Rapp nunca tinha sido alvejado, mas isso não era o tipo de coisa pela qual fosse necessário passar-se para a reconhecer quando acontecia. Tinham voado balas a um ritmo veloz e uma delas encontrara o seu alvo. O impacto fizera-o largar a arma para a rua lá em baixo, mas conseguira agarrar-se à corda. A chuva de balas crepitava por cima da sua cabeça enquanto ele saltava da amurada e depois descia. Agarrou-se com força com a mão direita, uma manobra que o fez dar uma volta de 180 graus e bater no edifício. Pôs os pés à sua frente mesmo a tempo de se impedir de ir de cara contra a fachada de pedra.
Estar suspenso de uma corda com uma ferida de bala e com a arma uns doze metros abaixo de si na rua dava-lhe uma sensação de vulnerabilidade que não lhe agradava. Ocorreu-lhe deitar a mão à arma suplente, mas as suas pernas já dobravam os joelhos para o afastar da parede. Precisava de se afastar daquele sítio o mais depressa possível. Aliviou o aperto da corda e desceu uns três metros antes de tornar a apertá-la. Os seus pés tornaram a encontrar a parede e ele usou-os para se afastar do edifício.
Quando chegou ao pavimento, olhou para baixo e encontrou a arma ali perto. Pegou-lhe e olhou rapidamente para a esquerda e para a direita. Não havia faróis à vista, mas a polícia não tardaria a chegar. Já atravessava a rua, na direção do rio, e ia a meio da rua quando as balas começaram a silvar pelo ar à sua volta. Atirou-se para a esquerda, agachou-se um pouco e depois desatou a correr o máximo que podia. As balas seguiam-no e ele guinou para a direita, até que os seus pés encontraram relva e as sombras das árvores. As balas pararam, mas ele continuou para a direita durante mais uns quinze metros para se assegurar de que estava completamente escondido, antes de tomar a sua verdadeira rota.
O banco e o caminho encontravam-se exatamente onde esperava. Atravessou o caminho e virou à esquerda, com os pés praticamente silenciosos nos seus passos leves pelo asfalto. Os pulmões e as pernas funcionavam bem, levando-o a bom ritmo para um ponto que tinha observado uns dias antes. Mesmo antes de chegar à ponte, a primeira vaga de dor atingiu-o. Ia crescendo, aumentava de intensidade até explodir, latejar e depois diminuir. Rapp resistia à vontade de tocar no ombro e avaliar os estragos. Sentia a humidade pegajosa debaixo da camisa e isso dizia-lhe o suficiente. A ferida era algures no ombro esquerdo, o que significava que deveria ser capaz de tratar dela, a menos que lhe tivesse atingido a artéria axilar. Se assim fosse, provavelmente perderia os sentidos e sangraria até morrer nos minutos seguintes.
Mais adiante, avistou a ponte baixa com os seus arcos curvos de pedra. De súbito, não se lembrava do nome da ponte, o que o fez perguntar-se se o seu cérebro estaria com falta de fluxo sanguíneo. Abrandou e saiu do caminho. O som de terra e gravilha a serem esmagadas sob os seus pés dizia-lhe que tinha encontrado o caminho de terra batida. Seguiu-o lentamente até à margem sul do rio e a base da ponte. O parapeito não tinha mais de noventa centímetros de largura. Deteve-se e espreitou para o outro lado. Havia luz suficiente da cidade a refletir-se na água para que visse que estava sozinho. Encolheu-se por baixo do arco curvo e caminhou agachado até ao meio. Sentou-se no parapeito, com os pés a baloiçar uns quantos centímetros acima das águas do Sena.
Por hábito, mexeu-se para passar a Beretta com silenciador da mão direita para a esquerda para a guardar no coldre, mas a mão esquerda não reagiu da maneira que lhe teria agradado. Conseguiu mexê-la uns quantos centímetros, mas logo uma dor penetrante lhe disse que isso era má ideia. Praguejou entre dentes e depois pousou a arma no parapeito a seu lado. Com os dentes, arrancou a luva da mão direita, dedo a dedo, e deixou-a ao lado da arma. Abriu o casaco e desabotoou os dois botões seguintes da camisa. A sua mão deslizou sob o tecido grosso do colete à prova de bala e encontrou o ombro nu ensopado em sangue. Uma vaga de dor atingiu um novo máximo e ele cerrou os dentes com força. Quando a onda passou, o seu indicador encontrou o que ele procurava — a ferida de saída. Soltou um suspiro de alívio. A bala tinha entrado e saído e o buraco não era maior do que a ponta do seu dedo. Se fosse um projétil de ponta oca, a ferida de saída teria sido muito maior, e os estragos bem piores.
Levando a mão atrás, encontrou a ferida de entrada e pareceu-lhe que havia ali menos sangue, mas era difícil ter a certeza. Desapertou a pequena bolsa que tinha à cintura e abriu o estojo de primeiros socorros. Os seus dedos encontraram uma pequena lanterna. Apoiou-a contra a coxa e acendeu-a. Satisfeito por o filtro vermelho estar afixado, colocou a pequena lanterna entre os dentes e pegou na primeira de quatro seringas. Tirou-lhe a tampa, deixando-a cair no rio, e depois, a pressionar o êmbolo, ensopou o ombro com tintura de iodo.
Olhou para a seringa que se seguia e hesitou. Tinha revisto aquilo em teoria, mas agora, ali a sangrar, começava a dar-se conta do quanto iria doer-lhe. Mas antes, porém, teria de tapar o buraco. Rasgou uma embalagem de gaze e começou a inseri-la na ferida de entrada, na parte de trás do ombro. A dor era mais suportável do que ele esperava, mas aquela seria a parte fácil. Quando acabou, pegou na seringa seguinte e também atirou essa tampa para o rio. Agarrando no pulso esquerdo, levantou-o e enganchou os dedos dessa mão no casaco e na camisa, para expor a ferida de saída, e depois deixou o braço frouxo assim pendido. Sem querer pensar mais do que o necessário no movimento seguinte, colocou a ponta da seringa de plástico no buraco de saída, inspirou profundamente e enfiou a agulha ao máximo. Precisou de todo o controlo para não gritar. O corpo ficou rígido de dor, os olhos reviraram-se e, durante uns bons cinco segundos, receou desmaiar.
O choque da dor inicial começou a diminuir e Rapp inspirou fundo várias vezes. Quando se sentiu preparado, colocou o dedo no êmbolo. Depois fez pressão e os primeiros centilitros do coagulante sanguíneo fluíram para a ferida. Puxou a seringa uns dois centímetros para trás e introduziu mais do produto na ferida. Repetiu o procedimento mais duas vezes, até esvaziar a seringa. Depois de se livrar dela, agarrou na penúltima, tirou-lhe a tampa e enfiou-a na ferida. Escapou-lhe uma praga abafada por entre os lábios e um resmungo ao carregar no êmbolo para enviar supercola para a ferida, de forma a parar a hemorragia.
Já se ouviam sirenes de carros-patrulha por todos os lados. Atirou a seringa para a corrente e recostou-se. Tinha de se pôr a andar. Tirou do estojo a última seringa. Continha um antibiótico de largo espectro. Endireitou-se e encontrou um pedaço de pele debaixo do colete à prova de bala. Fez a agulha atravessar o tecido da camisa e nem uma picada sentiu. Sem saber como poderia tornar a colocar o estojo de primeiros socorros e considerando que fizera basicamente tudo o que podia, deixou tudo cair no rio turvo. Fitou a arma por um segundo e quase a atirou também, mas decidiu não o fazer. No sítio para onde ia teria bastantes oportunidades para se livrar dela. Agarrou na arma com a mão que estava bem, virou-a ao contrário e inseriu a ponta do silenciador no coldre. Quando acabava de a encaixar, ouviu vozes à sua direita. Estava ciente da temperatura da água, da velocidade da corrente e de aproximadamente quanto tempo aguentaria até que a hipotermia o matasse.
Com as vozes a aumentarem de volume, Rapp deslizou o traseiro para a beira, agarrou a pedra com a mão direita e passou silenciosamente do parapeito para a água. Mergulhou discretamente, com a sucção das roupas a puxá-lo para baixo. Sabia que não devia entrar em pânico. Assim que as roupas ficassem ensopadas, tornar-se-iam neutras. Veio à tona cinco segundos depois, com a corrente já a levá-lo para oeste. Inspirou calmamente e ignorou o frio da água escura, dizendo a si mesmo que isso ajudaria o fluxo sanguíneo a abrandar. Nadaria descontraidamente pelo centro de Paris e, ao fim de umas horas, encontraria o sítio certo para voltar para terra.
Virou-se de barriga para cima e foi dando suavemente às pernas com movimentos de tesoura debaixo de água. Ao deixar a escuridão relativa da ponte, olhou para o céu noturno e, por um brevíssimo momento, perguntou-se quantas pessoas teriam morrido naquele rio — e se o seu corpo seria apenas mais um para somar à contagem. Tal ideia fê-lo sorrir. Sempre a fim de um desafio, sentiu o modo de sobrevivência a entrar em ação, e disse a si mesmo que era tão certo sobreviver àquela noite como o sol nascer a oriente de manhã. Nessa altura, iria em busca de respostas. Algo correra tremendamente mal naquela noite e precisava de descobrir como fora que o inimigo se inteirara dele. Independentemente do que Irene Kennedy e os outros lhe ordenassem, não voltaria para os Estados Unidos para passar algum tempo no divã com o psicólogo residente de Langley.