34.

Vin-dit

Foi no salão da loja de lápides que tive meu primeiro vin-dit, palavra bokononista que significa um empurrão repentino e muito pessoal em direção ao bokononismo, em direção à crença de que, afinal de contas, Deus Todo-Poderoso sabia tudo sobre mim, de que Deus Todo-Poderoso tinha planos bem elaborados para mim.

O vin-dit estava relacionado com o anjo de pedra embaixo do ramo de visco. O motorista do táxi tinha enfiado na cabeça que precisava colocar o anjo de pedra no túmulo de sua mãe, a qualquer preço. Estava parado na frente do anjo com lágrimas nos olhos.

Marvin Breed ainda estava olhando para fora da janela, para o portão do cemitério, após ter dito tudo aquilo sobre Felix Hoenikker.

– Aquele holandezinho filho da mãe pode ter sido um santo moderno – ele disse –, mas, que droga, duvido que tenha feito algo que não quisesse fazer e, droga, sempre conseguiu tudo que quis. Música.

– O quê? – perguntei.

– Foi por isso que ela se casou com ele. Disse que a mente dele estava em sintonia com a melhor música de todas, a música das estrelas. – Ele sacudiu a cabeça. – Que bosta.

E então o portão o fez lembrar da última vez que vira Frank Hoenikker, o criador de modelos em miniatura, o torturador de insetos em potes.

– Frank – ele disse.

– O que tem ele?

– A última vez que vi aquela pobre criança estranha, ele estava saindo do cemitério por aquele portão. O funeral do seu pai ainda não havia terminado. O velho ainda nem havia ido para debaixo da terra e lá vinha Frank pelo portão do cemitério. Levantou o polegar ao primeiro carro que passou. Era um Pontiac novo com uma placa da Flórida. O carro parou. Frank entrou, e foi a última vez que alguém de Ilium o viu.

– Soube que ele é procurado pela polícia.

– Aquilo foi um acidente, um acaso. Frank não era nenhum criminoso. Ele não tinha sangue-frio para isso. A única coisa que sabia fazer bem era modelos em miniatura. O único emprego que conseguiu manter foi na Loja de Miniaturas do Jack, vendendo e fabricando modelos, ajudando as pessoas a construir modelos em miniatura. Quando se mandou daqui, foi para a Flórida e arrumou um emprego em uma loja de miniaturas em Sarasota. Acontece que a loja de miniaturas era só fachada para uma quadrilha que roubava Cadillacs, escondia-os em velhos navios de guerra e despachava a mercadoria para Cuba. Foi assim que Frank se meteu nessa encrenca. Imagino que o motivo pelo qual a polícia ainda não conseguiu encontrá-lo é porque ele está morto. Acabou ouvindo demais enquanto fincava plataformas de armas com superbonder no encouraçado Missouri.

– Onde está Newt agora, você sabe?

– Imagino que esteja com a irmã em Indianápolis. A última notícia que tive dele era de que havia se juntado com uma anã russa e sido reprovado no curso introdutório de medicina da Cornell. Você consegue imaginar um anão tentando se tornar médico? E, nessa mesma triste família, temos uma garota alta e desajeitada, com mais de 1,80 metro de altura. Esse homem, tão famoso por sua mente brilhante, tirou a garota da escola no segundo ano do ensino médio só para ter uma mulher em casa cuidando dele. A única coisa que lhe sobrou foi o clarinete, que tocava na banda do colégio de Ilium, a Marching Hundred. Depois que ela saiu da escola, ninguém a convidava para sair. Ela não tinha amigos, e o velho nunca ao menos pensava em lhe dar algum dinheiro para ir a algum lugar. Sabe o que ela costumava fazer?

– Não.

– De vez em quando, à noite, ela se trancava no quarto para ouvir música, e acompanhava os discos com seu clarinete. Para mim, o maior milagre da nossa época é essa mulher ter encontrado um marido.

– Quanto você quer pelo anjo? – perguntou o motorista de táxi.

– Já lhe disse, não está à venda.

– Imagino que ninguém mais aqui faça esse tipo de escultura em pedra – observei.

– Tenho um sobrinho que sabe fazer – disse Breed –, filho de Asa. Estava tudo acertado para que ele fosse um grande pesquisador, um cientista, e então jogaram a bomba em Hiroshima e o garoto pediu demissão, encheu a cara e apareceu aqui dizendo que queria trabalhar como escultor de pedras.

– Ele trabalha aqui agora?

– É escultor em Roma.

– Se alguém lhe oferecesse bastante dinheiro – disse o motorista –, você aceitaria, não?

– Talvez. Mas teria de ser muito dinheiro.

– Onde se coloca o nome da pessoa numa coisa dessas? – perguntou o motorista.

– No pedestal já tem um nome. – Não dava para ver o nome por causa dos ramos que colocaram no pedestal.

– Nunca foi retirado? – Fiquei curioso.

– Nunca foi pago. A história é a seguinte: esse imigrante alemão estava indo para o oeste com a esposa, e ela morreu de varíola aqui em Ilium. Então ele pediu para colocar esse anjo no túmulo dela e mostrou a meu bisavô que tinha dinheiro para pagar por ele. Mas daí ele foi assaltado. Alguém roubou praticamente cada centavo que o homem tinha. Tudo que sobrou para ele no mundo foi uma terra que ele havia comprado em Indiana, uma terra que ele nunca havia visto. E então ele se mudou para lá, dizendo que voltaria depois para pagar pelo anjo.

– Mas ele nunca voltou? – perguntei.

– Não. – Marvin Breed empurrou com o pé alguns ramos para que pudéssemos ver as letras gravadas no pedestal. Havia um sobrenome lá. – Aí vai um sobrenome maluco para você – disse ele. – Se esse imigrante teve algum descendente, imagino que tenham americanizado o nome. Hoje em dia provavelmente devem ser Jones, Black ou Thompson.

– É aí que você se engana – murmurei.

A sala parecia estar girando, as paredes e o chão se transformaram momentaneamente em bocas de túneis, inúmeros túneis, que levavam a todas as direções através do tempo. Tive uma visão bokononista da unidade de cada segundo de todos os tempos e de todos os homens errantes, de todas as mulheres errantes e de todas as crianças errantes.

– É aí que você se engana – repeti, quando a visão sumiu.

– Conhece alguém com esse sobrenome?

– Sim.

O sobrenome era também o meu.