CAPÍTULO 6

A comandante Francine Neville, da Polícia Judiciária Francesa, encontrava-se no meio da carnificina com um copo de café numa mão e uma enorme vontade de ter um cigarro na outra. Os seus agentes estavam a analisar o massacre, de luvas e vários instrumentos. Um fotógrafo à entrada ia tomando instantâneos. Por um momento, Francine sentiu-se insegura por não ter aplicado maquilhagem alguma e por o seu cabelo, que usava num corte simples um pouco acima dos ombros, provavelmente estar desgrenhado, dando-lhe um ar algo tresloucado. Contudo, já estivera em suficientes cenas de crime ao longo dos anos para saber que era um desperdício de tempo preocupar-se. Se aquele crime alguma vez se solucionasse e fosse levado a tribunal, teria de aguentar as fotografias pouco favoráveis com o resto da equipa, todos eles arrancados à cama antes de o sol nascer.

Francine Neville era muito competente. Subira rapidamente pela hierarquia da Polícia Nacional, tanto apesar de ser mulher como precisamente por ser mulher. Pressões políticas haviam ditado a nova era inaudita de mulheres em posições de comando, e ela sabia que não faltavam misóginos convencidos de que o único motivo para ter chegado a comandante com a juventude relativa de trinta e sete anos era que os seus chefes tinham uma quota a cumprir. Não fazia caso dos rumorejos, concentrava-se no seu trabalho e reconfortava-se com o facto de os homens com quem colaborava saberem que ela tinha as qualificações necessárias e merecera a sua posição. Em noites como aquela, porém, perguntava-se por que haveria optado por ser polícia.

Tinha o rosto contraído enquanto estudava o caos. Aquilo ia ser um verdadeiro circo. Estava um gordo nu na cama com uma jovem magra que teria metade da idade dele. Ambos estavam mortos — cravados de balas. Quatro outros homens, paramilitares, ao que parecia, também jaziam pelo chão. Esses corpos estavam relativamente intactos, atingidos apenas por uma ou duas balas. Ao fundo do corredor, outros dois cadáveres estavam esparramados junto a duas portas distintas. Francine calculava que fossem hóspedes do hotel que tivessem dado pela agitação e que, ao irem investigar, haviam acabado assassinados pelos cabrões que tinham feito tudo aquilo. Além disso, um azarado jovem funcionário do hotel que lavava as roupas da noite estava agora prostrado na viela das traseiras, com cinco buracos de bala no peito. Fez as contas à carnificina — nove cadáveres, no total. Ao longo dos dezasseis anos desde que entrara para as forças armadas, a maior investigação em que se vira envolvida tinha sido um homicídio triplo. Tratara-se, claro está, de um triângulo amoroso e de um assassinato seguido de suicídio. Embora sensacional, o caso não fora difícil de solucionar, nem para a comunicação social, nem para o público. Mulher engana marido, marido mata mulher e amante, e depois mata-se. Não era o primeiro crime do género, e não seria o último.

Aquele cenário era completamente diferente. O número de vítimas lançava-lhe a mente em duas direções que, embora distintas, estavam ligadas. Tinham tido um verdadeiro problema com os gangues eslavos que tinham ocupado os bairros de lata depois de a Jugoslávia se desfazer e entrar em guerra civil, e agora os gangues russos, com a sua independência recente, começavam a impor-se. Como sempre, precisaria de manter a mente aberta, mas aqueles dois grupos estavam nos primeiros lugares da sua lista.

Duas outras entidades também lhe causavam inquietação — os seus superiores, no quartel-general da Polícia Nacional, e a comunicação social. Que houvesse disparos de submetralhadoras num hotel de cinco estrelas no centro de Paris já era sensacionalista que chegasse; somando-se os nove mortos e ela tinha garantido um circo mediático como a cidade não via desde os tempos do Caso Dreyfus. Os superiores dela considerariam praticamente impossível não interferir, e ela já sabia como o fariam. Alguns tentariam ingerir-se na sua investigação e a maioria passaria a hora de almoço a passar informações à comunicação social.

A sua ansiedade aumentou ao dar-se conta de que toda aquela balbúrdia poderia pôr-lhe fim à carreira. Concentrou-se no morto deitado na cama. Parecia algo saído de um daqueles filmes americanos de mafiosos. Havia penas e tufos de tecido por todo o lado, e uma boa quantidade estava presa a poças de sangue. Olhou para os quatro tipos com ar de paramilitares que jaziam no chão. Facilmente poderiam ser servos ou croatas. Tinham aquela tez morena. Enviara um dos agentes à receção, para saber em que nome fora reservado o quarto. Ouviu uma gargalhada no corredor e, pouco depois, surgiu um homem à entrada, que parou e olhou para um dos mortos.

Se Francine precisasse de confirmação de que estava no meio de uma merda de todo o tamanho, essa confirmação encontrava-se à porta. Tinha esperado passar o resto da vida sem tornar a ver Paul Fournier, e conseguira-o durante quase quatro anos, mas, naquela noite, acabara-se-lhe a sorte. Fournier era da DGSE — a Direção-Geral de Segurança Externa de França. Tratava-se da organização incumbida da segurança externa do país — sendo externa a palavra a reter. Francine teve o palpite incómodo de que Fournier se encontrava ali por causa do homem na cama. Com o olhar a passar do vivo para o morto, soube que o caso se tornara infinitamente mais complicado.

— Francine — chamou-a ele demasiado alto, do outro lado do quarto. — Que prazer ver-te. Já se passou demasiado tempo.

Francine suspirou e ripostou:

— Paul, o que é que estás aqui a fazer?

— Sabes como são as coisas na Direção-Geral— disse ele com um sorriso rasgado sob um bigode grisalho. — Vamos para onde quer que a República precise de nós.

— Julgava que te especializavas em subverter os governos instáveis mais a sul.

Fournier riu-se muito e entrou cuidadosamente, contornando os cadáveres. A um passo de Francine, estendeu os braços como se se preparasse para abraçar uma velha amiga.

Ela estremeceu só de pensar em tocar-lhe. Com um semblante carregado no seu rosto oval, estendeu a mão direita, indicando-lhe que mantivesse a distância. A audácia dele decerto não diminuíra com o passar dos anos.

— Porque é que estás aqui?

Fournier deixou que o ar dececionado lhe abandonasse o rosto e começou a apalpar os bolsos da gabardina cinzenta, em busca de algo. Um momento depois, encontrou um maço de cigarros e um isqueiro. Acendeu um cigarro e ofereceu-lho.

A lata deste homem, pensou ela. Quando o conhecera, nove anos antes, a sua confiança atraíra-a, mas acabara por perceber que aquilo que parecia confiança na verdade era a fachada de um cretino frio, calculista, manipulador e egoísta. Esforçando-se por manter a calma, abanou a cabeça para rejeitar a oferta e perguntou:

— Porque é que tudo tem de ser tão difícil contigo?

— Desculpa? — perguntou ele, fingindo não compreender.

Ela encolheu os ombros.

— Faço-te uma pergunta simples, mas tu recusas-te a responder.

De súbito, Fournier pareceu ofender-se.

— Então, minha querida Francine. Eu sei que as coisas entre nós não acabaram bem, e lamento, mas isso foi, quê... há dez anos? Certamente poderemos comportar-nos como profissionais.

Ela ignorou o facto de ele errar por uma margem de seis anos e, em vez disso, concentrou-se no milhar de coisas que gostaria de dizer àquele imbecil. Todas lhe teriam sabido bem, teriam sido exatas e dizê-las seria um erro. A precisão e a verdade não tinham qualquer valor para Fournier. Para ele, não passavam de instrumentos que usava para fazer avançar os seus propósitos e esquemas. Enganava e fazia-se de vítima por maiores que fossem os seus pecados. Que ela lhe desse troco era precisamente o que ele queria.

— Paul, estou a ser completamente profissional. Foi por isso que te perguntei porque é que estás aqui. Esta é a minha cena do crime. Sejas ou não da Direção-Geral de Segurança, preciso de saber porque é que estás aqui.

— Muito bem — respondeu Fournier num tom descontraído. Expirou uma nuvem de fumo e virou-se para a cama. — Fazes alguma ideia de quem seja aquele?

De súbito, ela ficou muito zangada com o agente que enviara à receção para descobrir a resposta àquela precisa pergunta. Endireitou-se um pouco e disse:

— Não, não faço.

A resposta provocou um sorriso a Fournier.

— Bem, vejamos. — Recuou para os cadáveres e disse: — Quatro homens com armas automáticas com silenciadores, todos mortos. — Apontando para a cama, continuou: — Um homem com excesso de peso na casa dos sessenta anos e uma jovem magra com menos de metade da idade dele... muito provavelmente, uma prostituta.

Francine mostrou-se entediada. Aquelas conclusões eram óbvias. Sentia-se tentada a dizer isso mesmo, mas sabia que, quanto menos dissesse, melhor. Fournier tinha o seu palco e precisava de fazer aquele pequeno joguinho para a diminuir em frente aos seus agentes.

— O nome do homem? — perguntou-lhe, num tom cortante.

— Já lá vamos — disse ele, erguendo um dedo à laia de aviso. — Seis cadáveres. Não é pouco.

Francine não se deu ao trabalho de o corrigir e de o informar acerca dos outros três. Oferecer-lhe-ia tão pouca informação quanto possível, na esperança de que o espião da Direção-Geral de Segurança obtivesse o que procurava e se fosse embora.

À medida que continuava a analisar o óbvio, os olhos de Fournier mantinham-se ocupados a reparar nos aspetos mais interessantes da cena do crime. Havia certas incongruências que Francine e a equipa acabariam por notar, mas, por ora, como se costumava dizer, era difícil distinguir as árvores no meio da floresta. Imaginou-se no quarto quando tudo aquilo tivera lugar. Olhou para o espelho partido da cabeceira da cama, para a parede de gesso com buracos de balas e para os dois corpos na cama, cravados de balas. O chão estava cheio de invólucros de latão. Tinham sido centenas de disparos. Que o assassino tivesse escapado era um milagre. Fournier olhou para o homem mais próximo de si no chão e tomou nota da localização precisa do buraco de bala na testa, e não conseguiu deixar de assentir com a cabeça, por respeito para com o homem cuja pontaria se mantivera tão estável sob tamanha fuzilada.

— O nome do homem? — perguntou Francine de novo.

Fournier aproximou-se da cama. Olhou para o homem pesado, reparou em mais de uma dúzia de feridas superficiais de entrada de balas, e depois os seus olhos encontraram o ponto quase perfeito mesmo acima do nariz do ministro. Aquela bala teria vindo do assassino que buscavam. Inspirou profundamente e acenou com o cigarro na direção da cama.

— Aquele, minha querida, é Tarek al-Magariha.

Francine esperou que ele explicasse mais. O momento longo de espera prolongou-se e, quando se fartou, perguntou:

— E quem é Tarek al-Magariha?

— É o ministro do petróleo da Líbia, e suponho que estes homens sejam, ou melhor, fossem, os guarda-costas dele.

Francine fechou os olhos por um segundo e cerrou os punhos. Gângsteres sérvios e russos a matarem-se uns aos outros era uma coisa — não era bom, mas, em certa medida, a boa gente de Paris não se importava desde que se fossem matando uns aos outros. Um diplomata estrangeiro, porém, isso já era uma balbúrdia completamente diferente. Um diplomata líbio, pior ainda, e o ministro do petróleo era o pior possível. Não sabia o número ao certo, mas estava ciente de que o seu país recebia uma grande parte das suas importações petrolíferas desse país do outro lado do Mediterrâneo.

— Fazes ideia de quem possa tê-lo assassinado? — Deu por si a fazer a pergunta antes de conseguir deter-se e arrependeu-se de imediato, pois sabia que Fournier era incapaz de lhe dizer a verdade.

— De momento não faço ideia, mas vamos investigar os suspeitos do costume.

— Os suspeitos do costume?

— Os Israelitas... e outros.

Fournier sabia muito mais do que dava a entender, mas não ia dizê-lo a alguém da Polícia Nacional que Al-Magariha passara a maior parte da sua carreira a trabalhar para os brutais serviços secretos da Líbia, o Mukhabarat el-Jamahiriya.

Francine fitou-o com desconfiança. Todos os instintos lhe diziam que ele estava a reter informação.

— Como é que soubeste tão depressa?

— Tão depressa?

— Que ele tinha sido assassinado.

Fournier dirigiu-lhe um sorriso orgulhoso.

— Tenho as minhas fontes.

Francine perguntou-se se a DGSE tivera o líbio sob vigilância. Ia fazer essa pergunta, mas reconsiderou. Ele nunca lhe daria uma resposta honesta. Ela transmitiria as suas suspeitas aos seus superiores e estes poderiam pôr-se às marradas com os superiores da DGSE, a ver quem ganhava.

— Continuo um pouco confusa quanto ao motivo para estares aqui.

— Temos um diplomata estrangeiro morto, minha querida. Seria de pensar que compreendesses a necessidade do envolvimento da Direção-Geral.

Francine não respondeu.

Fournier encolheu os ombros.

— Bem, os meus superiores querem que me mantenha muito atento à tua investigação, pelo que vamos ver-nos bastante nos próximos tempos.

Os olhos castanho-claros de Francine estavam fixos no pedaço de cinza com mais de dois centímetros a pender precariamente da ponta do cigarro de Fournier.

— Isto é a cena de um crime. Não me importa quanta influência julgas ter, se essa cinza cai na carpete, vou mandar-te algemar e retirar daqui.

— Desculpa — disse Fournier, de olhos arregalados, como se, subitamente, se tivesse dado conta do seu erro. Com uma mão debaixo da cinza, avançou até à varanda. A luz que vinha do céu matinal deixava-o ver os buracos de bala na cortina. Abriu caminho até às cortinas e passou para a pequena varanda. Sacudiu a cinza para o lado de fora e seguiu-lhe a queda até ao passeio. As barricadas da polícia estavam colocadas e alguns membros da comunicação social e mirones curiosos começavam a acumular-se. A notícia continuaria a espalhar-se e, a meio da manhã, aquele lugar seria um circo. Virou a cabeça na direção do telhado e tomou nota do facto de o seu homem ter retirado a corda antes de a polícia se aperceber de que estava ali. Não sabia ao certo que mais poderia fazer para ajudar a turvar as águas, mas o que sabia era que precisava de sair dali antes que começassem a aparecer demasiadas câmaras.

Voltou a entrar na suíte de hotel e começou a passar por entre os cadáveres.

— Francine, entrarei em contacto. Se precisares de mim, sabes onde me encontrar.

Francine virou-se da análise de vários invólucros de balas junto à cama. Sentiu-se bastante aliviada ao vê-lo sair do quarto, mas, ao fim de uns segundos, começou a perguntar-se porque seria que ele se ia embora tão depressa. Algo não batia certo e, nesse momento, teve a confirmação final de que Paul Fournier seria uma grande complicação num caso já de si complicado.