente de uma sombra considerável. Todavia, tal pessoa se vê sobrecarregada de novos problemas e conflitos. Tornou-se para si mesma uma tarefa grave, uma vez que agora não mais pode dizer que os outros fazem isso ou aquilo, que eles estão errados e que é preciso lutar contra eles. Vive na “casa da autorreflexão”, do recolhimento interior. Tal pessoa sabe sempre que aquilo que está pervertido no mundo está também nele próprio, e se ele aprender a dar conta de sua própria sombra, então terá feito algo de real para o mundo. Terá conseguido, pelo menos, responder uma parte mínima das questões insolúveis e gigantescas de nossos dias”241.

Animus e anima

A segunda etapa do processo de individuação é marcada pelo encontro com a configuração da “imagem da alma”, chamada por Jung, no homem, de anima, e, na mulher, de animus. A figura arquetípica da imagem da alma representa respectivamente a participação da psique sexual-complementar, mostrando em parte como nossa relação pessoal é formada em relação a isso, e em parte o depósito de toda experiência humana no sexo oposto. Representa, portanto, a imagem do outro sexo, que trazemos em nós como ser individual único, mas também como ser da espécie. “Todo homem traz em si sua Eva”, afirma um ditado popular. Como já se disse anteriormente, segundo a lei intrapsíquica, todo latente, ainda não vivido, indiferenciado, está projetado na psique tudo que se encontra no inconsciente, e assim também a “Eva” do homem e o “Adão” da mulher. Em consequência disso vivenciamos nosso próprio fundamento originário do outro sexo no outro, não de modo diferente que vivenciamos, por exemplo, a própria sombra. Escolhemos um outro, ligamo-nos a um outro que representa as propriedades da própria alma.

Também aqui temos de distinguir, na sombra e em geral em todos os conteúdos do inconsciente, entre uma forma de manifestação de animus e anima interna e externa. Encontramos a forma interna em nossos sonhos, fantasias, visões, entre outros, no material do inconsciente, onde, individualmente ou em conjunto, dão expressão a todo um conjunto de traços característicos do outro sexo inerentes à nossa psique; e encontramos a forma externa quando uma pessoa do outro sexo, que pertence ao nosso mundo circunstante, torna-se sujeito da projeção de apenas uma parcela de nossa psique inconsciente ou de toda parte inconsciente de nossa psique, e não nos damos conta de que é por assim dizer nosso próprio interior que encontramos assim a partir de fora.

A imagem da alma é um complexo funcional mais ou menos firmemente articulado e o não poder distinguir-se dela leva a manifestações como a do varão mal-humorado, dominado por impulsos femininos, guiado por emoções, ou da mulher que sabe tudo, racional, que reage de forma masculina e não lançando mão dos instintos242. “Ocasionalmente, percebemos em nós uma vontade estranha, que faz o contrário daquilo que nós mesmos queremos ou que qualificamos como bom. Não é necessariamente a maldade que executa essa outra vontade, mas ela pode também querer o melhor, e então é sentida como um ser superior orientador ou inspirador, como um espírito protetor ou um gênio, no sentido do daimon socrático”243. Nesses casos, temos a impressão de que uma outra pessoa, uma pessoa estranha teria “se apossado” do indivíduo, “nele entrou um outro espírito” etc., como expressa de forma tão profunda e significativa a linguagem popular. Ou então vemos o homem que fica cegamente caído por um determinado tipo de mulher – como é usual vermos precisamente intelectuais altamente formados absolutamente perdidos por causa de prostitutas, porque seu lado emocional feminino está totalmente indiferenciado! –, ou também a mulher se vê enredada aparentemente sem explicação numa aventura ou presa a algum impostor e não consegue mais se desvencilhar. A constituição de nossa imagem anímica, a anima ou o animus de nossos sonhos é mensurador natural de nossa constituição intrapsíquica. No caminho do autoconhecimento merece uma atenção toda especial.

A multiplicidade de formas de manifestação da imagem da alma é de certo modo inesgotável. Raramente a imagem da alma é unívoca; é quase sempre um fenômeno complexo-cambiante, equipado com todas as propriedades da natureza contrária, na medida em que essas são tipicamente femininas ou masculinas. A anima pode aparecer, por exemplo, tanto como virgem doce ou deusa quanto como bruxa, anjo, demônio, mendiga, prostituta, esposa, amazona etc. Uma configuração da anima bastante característica é, por exemplo, a Kundri da saga de Parsifal ou a Andrômeda do Mito de Perseu; na formulação artística, por exemplo, a Beatriz da Divina comédia, She de Rider Haggard, a Antineia no Atlântida de Benoit etc. Mesmo que com certa diferença, o mesmo se aplica também para as manifestações do animus, para as quais podem servir de exemplo Dionísio, o cavaleiro Barba-azul, o capturador de ratos, o holandês voador ou Sigfried, num nível mais elevado, e o astro de cinema Rodolfo Valentino ou o campeão mundial de Box Joe Louis num nível mais baixo, mais primitivo, ou em tempos da história especialmente agitados como hoje, por exemplo, também alguns políticos famosos ou comandantes militares, na medida em que se trata de figuras individuais. Mas o animus e a anima podem ser simbolizados também através de animais e até de objetos com caráter especificamente masculino ou feminino, sobretudo quando ainda não alcançaram o nível da forma humana e aparecem, sobretudo, em seu caráter puramente instintivo. Assim a anima pode tomar a forma de uma vaca, de um gato, de um tigre, de um navio, de uma gruta etc., e o animus aparecer na forma de uma águia, de um touro, como leão ou como lança, como torre ou como alguma forma fálica.

A figura 4 é uma representação especialmente rica e reveladora244, uma mulher percebe uma montanha saindo do mar do inconsciente coletivo, como símbolo de um ponto de partida consciente, como uma nova conquista, mais elevada e firme; com isso se expressa o nascimento de “um novo mundo”, para cujo processo encontramos paralelos em inúmeras cosmologias, imagens mitológicas e representações religiosas (basta lembrar aqui a “montanha dos adeptos” na simbologia alquímica e o “Monte Meru” na mitologia índica). O sol como imagem de sentido da consciência forma o topo da montanha, mas organicamente está imerso nela; mantém preso em si a águia, extremamente ousada e de altos voos, o símbolo do animus, o intelecto feminino ambicioso, e na medida em que o faz sofrer “até sangrar”, terra e água são assim irrigadas e fecundadas, e o verde da vida pode lançar rebentos à saciedade.

“A primeira a servir de suporte às imagens da alma é sempre a mãe, mais tarde são aquelas mulheres que despertam o sentimento do homem, não importa se em sentido positivo ou negativo”245. Um dos mais importantes e mais complicados problemas para tornar-se personalidade é a dissolução dos laços com a mãe, sobretudo no homem. Os primitivos possuem para isso toda uma série de cerimônias, sagrações masculinas nos ritos de passagem, ritos de renascimento etc., nos quais o iniciado recebe aquela instrução que deverá deixá-lo em condições de dispensar a proteção da mãe. E só depois disso que poderá ser reconhecido na tribo como adulto. Mas o europeu tem de produzir esse “reconhecimento” com sua parte psíquica feminina ou masculina no caminho da conscientização dessa parcela da própria psique. Que a figura da imagem anímica do outro sexo esteja assim tão mergulhada no inconsciente, no caso do ser humano ocidental, desempenhando correspondentemente um papel decisivo e muitas vezes nefasto, deve-se em grande parte a nossa cultura com orientação patriarcal. Isso porque “para o homem significa virtude reprimir o máximo possível traços femininos, como para a mulher, pelo menos até o presente, ser uma mulher viril é algo meio doentio. A repressão desses traços e tendências femininas leva naturalmente a um acúmulo dessas exigências no inconsciente. A imago da mulher torna-se então naturalmente o receptáculo dessas exigências, razão pela qual o homem, ao escolher sua amada, muitas vezes recai na tentação de conquistar aquela mulher que melhor corresponde ao modo específico da sua própria feminilidade inconsciente; uma mulher, portanto, que possa acolher a projeção de sua alma sem mais problemas”246. Desse modo, muitas vezes o homem se casa com sua própria e pior fraqueza, o que pode explicar certos casamentos curiosos; e com a mulher as coisas não se dão de modo diverso247.

Em consequência do desenvolvimento de orientação patriarcal de nossa cultura ocidental, é evidentemente também natural para a mulher a concepção de que o masculino seja mais valioso que o feminino e para isso muito contribui para acentuar o poder do animus. Têm parte nisso as possibilidades de controle de natalidade, a diminuição dos compromissos das mulheres domésticas em consequência da técnica moderna, e por fim um aporte das capacidades espirituais da mulher hodierna, que não deve ser negado. No entanto, assim como o homem, por natureza, é inseguro em relação ao Eros, a mulher será sempre insegura no âmbito do logos. “O que a mulher deve superar, portanto, frente ao animus, não é o orgulho, mas a falta de autoconfiança e de resistir à indolência”248.

No animus como na anima existem as duas formas fundamentais da figura clara e escura, da figura “superior” e “inferior”, com sinais prévios positivos ou negativos. Como mediador entre a consciência e o inconsciente, “no animus, de acordo com a essência do logos, o acento está colocado no conhecimento, e de modo especial na compreensão. O que ele deve transmitir é muito mais o sentido do que a imagem”249. A quaternidade, pela qual se determina o princípio do logos no Fausto de Goethe, por exemplo, tem como pressuposição um elemento da consciência”250. “A imagem é transferida a um homem real parecido com o animus, ao qual então recai o papel do animus, ou aparece como figura onírica ou da fantasia, e, por fim, visto que representa uma realidade psíquica viva, consegue atribuir uma determinada coloração a todo o comportamento a partir de dentro”251, visto que o inconsciente é sempre “matizado com as cores” do sexo oposto. Assim, “uma importante função do animus superior, ou seja, suprapessoal, é que, como verdadeiro psicopompo, conduz e acompanha a mudança e a transformação da alma”252. É claro que um arquétipo como é, por exemplo, o animus e a anima jamais se identificará por completo com um ser-assim factual de uma pessoa individual; e quiçá, quanto mais individual for uma pessoa, tanto menos concordes se mostrarão o sujeito que serve de suporte e a imagem projetada sobre ele. Assim, a individualidade é precisamente o contraposto mais próprio de um modo de manifestação arquetípico. “Isso porque o individual não é precisamente o típico, mas a mistura única e singular de traços singulares típicos”253. Essa falta de concordância, que em princípio se faz invisível por causa da transferência, com o tempo vai se revelando cada vez mais claramente no ser real do sujeito portador da projeção, levando a conflitos e decepções inevitáveis.

A imagem da alma está diretamente reportada com a compleição da persona de uma pessoa. “Se a persona for intelectual, seguramente a imagem da alma será sentimental”254. Pois, como a persona corresponde à atitude habitual exterior de uma pessoa, assim animus e anima correspondem à atitude habitual interior. Podemos considerar a persona como função intermediadora entre eu e mundo exterior e a imagem da alma como a função correspondente intermediadora entre eu e mundo interior. O diagrama XVIII procura tornar visualizável o que se disse. A seria a persona que está como intermediador entre o eu e o mundo exterior; B o animus ou a anima, designado como função de intermediação entre o eu e o mundo interior do inconsciente; C é igualmente eu e persona, que representam nossa compleição fenotípica psíquica manifesta, visível para fora; D seria a parte genotípica que perfaz nossa compleição interna invisível, latente, inconsciente. Persona e imagem da alma estão numa relação compensatória mútua, e quanto mais arcaica, indiferenciada, violenta for e atuar a imagem da alma, tanto mais firmemente a máscara, a persona separa o ser humano de sua vida instintiva natural. É extraordinariamente difícil livrar-se tanto de uma quanto da outra. Mas, mesmo assim, torna-se uma necessidade premente tão logo o indivíduo já não mais consiga se distinguir das mesmas.

Diagrama XVIII

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Enquanto os diversos aspectos e traços da psique inconsciente ainda não tiverem sido distinguidos, diferenciados entre si e acoplados à consciência (por exemplo, enquanto não se conhecer sua sombra!), todo o inconsciente do homem possui indícios femininos e o inconsciente da mulher, indícios masculinos; tudo ali tem por assim dizer uma coloração de qualidades masculinas ou femininas. Por isso, também Jung, na medida em que busca destacar essa característica, chama a esse âmbito do inconsciente simplesmente de anima ou animus. Se, portanto, a persona se torna por demais rígida, isto é, se só se diferenciou uma função, a função principal, e as outras três estão ainda mais ou menos indiferenciadas, então naturalmente a anima será uma mistura dessas três funções; mas no curso da análise, ou seja, depois do desenvolvimento das duas funções paralelas, ela irá se anunciar cada vez mais como a “configuração” da função obscura, da quarta, da função inferior255. Se a sombra ainda for indiferenciada, ou seja, se ela se encontra ainda completamente nas profundezas inconscientes, estará muito frequentemente contaminada com os traços da anima. Nesses casos, nos sonhos poderemos nos encontrar primeiramente com uma tríade de figuras da sombra, que por assim dizer ainda pertencem às funções inconscientes, e igualmente com uma tríade de configurações da anima ou do animus. Nos sonhos a contaminação pode se dar a conhecer também como uma espécie de “situação a dois”, uma espécie de “casamento” entre uma figura de sombra e uma de anima ou de animus.

Quanto mais nos identificamos com a persona, tanto mais no “obscuro” permanece a anima256. “Assim, primeiramente ela é projetada, e desse modo o herói estará sob o comando de sua mulher”257. Isso porque “a falta de resistência no mundo exterior frente às seduções da persona significa uma fraqueza semelhante para dentro, frente às influências do inconsciente”258. O homem dominado pela anima corre o perigo de perder sua persona “bem-assentada” e recair na efeminação, assim como a mulher dominada pelo animus corre o perigo de perder sua persona habitual feminina pelas “opiniões” de seu animus. Uma das manifestações típicas das duas figuras é aquilo que se chama desde há muito de “animosidade”.

Raramente o animus é uma figura única. Se levarmos em consideração a propriedade compensatória dos conteúdos do inconsciente em relação ao comportamento consciente, poderemos dizer: uma vez que em sua vida externa o homem está mais predisposto a ser polígamo, sua anima, sua imagem da alma, irá aparecer na maioria das vezes como uma única manifestação, unificada numa imagem única pelos mais diversos e contraditórios tipos de mulheres259. Daí provém também o “caráter rutilante”, o “ser travesso” das reais figuras da anima. Na mulher, ao contrário, cujo comportamento de vida está predisposto à monogamia, na imagem da alma irá revelar-se uma tendência poligâmica, e o masculino-complementar irá aparecer personificado em todas as variações possíveis para ela, muitas vezes numa série de figuras singulares diversas. Por isso, o animus é representado na maioria das vezes por uma “pluralidade”; de “algo assim como uma reunião de pais e demais autoridades, que, ex cathedra, proferem juízos ‘racionais’ inatacáveis”260. Muitas vezes são, sobretudo, opiniões, preconceitos, princípios tomados sem crítica, que induzem a mulher a argumentar e raciocinar. Isso se aplica em primeira linha a mulheres cuja função principal é o sentimento e nas quais, assim, a função do pensamento foi a que menos se diferenciou. Numa relativamente grande porcentagem das mulheres isso parece ser o que se dá por predisposição natural, muito embora a partir da virada do século anterior essa realidade parece ter-se modificado um pouco, talvez em função da emancipação da mulher261. Mas, uma vez que a imagem da alma coincide com a função que ainda repousa no inconsciente, e que foi minimamente trazida à luz, seu caráter irá mostrar-se como contraposto à função principal e tornar-se visualizável numa figura específica correspondente. Assim, ao científico abstrato pertence de modo coerente uma anima de sentimento romântico primitivo, ou ao artista intuitivo, sensitivo, pertence um tipo de mulher terrestre, sensorial; e não é por acaso que homens ternos trazem em seu coração a imagem da amazona, em nossa época revestida como feminista ou como senhorita doutora. As configurações do animus das mulheres, dependendo da compleição de sua respectiva função principal, irão se manifestar uma vez como perigoso Don Juan, outra vez como professores com longa barba ou talvez como heróis de força e de poder – sejam soldados, cavaleiros, jogadores de futebol, motoristas, pilotos ou astros de cinema, apenas para citar alguns exemplos! Mas como a anima não expressa em figura apenas a “serpente”, o perigo instintivo que espreita para seduzir no escuro do inconsciente, mas dá expressão também à guia sábia, iluminada do homem – portanto, ao outro aspecto do inconsciente – que não o puxa para baixo, mas para mais próximo, assim também o animus não é a opinião diabólica contrária a toda lógica, mas também um ser gerador, criativo, todavia não na forma de um criar masculino, mas como palavra geradora, como logos spermatikos. E como um homem gera sua obra como uma criatura burilada a partir de um “feminino” interior e ali a anima se torna sua musa inspiradora, “assim o masculino interior da mulher produz germes criativos, que podem fecundar o feminino do homem”262. Desse modo, os dois sexos se complementam numa mútua influência natural venturosa não apenas no nível corpóreo, para doar vida à “criança carnal”, mas também naquela torrente misteriosa prenhe de imagens que inunda e liga entre si as profundezas de suas almas para ajudar a gerar uma “criança espiritual”. Mas uma vez que a mulher tenha tomado consciência disso, saberá “lidar” com seu inconsciente e se deixar guiar pela voz do interior, estará em condições de tornar-se a femme inspiratrice ou defensora de princípios que sempre tem razão, a Beatriz ou Xântipa do homem.

Quando na velhice homens se tornam femininos e mulheres, lutadoras, isso sempre é um sinal de que uma parte da psique, que deveria estar voltada para o interior e atuar no interior, voltou-se para o mundo exterior, pois essas pessoas descuraram de atribuir ao interior, no tempo devido, aquela realidade e reconhecimento que lhe convinha. Isso porque é só assim que se fica perdido por uma mulher ou por um homem, e de antemão nada se sabe das surpresas que eles podem preparar para alguém quando não vislumbram sua verdadeira natureza. Mas só se pode vislumbrar a essa apenas em si mesmo, uma vez que na maioria das vezes escolhemos nosso(a) parceiro(a) de tal modo que ela faz as vezes da parte psíquica desconhecida, inconsciente de nossa personalidade. Mas, uma vez que se tenha tomado consciência da mesma, então não mais se atribui as próprias falhas à companheira mulher ou ao companheiro homem, ou seja, suspende-se a projeção. Mas com isso recupera-se uma grande quantidade de energia psíquica, que pode ser disponibilizada para o próprio eu. Esse suspender a projeção, naturalmente, não pode ser confundido com aquilo que se designa em geral como “narcisismo”. É bem verdade que também através desse caminho se chega “ao si mesmo”, mas não na forma do “autoagrado”, e sim na do autoconhecimento.

Quando tivermos perpassado com a visão e tomado consciência do sexo oposto na própria alma, tomamos nas próprias mãos de maneira bastante ampla as próprias emoções e afetos. Significa, sobretudo, independência verdadeira, mesmo que, concomitantemente, isso signifique solidão – aquela solidão do ser humano “interiormente livre”, que já não mais consegue colocar correntes nas relações amorosas ou na relação com o(a) parceiro(a), para o qual o outro sexo perdeu sua estranheza, porque aprendeu a conhecer os traços de sua essência nas profundezas da própria alma. Tal pessoa tampouco poderá estar “apaixonada”, pois não mais consegue se perder em outra pessoa; mas estará tanto mais capaz de um profundo “amor”, no sentido de uma entrega consciente a um tu. Isso porque sua solidão não o aliena do mundo, apenas cria a distância correta em relação ao mesmo. E, na medida em que o mundo dá uma ancoragem firme para seu próprio ser, possibilita-lhe até que ele vá ao encontro de seu semelhante sem reticências, uma vez que isso já não coloca em perigo seu modo próprio de ser. Naturalmente que será preciso, na maioria dos casos, empregar uma meia-vida até que se tenha escalado para conseguir alcançar a esse nível. Ninguém alcança esse estágio sem luta. Faz parte desse processo, igualmente, uma medida cercada de experiências – sim, de decepções. É por isso, também, que o embate e confronto com a imagem da alma não é tarefa da juventude, mas da maturidade. E provavelmente, por isso, também no curso da vida mais tardia terá necessidade de ocupar-se com esse problema. O matrimônio com o sexo oposto na primeira metade da vida tem como meta precisa e preponderantemente a união corporal para fazer surgir a “criança carnal” como fruto e continuação; mas, na segunda metade da vida, está em questão em primeira linha a conjunctio psíquica, uma união com o outro sexo tanto no espaço do próprio mundo interior como com o portador de sua imagem no mundo exterior, para auxiliar no nascimento da “criança espiritual” e gerar fruto e perduração ao ser espiritual de ambos.

O encontro com a imagem da alma significa sempre, portanto, que a primeira metade da vida findou com a adequação necessária à realidade exterior e a orientação exterior da consciência, com isso condicionada, e agora é preciso iniciar a etapa mais importante de adequação ao interior, a confrontação com a parte do outro sexo dentro de si próprio. “Assim, a ativação do arquétipo da imagem da alma é um evento cuja importância tem caráter de destino, pois é o sinal inconfundível de que se iniciou a segunda metade da vida”263.

Na poesia alemã temos o belo exemplo no Fausto de Goethe. Na primeira parte, Margarida é a pessoa que se torna sujeito da projeção da anima de Fausto. Mas o fim trágico dessa relação obriga-o a suspender a projeção do mundo exterior e procurar em si mesmo essa parte de sua psique. Assim, ele a reencontra num outro mundo, no “submundo” de seu inconsciente, simbolizado em Helena. A segunda parte do drama de Fausto representa a versão artística de um caminho interior, de um processo de individuação, com todas as suas figuras arquetípicas, e ali Helena representa a figura clássica da anima, a imagem da alma da psique de Fausto. Em diversas modificações e níveis, ele se confronta com essa até chegar à manifestação suprema, a mater gloriosa. É só então que está redimido e pode entrar naquele mundo da eternidade no qual foram supressos todos os contrários.

Assim como a conscientização da sombra permite o conhecimento de nosso outro lado, escuro, mas do mesmo sexo, a conscientização da imagem da alma permite o conhecimento do sexo oposto em nossa psique. Quando se reconheceu e descortinou a imagem, ela para de atuar a partir do inconsciente e nos permite finalmente diferenciar também essa parte do outro sexo de nossa psique, incluindo-a na atitude consciente, por meio da qual se terá alcançado um extraordinário enriquecimento dos conteúdos pertinentes à nossa consciência, e com isso uma ampliação de nossa personalidade.

Os arquétipos do princípio espiritual e material

Até aqui já franqueamos um bom trecho de caminho. Quando todos os riscos da confrontação com a imagem da alma tiverem sido superados, então erguem-se novas configurações arquetípicas que forçam a pessoa a novos confrontos e posicionamentos. Na medida em que pode ser experimentado, todo o processo tem um direcionamento finalista. É bem verdade que o inconsciente é a mais pura natureza sem intenção, apenas com um “potencial ser direcionado”, todavia, por uma ordem interior própria invisível, uma tendência implícita para buscar o fim. Nesse sentido acontece que, “se a consciência participar ativamente, covivenciando cada etapa do processo e compreendendo-a pelo menos através do pressentimento, então a próxima imagem começará cada vez no nível superior, alcançado através desse processo, e assim surge o direcionamento rumo a um fim”264. Todavia, trata-se de um processo que não surge simplesmente através do enfileiramento de uma série de símbolos, mas que avança cada vez que se torna consciente, cada vez que se supera e se integra um problema determinado.

Assim, não é por acaso que, depois do confronto com a imagem da alma, se pode indicar como o próximo marco de caminho do desenvolvimento interno a aparição do arquétipo do velho sábio (figura 5), da personificação do princípio espiritual. Sua imagem oposta no processo de individuação da mulher é a Magna mater, a grande mãe terrenal, que representa a verdade fria e objetiva da natureza (figura 6)265. Importa lançarmos luz, agora, nas dobras mais secretas do próprio ser, naquilo que é o “masculino” ou “feminino”, o mais próprio e originário; portanto, no homem o princípio “espiritual”, na mulher o princípio “material”. Dessa vez não vamos nos ocupar debatendo a parte do outro sexo da psique – como no animus e anima –, mas por assim dizer tornar-se sábios sobre aquilo que perfaz o próprio ser, sobre aquilo que em alguém constitui o fundamento originário apenas-feminino ou apenas-masculino, retornando até alcançar aquela imagem originária segundo a qual foi formado. Se pudéssemos ousar uma formulação, poderia soar assim: o homem é espírito tornado matéria, a mulher é matéria banhada de espírito; o homem é determinado, portanto, em sua essência pelo espírito, a mulher, pela matéria. E aqui importa tornar consciente a escala relativamente ampla de possibilidades a esse respeito, que cada um traz em si e pode desdobrar, desde o “ser originário” primitivo em si até chegar à imagem de sentido a mais elevada, a mais múltipla e perfeita.

Ambas as figuras, do “velho sábio” e da “grande mãe”, têm uma infinidade de formas de manifestação e são bem conhecidas a partir do universo dos primitivos e das mitologias, visibilizadas em seus aspectos bons e maus, claros e escuros, como encantador, profeta, mágico, guia dos mortos, líder ou como deusa da fertilidade, Sibila, sacerdotisa, mãe igreja, Sofia etc. De ambas as figuras provém um fascínio poderoso, que arrasta o indivíduo ao qual vem ao encontro, irrecusavelmente, para uma espécie de autodomínio e delírio de grandeza quando não sabe libertar-se do perigo de uma identificação com sua imagem escamoteadora através de conscientização e distinção. Um exemplo disso vemos em Nietzsche, que se identificou totalmente com a figura do Zaratustra.

Jung chama essas figuras arquetípicas do inconsciente de “personalidades-mana”266. Mana significa o “extraordinariamente efetivo”. Possuir mana significa ter forma atuante sobre outros, mas também o perigo de tornar-se arrogante e autocrático. Assim, o tomar consciência dos conteúdos que edificam o arquétipo da personalidade mana significa “para o homem a segunda e verdadeira libertação do pai, para a mulher, a libertação da mãe, sentindo com isso pela primeira vez sua própria individualidade singular”267. Só quando o ser humano chegar a esse ponto que poderá, que terá o direito de “adentrar a filiação espiritual de Deus”, no sentido verdadeiro da palavra. Todavia, precisamente então, apenas se ele não mais “inflar” sua consciência ampliada, para com isso recair “paradoxalmente numa inconsciência da consciência”268, numa inflação. Frente às intuições profundas alcançadas, talvez tal hibris não fosse nenhuma surpresa e no curso de um processo aprofundado de individuação todo mundo acaba incidindo nela por um momento. Mas as forças que foram ativadas no indivíduo através das intuições só estarão à sua disposição se ele souber distinguir-se delas com humildade.

O si-mesmo

Agora já estamos bem próximos da finalidade. O lado escuro foi conscientizado, o outro sexo em nós foi diferenciado, e nossa relação para com o espírito e a natureza originária foi clareada. A dupla face do fundo da alma foi reconhecida, apagou-se o orgulho espiritual. Mergulhamos profundamente na região do inconsciente, de lá elevamos muitas coisas, aprendendo a orientar-nos em seu mundo originário. Nossa consciência, como suporte de nossa unicidade individual, foi confrontada com tudo que é inconsciente em nós, como suporte de nossa participação psíquica no universal-coletivo. O caminho não se deu sem crises. Isso porque a torrente de conteúdos inconscientes irrompendo para dentro da região da consciência, junto com a dissolução da persona e da deposição da forma orientadora da consciência, constitui-se num estado de distúrbio do equilíbrio psíquico. Foi produzido artificialmente com o objetivo de solucionar uma dificuldade que impedia o seguimento do desenvolver-se da personalidade. Essa perda de equilíbrio é um procedimento em vista do fim, pois, com auxílio da atividade autônoma e indistinta do inconsciente, leva ao estabelecimento de um novo equilíbrio, supondo que a consciência esteja em condições de assimilar e processar os conteúdos que sobem do inconsciente269. “Isso porque é só pela superação da psique coletiva que surge o verdadeiro valor, a conquista do tesouro, da arma invencível, recurso mágico de proteção, ou o que quer que o mito intenciona em bens desejáveis”270.

A imagem arquetípica que conduz desse confronto para uma ligação dos dois sistemas psíquicos parciais – a consciência e o inconsciente – através de um ponto intermédio comum, chama-se de si-mesmo. Designa a última estação no caminho da individuação, que Jung chama também de “tornar-se si-mesmo”.

Só quando se encontrou e integrou esse ponto central que se pode falar de um homem “redondo”. Só então que ele terá solucionado o problema da relação com as duas realidades a nós incumbidas, a interior e a exterior, o que representa uma tarefa ética e gnosiológica extraordinariamente difícil, cuja solução bem-sucedida só poderá ser alcançada pelos escolhidos e agraciados.

Para a personalidade consciente, o nascimento do si-mesmo não significa apenas um deslocamento de seu centro psíquico atual, mas, como consequência disso, uma atitude de vida e concepção de vida completamente modificada, portanto, uma “mudança” no mais verdadeiro sentido da palavra. “Para que se estabeleça essa mudança é indispensável a concentração exclusiva no centro, ou seja, no lugar da mudança criativa. Ali, somos “picados” por animais, ou seja, temos de nos expor aos impulsos animalescos do inconsciente, sem se identificar com os mesmos e sem “fugir dali” – uma identificação com esses impulsos significaria viver inteiramente e sem restrições sua instintividade, e um fugir dali significaria que nós a reprimimos; todavia, o que se exige aqui é algo totalmente distinto: a saber, tomar consciência dela e reconhecer sua realidade, por meio da qual ela perde por si mesma sua periculosidade –, “pois a fuga frente ao inconsciente tornaria ilusória a meta do procedimento. É preciso perseverar ali, e o processo introduzido pela auto-observação tem de ser vivenciado em todas as suas peripécias e articulado na consciência através da melhor compreensão possível. É claro que isso significa, muitas vezes, uma tensão quase insuportável por causa da inusitada incomensurabilidade da vida consciente e do processo no inconsciente, e este último só pode ser vivenciado no ânimo interior e jamais poderá tocar a superfície visível da vida”271. É por isso que também Jung exige que a vida usual do dia a dia e o trabalho profissional diário não sejam interrompidos em nenhum momento, apesar de toda convulsão interna. Pois é só e precisamente o suportar a tensão, o perseverar em meio ao processo de revolver a psique o que garante a possibilidade de uma nova ordem psíquica.

Seguramente, a representação geral vigente, de que o desenvolvimento psicológico acaba levando a um estado no qual já não há sofrimento é completamente equivocada. Sofrimento e conflitos fazem parte da vida, e não podem ser vistos como “enfermidade”; são os atributos naturais de todo e qualquer ser humano, são como que o polo contrário normal da felicidade. É só onde o ser humano procura fugir deles por fraqueza, covardia ou incompreensão que surgem a enfermidade e os complexos. Por isso precisamos distinguir de forma rigorosa entre repressão e recalque. “O recalque corresponde a uma decisão moral, enquanto que a repressão representa uma tendência, mais ou menos amoral272, de livrar-se de manifestações desagradáveis. O recalque pode causar pesar, sofrimento e conflito, mas não provoca nenhuma neurose. “A neurose representa sempre um substituto de um sofrimento legítimo”273, diz Jung. É no fundo um sofrimento “inautêntico”, sentido como contrário à vida e sem sentido, e, ao contrário, o sofrimento “legítimo” sempre traz consigo também a impressão de uma posterior realização de sentido e de enriquecimento da alma. Compreendido desse modo, o tornar consciente pode também ser visto como o transferir um sofrimento inautêntico para um autêntico.

“Quanto mais a gente se torna consciente de si mesmo através de autoconhecimento e de um agir correspondente, tanto mais delgada se tornará aquela camada do inconsciente pessoal sedimentada no inconsciente coletivo. Por meio disso surge uma consciência que não mais está embrulhada num eu-mundo pequeno e pessoalmente sentimental, mas participa de um mundo mais amplo, no mundo dos objetos. Essa consciência mais ampla não é mais aquele emaranhado sentimental, egoísta de desejos, temores, esperanças pessoais, compensado por contratendências inconscientes pessoais, ou que precisa ser corrigido por essas, mas se constitui numa função relacional ligada com o objeto, com o mundo, que transpõe o indivíduo para uma comunidade incondicional, comprometida e indissolúvel com ele”274. Tal “renovação da personalidade é um estado subjetivo, cuja real existência não pode ser credenciada por nenhum critério exterior. Assim, toda e qualquer outra tentativa de descrição e de explicação não logra sucesso, e é só quem fez essa experiência que está em condições de conceber e testemunhar sua realidade de fato”275. Assim, tampouco é possível fornecer um critério objetivo, como por exemplo “felicidade”, que, apesar disso, possui uma realidade absoluta. Isso porque “no fundo, tudo nessa psicologia é vivência; mesmo a teoria; mesmo ali onde ela ostenta ser a mais abstrata das teorias, ela provém diretamente daquilo que se vivencia”276.

O si-mesmo é “uma grandeza de ordem superior ao eu consciente. Não abarca apenas a parte consciente, mas também a parte inconsciente da psique, e é por assim dizer uma personalidade que nós somos também277. Sabemos que os processos inconscientes são na maioria dos casos uma relação compensatória em relação à consciência, o que nem sempre significa uma relação “contrastante, visto que inconsciente e consciência não são necessariamente contrapostos. Complementam-se para o si-mesmo. Podemos até nos representar almas parciais, mas não podemos nesse sentido representar o que é propriamente o si-mesmo, pois para isso seria necessário que a parte apreendesse o todo.

O diagrama XIX tenta reproduzir uma visão geral da psique total, colocando o si-mesmo como centro entre a consciência e o inconsciente, de modo a participar de ambos, mas alcança a ambos em sua auréola luminosa; isso porque “o si-mesmo não é só o ponto central, mas também o começo, que inclui consciência e inconsciente; é o centro da totalidade psíquica, do mesmo modo que o eu é o centro da consciência”278. Com esse desenho busca-se expressar que o si-mesmo forma tanto o centro quanto inclui e abarca todo o sistema psíquico com a força de sua irradiação. As diversas partes, já discutidas, do todo da psique são reprisadas igualmente no esquema, sem postular com isso um arranjo real, uma gradação de valor etc. Isso porque, propriamente, só é possível representar algo assim tão complexo num esquema de modo bastante limitado. Esse esquema deve servir apenas como motivação e uma indicação de algo que só pode ser compreendido corretamente apenas através da experiência própria vivida279.

O único conteúdo do si-mesmo que nós conhecemos é o eu. “O eu individuado sente-se como objeto de um sujeito desconhecido e de ordem superior”280. Sobre seus conteúdos nada mais podemos expressar. Com qualquer tentativa desse gênero nos deparamos com os limites de nossa capacidade cognitiva, pois o si-mesmo conseguimos vivenciar. Se quiséssemos caracterizá-lo, teríamos de dizer: “É uma espécie de compensação para o conflito entre interior e exterior; é a finalidade da vida, pois é a mais completa expressão da combinação de destino que chamamos de indivíduo, e não apenas do ser humano singular, mas de todo um grupo, no qual um complementa o outro para formar uma imagem completa”281, por meio do qual, novamente, estaria sendo dada apenas uma indicação para algo que só pode ser apreendido na vivência, mas não pode ser definido conceitualmente.

Esse nosso si-mesmo, nosso verdadeiro “ponto central” está tensionado entre dois mundos e suas forças imaginadas apenas como obscuras, mas sentidas de forma bem clara. “É-nos estranho e no entanto tão próximo, é tão perfeitamente nós próprios e no entanto desconhecido a nós, um ponto central virtual de constituição misteriosa [...] os começos de toda nossa vida psíquica parecem inextricavelmente brotar desse ponto, e todos os fins supremos e derradeiros parecem correr para lá. Um paradoxo que, no entanto, é inevitável, se quisermos assinalar algo que se encontra além da nossa capacidade de compreensão”282. Todavia, consegue-se transformar o si-mesmo em um novo centro gravitacional do indivíduo, surgindo daí uma personalidade que, por assim dizer, ainda sofre nos primeiros andares da construção, mas que, nos superiores, é propriamente arrebatada do acontecer de sofrimento e de alegria”283. A ideia do si-mesmo, que representa apenas um conceito limite, como é por exemplo a “coisa em si”284 em Kant, já é portanto em e para si um postulado transcendente, “que até pode ser justificado psicologicamente, mas não pode ser demonstrado cientificamente”285. Esse postulado serve, pois, para formular e ligar os processos constatados empiricamente286. Isso porque o si-mesmo é uma indicação do fundamento originário da psique, que não tem mais outras fundamentações. Todavia, como um fim colocado, é também um postulado ético, um fim a ser realizado – e na doutrina junguiana há que se assinalar precisamente isso, a saber, que exige e leva a decisões éticas. Mas o si-mesmo é igualmente uma categoria psíquica, e como tal é vivenciável, e, se buscamos expressá-lo numa linguagem não psicológica, podemos chamá-lo também de o “fogo central”, nossa participação individual em Deus, ou a “centelha” de Mestre Eckhart. É o ideal cristão originário do Reino de Deus, “que está dentro de vós”. É o que há de derradeiro que pode ser experimentado na e pela psique.

Diagrama XIX

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O tornar-se si-mesmo

O processo de individuação – como foi elaborado por Jung, como método e caminho para a ampliação da personalidade – só pode ser delineado aqui em traços rápidos. Como vimos, consiste numa aproximação passo por passo dos conteúdos e funções da inteireza psíquica e no reconhecimento de sua influência sobre o eu, levando inevitavelmente ao fato de reconhecermos a nós mesmos como somos a partir da natureza, em contraposição àquilo que gostaríamos de ser. E provavelmente nada haja de mais difícil ao ser humano do que precisamente isso. Esse processo não é acessível à consciência sem um conhecimento e uma técnica psicológicos específicos, e sem uma atitude psicológica específica. Por isso, é preciso destacar que no psíquico-coletivo se trata de fenômenos e experiências reconhecidas e descritas cientificamente pela primeira vez por Jung, e das quais ele próprio afirma: “O termo individuação designa simplesmente a região dos processos de centralização, formadores da personalidade, localizados no inconsciente, ainda obscuros e precisando ser pesquisados”287.

A inclusão e composição de todas as possibilidades presentes na psique, no tratamento, partindo da situação atual da alma e dirigindo-se para a criação de uma totalidade psíquica no ser humano, dão a Jung o direito de chamar ao seu método de prospectivo, em contraposição a um método retrospectivo, que considera que a descoberta de causas remotas é o fator que irá trazer a cura. Por isso, enquanto um caminho de autoconhecimento e autorregulamentação, como ativação da função ética, de modo algum está preso a enfermidade ou neurose. É bem verdade que, frequentemente, uma enfermidade serve de propulsão para trilhar esse caminho, mas com a mesma frequência vemos ali o desejo de encontrar um sentido para a vida, reedificar a fé perdida em Deus e em si mesmo; isso porque, como afirma Jung, “geralmente, mais ou menos um terço dos casos, não sofre de qualquer neurose determinável clinicamente, mas apenas na falta de sentido e de objetivo em sua vida”288. Mas parece que precisamente isso se tornou a forma da neurose comum de nossa época, uma época em que todos os fundamentos dos valores ameaçam ruir, e em que a humanidade se vê tomada por uma desorientação total em matéria de espírito e alma. Frente a essa situação, o caminho da individuação, como é postulado por Jung, pode ser visto como uma primeira tentativa de fazer frente a essa desorientação do homem moderno através da ativação das forças criativas de seu inconsciente e de sua atitude consciente no todo da psique. Significa uma “libertação” das armadilhas da natureza instintiva, um opus contra naturam, pensado, porém, em primeira linha, para a segunda metade da vida.

Isso porque o aprofundamento e ampliação da consciência289 através da conscientização de conteúdos que se encontram no inconsciente é uma “clarificação”, um ato espiritual; “é por essa mesma razão que a maioria dos heróis míticos são marcados com atributos do sol, e o momento do nascimento de sua grande personalidade é chamado de iluminação”290. Com isso não se tem em mente nada além do que aquilo que pode ser visualizado de forma maravilhosa na ideia do sacramento cristão do batismo. Sobre isso Jung diz: A reivindicação do sacramento cristão do batismo significa um marco do mais alto significado no desenvolvimento psíquico da humanidade. Batismo concede uma alma essencial; o que faz isso não é o rito batismal singular, mágico, mas a ideia do batismo, que destaca o homem de sua identidade arcaica com o mundo, transformando-o num ser superior ao mundo. O fato de a humanidade ter escalado, conquistando a altura dessa ideia, isso é, no sentido mais profundo, o batismo e o nascimento do homem espiritual, não natural”291.

Mas também Jung nada tem a acrescentar àquela consciência que ainda está protegida na fé e na simbologia do dogma; do mesmo modo que esse, também aquele que procura o caminho de retorno à igreja é fortalecido ali de todo modo. Anima naturaliter christiana est é uma convicção partilhada também por Jung; e precisamente no caminho para o tornar-se si-mesmo, quando “compreende o sentido daquilo que faz, o ser humano pode tornar-se um ser humano mais elevado, que torna realidade o símbolo de Cristo”292.

O tornar-se si-mesmo, talvez até em primeira linha, é portanto, também, um caminho para a doação de sentido, para a formação de caráter, e com isso para a formação de uma concepção de mundo. Isso porque “consciência superior condiciona mundivisão. Toda consciência de fundamentos e intenções é uma mundivisão germinadora. Todo crescimento em experiência e conhecimento significa um passo à frente na evolução da mundivisão. E, junto com a imagem que o homem pensante cria do mundo, ele próprio também se modifica. Aquele homem, cujo Sol ainda se volve circulando a Terra, é diferente daquele outro cuja Terra se tornou o satélite do Sol”293.

A pessoa doente ou também a pessoa meramente esvaziada de sentido, em geral, vê-se afrontada com problemas com os quais ela duela em vão. Isso porque “os maiores e mais importantes problemas, no fundo, são todos insolúveis; e precisam também ser assim, porque expressam a polaridade necessária imanente a todo sistema autorregulador. Jamais poderão ser solucionados, mas apenas superados pelo crescimento [...]. Esse superar os problemas pessoais do indivíduo pelo crescimento se nos apresentou porém como uma elevação de nível da consciência. No círculo de visão ingressou algum interesse mais elevado e mais amplo, e com essa ampliação do horizonte o problema insolúvel perdeu sua constringência. O problema não foi solucionado logicamente em si mesmo, mas apenas empalideceu frente a um novo e mais forte direcionamento de vida. Não foi reprimido nem tornado inconsciente, mas apenas apareceu numa luz diferente, e assim também se tornou diferente. Aquilo que num nível inferior deu motivos para os mais selvagens conflitos e ataques de pânico dos afetos, agora, considerado a partir do nível mais elevado da personalidade, aparece como uma tempestade de vale vista a partir de uma alta montanha. Com isso nada se retira da realidade do furor da tempestade, já não nos encontramos nela, porém, mas acima dela”294.

O símbolo unificador

A figuração arquetípica desse acontecimento, dessa transcondução dos contrários num algo terceiro – a coincidentia oppositorum –, numa síntese superior295, expressa o assim chamado símbolo unificador296 ao representar o sistema parcial da psique unificado com o si-mesmo num nível mais elevado e de ordem superior. Todos os símbolos e configurações arquetípicas do processo são portadores da função transcendente297, ou seja, função de unificação dos diversos pares de contrapostos da psique numa síntese bem-sucedida. O “símbolo de unificação” surge quando a psique interna, no curso do desenvolvimento psíquico, “é experimentada de forma tão real, tão efetiva e do ponto de vista psicológico tão verdadeira quanto o mundo da realidade exterior”298. Com o surgimento desse símbolo, que pode aparecer nas mais diversas formas, produz-se o equilíbrio entre o eu e o inconsciente. Esse tipo de símbolos, que representam a imagem originária da totalidade psíquica, apresenta sempre uma forma de manifestação mais ou menos abstrata, porque uma ordem simétrica das partes e sua relação para com um ponto central nelas funciona como regulabilidade, perfazendo sua essência. O Oriente conhece essas configurações simbólicas desde há muito tempo; por exemplo, as que são chamadas de mandalas, o que pode ser melhor traduzido como “círculo mágico”. Mas, com isso, de modo algum se está afirmando que a simbologia do si-mesmo possua sempre a forma de mandala. Dependendo da situação da consciência e do estágio de desenvolvimento psíquico de uma pessoa, tudo que é criado, pequeno ou grande, baixo ou elevado, abstrato ou concreto pode se transformar num símbolo do si-mesmo, pode se transformar nesse “centro atuante”. Todavia, se tivermos de apresentar uma visão simbólica e sintética conjuntural da psique, então as mandalas são suas representantes mais eloquentes e mais apropriadas.

Símbolos de mandala

Os símbolos de mandala pertencem aos símbolos religiosos mais antigos da humanidade, e já podem ser encontrados na época do paleolítico; podem ser encontrados em todos os povos e em todas as culturas; até como desenhos de arenito como nos povos indianos. Talvez as mandalas mais impressionantes e mais perfeitas do ponto de vista da arte pertençam ao Oriente, sobretudo ao budismo tibetano. Na ioga tântrica são escolhidas imagens de mandala como instrumento de contemplação. Têm grande importância em seu uso no culto, contendo em seu centro, via de regra, uma figura de supremo valor religioso: o próprio Schiva ou Buda”299. Há também inúmeras mandalas provindas da Idade Média, onde encontramos a figura do Cristo no centro do círculo, com os quatro evangelistas ou seus símbolos nos quatro pontos cardeais300. A grande valorização dos símbolos de mandala nos diversos círculos culturais corresponde perfeitamente ao significado central dos símbolos de mandala individuais, aos quais é própria a mesma qualidade, por assim dizer, de natureza “metafísica”301. Jung estudou esses símbolos por quatorze anos seguidos, antes de ousar uma interpretação dos mesmos. Hoje em dia, porém, pertence ao mais importante âmbito da experiência psicológica, aberta e transmitida àqueles que trabalham sob sua orientação.

A simbologia característica das mandalas mostra em toda parte a mesma regularidade, que se manifesta num típico arranjo e numa típica simetria dos elementos da imagem. Todas estão preponderantemente referidas a um centro e encontram-se dispostas num círculo ou num polígono (usualmente quadrado), por meio do qual deve ser visualizada a “inteireza”. Muitas delas têm forma de flor, de cruz ou de roda, com uma tendência clara para o número quatro. Como mostram os paralelos históricos, não se trata de curiosidades, mas, podemos dizer, regularidades”302. A figura 8303 mostra um arranjo semelhante: no centro está retratada a figura principal, rodeada por um lótus estilizado em oito folhas; a base onde está postado o círculo consiste de triângulos em quatro diversas cores, que desembocam em quatro portais, representando os pontos cardeais, e se complementam num grande quadrado, que por sua vez é abarcado por um círculo, o círculo do “rio da vida”. Sob esse grande círculo, que contém ainda inúmeras formas simbólicas, vem representado o submundo com todos os seus demônios, e acima do círculo a fileira de tronos dos deuses celestes.

A figura 9 é uma mandala do século XVIII304 e mostra igualmente uma estrutura parecida: o salvador como figura central em meio a uma dupla flor octifolhada, contornada por uma auréola de fogo e dividida em quatro partes por uma cruz deitada, cujas hastes inferiores queimam no fogo do mundo dos instintos, e as hastes superiores são banhadas pelas lágrimas do orvalho celeste. As figuras 11, 12, 13, 14, 18 e 19 são mandalas feitas por pacientes de Jung a partir de uma “vivência interior”. São produtos espontâneos, surgidos sem qualquer modelo ou influência externa. Também aqui trata-se de temas iguais, processados num arranjo semelhante. O círculo, o centro, o número quatro, a distribuição simétrica dos temas e cores expressam a mesma regularidade psíquica305. A meta continua sendo sempre reunir uma multiplicidade de cor e forma numa unidade orgânica balanceada, num todo conjuntural.

A figura 11, por exemplo, representa a “cauda de pavão”, que se move na forma de um círculo, com seu jogo de cores e seus diversos olhos, que visualizam os aspectos e propriedades da psique em constante mutação e movimento, e que tem como ponto decisivo no centro, no olho central. Ao redor da cauda se estende um círculo de línguas flamejantes que se projetam para frente que abarcam o acontecer misteriosamente simbolizado do tornar-se si mesmo, como que protegendo-o com “emoções ardentes”, e condensando-o frente ao mundo exterior306. A figura 12 apresenta o “deus Sol com quatro braços”, como símbolo do aspecto dinâmico do si-mesmo. Braços e raios têm caráter “masculino, a lua crescente tem caráter “feminino”, as estrelas quintavadas visualizam o que no ser humano ainda é imperfeito, o natural; todas elas estão referidas ao sol, rodeado pela “torrente da vida”, como símbolo do si-mesmo. A figura 13, ao contrário, é tida como formal e abstrata, todavia procura igualmente organizar a relação de uma multiplicidade de linhas e formas claramente articuladas com um centro. A figura 14 representa o olho de Deus, acentua e destaca as quatro direções cardeais com sua auréola que abarca o mundo. Também a figura 18 mostra uma multiplicidade de formas e cores diversas (azul, vermelho, verde, amarelo representam as quatro funções da consciência) num arranjo cambiável em torno do cálice de flores quadrifolhado do centro. Os botões envoltos em sua cobertura verde, como que ainda despertando em broto, apontam para o centro como si-mesmo em devir. Estão em contraposição para com a periferia, onde os frutos balançando presos ao cálice resplandecem como produções maduras e os pássaros prontos para o voo resplendem em seu desenvolvimento pleno, tendo já percorrido o caminho do desenvolvimento psicológico. Por fim, a figura 19 torna visível a visão do “rosto da eternidade”, rodeada pela serpente do tempo, o uróboros, e o zodíaco.

Todavia, seria um erro querer compreender todas essas mandalas como “figuras” da individuação já realizada, isto é, da unificação bem-sucedida dos pares de contrários da psique. Trata-se, na maioria dos casos, de projetos prévios, mais ou menos aproximados e estágios prévios alcançados de uma plenificação e inteireza definitiva, que em vista de nossa humanidade limitada sempre serão apenas relativas, uma ideia do fim que se constitui em nossa sorte e nossa tarefa primordial buscar de forma inabalável. No fundo, as mandalas podem surgir durante todo o processo de individuação, e seria falacioso deduzir de sua manifestação, por exemplo, um estágio de desenvolvimento bastante elevado do respectivo indivíduo. No sentido da autorregulação psíquica elas surgirão sempre que uma “desordem” no âmbito do campo da consciência as convoca para atuarem como fator de compensação. As mandalas, com sua estrutura matemática, são como que figurações da “ordem originária da integralidade da psique” e são convocadas para transformar caos em cosmos. Isso porque essas configurações não apenas expressam ordem, mas também efetivam-na. O contemplar meditativo das imagens iantras em forma de mandalas, como é costume no Oriente, tem precisamente como meta estabelecer uma ordem intrapsíquica na pessoa que medita, e é empregado também nesse sentido. É claro que as mandalas individuais dos analisandos jamais alcançarão aquele grau de perfeição, a elaboração detalhada e a “harmonia firmada na tradição” que possuem as mandalas do Oriente, que já não mais são produtos espontâneos da alma, mas são geradas pela habilidade artística. Foram mencionadas aqui como paralelos para mostrar que repousam no mesmo pressuposto psíquico, demonstrando assim, numa concordância maravilhosa, a mesma normatividade307. Todas elas são figurações daquele “caminho mediador”, chamado no Oriente de “TAO”, e que para o homem ocidental se transforma em tarefa de encontrar a unificação dos contrários da realidade interior e exterior, de configurar conscientemente sua personalidade no saber a respeito dos poderes da natureza originária e no sentido de uma totalidade estrutural.

Embora as pessoas, em geral, quase nada consigam dizer sobre o sentido das mandalas que desenharam, sentem-se fascinadas por elas e, em relação a seu estado anímico, acham-nas impressionantes e efetivas. “Na mandala está escondida uma atuação mágica antiquíssima, pois provém originariamente de “círculo mágico protetor”, do “círculo de encantamento”, cuja mágica se conservou em inúmeros costumes populares. A imagem tem como meta expressa traçar um sulco mágico ao redor do centro, da região sagrada da personalidade interior, para impedir o “escapamento do fluxo” ou evitar apotropaicamente dispersão através do exterior308. Por isso, no Oriente coloca-se no centro da mandala a “flor de ouro” – empregada frequentemente também por pacientes ocidentais com o mesmo significado – chamado também de “seio celeste”, o “reino da suprema alegria”, o “país sem limites”, o “altar onde se produz consciência e vida”. O curso circular, simbolizado pela forma circular das imagens, não é um mero movimento circular. Mas tem, por um lado, o significado de uma separação da região sagrada, e, por outro, significa a fixação e concentração no centro; a roda solar começa a correr, ou seja, o sol é vivificado e começa a aviar-se. Com outras palavras: O Tao começa a atuar e tomar a direção309. É difícil dizer numa palavra o que significa Tao. R. Wilhelm traduz essa palavra por “sentido”; outros, por “caminho”; e outros até por “Deus”. Quando concebemos Tao como método ou como caminho consciente de unificação do que está separado, isso provavelmente busca se aproximar ao conteúdo psicológico do conceito”310.

Infelizmente, nosso espírito ocidental, em virtude de falta de cultura nesse sentido, ainda não encontrou qualquer conceito para a “unificação dos contrários num caminho mediador, essa peça principal e fundamental da experiência interna, quanto menos um nome que pudesse servir de paralelo descente ao Tao chinês311. “Psicologicamente, no sentido da doutrina junguiana, a melhor forma de caracterizar esse curso circular poderia ser mais ou menos com um “circular num círculo ao redor de si mesmo”, onde todos os lados da personalidade são afetados e padecem juntamente. O movimento circular, que pode ser colocado paralelamente ao processo de individuação experimentado conscientemente, jamais é “gerado”, mas vivenciado passivamente. Isso significa: Deixa-se acontecer psiquicamente. “Segundo isso, o movimento circular possui também o significado moral de vivificação de todas as formas claras e obscuras da natureza humana, e com isso de todos os contrapostos psicológicos, como quer que sejam. Isso significa autoconhecimento através de autoincubação. Uma representação originária semelhante de ser perfeito é também o homem platônico redondo por todos os lados, no qual estão unificados todos os contrapostos, também o sexual”312. Essa unidade, essa ligação dos dois sexos numa inteireza é visualizada nas imagens correspondentes através da conjunctio entre duas essencialidades de sexo oposto313 (figuras 15, 16 e 17), por exemplo, através de Shiva e Shakti ou sol e lua ou por meio da figura hermafrodita. Pode acontecer de modo falso ou correto.

“A vontade consciente não consegue alcançar essa unidade simbólica, pois nesse caso a consciência é um partido contendente da mesma. O adversário é o inconsciente coletivo, que não compreende a linguagem da consciência. Por isso necessita do símbolo com atuação mágica, que contém aquele analogismo primitivo que fala ao inconsciente em sua linguagem mais própria [...] e cujo fim é unificar a unicidade da consciência do presente com o passado primordial da vida”314. O brotar desses símbolos da mandala a partir da profundeza da alma é um fenômeno que acontece sempre de forma espontânea; vem e parte a partir de seu próprio impulso e iniciativa. Seu efeito, porém, pode ser estupendo na medida em que pode levar à solução de diversas complicações psíquicas e a uma libertação da personalidade interior de emaranhados e imbróglios emocionais e de pensamento, através do que acaba sendo gerada uma unidade da essência que pode ser chamada com razão de um renascimento do ser humano no nível transcendental.

“O que hoje podemos expor sobre o símbolo-mandala é que representa um fato ou uma realidade psíquica autônoma, marcada por uma fenomenologia que se repete e pode ser encontrada por toda parte. Parece ser uma espécie de átomo nuclear, de cuja estrutura interior e significado último ainda nada sabemos”315.

Paralelos ao processo de individuação

Não são apenas as mandalas dos diversos círculos culturais, enquanto expressão de uma estrutura psíquica comum, que mostram impressionantes semelhanças fenomenológicas e de conteúdo. Todo o processo de individuação apresenta um processo de desenvolvimento interior que possui diversos paralelos na história da humanidade. O processo de mudança da psique, como foi descortinado pela psicologia analítica junguiana ao homem ocidental, representa, no fundo, uma “analogia natural dos processos de iniciação religiosos, realizados artificialmente”316, em todos os tempos. Apenas que esses trabalham com prescrições e símbolos ligados à tradição, e aquela trabalha com uma produção simbólica natural, busca portanto alcançar seu fim através de uma manifestação psíquica espontânea. Os diversos métodos de iniciação religiosa dos primitivos servem de exemplo disso, tanto quanto as formas de ioga budistas e tântricas ou os exercícios de Inácio de Loyola. É claro que todos esses intentos são marcados respectivamente com o selo da época e das pessoas a quem pertenceram. Cada um deles foi condicionado por outros pressupostos da história do espírito, e têm sua importância assim para a atualidade apenas como analogia histórica e estrutural. São tentativas que não podem ser transpostas de forma direta para o homem moderno e que só podem ser comparadas com a concepção junguiana de individuação em seus traços básicos. Mas a maioria delas se distingue de seu método no fato de trazerem elas próprias o caráter de ações religiosas ou que deveriam levar a uma determinada mundividência, nelas representada, e não como o processo de individuação junguiano que concebia o trabalho na psique como uma “preparação do caminho” para uma inserção religioso-ético-espiritual, que deve ser consequência e não conteúdo da preparação do caminho, e cujo resultado tem de ser escolhido consciente e livremente pelo indivíduo e por ele desempenhado.

Em suas pesquisas a esse respeito, Jung encontrou um paralelo especialmente fecundo no âmbito da filosofia hermética da Idade Média ou na Alquimia317. Por mais diversos que sejam os caminhos que seguem a alquimia e o processo de individuação, em virtude de sua postura espiritual e o condicionamento de sua época e seu mundo circunstante, ambos são tentativas de levar o ser humano a tornar-se si-mesmo. A mesma “função transcendente”, como é designado por Jung o processo de formação de símbolos, essa capacidade admirável de transformação dos conteúdos da psique, “é também o objeto predileto da filosofia da Idade Média, como vem expresso pela conhecida simbologia alquímica”318. Seria, portanto, totalmente equivocado querer reduzir a corrente espiritual da alquimia a retortas e fornos de fundição. Jung designou-a inclusive como um “pré-estágio gerador da mais moderna psicologia”. É claro que essa filosofia, “com suas inevitáveis concretizações de um espírito ainda tosco e não desenvolvido, não alcançara penetrar uma formulação psicológica. Todavia, também seu ‘segredo’ não era outro que o acontecimento da individuação, o fato da transformação da personalidade através da mistura e ligação de componentes nobres e vis, da função diferenciada e inferior, do consciente e do inconsciente”319. Isso porque é muito provável que na alquimia não estejam em questão experimentos químicos, mas algo como “processos psíquicos, expressos em linguagem pseudopsíquica. E o ouro buscado não era o usual aurum vulgi, mas, ao contrário, o ouro filosófico, ou até a pedra maravilhosa, a lapis invisibilitatis320, o alexipharmaca, a “tintura vermelha”, o “elixir da vida”.

O número das designações desse “ouro” é infinito. Muitas vezes era representado também como um ser místico, constituído de corpo, alma e espírito e como alado e hermafrodita, outra imagem para o mesmo símbolo para indicar o que o Oriente designa como “corpo diamantino” ou “flor de ouro”. “Em paralelo com a vida coletiva do espírito daqueles séculos temos sobremodo a imagem do espírito preso nas trevas, ou seja, a falta de remissão de um estado de relativa inconsciência, sentido como miserável, reconhecido no espelho da matéria e por isso também tratado na matéria”321. Assim, do caos do estado inconsciente, representado pela desordem da “massa confusa”, jazendo enquanto matéria originária como fundamento do processo alquímico, gera-se o corpus subtile, “o corpo ressuscitado”, o “ouro”, através de partição e destilação etc. e por meio de ligas sempre novas.

Segundo pensavam os alquimistas, esse ouro não pode ser confeccionado sem a intervenção da graça divina, pois é o próprio Deus que ali se manifesta. Na gnose o homem-luz é uma centelha da luz eterna, caído nas trevas da matéria e donde tem de ser redimido. Ao resultado do processo, portanto, pode-se atribuir o significado de um “símbolo unificador”, e esse possui quase sempre um caráter numinoso. Com Jung poderíamos dizer: “A opus cristã era um operari dos que necessitavam de remissão em honra do Deus redentor, mas a opus alquímica era o esforço do homem redentor em prol da alma do mundo divina que jaz adormecida na matéria esperando pela remissão”322. Só assim, também, é possível compreender que aos alquimistas se fazia possível vivenciar o processo de transformação de sua própria psique na matéria alquímica. Só quando se encontra essa chave que se torna possível abrir o sentido profundo daqueles textos e processos místicos, sentido muitas vezes não só como misterioso, mas também em muitos aspectos como incompreensível, quem sabe até velado propositalmente323.

Assim como a alquimia, as diversas formas de ioga se esforçam para promover uma “libertação” da alma, aquele estado do “estar solto e livre dos objetos”, que os indianos chamam de nirvana, “estar livre dos objetos”. Mas enquanto o alquimista representava e vivenciava simbolicamente a transformação da psique no processo químico, nos exercícios de ioga, é uma atuação direta na própria psique o que provoca a transformação através de correspondentes exercícios físicos e psíquicos conscientes. Os diversos níveis do caminho da ioga têm uma prescrição exata e exigem uma força e concentração psíquica extraordinárias. A meta final é a “geração simbólica e nascimento de um corpo psíquico sutil (subtile body), que assegura a continuidade da consciência solta e livre. É o nascimento do homem pneumático”324, de Buda como símbolo da existência eterna do espírito frente ao caráter perecível do corpo. Também aqui, a “contemplação” da “realidade” do acontecer, portanto uma visão do mundo dos pares de opostos, é a pressuposição necessária para conquistar a unidade e a inteireza. Até a ordem de sequência das representações e das etapas é análoga àquela da alquimia e ao processo de individuação, o que novamente comprova as leis fundamentais psíquicas eternamente iguais e em toda parte as mesmas.

A opus produzida pelo alquimista, e a imaginatio, que é o instrumento psíquico do homem oriental para “gerar” o Buda, repousam na mesma “imaginação ativa”, que conduz também os pacientes de Jung à mesma vivência simbólica e, através dessa, à experiência do próprio “centro”, o si-mesmo. Essa imaginação nada tem a ver com fantasiar no sentido usual da palavra. A imaginação é compreendida aqui real e literalmente como a força de formar imagens interiores (Einbildungskraft), correspondendo ao uso clássico da palavra, e em contraposição à phantasia, com a qual vem designado apenas “o ocorrer uma ideia”, no sentido de um “divagar” indeterminado325. É uma evocação ativa de imagens internas, um desempenho verdadeiro de representações ou pensamentos, “que não faz apenas ‘divagar fantasiando’ vagamente, sem plano e sem chão, não joga portanto com seus objetos, mas procura apreender os dados interiores da natureza em representações fielmente configuradas”326. É uma vivificação dos abismos profundos da alma para fomentar o surgimento dos símbolos, objetivando alcançar seu efeito criativo e curativo. A alquimia procura vivenciar esse processo nos materiais químicos, a ioga – e de maneira semelhante também os exercícios de Inácio de Loyola – através de exercícios prescritos, rigorosamente concatenados, e a psicologia junguiana, na medida em que conduz a pessoa a descer às profundidades de sua própria alma, reconhecendo os conteúdos dessa profundidade e integrando-os à consciência. Mas, segundo Jung, “esses processos são tão misteriosos que no geral se torna questionável se a compreensão humana se constitui num instrumental apropriado para apreendê-los e expressá-los. Não é por acaso que a alquimia designa-se como ‘arte’, com um verdadeiro sentimento de que se trata de processos configurativos que só podem ser apreendidos realmente na vivência, e que do ponto de vista intelectual só podem ser apontados”327.

Esses apontamentos deveriam simplesmente mostrar que em nosso círculo de visão espiritual estão já presentes grandes intuições e preformações dos mais importantes conhecimentos psicológicos; esses, em grande parte, ainda sequer foram percebidos e de certo modo são ligados com superstição pela maioria das pessoas. Isso tudo, embora também aqui só estejam em questão aqueles fatos psíquicos fundamentais, que durante muitos séculos dificilmente se modificaram perceptivelmente, e junto aos quais essa verdade que já data de dois milênios continua sendo a verdade viva e atuante de hoje328. Ultrapassaria os quadros de referência desse nosso escrito se quiséssemos delinear com precisão o caminho desses diversos esforços que intentam ao mesmo fim. Por isso, aqui, devemos apontar sobretudo para as exposições múltiplas e detalhadas do próprio Jung329, reiterando ao mesmo tempo sua exortação, muito bem-fundamentada, de que seria nefasto, por exemplo, querermos agora imitar a alquimia ou para um ocidental mandar que pratique exercícios de ioga. Continuaria sendo um afazer e interesse de sua vontade e consciência, e com isso nada mais faria senão aumentar sua neurose. Isso porque o europeu parte de pressupostos totalmente distintos e não pode simplesmente esquecer o saber gigantesco e os pressupostos da história do espírito da Europa, adotando por exemplo as formas de vida e de pensar do Oriente. “Também a ampliação de nossa consciência não deve ocorrer às custas de outros tipos de consciência, mas surgir a partir do desenvolvimento daqueles elementos de nossa psique, análogos às propriedades da psique estrangeira, assim como o Oriente também não pode abster-se de nossa técnica, ciência e indústria”330. “O Oriente chega ao conhecimento de coisas interiores através de um desconhecimento infantil do mundo”331. O caminho de um europeu é outro. Somos convocados a pesquisar a psique precisamente “apoiados em nosso saber histórico e na ciência da natureza, gigantesco e extenso. E mesmo que nesta época o saber exterior ainda se constitua no maior empecilho para a introspecção, a premência psíquica poderá superar tudo isso”332.

Quem, portanto, reconhece uma realidade à alma não irá vivenciá-la, é claro, com os recursos da compreensão, mas com os mesmos recursos utilizados desde os tempos do pensamento primitivo333. E, assim, os caminhos procurados e encontrados para o esclarecimento do cosmos interior da alma conectam-se uns aos outros, mesmo que às vezes possa parecer que a humanidade estivesse saturada desse caminho difícil e já não mais conseguisse encontrá-lo, imersa na escuridão. Todavia, olhemos mais de perto, e iremos perceber que ali não existe nenhuma estagnação e que tudo que ocorreu até o presente era apenas “uma cadeia significativa de episódios naquele drama que se iniciou no obscuro tempo primitivo, e perpassando por todos os séculos se estende para um futuro longínquo. Esse drama é uma aurora consurgens: a consciencialização da humanidade334.

Psicologia analítica e religião

Assim, também a psicologia de Jung e a tentativa de descortinar os processos eternos de transformação da psique ao homem ocidental não passam de um “estágio no processo de desenvolvimento de uma consciência mais elevada da humanidade que se encontra a caminho de metas desconhecidas, e em si não são metafísica no sentido usual. Antes de tudo é apenas psicologia, mas enquanto tal é também passível de ser experimentada, compreendida e [...] real; uma realidade dotada de pressentimento e, por isso, viva”335.

O fato de Jung se contentar, portanto, com o que é possível de ser experimentado psiquicamente e sua rejeição dos pontos de vista da metafísica, em sua teoria, não significa um gesto de ceticismo, tendo como ponto alto uma oposição à fé ou a confiança em poderes superiores. “Deve-se evitar rigorosamente toda e qualquer declaração sobre o transcendente, pois é sempre apenas uma presunção ridícula do espírito humano, que não tem consciência de sua delimitação. Por isso, quando se chama a Deus ou ao Tao de uma moção ou um estado da alma, espressa-se, com isso, apenas algo cognoscível, e nada se está dizendo sobre o desconhecido, sobre o que, em absoluto, nada se pode dizer”336. Por isso, Jung, como psicólogo, diz que “Deus é um arquétipo”, e com isso tem em mente que “o tipo na alma, termo que, sabe-se provém de tu/poj = cunho, imprimir um caráter. A própria palavra arquétipo, portanto, pressupõe um marcar pregnante [...] a competência da psicologia, enquanto ciência da experiência, só vai até o ponto de constatar se o ‘tipo’ encontrado na alma, com certa razoabilidade, pode ser designado ou não, por exemplo, como ‘imagem de Deus’, com base em pesquisa comparativa. Mas com isso nada se disse, nem de forma positiva nem negativa, sobre uma possível existência de Deus, tampouco o arquétipo de ‘herói’ pressupõe a existência de tal herói [...]. Como o olho ao sol, a alma corresponde a Deus. Em todos os casos, a alma tem de ter em si, portanto, uma possibilidade de relação, uma correspondência com a essência de Deus, do contrário não poderia dar-se qualquer confluência. Formulada psicologicamente, essa correspondência é o arquétipo da imagem de Deus”337. A partir da psicologia, nada mais se pode dizer a respeito, e tampouco se deve dizer algo mais que isso.

“O ponto de vista religioso apreende o tipo como efeito da impressão de um selo, o científico, ao contrário, apreende-o como símbolo de um conteúdo desconhecido a ele e inapreensível”338. No espelho da psique humana podemos adivinhar o absoluto precisamente na “refração” de nossa delimitação humano-criatural, e jamais poderemos conhecê-lo em sua verdadeira essência. Esse pressentir o absoluto é imanente à psique; mas sempre ela só poderá revesti-lo numa figuração experimentável e visualizável, que deverá ter forma demonstrativa eternamente apenas para o humano, mas não para o além-humano, isto é, o “totalmente outro”, o divino, o que permanece para sempre negado a ela expressá-lo completamente.

A fé religiosa é um dom da graça que pessoa alguma pode impor a outro, nem sequer o psicoterapeuta. “A religião é um caminho de salvação ‘revelado’. Suas intuições são produto de um saber pré-consciente, que se expressa sempre e em toda parte em símbolos. Mesmo que nossa compreensão não os apreenda, mesmo assim eles têm efeito, uma vez que nosso inconsciente os reconhece como expressão de realidades psíquicas universais. Por isso, onde existe, a fé é suficiente. Mas toda ampliação e fortalecimento da consciência racional nos distanciam das fontes dos símbolos, impedindo através de seu poder superior a compreensão dos últimos. Essa é a situação atual. Não podermos fazer a roda girar para trás e voltar a crer, ferrenhamente, ‘sobre o que se sabe não ser’. Todavia, poderíamos prestar contas do que significam propriamente os símbolos. Desse modo, não só se poderia conservar tesouros inestimáveis de nossa cultura, mas acabaríamos abrindo para nós mesmos um novo acesso a velhas verdades, que, em virtude da estranheza de sua simbologia, desapareceram de nossa época [...]. Ao homem de hoje falta a compreensão que poderia ajudá-lo a crer”339.

Jung conhece muito bem as consequências nocivas das doutrinas “impingidas”, aceitas, seguindo a tradição, sem refletir. Ele sabe muito bem que só pode se desenvolver de forma viva e atuante apenas aquele que cresceu por si mesmo, jamais o que foi enxertado, a fim de não impor às pessoas que se confiam à sua orientação uma autodecisão e autorresponsabilização. Ele se nega a facilitar-lhes essa tarefa prescrevendo-lhes, por exemplo, a atitude que devem adotar. Isso porque, na vivência dos conteúdos simbólicos profundos de sua alma, o crente irá deparar-se com os princípios eternos que lhe confirmam de mil maneiras diferentes a atuação de Deus em seu interior, apontando-lhe o fato de que Deus criou o homem segundo sua imagem; mas o infiel, que não quer crer ou que, apesar do desejo de ter fé, não consegue alcançá-la através de um ato da vontade ou do conhecimento, no caminho para o interior é levado pelo menos a uma vivência real, a experimentar as bases eternas de seu ser, e desse modo, com sua luta, talvez alcance o carisma da fé.

Quem uma vez trilhou esse caminho sabe que ele leva a vivências impossíveis de serem reportadas em palavras descritivas, e que só podem ser comparadas com os grandes arroubos enviados aos místicos e iniciados de todos os tempos. Em vez de um saber-pensado, essencialmente estranho à fé, o processo de individuação leva a um saber-experiência, cuja validade e realidade é realmente vivenciada, alcançando assim uma certeza inabalável. O fato de isso se tornar possível dentro do âmbito de uma teoria científica edificada sobre uma base rigorosamente empírica e fenomenológica, como é a teoria de Jung, significa na psicologia prática algo tão fundamentalmente novo quanto promissor.

Transformação e amadurecimento

Trilhar o “caminho do meio” é a vocação do amadurecido, pois a situação psicológica do indivíduo é diversa para cada idade. No começo da vida o ser humano deve sair de seu ser criança, ainda oculto e totalmente imerso no inconsciente coletivo, e voltar-se a uma distinção e um delineamento de seu eu. Tem de firmar pé na vida real e primeiramente superar as tarefas que essa lhe propõe: sexualidade, profissão, casamento, descendência, ligações e relações de todo tipo. Por isso, é da maior importância que ele crie seu instrumental para esse fincar pé e adequar-se na máxima diferenciação possível de sua função natural superior. Só quando essa tarefa, aquela da primeira metade da vida, tiver sido realizada plenamente, é que a experiência e adequação ao interior deveria se juntar à adequação exterior. Quando a construção e solidificação da atitude da personalidade frente ao mundo exterior estiver plenamente realizada, então a energia poderá se voltar às realidades intrapsíquicas até o presente mais ou menos despercebidas, e só assim conduzir a vida humana a uma real plenificação. Isso porque “o ser humano tem duas metas: a primeira meta é da natureza, geração de descendência e todos os negócios relativos à proteção da “ninhada”, do que faz parte também conquistar dinheiro e posição social. Quando essa meta for esgotada, começa outra fase: a meta cultural”340. “A meta espiritual, que aponta para além do homem meramente natural e sua existência mundana, é um requisito indispensável para a saúde da alma; pois é o ponto arquimediano a partir de onde o mundo é tirado dos eixos e um estado natural pode ser transformado num cultural”341.

O estabelecimento da inteireza da personalidade é uma tarefa para todo o percurso da vida. Parece significar uma preparação para a morte, no sentido mais profundo da palavra. Isso porque a morte não é menos importante que o nascimento, e, como esse, pertence inseparavelmente à vida. A própria natureza, se a compreendemos corretamente, nos acolhe aqui em seus braços protetores. Quanto mais velhos nos tornamos, tanto mais vai se encobrindo o mundo exterior, que vai perdendo cor, tom e prazer, e tanto mais fortemente somos convocados e nos ocupamos com o mundo interior. O homem que vai envelhecendo se aproxima cada vez mais do estado do fluir para dentro da psique coletiva, a partir de onde ele surgiu enquanto criança, com muita dificuldade. E assim, pleno de sentido e disposto a retornar, conclui o ciclo da vida humana, começo e fim coincidem, como vem expresso simbolicamente desde tempos imemoriais na imagem do uróboros, a serpente que morde em sua cauda342.

Se essa tarefa for levada até o fim de modo correto, a morte deverá perder seu caráter aterrador, e poderá ser inserida na inteireza da vida com sentido. Mas uma vez que muitos já não conseguem a realização daquelas exigências impostas ao ser humano pela primeira metade da vida – como demonstram os inúmeros adultos infantis –, o arredondamento da vida através do tornar-se si-mesmo é concedido só a bem poucas pessoas. E precisamente esses poucos desde sempre são os que criam cultura frente àqueles que produziram e forjaram apenas a civilização. Isso porque civilização é sempre um filho da ratio, do intelecto; cultura, ao contrário, surge do espírito, e espírito jamais está preso à consciência apenas, como o intelecto, mas contém, configura e domina ao mesmo tempo também todas as profundezas do inconsciente, a natureza originária. E o destino específico e individual do homem ocidental – visto que condicionamento histórico, proveniência e espírito do tempo são sempre fatores codeterminantes para a situação psicológica do ser humano – é que seu lado instintivo acabou se encolhendo no curso dos séculos por causa da superdiferenciação de seu intelecto e agora ele se sente sobrecarregado pelo desenvolvimento da técnica que ultrapassa sua capacidade psíquica de apreensão, provocando, muitas vezes, vertigem, de tal modo que perdeu quase a totalidade de sua relação natural para com o inconsciente. Tornou-se tão “inseguro em relação aos instintos”, balançado de cá para lá pelo mar de ondas de seu inconsciente, que nesse meio-tempo acabou se inflando exageradamente ou – como podemos vivenciar, chocados, precisamente nos últimos acontecimentos – já inundado e tragado pelas ondas. “Na medida em que coletividades nada mais representam que amontoados de indivíduos, seus problemas também são um amontoado de problemas individuais. Uma parte se identifica com o homem superior e não pode descer até o fundo, e a outra parte se identifica com o homem inferior e quereria alcançar a superfície. Esses problemas jamais serão solucionados através da legislatura e de medidas artificiais. Só poderão ser solucionados por uma mudança geral de atitude. Essa mudança não começa com propaganda e aglomeração de massas e nem sequer com violência. Começa com modificações no indivíduo. Irá processar-se como transformação de suas tendências e aversões pessoais, de sua cosmovisão e seus valores, e é só o acúmulo dessas transformações individuais que poderá produzir uma solução coletiva”343.

Assim, tornar-se si-mesmo não é um experimento da moda, mas a tarefa suprema que uma pessoa deve impor a si mesma. Frente a si mesmo, essa tarefa significa a possibilidade de ancoragem no indestrutível-imperecível, na natureza originária do psíquico-objetivo. Com isso, o indivíduo se posiciona novamente dentro da torrente eterna, onde nascimento e morte não passam de estações de passagem, e o sentido da vida não mais está postado no eu. Frente ao tu, essa tarefa gera nele uma tolerância e bondade, que só pode demonstrar aquele que investigou e vivenciou sua própria profundidade obscura. E, frente ao coletivo, seu valor especial consiste em estar em condições de contrapor-lhe aquele ser humano plenamente responsável que, a partir da experiência pessoal de sua totalidade psíquica, tem consciência da relação de dever de todo indivíduo para com o universal.

A responsabilidade é do indivíduo

Apesar de sua ligação íntima com as questões fundamentais de nossa existência, a teoria de Jung não pode ser abordada como religião nem como filosofia. É o sumário e apresentação de tudo aquilo que abrange a totalidade experimentável da psique; e assim como a biologia é a ciência do organismo físico vivo, aquele quer ser a ciência do organismo vivo da psique, sendo o instrumental e aparelhamento com que, desde sempre, o homem formou e vivenciou religiões e filosofias. Ela lhe dá a possibilidade de formar uma cosmovisão não meramente adotada, ligada à tradição e irrefletida, mas, com auxílio dessa pedra fundamental e instrumentário, pode ser trabalhada e configurada pessoalmente pelo indivíduo. Não é de se admirar que essa teoria, precisamente hoje, quando a alma coletiva ameaça significar tudo, e a alma individual, nada, possa oferecer consolo e arrimo. Também não nos pode surpreender que a tarefa que ela nos propõe, embora pertença às mais difíceis tarefas que existiram desde sempre, não convoque de modo assim tão comprometido: para superar a contraposição entre indivíduo e coletivo numa personalidade plena, referida a ambos.

O salto para frente, alcançado no Ocidente pela ratio, nossa consciência unilateralmente diferenciada sobre nossa natureza instintiva, e que se expressa numa civilização altamente desenvolvida, numa técnica que tudo coage, e que parece ter perdido toda e qualquer relação para com a alma, só poderá ser compensada se invocarmos a ajuda dos poderes criativos do fundo de nossa alma eterna, restabelecer-lhe o direito e elevá-lo à altura da ratio. “Todavia, essa mudança só poderá ser iniciada no indivíduo”344, afirma Jung; isso porque toda e qualquer coletividade, na medida em que representa também a soma de seus membros individuais, traz o selo da compleição psíquica desses indivíduos. E quando esse indivíduo transformado tiver se reconhecido como “imagem de Deus” apenas no compromisso ético profundo, então, como afirma Jung, “ele será, por um lado, um sabedor superior, por outro, um valente superior e não um super-homem arrogante”!345

Assim, a responsabilidade e a tarefa da cultura do futuro estão postadas mais do que nunca no indivíduo.

129. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 401.

130. A energia psíquica. OC 8/1, § 108.

131. Ibid., § 96.

132. “Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico”. OC 8/2, § 407-408.

133. Ibid., § 420.

134. Paralelamente a isso, Jung afirma que “há certa probabilidade de que ‘matéria’ e ‘psique’ sejam dois aspectos distintos de uma e a mesma coisa” (A natureza da psique. OC 8/2, § 418).

135. “O mundo atômico microfísico mostra traços, cujo parentesco com o psíquico chamaram a atenção também ao físico”, observa Jung (Desenvolvimento da personalidade. OC 17, § 164). Mais detalhes sobre esse assunto, assim como os pontos de vista que levaram a essas reflexões, podem ser conferidos em C.A. Meier (Moderne Physik; moderne psychologie), em que pode ser encontrada também uma bibliografia sobre o tema (Festschrift em homenagem ao 60º aniversário de Jung: Die kulturelle Bedeutung der komplexen Psychologie. Berlim, 1935). Além disso, devem-se indicar de maneira especial ainda os trabalhos de Niels Bohr (Naturwissenschaften 16, 245, 1928, e 17, 483, 1929). Recentemente também o físico Pasquale Jordan (Rostock) chamou a atenção, em seus escritos, sobre certas analogias entre os resultados das pesquisas da física moderna, de um lado, e da biologia e da psicologia, de outro (cf. Die Physik des 20. Jahrhunderts. Braunschweig, 1936). • Id. “Positivistische Bemerkungen über die paraphysischen Erscheinungen” (Zentralblatt für Psychotherapie, 9, 1936, p. 3ss.). • Id. Anschauliche Quantentheorie. Berlim, 1936, p. 271ss. • Id. Die Physik und das Geheimnis des organischen Lebens. Braunschweig, 1941, p. 114s. • Id. “Quantenphysikalische Bemerkungen zu Biologie und Psychologie” (Erkenntnis 4, 3, 1934, p. 215ss.) e igualmente o físico Mas Knoll (Princeton e Munique): “Wandlungen der Wissenschaft in unserer Zeit” (Eranos-Jahrbuch XX. Zurique, 1952). • “Quantenhafte Energiebegriffe in Physik und Psychologie” (Eranos-Jahrbuch, XXI. Zurique, 1953). Cf. tb. JUNG. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (1935). OC 9/1, § 117s.

136. 2. ed., 1917, p. X-XII.

137. “Psicologia e educação”. OC 17, § 163.

138. Psicologia e religião. OC 11/1, § 87.

139. Encontramos um debate sistemático para essas três correntes principais da psicoterapia nos livros de KRANEFELDT, W. Die Psychoanalyse (Coleção Göschen. Leipzig, 1930). • ADLER, G. Entdeckung der Seele (Zurique: Rascher, 1934). Também como da corrente junguiana e freudiana em JACOBI, J. Two Essays on Freud and Jung. Zurique, 1958, ed. pela União estudantil do Instituto C.G. Jung.

140. “A concepção finalista concebe as causas como meios para um fim. Um exemplo simples é o problema da regressão. Do ponto de vista causal, a regressão é condicionada pela ‘fixação na mãe’, mas, do ponto de vista finalista, a libido regride até a imago da mãe, a fim de recolher ali associações de recordações através das quais pode dar-se a evolução, por exemplo, de um sistema sexual para um espiritual” (A energia psíquica. OC 8/1, § 43).

141. Prefácio à primeira edição de Collected Papers on Analytical Psychology (Londres, 1916) (cf. OC 4, § 679).

142. “Aspectos gerais da psicologia do sonho” (1928). OC 8/2, § 456 [citada a partir daqui como “Psicologia do sonho”].

143. O termo “paciente” (ocasionalmente chamado também de “analisando”) é usado aqui e no que segue tanto para pessoas doentes como para pessoas sadias. Abarca, assim, todos “os que buscam cura”, psicóticos e neuróticos, assim como aqueles que se familiarizam com a psicoterapia de Jung por causa de suas propriedades formadoras de caráter e de personalidade.

144. A prática da psicoterapia (1935). OC 16/1, § 23.

145. “Psicologia e educação”. OC 17, § 174s.

146. Ibid., § 176, 177, 180-181, 184.

147. “Da essência dos sonhos” (1945). OC 8/2, § 545.

148. “A aplicação prática da análise dos sonhos” (1934). OC 16/2, § 294.

149. Ibid., § 316.

150. “Símbolos oníricos”. OC 12, § 51.

151. Kindertraumseminar, 1938/1939 [impressão privada].

152. Kinderträume, 1938/1939, p. 179.

153. “A aplicação prática da análise dos sonhos”. OC 16/2, § 322.

154. “Aspectos gerais da psicologia do sonho”. OC 8/2, § 500.

155. Kindertraumseminar, 1938/1939 [impressão privada].

156. Para um exemplo muito rico nesse sentido, cf. o artigo de MEIERS, C.A. Zentralblatt für Psychotherapie, 1939, vol. XI, p. 284, e o sonho infantil “Bicho mau”, relatado e extensamente interpretado no capítulo “Archetypus und Traum” do livro da autora intitulado Komplex, Archetyptis, Symbol... p. 159-215.

157. Kinderträume, 1938/1939, p. 20.

158. Kindertraumseminar, 1938/1939 [impressão privada].

159. “A aplicação prática da análise dos sonhos”. OC 16/2, § 534.

160. Cf. o já mencionado “dialektische Verfahren”, p. 111-114.

161. “Da essência dos sonhos”. OC 8/2, § 534.

162. Kindertraumseminar, 1938/1939 [impressão privada].

163. Um exemplo para o efeito compensador do sonho seria: Alguém sonha que já é primavera, mas sua árvore preferida no jardim só tem galhos secos. Nesse ano não se podem ver nela nenhuma folha e nenhuma flor. Com isso o sonho quer dizer: Vês a ti mesmo nessa árvore? Assim és tu! Muito embora não queiras perceber! Em ti, tua natureza está ressequida, em ti não brota nenhum verde etc. Esses sonhos são um exemplo para pessoas cuja consciência se tornou autônoma pela unilateralidade, que suportou um peso exageradamente pesado. Naturalmente que uma pessoa especialmente inconsciente, que vive de forma totalmente instintiva, teria sonhos que mostram igualmente seu “outro lado”. É muito frequente, por exemplo, pessoas vira-casacas frívolas sonharem com conteúdos moralizantes, os que são modelos de virtude; ao contrário, sonham muitas vezes com imagens imorais.

164. “Aspectos gerais da psicologia do sonho”. OC 8/2, § 488.

165. “A aplicação prática da análise dos sonhos”. OC 16/2, § 334, 330.

166. “Aspectos gerais da psicologia do sonho”. OC 8/2, § 497.

167. Ibid., § 492-493.

168. Ibid., § 462.

169. “A aplicação prática da análise dos sonhos”. OC 16/2, § 312.

170. Ibid., § 332.

171. Cf. nota 49 deste capítulo.

172. Psychologie und Alchemie. 2. ed. Zurique: Rascher, 1952, p. 97; cf. “Símbolos oníricos”. OC 12, § 74-75.

173. Ibid., § 60.

174. Ibid., § 60-61.

175. “Símbolos oníricos”. OC 12, § 81.

176. O que se torna tão difícil a certas pessoas em admitir, tão difícil que, por exemplo, sofrem de insônia, porque se defendem inconscientemente por causa do medo de deixar que os conteúdos subam desde o inconsciente.

177. Como exemplo pode ser citado um sonho de uma menina de seis anos de idade, mencionado no Kindertraumseminar, 1938/1939 [impressão privada]: “No sonho, ergueu-se diante da menina um belo arco-íris. A pequena menina se grudou no arco-íris e subiu até alcançar o céu. De lá gritou para baixo para sua amiga Marietta, que ela também deveria subir. Mas essa protelou por tanto tempo, andando de um lado para o outro, até que o arco-íris se desfez e a menina caiu por terra”. O lugar é o de um acontecimento natural: No sonho, ergue-se frente à pequena menina um belo arco-íris. A explicação aponta também para o seguinte fato: A menina subiu no arco-íris e subiu até chegar ao céu. A peripécia, a amarração do nó se dá quando ela grita para baixo para sua amiga que ela também deveria subir. Essa protela, e Lysis prossegue: o arco-íris se desfaz e a menina cai por terra.

178. O fisiólogo e filósofo Max Verworn (Göttingen, 1863-1921), de quem provém o conceito de “condicionalismo”, define-o como segue: “Um estado ou um processo é determinado univocamente através de todos os seus condicionamentos. Disso resulta: 1) Estados ou processos iguais são sempre expressão dos mesmos condicionamentos; condicionamentos desiguais encontram sua expressão em estados e processos desiguais. 2) Um estado ou processo é idêntico com todos os seus condicionamentos. Disso resulta: um estado ou processo é perfeitamente conhecido cientificamente quando se constatou a inteireza de seus condicionamentos” (Kausale und konditionale Weltanschauung. 3. ed. 1928).

179. Kinderträume, 1938/1939, p. 17.

180. Ibid., p. 17.

181. Cf. tb. p. 97

182. Kinderträume, 1938/1939, p. 36.

183. “As ideias de salvação na alquimia” (1937). OC 12, § 403.

184. Cf. nota 49 deste capítulo.

185. É claro que não se pode atribuir nenhuma “intenção consciente” ao sonho, e a formulação segundo a qual o inconsciente ou o sonho “tinha em mente” ou “tem como meta” nada mais deve expressar que o controle significativo, gerado por si através da atividade autorreguladora da psique e o controle de suas manifestações, surgidas do âmbito inconsciente da psique.

186. Psicologia do inconsciente. OC 7/1, § 197.

187. Ibid., § 199.

188. “A aplicação prática da análise dos sonhos”. OC 16/2, § 304.

189. WOLFF, T. Studien, p. 99s.

190. “As ideias de salvação na alquimia”. OC 12, § 346.

191. Cf. Tipos psicológicos. OC 6, § 751.

192. Pode-se identificar como introjeção, p. ex., a atitude e o modo de vivência psicológica dos românticos alemães. Não conseguiam se conformar com as feiuras do mundo exterior, afastavam-se delas, muito embora tivessem plena consciência de sua realidade. Para eles só valia como “real” o mundo exterior idealizado arbitrariamente, como vivia em suas fantasias. Mas com isso modificaram esse mundo exterior, adequando-o a suas ideias subjetivas próprias. É um fato óbvio que, onde as representações subjetivas são assim supervalorizadas, tomando o primeiro plano, o eu consciente paira constantemente no perigo de ser inundado pela infinidade de imagens interiores, perdendo com isso sua localização objetiva.

193. Kinderträume, 1938/1939, p. 135.

194. Psicologia do inconsciente. OC 7/1, § 150.

195. Uma definição detalhada de símbolo e suas qualidades vem exposta pela autora em JACOBI. Komplex.

196. A energia psíquica. OC 8/1, § 92.

197. Cf. um exemplo de sonho na nota 35 deste capítulo.

198. Cf. o diagrama XIV à p. 80.

199. “Arquétipo da criança”. OC 9/1, § 262

200. A energia psíquica. OC 8/1, § 92.

201. KERENYI, K. Einführung in das Wesen der Mythologie. Amsterdam, 1941, p. 12.

202. “As ideias de salvação na alquimia”. OC 12, § 400.

203. “A relação da psicologia analítica com a obra de arte poética”. OC 15, § 105.

204. Ibid.

205. Tipos psicológicos. OC 6, § 823.

206. A atribuição de cores às respectivas funções modifica-se com as diversas culturas e grupos humanos, e até entre indivíduos singulares. No entanto, via de regra (onde encontramos também muitas exceções), para a psicologia do europeu, azul, a cor do espaço aéreo vazio, do céu claro, é considerada a cor do pensar; amarelo, a cor do sol com visão distante, que, enquanto gerador da luz, surge das trevas insondáveis e volta a desaparecer nas trevas, é considerada a cor da intuição, a saber, daquela função que apreende as origens e as tendências dos acontecimentos como que através de uma iluminação-relâmpago; vermelho, a cor do sangue pulsante e do fogo, serve como a cor dos sentimentos vivos e ardentes; enquanto que verde seria a cor de plantas terrestres, apreensíveis, percebíveis de imediato, que representa a função do sentimento.

207. Cf. nota 96 do cap. 1.

208. “Os objetivos da psicoterapia” (1929). OC 16/1, § 104.

209. Em tal caso fica evidente a dissociação entre o criar consciente do pintor e aquilo que ele produz em imagens a partir do inconsciente. Cf. o que se disse a respeito na p. 46-50.

210. “Os objetivos da psicoterapia”. OC 16/1, § 106.

211. Ibid., § 111.

212. Símbolos da transformação. OC 5, § 95.

213. Desenvolvimento da personalidade. OC 17, § 201.

214. Tipos psicológicos. OC 6, § 771, 770.

215. Cf. nota 96 do cap. 1.

216. A natureza da psique. OC 8/2, § 315-316.

217. Psicologia do inconsciente. OC 7/1, § 113. Em seu comentário ao Livro tibetano dos mortos, Jung mostra de forma impressionante como parece ser consciente aos tibetanos o fato de na psique estarem contidos tanto âmbitos pessoais quanto impessoais. O caminho que tem de percorrer a psique dos mortos, segundo a ideia dos tibetanos, deixando os mesmos até chegar a uma nova encarnação – se nós, homens ocidentais o compreendemos de certo modo como “caminho de iniciação”, como um processo de amadurecimento intrapsíquico, que deve ser trilhado durante nossa vida –, leva a três grandes secções. A primeira apresenta a terra do inconsciente pessoal, que forma uma espécie de portal de passagem para o segundo âmbito, o lugar das imagens coletivas, as configurações impessoais dos arquétipos, carregadas de numinoso (dos “demônios” sanguessugas, como se diz no ritual dos mortos tibetano), a fim de, atravessando-as ou pelo confronto com seus “habitantes”, alcançar aquele “lugar” em que se instala a paz na superação dos contrários, onde reina soberano o “poder” (o si mesmo) central que supera e abarca todo acontecimento psíquico como instância ordenadora.

218. Desenvolvimento da personalidade. OC 17, § 195.

219. Psicologia do inconsciente. OC 7/1, § 290.

220. Ibid., § 291.

221. Ibid.

222. “Aplicação prática da análise de sonhos”. OC 16/2, § 338.

223. Ibid., § 315.

224. “Da formação da personalidade” (1934). OC 17, § 291.

225. Ibid., § 294.

226. Ibid., § 308.

227. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 266.

228. Tipos psicológicos. OC 6, § 747.

229. Cf. p. 218 e o livro da autora: Der Weg zur Individuation. 2. ed. Freiburg im Breisgrau: Olten, 1971.

230. Cf. ibid.

231. De uma entrevista com C.G. Jung, Selbsterkenntnis und Tiefenpsychologie, no caderno de setembro, 1943, da revista Du.

232. “Comentário a O segredo da flor de ouro (1929). OC 13, § 4.

233. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 400.

234. Aqui também se aplica o que se disse anteriormente sobre o “arquétipo do feminino” (cf. p. 153).

235. Uma imagem correspondente do inconsciente com o título “Die hilfreiche Schattenfigur” (A figura auxiliar da sombra) provém de uma mulher que não tinha consciência de ter um “outro” lado oculto, uma “sombra”, que estava ali presente ao seu lado auxiliando-a a suportar o peso difícil, a tornar mais fácil a “pedra dos problemas de sua vida”. A lua retratada e as duas estrelas apontam para o fato de aqui tratar-se de um problema eminentemente feminino. Essa “imagem do inconsciente” foi pintada por uma mulher, e por isso tem de ser compreendida e interpretada a partir da psicologia feminina. A figura a qual se faz referência encontra-se nas ilustrações a partir da p. 163.

236. Psicologia e religião. OC 11/1, § 131.

237. Ibid., § 134.

238. Ibid., § 131, 133.

239. O fato de Jung colocar um valor tão elevado na conscientização da sombra, chegando a privilegiar esse procedimento diante de todos os demais, constitui uma das mais importantes razões, mesmo que muitas vezes inconscientes, do medo de muitos em submeter-se a uma análise junguiana.

240. A palavra “todo o conjunto” (allesamt) na citação supra não pode ser tomada literalmente, pois jamais se poderá tomar consciência e reter todas as projeções; do contrário, por assim dizer, não restaria mais nada de inconsciente no ser humano. Sempre depende, portanto, da situação psíquica do indivíduo que parte do material inconsciente e em que medida poderá ser processado.

241. Psicologia e religião. OC 11/1, § 140.

242. Muito embora não se disponha de normas absolutas, fixadas cientificamente, sobre qual traço deve ser considerado “feminino” ou “masculino”, nesse sentido possuímos representações admitidas em geral, provindas de nossas tradições culturais históricas e que talvez possam até remontar às propriedades das células biológicas de gênero, originariamente mais simples.

243. JUNG, E. “Ein Beitrag zum Problem des Animus”. In: JUNG, C.G. (org.). Wirklichkeit der Seele – Anwendungen und Fortschritte der neueren Psychologie. Com colaborações de Hugo Rosenthal, Emma Jung, W.M. Kranefeldt (Psychologische Abhandlungen, vol. 4). 2. ed. Zurique: Rascher, 1947, p. 297. [A seguir citado como JUNG, E. Animus).

244. Cf. figura 4, ilustração à p. 166.

245. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 314.

246. Ibid., § 297.

247. Cf. tb. “Arquétipo materno”. OC 9/1, § 148-198.

248. JUNG, E. Animus.

249. Ibid., p. 332.

250. Em seu belo trabalho “Ein Beitrag zum Problem des Animus”, Emma Jung é da opinião de que na sequência graduada “palavra, sentido, força, ato”, que servem para reproduzir a palavra grega logos, parece vir designada a quintessência do ser masculino e que cada um desses graus tem seu representante na vida do varão, não diversamente do que no desenvolvimento da figura do animus. Assim, numa ordem de sequência modificada, corresponderiam ao primeiro nível “os homens-força” ou “homens-vontade”, ao segundo, os homens-ação, ao terceiro os homens de “palavra” e, finalmente, ao quarto, aqueles que direcionaram sua vida ao “sentido”.

251. Ibid., p. 302.

252. Ibid., p. 342.

253. Ibid., p. 312.

254. Tipos psicológicos. OC 6, § 806.

255. Cf. diagrama V, à p. 33..

256. Cf. p. 50ss.

257. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 309.

258. Ibid., § 308.

259. Todavia, no fundo, isso só se aplica ao varão que alcançou ser perfeitamente “masculino”. Mas, quanto mais feminino for – e isso é muito frequente hoje em dia –, o que poderíamos expressar também do seguinte modo, quando mais fortemente desenvolvido nele estiver o complexo materno, tanto mais numerosas também serão as figuras femininas, consistindo muitas vezes até de uma multiplicidade de tipos iguais (por exemplo, de um grupo de bailarinas ou de mulheres do serviço militar etc.), que em seus sonhos e visões incorporam as propriedades de sua alma. É só com o prosseguir do desenvolvimento da personalidade que vão se adensando numa única imagem feminina, que contém em si todas as diversas propriedades.

260. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 332.

261. Cf. JACOBI, J. Frauenprobleme; Eheprobleme. Zurique/Stuttgart: Rascher, 1968.

262. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 336.

263. WOLFF, T. Studien, p. 159.

264. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 386.

265. Um exemplo dos inúmeros modos de manifestação desses dois arquétipos são as figuras 5 e 6 (cf. figuras às p. 167s.). No rosto do “velho sábio” vêm desenhados saber e compreensão ilimitados, primordiais. Os olhos estão voltados para dentro, os traços imóveis, a boca fechada expressam espiritualidade suprema, uma espiritualidade por assim dizer talhada e crescida junto com a natureza, que se tornou ela própria natureza. Peito e ombros se tornaram terra, recobertos de grama e de musgo; eles fornecem alimento às pombas, aos pássaros de Afrodite, da bondade e do amor. O disco solar por trás de sua cabeça aponta para o caráter de logos da aparência, e o cristal em suas mãos simboliza a inteireza, aponta para o supremo fim do desenvolvimento da alma, ao “si-mesmo”; isso porque o “velho sábio”, enquanto arquétipo, já pertence ao círculo das figuras do si-mesmo, é a metade masculina deste (figura 5). A “grande mãe”, o mundo inexorável, pan-abrangente, em vestes celestes tecidas de estrelas, envolta com a proteção de frutos dourados e suavemente iluminada pela lua crescente, olha cheia de compaixão para a pobre criatura, que ela própria amarra com um forte abraço de suas mãos toscas, até sangrar de uma ferida profunda. O sofrimento por essa dilaceração através dos dois contrapostos, o âmbito superior e o inferior de seu ser, e o sustentar a tensão dali emergente mostra, é verdade, a vida como um martírio, mas esse martírio, também, como pressuposto para o renascimento na criança como imagem de sentido do “si-mesmo” e para o brilhar do sol nas profundezas do seio insondável do mundo (figura 6). Aqui fica bem visível a tensão de contraposição inerente a toda forma arquetípica, portanto também a essas duas figuras.

266. Fica claro que uma figura onírica impressionante e fascinante, uma “personalidade de mana” de um determinado sexo, terá no sonho de um varão um significado diferente daquele que tem quando ocorre no sonho de uma mulher. Se a figura é feminina, no sonho de um varão provavelmente deverá ser interpretada como uma configuração da anima; mas no sonho de uma mulher irá representar a figura da “grande mãe”, sendo que essa última sempre já deve ser contada entre o estreito círculo dos “símbolos unificadores”, que tornam apreensível o si-mesmo. O mesmo se aplica, mutatis mutandis, para a figura do “velho sábio” ou do puer aeternus no sonho de um varão (cf. “Aspectos psicológicos da Core” (1941). OC 9/1, § 306-383).

267. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 393.

268. “Epílogo”. Psicologia e alquimia. OC 12, § 563.

269. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 253.

270. Ibid., § 261.

271. “Símbolos oníricos”. OC 12, § 186.

272. É preciso compreender corretamente esse enunciado de Jung. Quando ele fala de “tendência imoral” não tem em mente, naturalmente, que esse “imoral” seja provocado por uma decisão consciente. Sabemos que no ser humano a repressão começa na primeira infância e em parte representa também um mecanismo de proteção necessário, possuindo, em certo sentido, também um aspecto exigido pela cultura. O que Jung tem em mente é mais o fato de que um homem, também em idade mais avançada, pela fraqueza de suportar dificuldades, aguentar tensões, lança mão dessa “proteção” muito mais frequentemente do que outro, o que pode ser condicionado igualmente por disposição natural, como pode provir de fatores tardios, que impedem o desenvolvimento.

273. Psicologia e religião. OC 11/1, § 129.

274. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 275.

275. “Símbolos oníricos”. OC 12, § 188.

276. Psicologia do inconsciente. OC 7/1, § 199.

277. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 274.

278. “Símbolos oníricos”. OC 12, § 44.

279. A figura 7 (cf. figuras às p. 163s.) apresenta a figura de uma paciente desenhando com lápis de cor uma imagem da totalidade psíquica, como se lhe manifestara em imagem interior no decurso do tratamento analítico. O pássaro azul no círculo superior simboliza a esfera da consciência, o fogo com as serpentes, no círculo inferior, simboliza o âmbito do inconsciente; o pequeno círculo amarelo no meio representa o centro, o si-mesmo, que se encontra entre a parte feminina da alma, um campo escuro com um ovo claro, e a parte masculina da alma, um campo claro com um ovo escuro, cercado por uma torrente de vida, que liga e inunda todos os círculos.

280. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 405.

281. Ibid., § 404.

282. Ibid., § p. 398s.

283. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 67.

284. “Símbolos oníricos”. OC 12, § 247.

285. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 405.

286. Esse é precisamente o papel que os postulados ou máximas heurísticas, que não podem ser justificados logicamente, desempenham também em outras ciências.

287. Psicologia e alquimia (1944). OC 12, § 564.

288. “Objetivos da psicoterapia”. OC 16, § 83.

289. Cf. nota 96 do cap. 1.

290. Desenvolvimento da personalidade. OC 17, § 318.

291. “O homem arcaico” (1931). OC 10/3, § 136.

292. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 81.

293. “Psicologia analítica e cosmovisão” (1931). OC 8/2, § 696.

294. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 17, 18.

295. Propriamente falando, todos os símbolos apresentam uma coincidentia oppositorum. No entanto, isso se expressa de modo o mais característico nos assim chamados “símbolos unificadores”.

296. No cap. V de Tipos psicológicos Jung apresenta uma descrição detalhada dos diversos aspectos desse símbolo. OC 6, § 318-374.

297. “[...] sendo que, por ‘função’, não compreendo uma função básica, mas uma função complexa, composta de outras funções, e com ‘transcendente’ não quero designar uma qualidade metafísica, mas o fato de que, através dessa função, cria-se uma transição de uma atitude para outra”, afirma Jung (Tipos psicológicos. OC 6, § 833). Jung fornece uma definição e descrição detalhadas desse conceito em seu artigo “A função transcendente” (1916). OC 8/2, § 131-193.

298. WOLFF, T. Studien, p. 134.

299. Psicologia e alquimia. OC 12, § 125.

300. Apontamos aqui as mandalas extremamente belas do místico Jocob Böhme (1573-1624) em seu livro Theosophische Werke (Amsterdam, 1682). Mostra-se ali o mundo pecador da criação, rodeado pela serpente da eternidade, o uróboro, assinalado pelos quatro elementos e os pecados a eles subordinados; todo o círculo está referido ao centro, ao olho de Deus que chora, portanto, àquele ponto em que pode acontecer a redenção através de misericórdia e amor – a mediação simbolizada pelo espírito Santo rumo ao reino sem pecado, o paraíso.

301. Psicologia e alquimia. OC 12, § 126.

302. Ibid., § 331.

303. A figura 8 (cf. figuras às p. 163s.) representa uma mandala finamente pintada com suaves cores num pergaminho do budismo tântrico, provinda do começo do século XVIII e que se encontra na posse privada da família Jung.

304. Mandala colorida tirada do livro Die geheimen Figuren der Rosenkreuzer (Altona: Eckhardt-Verlag, 1785), p. 10.

305. Essas formas ao modo de mandala podem até surgir no arranjo das formas de um sonho. No começo do processo de individuação costuma aparecer no sonho, por exemplo, a primeira visão do “si-mesmo” muitas vezes na forma de três pessoas, sentadas à mesa redonda junto com quem sonha, sendo que a cada vez duas são caracterizadas como masculinas ou femininas; ou também na forma de quatro figuras femininas, referidas à pessoa, que figuram como um centro para o sonhador do sexo masculino. Nesse segundo caso, o si-mesmo está como que ainda “vestido”, envolto pela inteireza da anima de quatro aspectos (ou seja, da imagem da alma), que estabelece a intermediação entre a consciência e o inconsciente. É só quando o confronto e embate com ela chega a uma relativa conclusão que a imagem do si-mesmo poderá se revelar à visão direta, portanto, p. ex., como um “símbolo unificador” correspondente.

306. Nessa mandala encontramos, tanto no arranjo quanto nos temas empregados e em toda disposição dinamicamente móvel, uma semelhança notável com a figura 10 (à p. 172), com uma mandala das visões de Jocob Boehme, muito embora fosse totalmente desconhecida ao analisando, que “pintou a imagem a partir do inconsciente”.

307. Mais detalhes sobre isso em “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 1-84, e em “Considerações em torno da psicologia da meditação oriental” (1943). OC 11/5, § 945ss.

308. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 36.

309. Ibid., § 38.

310. Ibid., § 30.

311. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 327.

312. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 38.

313. A figura 15 (cf. figuras às p. 163s.) apresenta um desenho de uma paciente, tentando dar expressão a uma conjunction que malogrou. Varão e mulher crescem juntos a partir de baixo, em sua esfera dos instintos, fundindo-se numa serpente d’água. Ao contrário disso, em seu mundo consciente, ou seja, acima da água, voltam as costas para o âmbito inconsciente. Vestem o sol, símbolo da consciência iluminadora, como um peso grave e não conseguem empregá-lo para sua iluminação. A figura 16 é uma “imagem do inconsciente” que procura expressar a função da relação para com o outro sexo em forma simbólica. Mostra a conjunctio como uma união verdadeira e criativa. As partes inconscientes animais do varão e da mulher são soldadas inseparavelmente uma na outra, como seria o caso de dependência sexual, mas se ligam através do símbolo da “serpente da cura”, que os ajuda a sobre-elevar a pedra preciosa, o símbolo do si-mesmo, sem a qual sua comunhão correta, representada como árvore da vida ramificada, jamais poderia florescer, brotando deles. A figura 17 (tirada de uma obra alquímica Rosarium Philosophorum, Secunda pars Alchemiae de Lapide Philosophico, Francofurti 1550 – de posse do Dr. C.A. Meier, Zurique) mostra como paralelo a concepção alquimista de um estágio da conjunctio. “Rei” e “rainha” ou sol e lua, o par de irmãs, como imagem simbólica dos contrários originários “masculino-feminino” no âmbito psíquico. O “casamento” é pensado, aqui, em primeira linha, como espiritual, o que não vem expresso apenas nas palavras da primeira faixa central com o dito spiritus est qui unificat, mas também através da pomba, enquanto símbolo do espírito e (segundo testemunhos antigos) também símbolo do amor conjugalis. Aqui os contrários originários estão um frente ao outro, nus, sem qualquer envoltório convencional, em sua realidade autêntica, em sua essencialidade. Seu ser-outro fica claramente manifesto, desvela-se como “essencial”, e só consegue alcançar uma união fecunda através da mediação do símbolo espiritual, que ali intermedeia provindo de “cima”, a saber, a pomba, enquanto “unificadora”. Os ramos mantidos e que se tocam em forma de cruz, as flores mercurii, e a flor pendente no bico da pomba e que os unifica, como símbolo do processo de crescimento, tornam visível de forma bastante pictórica o criar comum na obra viva da conjunctio (cf. tb. p. 213).

314. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 44, 45.

315. Psicologia e alquimia. OC 12, § 249.

316. Comentário psicológico a Bardo Thödol (O livro tibetano dos mortos). OC 11/5, § 854.

317. Uma rica exposição dessa região, com rico cabedal de imagens extraídas de escritos alquímicos antigos, que apresentam uma quantidade surpreendente de analogias com a simbologia das imagens das visões e sonhos, pode ser encontrada no livro de Jung Psicologia e alquimia. OC 12.

318. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § p. 360.

319. Ibid., § 360, 361.

320. Psicologia e alquimia. OC 12, § 343.

321. Ibid., § 557.

322. Ibid.

323. Já em seus escritos mais antigos, em seu livro extraordinário Probleme der Mystik und ihrer Symbolik (Heller: Wien, 1914), Herbert Silberer já apontava para as analogias entre a alquimia e a psicologia profunda moderna, sobretudo a psicologia analítica junguiana.

324. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 69.

325. Assim, é preciso distinguir incondicionalmente entre imaginação ativa e “imaginação passiva”, como a que podemos ver, p. ex., nos devaneios que se tem em vigília.

326. Psicologia e alquimia. OC 12, § 219.

327. Ibid., § 564.

328. Cf. tb. MEIER, C.A. Antike Inkubation und Moderne Psychotherapie (Estudos do Instituto C.G. Jung, vol. I. Zurique: Rascher, 1948).

329. Os escritos de Jung que entram em consideração aqui são sobretudo: Comentários Psicológicos a Bardo Thödol (O livro tibetano dos mortos) (1939). OC 11/5, § 831-858). • “Comentário a O segredo da flor de ouro”, (1929). OC 13, § 1-84. • “O ioga e o Ocidente” (1936). OC 11/5, § 859-876. • “A visão de Zózimo” (1938). OC 13, § 85-144. • “Prefácio à obra de Suzuki: A grande libertação – Introdução ao zen-budismo”. (1939). OC 11/5, § 877-907. • “Considerações em torno da Psicologia da meditação oriental”. OC 11/5, § 908-949. • Psicologia e alquimia (1944). OC 12. • “Psicologia da transferência” (1946). OC 16/2, § 353-539. • Gestaltungen des Unbewussten (Configurações do inconsciente). Zurique: Rascher, 1950. In: OC 18/2, § 1.245-1.247. • “Prefácio a Jung. Gestaltungen des Unbewussten” (1950). OC 18/2, § 1245-1247. • “Psicologia e poesia” (1930). OC 15, § 133-162. • “Sobre o renascimento” (1940). OC 9/1, § 199-258. • “Estudo empírico do processo de individuação” (1934). OC 9/1, § 525-626. • “Simbolismo da mandala” (1938). OC 9/1, § 627-712. • Aion (1951). OC 9/2. • Mysterium coniunctionis. Tomo 1 (1955). OC 14/1; Tomo 2 (1956). OC 14/2. • Um mito moderno sobre coisas vistas no céu (1958). OC 10/4, § 589-824.

330. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 84.

331. Ibid., § 63.

332. Ibid.

333. Cf. Psicologia e alquimia. OC 12, § 564.

334. Ibid., § 556.

335. “Comentário a O segredo da flor de ouro”. OC 13, § 82.

336. Ibid.

337. Psicologia e alquimia. OC 12, § 11, 15.

338. Ibid., § 20.

339. Interpretação psicológica do Dogma da Trindade (1942). OC 11/2, § 293.

340. Psicologia do inconsciente. OC 7/1, § 114.

341. “Psicologia analítica e educação”. OC 17, § 159.

342. Cf. figuras 10 e 19 (às p. 172 e 178), que inclui o uróboros, a “face da eternidade”.

343. Psicologia e religião. OC 11/1, § 134.

344. Psicologia e alquimia. OC 12, § 563.

345. O eu e o inconsciente. OC 7/2, § 396.