CAPÍTULO 1

Paris, França

Mitch Rapp prendeu a corda cinzenta de nylon a uma torre de ventilação de ferro forjado e foi até à beira do telhado. Olhou de relance para a varanda dois pisos abaixo e depois a sua mirada abarcou a Cidade Luz. Faltavam umas horas ainda para o nascer do sol e o fluxo de notívagos tinha-se reduzido a um mero gotejar. Era aquele raro momento de inatividade relativa que até uma cidade tão vibrante como Paris tinha uma vez por dia. Cada cidade tinha a sua sensação particular, e Rapp aprendera a prestar atenção ao ir e vir dos ritmos naturais de cada uma. Também tinham semelhanças, tal como as pessoas. Apesar do tanto que se falava da individualidade, poucos compreendiam que, na maioria, as ações das pessoas eram habituais. Dormiam, acordavam, comiam, trabalhavam, comiam um pouco mais, trabalhavam um pouco mais, tornavam a comer, viam televisão e depois iam dormir outra vez. Era a pulsação básica da humanidade em todo o mundo. A forma como as pessoas viviam as suas vidas e supriam as necessidades básicas.

Também os homens tinham os seus atributos únicos, os quais se manifestavam frequentemente em hábitos — hábitos que Rapp aprendera a explorar. Por norma, a melhor altura para atacar era esta hora mágica, entre o anoitecer e a alvorada, quando a vasta maioria dos seres humanos dormia, ou tentava fazê-lo. As razões psicológicas eram óbvias. Se os atletas de alta competição precisavam de horas para aquecer antes de uma grande prova, como poderia um homem defender-se ao ser arrancado de um sono profundo? No entanto, nem sempre podia escolher a hora indicada e, ocasionalmente, os hábitos de um alvo criavam uma abertura tão dolorosamente óbvia que ele simplesmente não poderia ignorar a oportunidade.

Três semanas antes, Rapp estivera em Atenas. O seu alvo percorria o mesmo passeio buliçoso todas as manhãs, do apartamento para o escritório. Rapp considerara matá-lo ali, no passeio, já que havia muita cobertura e distração. Não teria sido difícil, mas era sempre preciso ter em conta a possibilidade de criar testemunhas, e um agente da polícia poderia sempre aparecer no momento errado. Enquanto estudava o alvo, reparou noutro hábito. Depois de chegar ao trabalho, o homem tomava mais uma chávena de café e depois seguia pelo corredor com o seu jornal e fazia uma visita prologada à casa de banho dos homens, onde havia três cubículos.

Depois de apanhar pessoas a dormir, o melhor era apanhá-las com as calças em baixo. Ao quarto dia, Rapp esperou no cubículo do meio e, à hora esperada, o alvo sentou-se à sua direita. Rapp pôs-se de pé em cima da sanita, debruçou-se sobre a divisória, chamou o homem pelo nome e, depois de se fitarem olhos nos olhos, sorriu-lhe e disparou uma única bala de 9 mm de ponta oca no alto da cabeça do homem. Enfiou outro disparo mortal no crânio do homem para garantir que morria e saiu calmamente do edifício. Trinta minutos depois, estava num ferry a atravessar o ar matinal ameno do mar Egeu, a caminho da ilha de Creta.

A maioria das mortes tinha sido assim. Tolos que de nada desconfiavam e se julgavam a salvo, ao fim de anos em que os Estados Unidos pouco ou nada haviam feito para os perseguir pelo seu envolvimento em vários ataques terroristas. O único objetivo de Rapp era levar a luta àqueles homens. Sangrá-los até começarem a ter dúvidas que os fizessem ficar acordados à noite, perguntando-se se seriam os próximos. Isso tornara-se a sua missão de vida. A inação fora o que permitira que aqueles homens continuassem os seus complôs para atacar civis inocentes. A crença de que estavam a salvo para prosseguirem a guerra de terror dera-lhes uma confiança arrogante. Rapp, agindo por conta própria, estava a substituir tal confiança por medo.

Por esta altura, já estavam cientes de que algo se passava. Demasiados homens tinham sido alvejados na cabeça no último ano para que fosse coincidência. A supervisora de Rapp comunicara os rumores. A maioria desconfiava de que os Israelitas tinham reativado uma das suas equipas de atiradores, o que, para Rapp, estava muito bem — quanto mais desinformação houvesse, melhor. Ele não procurava crédito. Apesar daquela correnteza seguida, aquela noite seria a última durante algum tempo. Os poderes superiores na Virgínia estavam a ficar nervosos. Demasiada gente a falar. Demasiadas agências estrangeiras de serviços secretos destacavam ativos para investigar aquela série de mortes entre os terroristas mais infames do mundo e a sua rede de financiadores e traficantes de armas. Quando acabasse aquele trabalho, Rapp deveria voltar ao país para descansar e descontrair. Pelo menos, fora isso que lhe dissera a supervisora. Mas, mesmo passado apenas um ano rápido, ele sabia como as coisas funcionavam. Descansar e descontrair significava que queriam observá-lo. Assegurarem-se de que alguma parte da sua psique não divagara por algum corredor escuro, de onde nunca regressaria. A noção provocou-lhe um sorriso. Matar aqueles cabrões era a coisa mais terapêutica que alguma vez tinha feito na vida. Era mais eficaz do que uma década de psicoterapia.

Levou uma mão ao ouvido esquerdo e concentrou-se no transmissor minúsculo que transmitia os sons da suíte de luxo dois pisos abaixo. Tal como na véspera, e na noite anterior a essa, ouvia o líbio corpulento a chiar e ressonar. O homem fumava três maços de tabaco por dia. Se Rapp o perseguisse por um lanço de escadas acima, talvez isso bastasse para concretizar o objetivo.

Seguiu com o olhar uma carrinha de entregas que passava silenciosamente lá em baixo, no Quai Voltaire. Algo o incomodava, mas não conseguia definir o que seria. Perscrutou a rua, em busca da mais pequena evidência de que algo estivesse fora de sítio, e depois virou a atenção para os caminhos ladeados de árvores nas margens do rio Sena. Também estavam desertos. Tudo estava como devia, mas ainda havia algo a perturbá-lo. Talvez as coisas tivessem sido demasiado fáceis ultimamente, uma morte após a outra, uma cidade após outra, sem nenhuma escapada por pouco. A lei das médias dizia-lhe que, mais cedo ou mais tarde, algo correria mal, e ele acabaria numa ensarilhada que poderia metê-lo numa prisão estrangeira ou até custar-lhe a vida. Esses dois pensamentos eram omnipresentes na sua mente e, dependendo do país em que se encontrasse, nem sempre sabia qual seria a sua preferência.

Havia pouco espaço para medo e dúvida naquilo que ele fazia. Devia haver cautela e um olhar atento aos pormenores, mas o medo e a dúvida poderiam incapacitá-lo. Ele poderia passar a noite inteira ali a inventar desculpas para não agir. Stan Hurley, o filho da mãe empedernido que o treinara, avisara-o quanto aos perigos da paralisia por demasiada análise. Rapp pensou no aviso austero que Hurley lhe dera e decidiu que a culpa devia ser da ansiedade da sua supervisora. Ela dissera-lhe que, se a mais pequena coisa não lhe parecesse bem, teria de abortar a missão. Um americano não poderia ser apanhado a fazer aquele tipo de trabalho sujo em Paris. Nunca, e especialmente agora, dado o atual clima político.

No plano geral, o alvo era um elo. Mais um nome a riscar na sua lista; contudo, para Rapp, a questão era sempre mais pessoal do que o plano geral. Ele queria que cada um daqueles homens pagasse pelo que tinha feito. Cada morte seria mais difícil, mais perigosa, e isso não o incomodava minimamente. Acolhia o desafio. Na verdade, sentia uma alegria sincera por aqueles otários andarem a olhar para trás todos os dias e irem dormir todas as noites perguntando-se quem andaria a caçá-los.

Perguntou-se uma vez mais se deveria preocupar-se por o líbio estar a viajar sem guarda-costas. Havia uma boa possibilidade de que se sentisse seguro na sua posição de ministro do petróleo do seu país. Sendo um membro importante da comunidade diplomática, provavelmente julgava-se superior aos jogos sujos de terroristas e assassinos. Bem, pensou Rapp, terrorista uma vez, terrorista para sempre. Mesmo de fato e gravata e instalado numa suíte de mil dólares por noite em Paris, não deixava de ser um terrorista.

Rapp perscrutou a rua e escutou o líbio a roncar como um porco. Meio minuto depois, decidiu-se. Aquele homem não veria outro nascer do sol. Começou a mover-se com gestos eficientes e quase robóticos à medida que revia o equipamento uma última vez. A sua Beretta com silenciador estava no coldre de ombro sob o braço direito; dois carregadores extras encontravam-se bem encaixados debaixo do braço esquerdo; uma faca de combate de dupla lâmina com dez centímetros de comprimento ia embainhada na parte de trás da sua cintura; e, numa presilha ao tornozelo, tinha ainda uma pistola mais pequena, de 9 mm. Aquelas eram apenas as armas que tinha levado. Também tinha um pequeno kit de primeiros socorros, um rádio sintonizado no canal da segurança do hotel, algemas flexíveis e um conjunto de documentos falsificados na perfeição, que o identificavam como um palestino recentemente imigrado de Amã, na Jordânia. E havia também o colete à prova de bala. Usá-lo fora uma das coisas que lhe tinham sido inculcadas durante o treino aparentemente interminável.

Rapp virou o colarinho do blusão preto para cima e cobriu o rosto com uma balaclava preta e fina. Pegou na corda, mirou a borda do edifício e disse a si mesmo:

— Dois tiros na cabeça.

Era um pouco redundante, mas esse era o objetivo, e a essência que definia todo aquele exercício.

Deixou a corda desenrolar-se lentamente e depois passou as duas pernas por cima da orla do telhado. Num movimento ágil, saltou do parapeito e deu uma volta de 180 graus. As mãos enluvadas agarravam a corda e abrandavam-lhe a descida de quatro metros e meio até poder estender um pé e pousá-lo na amurada da varanda. Firmemente agarrado à corda, passou com suavidade para o pequeno gradeamento de ferro negro. Teve o cuidado de se manter de um lado da varanda, apesar de as cortinas blackout estarem corridas. Com um joelho no chão, puxou a corda e passou-a à volta da amurada, para que estivesse à mão se precisasse de fugir rapidamente. Tinha desativado o trinco da porta da varanda ao instalar o dispositivo de escuta dois dias antes. Se tivesse tempo, recuperaria o dispositivo, mas não era nada de especial. Assegurava-se sempre de que usava dispositivos que não pudessem ser associados a um dos fornecedores sofisticados que Langley usava.

Tinha memorizado a disposição da suíte. Tratava-se de um quarto grande com sofás à esquerda e uma grande cama de casal do outro lado das portas. A prostituta deveria encontrar-se lá, mas Rapp não a ouvia, com o detestável ressonar e chiar do líbio. Estava tudo como devia ser. Rapp sacou da Beretta e começou lentamente a aplicar pressão no manípulo de latão da porta com a mão enluvada. Passou-o da posição das 3 horas para a das 5 e depois soltou-o sem que se ouvisse sequer um clique.

Puxou a porta para si e encostou-a à lateral do edifício. Colocou a mão livre na costura das cortinas blackout e avançou agachado, com a pistola em riste e a girar da esquerda para a direita. Eram seis passos da varanda até onde o alvo dormia. A cama era tão alta que a plataforma tinha um degrau que contornava três dos lados. Um espelho enorme e espalhafatoso servia de cabeceira. A elevação colocava o alvo à altura da cintura de Rapp, que media um metro e oitenta e cinco. Com a ponta do silenciador a apenas um metro e vinte da cabeça do líbio, lançou um breve relance à cama, esperando conseguir localizar a prostituta. O melhor que conseguia era ter uma noção de que ela estava algures do outro lado, debaixo de uma confusão de almofadas e cobertas. Nunca a alvejaria, mas poderia ter de lhe bater com a pistola, caso ela acordasse e começasse a gritar.

Avançou um passo mais e ergueu a arma. Colocou o ponto cor de laranja na cana do nariz do homem e depois pôs os dois pontos traseiros em posição. A pressão já estava no gatilho e, sem o menor vestígio de hesitação, apertou-o e disparou uma bala na cabeça do homem. O silenciador saltou dois centímetros e, quando voltou a alinhar-se, Rapp disparou uma segunda vez.

Fitou o líbio. O disparo alargara o buraco do tamanho de uma moeda. A morte fora imediata, o que queria dizer que o ressonar tinha parado. No novo silêncio do quarto, os seus olhos dirigiram-se ao monte desalinhado do outro lado da cama e, após três segundos sem qualquer movimento, ajoelhou-se e levou a mão à parte de trás da mesa de cabeceira. As pontas dos dedos da sua mão direita tinham acabado de encontrar o que procurava quando sentiu o chão a tremer. A vibração era suficientemente intensa para perceber que só uma coisa poderia estar a causá-la. Retirou a mão, deixando o dispositivo de escuta onde estava, e levantou-se o suficiente para espreitar a porta do quarto de hotel.

Ali, na nesga fina de luz que entrava por baixo da porta, viu uma sombra a passar e logo outra. Praguejou e estava prestes a fugir para a varanda quando a porta se abriu de supetão, inundando o quarto de luz. Ao começar a baixar-se, Rapp viu o canhão distinto e preto de uma submetralhadora e depois o forte clarão de um disparo.