PRELÚDIO

O homem voou pelo ar, arremessado por um dos outros recrutas. No interior, Irene Kennedy, supervisora da CIA, observava-o com um leve interesse e viu que não conseguiu completar o movimento de se dobrar sobre si mesmo e rolar. O homem embateu no chão com força — um impacto que muito provavelmente o teria deixado sem fôlego e talvez até com uma costela dorida. Irene comprimiu os lábios e calculou a probabilidade de ele completar as oito semanas seguintes do programa de treino. Já vira tantos homens rolar por ali que era capaz de os avaliar com a precisão de um corretor de Las Vegas. Atribuiu menos de 10 por cento de probabilidade àquele.

Os seus pensamentos, porém, não estavam realmente concentrados naquela leva de recrutas. Ela estava mais preocupada com um certo homem que completara o rigoroso programa de treino sem a mínima dificuldade um pouco mais de um ano antes. Mitch Rapp tinha sido o seu iniciado e, no ano que se passara desde que o tinham atirado à caça de perpetradores de terrorismo, havia deixado um rasto firme de cadáveres de Genebra a Istambul, Beirute e outros lugares. O seu historial até então era perfeito, o que, só por si, aumentava a tensão de Irene. Ninguém era perfeito. Mais cedo ou mais tarde, por mais talento que tivessem, os grandes acabavam por cair. Para complicar a situação, Irene tinha insistido para que ele fosse autorizado a operar sozinho. Sem apoio. Apenas uma equipa de batedores para avaliar a situação, após o que ele avançava para realizar o trabalho sujo por sua conta. Não havia colegas que pudessem salvar-lhe o couro se as coisas corressem mal. Rapp tinha argumentado que uma pegada pequena implicaria uma probabilidade menor de ser apanhado.

Instintivamente, Irene apreciava a simplicidade. Tinha visto muitas operações que, por se tornarem complexas em termos de pessoal e âmbito, nunca chegavam a arrancar. Rapp argumentara convincentemente que, caso fracassasse, seria apenas um homem com um passaporte estrangeiro que nunca poderia ser ligado a Langley. Hurley, o espião e instrutor empedernido, salientara que esse raciocínio só resultava se o matassem. Se o apanhassem com vida, falaria, como todos, e então a exposição a que ficariam sujeitos seria horrível. Contudo, aquela não era uma profissão isenta de riscos e, no final, Thomas Stansfield mostrara-se disposto a arriscar. O jovem operacional revelara-se muito engenhoso e Stansfield já tinha riscado vários nomes da sua lista de terroristas mais procurados.

Todavia, aquela missão era diferente. O que estava em causa era consideravelmente mais importante. Uma coisa era quando Rapp andava à socapa nalgum país em vias de desenvolvimento a praticar o seu ofício, mas, naquele preciso momento, o agente estava prestes a fazer algo muito ilegal e não autorizado num país onde não poderia dar-se ao luxo de cometer o mínimo erro.

Irene estava de tal forma concentrada que não ouviu a pergunta do homem sentado à secretária. Passou para trás da orelha uma madeixa do cabelo acobreado que lhe dava pelos ombros e disse:

— Desculpe?

O Dr. Lewis tinha passado os últimos minutos a observá-la. Irene era uma profissional complexa, confiante e extremamente reservada. Tinha-se tornado uma obsessão profissional para Lewis perceber o que a movia.

— Está preocupada com ele.

O rosto de Irene Kennedy manteve a neutralidade, apesar ter ficado irritada por o colega lhe adivinhar os pensamentos.

— Com quem?

— Sabe com quem — replicou o Dr. Lewis, cujos olhos azul-claros a instavam a falar.

Ela encolheu os ombros como se aquilo não fosse nada de mais.

— Preocupo-me com todas as operações pelas quais sou responsável.

— Parece que se preocupa mais com aquelas em que ele está envolvido.

Irene considerou o indivíduo único que tinha encontrado a norte de Nova Iorque. Por mais que quisesse negá-lo, a avaliação que Lewis fazia da sua preocupação com Rapp era certeira. Não sabia se tal se devia ao homem ou à natureza cada vez mais perigosa das operações que lhe atribuíam, mas, fosse como fosse, não queria discutir a questão com Lewis.

— Quanto a mim — disse este num tom descontraído —, constatei que me preocupo menos com ele do que com a maioria. Desde sempre, parece-me.

Irene deu voltas ao comentário na cabeça. Facilmente lhe encontrava duas interpretações... talvez mais.

— É muito mais fácil quando se está sentado desse lado da secretária. — Dirigiu-lhe um raro sorriso. — Eu sou a supervisora dele. Ponho-o nestas situações e sou a sua única linha de vida caso algo corra mal. Seria de pensar que, clinicamente... — Arqueou uma sobrancelha, imitando uma das expressões faciais de que Lewis abusava —até o doutor compreenderia isso.

O psicólogo afagou o lábio inferior com o indicador e disse:

— Preocuparmo-nos com alguém, ou algo, pode ser normal... e até saudável, mas, se for exagerado... — Lewis abanou a cabeça e fez um ar amargurado. — Não é nada bom.

Lá vamos nós, pensou Irene. Aquela não era uma conversa casual. Lewis tinha estado a cismar naquilo havia algum tempo, a preparar a sua linha de interrogatório. Ela sabia por experiência que tentar escapar ao tête-à-tête só pioraria as coisas. O psicólogo era paciente e pertinaz, e o diretor-adjunto de operações dava grande valor aos relatórios que ele escrevia. O doutor apontava a um problema e bombardeava o sujeito com perguntas até se dar por satisfeito. Irene decidiu passar a bola para o lado dele.

— Então acha que me preocupo demasiado.

— Eu não disse isso — respondeu Lewis num tom descontraído, abanando ligeiramente a cabeça.

— Mas insinuou-o — disse ela.

— Era apenas uma pergunta.

— Uma pergunta que me fez porque lhe parece que reparou em algo e está preocupado comigo. E, como foi o doutor a começar, agradecia que se explicasse, em vez de tratar isto como se fosse uma das suas sessões de terapia.

Lewis suspirou. Já a vira assim, mas nunca consigo. Por norma, era com Stan Hurley, que era particularmente fadado a irritar os outros. Consigo, ela sempre se mostrara calma e analítica, pelo que o facto de ceder tão rapidamente à irritação provava que os seus receios eram válidos.

— Parece-me que, no que diz respeito a determinado operacional... se preocupa demasiado.

— O Rapp? — perguntou Irene.

— Correto.

— Por favor, não me venha com psicotretas e não me diga que acha que estou apaixonada por ele. — Ela abanou a cabeça, como se algo tão comezinho fosse indigno de si. — Sabe que não é assim que funciono.

Lewis desconsiderou tal noção com um gesto da mão.

— Concordo. Não é esse o meu receio.

— Então qual é?

— Que não dê o crédito devido ao homem.

— Crédito? Crédito pelo quê?

— Comecemos pelo facto de ele ter chegado faz pouco mais de um ano, sem qualquer experiência militar, superando todos os homens que lhe pusemos à frente, incluindo o seu tio Stan. A capacidade de aprendizagem dele, e o ritmo incrivelmente rápido com que aprende, não se assemelham a nada que eu alguma vez tenha visto. — A voz de Lewis tornou-se mais intensa. — E é assim em todas as disciplinas.

— Todas, não. As notas dele em geopolítica e relações diplomáticas são deploráveis.

— Isso é porque ele considera tais áreas um desperdício absoluto do seu tempo, e eu não discordo por completo.

— Pensava que queríamos que saíssem daqui pessoas instruídas.

Lewis encolheu os ombros.

— A estabilidade mental interessa-me mais do que a instrução. Afinal de contas, não lhe pedimos que negoceie um tratado.

— Não, mas precisamos que tenha noção do plano geral.

— Plano geral. — Lewis franziu o sobrolho. — Acho que o Mitch argumentaria que ele é o único aqui que se mantém focado no plano geral.

Irene era uma mulher num mundo masculino por excelência, e desagradava-lhe profundamente quando os colegas a tratavam como se tudo tivesse de lhe ser explicado.

— A sério — disse ela, com uma insinceridade pura.

— O seu agente tem uma determinada aptidão. Uma certa capacidade que é ampliada pelo facto de não deixar que factos alheios o atrapalhem.

Irene suspirou. Normalmente, nunca deixaria que a frustração se notasse, mas estava cansada.

— Sei que acha que sou capaz de adivinhar pensamentos, mas parece que hoje essa capacidade me abandonou. Será que pode ir direto ao assunto?

— Realmente parece mais cansada do que é habitual.

— Ora, obrigada. E o doutor parece que ganhou uns quantos quilitos.

Lewis sorriu.

— Não tem de me ofender lá porque está preocupada com ele.

— É um mestre da deflexão.

— O meu trabalho consiste em observar. — Ele girou a cadeira e olhou para os oito homens e os dois instrutores que lhes davam o treino básico de combate corpo a corpo. — Observar-vos a todos. Assegurar-me de que ninguém tem um esgotamento mental e foge da reserva.

— E quem é que o observa a si?

Lewis sorriu.

— Eu não estou submetido ao mesmo stress — replicou o doutor, virando a cadeira de novo para ela. — Como disse há pouco, ele é responsabilidade sua.

Irene ponderou aquele comentário por um segundo. Não podia discordar, pelo que manteve a boca fechada. Além disso, o bom doutor era perito em compartimentar os rigores da operação clandestina.

— Eu estou a cuidar de si — disse Lewis no seu tom de terapeuta compreensivo. — Esta vida dupla que tem levado não é saudável. Eu sei que julga que aguenta o esforço mental, e eu também pensava que sim, mas, nos últimos tempos, tenho começado a ter dúvidas.

Irene sentiu algo a revirar-se nas suas entranhas.

— E partilhou essas dúvidas com alguém? — Ela estava a pensar especificamente em Thomas Stansfield.

— Ainda não, mas a dada altura terei a obrigação de relatar as minhas preocupações.

Ela sentiu algum alívio, ainda que fosse meramente temporário. Sabia que a única forma de evitar um mau relatório pessoal era apaziguar os receios de Lewis. E a única forma de fazer isso seria falando acerca deles.

— Essa aptidão que diz que ele tem, importar-se-ia de a partilhar comigo?

Lewis hesitou, como se estivesse a tentar arranjar a forma mais delicada de dizer algo brutalmente indelicado. Abanando a cabeça, respondeu:

— Eu tenho tentado perceber a cabeça do Rapp, e há dias em que juro que é de uma honestidade tão revigorante que penso que sei o que o move, e depois... — Lewis deixou a frase por acabar.

— E depois o quê?

— Há outros dias em que não consigo ver para além daqueles malditos olhos escuros e daquele sorriso descaído que ele usa para despistar qualquer pessoa que tente meter-se na sua vida.

— É essa a aptidão que o deixa à vontade? O sorriso descaído dele?

— Não — riu-se Lewis. — É bem mais sério do que a sua capacidade de ser franco num momento e impenetrável no seguinte, embora isso possa ter influência em como ele lida com tudo. Estou a falar do cerne de tudo isto. Porque é que estamos aqui? Porque é que desviámos secretamente mais de cinquenta milhões de dólares para esta operação? Estou a falar do facto de ele ser uma bola de demolição humana. De, metodicamente, em pouco mais de um ano, ele ter concretizado mais do que nós na última década. E, aqui entre nós, sejamos brutalmente honestos — Lewis ergueu um dedo —, «aquilo» de que estamos a falar é do facto puro e duro de ele ser tremendamente bom a caçar e matar.

Irene não olhou para Lewis, mas assentiu com a cabeça. Todos tinham chegado à mesma conclusão, meses antes. Era por isso que o tinham soltado e permitido que trabalhasse sozinho.

— Eu estou aqui — prosseguiu o psicólogo —, para observar e garantir que temos as pessoas certas e que as suas mentes aguentam o stress único deste trabalho. Eu tenho stress, a Irene tem stress, mas duvido que o nosso stress se compare com o stress de operar sozinho, frequentemente atrás de linhas inimigas, longe de casa, a perseguir um homem para o matar, e a garantir que tudo corre como planeado.

— Então receia que ele se vire contra nós.

— De momento, não. Na verdade, parece-me que tem lidado extraordinariamente bem com os rigores do seu novo trabalho. Tenho-me mantido muito atento a ele. Quando volta, dorme como um bebé. Encosta a cabeça à almofada e, segundos depois, já caiu no sono e dorme toda a noite.

Irene tinha-se preocupado com aquilo. Nem todos os operacionais lidavam com tirar a vida de outro ser humano com tamanho à-vontade.

— Então como é que ele lida com... o sangue que lhe mancha as mãos? — perguntou ela.

— É uma criatura linear, o que significa que não permite que muitas questões secundárias lhe turvem as águas da consciência. Estes homens... os que temos como alvo... todos decidiram, por vontade própria, envolver-se em planos para matar civis inocentes. Para ele (e isto não sou eu a deitar-me a adivinhar, ele expressou-mo com muita clareza), estes homens precisam de ser punidos.

Irene remexeu-se na sua cadeira.

— Vingança simples.

— Ele diz retaliação. A distinção é ténue, mas eu percebo o que ele quer dizer.

— Dado que perdeu a namorada, isso não me parece particularmente perturbador. Afinal, este é um trabalho que requer uma motivação singular.

— Sim, requer, mas a dele é profunda. Ele acha que, se estes homens não forem punidos, isso apenas os encorajará a matar mais gente. A dar cabo das vidas de mais pessoas — respondeu Lewis.

— Não argumento em contrário. E nem o nosso chefe.

Lewis sorriu.

— Há mais uma coisa que lhe dá um toque único.

— O que é?

— Ele quer que eles saibam que anda atrás deles.

— Em teoria ou na realidade?

— Um pouco das duas. Ele sabe que pode deixá-los nervosos. Fazê-los perder o sono à noite, preocupados com quando irá aparecer. Quer que temam a sua existência.

— Ele disse-lhe isso? — perguntou Irene, bastante surpreendida.

— Partes. O resto concluí eu — disse o psicólogo, assentindo com a cabeça.

— E porque é que não me informou?

— Estou a informá-la agora.

Irene chegou-se para a beira da cadeira.

— O que eu quero saber é porque é que não me informou assim que se inteirou disso?

— Informei o Thomas — disse Lewis, protegendo-se.

— E o que é ele disse?

— Ficou a pensar durante bastante tempo e depois disse que fazer aqueles tipos perderem algum sono talvez não fosse o pior que podia acontecer.

— Valha-me Deus. — Irene fez pressão com a palma da mão contra a testa. — Sendo eu a supervisora dele, não lhe parece que devia pôr-me a par de coisas destas?

— Não tenho a certeza de compreender a sua preocupação. Eu acho que ele está bem, e o Thomas pensa o mesmo.

Ela apertou a cana do nariz, esforçando-se por abafar a dor de cabeça que sentia a instalar-se.

— Isto não é a Liga de Futebol Americano. Não enxovalhamos. Não atormentamos a outra equipa para desconcentrar os jogadores. Os meus homens precisam de ser fantasmas. Precisam de entrar num país à socapa, fazer discretamente o que têm a fazer e desaparecer em seguida.

— Irene, acho que está a preocupar-se exageradamente. O inimigo sabe que algo se passa. Acumulam-se cadáveres a um ritmo inusitado, e se o medo que o Rapp causa faz com alguns destes homens andem um bocado nervosos... — Lewis encolheu os ombros — bem, que assim seja.

— Então que raio é que está a tentar dizer-me? Que o Rapp não lhe gera cuidados, mas que eu o preocupo? — perguntou Irene, com a desconfiança óbvia na voz.

— Nenhum de vocês me gera cuidados, mas acho realmente que se preocupa demasiado.

— Eu estou preocupada com o Rapp porque ele está prestes a matar um oficial de alta patente na capital de um dos nossos aliados mais próximos e, se meter água, as repercussões podem ser tão más que talvez acabemos todos em frente a um comité no Capitólio, para sermos indiciados e enfiados na prisão. — Irene abanou a cabeça. — Não sei o que é que os seus livros de psicologia dizem acerca de tudo isto, mas eu cá acho que ter medo de ir preso é uma coisa saudável.

— O que quero dizer, Irene, é que o Rapp é bom. Talvez seja o melhor que alguma vez vi, e o alvo dele é um burocrata preguiçoso e gordo. Esta noite vai correr bem. Não é isso que me preocupa.

Irene estava tão concentrada em Paris que quase não deu pela última frase.

— Então o que é que o preocupa?

— O Mitch Rapp é único. Já provou que tem pendor para a autonomia. Rebela-se contra o controlo e, até agora, o Thomas tem estado disposto a ignorar todas estas pequenas transgressões, por ele ser tão bom naquilo que faz.

— Mas...

— O nosso país, bem como o nosso prezado empregador, tem um historial de se livrar dos pontas de lança quando as coisas se complicam. Se fizerem isso a um homem como o Rapp... — Lewis fez um esgar, perante o que imaginava.

— O nosso país e o nosso empregador nem sequer sabem que o Rapp existe.

— Eu sei isso, Irene. Estou a olhar mais para a frente, e a dizer-lhe que há um verdadeiro perigo de que, a dada altura, venhamos a perder-lhe o controlo.

Irene descartou a ideia.

— Não vi nada que possa levá-lo a essa conclusão.

— Irene — disse Lewis num tom bem mais sério —, reduza tudo ao mínimo e o que temos é um homem ensinado a matar. A matar pessoas que prejudicaram civis inocentes ou ameaçaram a segurança nacional deste país. Neste momento, tem uma missão claramente definida. Está a matar maus da fita que vivem em países estrangeiros. O que acontece se um dia acorda e se apercebe de que alguns dos maus da fita estão aqui mesmo? A viver nos EUA, a trabalhar para a CIA, no Capitólio.

— Não pode estar a falar a sério!? — exclamou Irene, chocada com tal teoria.

Lewis cruzou as mãos debaixo do queixo e recostou-se na cadeira.

— A justiça é cega e, se treinamos um homem para que se torne juiz, júri e carrasco... bem, nesse caso não devemos surpreender-nos se um dia ele não vir a distinção entre um terrorista e um burocrata corrupto que só pensa nos seus próprios interesses.

Irene ponderou a hipótese por um momento e depois disse:

— Não tenho a certeza de ir nisso.

Lewis encolheu os ombros.

— Só o tempo o dirá, mas de uma coisa tenho a certeza. Se alguma vez for necessário neutralizá-lo, é melhor não falhar. Porque, se ele sobreviver, há de matar-nos a todos.