Paris, França
Rapp tinha flutuado pela corrente abaixo durante quase duas horas. O Sena deslizava pelo coração de Paris como uma serpente enrolada. Era impossível avaliar ao certo quanto teria viajado, mas calculava que tivessem sido cerca de três quilómetros. A primeira luz surgiu mais ou menos ao mesmo tempo que ele sentia os efeitos da hipotermia a instalar-se. De certa forma, a água fria era uma bênção. Tinha ajudado a abrandar-lhe o fluxo sanguíneo e a aliviar qualquer hemorragia interna que tivesse no ombro. No entanto, não queria estar no rio quando o sol nascesse e receava perder os sentidos se ficasse muito mais tempo dentro de água. Quando o rio o fez descrever um grande S, viu um parque industrial com tanques de petróleo. Sendo tão cedo num sábado de manhã, não era provável que houvesse muitos trabalhadores ali, talvez nem houvesse nenhum. Decidiu que seria um bom sítio para voltar para terra.
Nadou até ao pontão irregular de madeira e encontrou uma escada escorregadia. Agarrou-se a ela por um segundo, ignorando as ratazanas que ouvia a guinchar debaixo dos recessos do pontão. O seu braço esquerdo ficou caído, embora Rapp constatasse que pelo menos conseguia mexer os dedos e formar um punho. Usando a mão direita, suportou-se e depois encontrou o primeiro degrau com os pés. De músculos hirtos, subiu pela escada até ter uma visão nítida da área. O parque devia ter entre 120 e 150 metros de largura. Estacionados ao fundo do pontão baixo estavam uma empilhadora, três camiões-cisterna e uma pá carregadora. Atrás dos veículos havia um velho armazém de tijolo que ocupava toda a largura do parque. O perímetro estava delimitado por uma vedação de três metros de altura, com arame farpado por cima — tudo coberto de videiras e hera.
Procurou faróis e sinais de guardas-noturnos, ou, pior, um cão. Ainda tinha a Beretta com silenciador. Tinha debatido livrar-se dela a intervalos regulares durante o tempo que passara no rio. Não era o tipo de coisa com que se quisesse ser apanhado, mas uma arma com silenciador também era uma coisa que ele aprendera a não descartar negligentemente. A ideia de um cão de guarda raivoso algures à espreita fê-lo dar-se por satisfeito por ter decidido ficar com a arma. Virou-se e olhou para o outro lado do rio. Havia mais armazéns e, tanto quanto lhe era dado a ver, não havia luzes, sons, ou alguém por ali. Os parisienses não eram propriamente conhecidos pela sua ética de trabalho e ele duvidava de que alguém fosse aparecer muito cedo a um fim de semana, ou sequer de que alguém aparecesse de todo.
A tentar libertar-se da rigidez dos membros, subiu para o pontão e começou uma caminhada lenta e ensopada na direção do armazém. Caminhou tão direito e com tanta determinação quanto era capaz. Ignorou a dor pulsante no ombro e concentrou-se nos olhos e nos ouvidos. Não fazia qualquer sentido agachar-se e esgueirar-se naquele espaço aberto. Isso só aguçaria a curiosidade de alguém que o visse, podendo levá-lo a chamar a polícia.
Chegou à esquina do edifício e amparou-se. Olhando de novo na direção do rio, tornou a perscrutar a margem oposta, para ver se alguém andava por ali. Satisfeito, avançou, agudamente ciente de que, se não encontrasse calor e comida, poderia perder os sentidos. A temperatura do ar andava à volta dos dez graus. Não era um gelo, mas, ao fim de umas horas na água fria, a sua força estava a ser posta à prova. As primeiras entradas não passavam de grandes portadas para veículos. Mais adiante, porém, encontrou uma porta normal e inspecionou a ombreira. Não havia qualquer sinal de fios de alarme e a porta parecia suficientemente frágil para ser arrombada, mas ele não queria fazer tanto barulho, pelo que sacou da faca. Inserindo a lâmina forjada no espaço entre a ombreira e a porta, encontrou o trinco e foi mexendo a faca para cima e para baixo e depois para trás e para a frente até a ter no sítio certo, após o que bastou apoiar o ombro bom na porta e empurrá-la para que se abrisse.
Entrou no edifício e fechou a porta. Em vez de acender as luzes, sacou da lanterna e inspecionou a porta, em busca de fios. Satisfeito por não ter acionado um alarme, virou a atenção para o grande espaço do armazém à sua direita. Todo o lugar fedia a combustível. Manteve a luz apontada para o chão, com o brilho vermelho a iluminar a primeira fileira de bidões de petróleo. A cerca de seis metros para a esquerda, estava outra porta. Rapp avançou e verificou que estava destrancada. Passou para um corredor e fechou a porta atrás de si. Havia cinco portas à esquerda e apenas duas à direita. A primeira porta à esquerda estava trancada, bem como a segunda, mas a primeira à direita não. Empurrando-a, Rapp descobriu uma fileira de cacifos, uma casa de banho e dois chuveiros. A ideia de um duche quente provocou-lhe um sorriso e já ia para os chuveiros quando se deteve. Antes disso, tinha de inspecionar o resto do edifício.
Saiu do balneário, verificando o resto das portas à esquerda. Todas estavam trancadas, mas a última à direita não tinha porta de todo — era uma copa. Rapp começou por investigar o átrio e depois voltou à copa suja. Abriu o frigorífico e encontrou uma imundície de bolor e comida velha. Havia anos que não o limpavam. Fechou a porta, nauseado, e virou-se para a máquina de venda automática. Ia partir o vidro, mas conteve-se — o melhor era deixar o mínimo possível de vestígios. Encontrou umas quantas notas molhadas e meteu-as na máquina. Depois de comprar vários chocolates, voltou para o balneário e trancou a porta. Depois foi diretamente para o chuveiro, com roupa e tudo, e deixou que a água quente começasse a limpá-lo do rio sujo e a restaurar-lhe o calor. Comeu os chocolates e, quando acabou, começou a despir as roupas, uma de cada vez.
Ao olhar para o ombro, ficou dececionado. A ferida de saída não era maior que uma moeda — a cola incolor que tinha inserido no ferimento ficara com um tom rosado por causa do sangue e formara uma concha dura que parecia pele esticada e queimada. Estava a formar-se um hematoma à volta da ferida. Tendo em conta quão mal podia ter corrido, sentiu-se muito afortunado. Se a bala lhe tivesse atingido uma artéria, já teria morrido havia muito. Era capaz de haver alguma hemorragia interna, mas provavelmente estaria estancada pela mistela que ele injetara na ferida. Estava a lidar com uma ferida em tecidos moles que, embora não fosse fatal, doía como o caraças. Contudo, a dor era algo que ele já tinha aprendido a aguentar.
Rapp continuou a lavar o cheiro do rio da pele e do cabelo, deixando que a água quente lhe devolvesse vida aos músculos. Tornou a enxaguar as roupas, espremeu-as para as secar e estendeu-as em cima do banco. Estava completamente nu, para além do relógio de mergulho e da pistola extra presa ao tornozelo esquerdo. Flutuar lentamente rio abaixo tinha-lhe dado muito tempo para ponderar o que raio correra mal. Ainda não percebia. Como pudera a equipa de batedores não dar por um destacamento de cinco homens? Como pudera ele não ter dado por eles? Observara os movimentos de Tarek durante dois dias e nem por uma vez vira um único guarda-costas a acompanhá-lo, quanto mais cinco homens fortemente armados. Tinha seguido as regras todas e mais algumas. Seguira-o dando-lhe espaço, e mesmo no seu encalço, observara-o de longe e esperara pacientemente para ver se havia rastreadores ou ativos estrangeiros associados ao líbio. Não havia. Rapp não vira uma única pista, mas, ainda assim, aquela sensação de que algo não estava bem não o largava. Lentamente, começou a ocorrer-lhe que alguém lhe teria preparado uma armadilha e que ele tinha caído nela que nem um patinho. O facto de ter conseguido sair vivo daquele quarto, com todos aqueles projéteis a voar, provocou-lhe um arrepio na coluna. Que sorte só ter sido atingido uma vez.
Ficou mais uns minutos debaixo da água a correr e depois sentiu que tinha de seguir caminho. Precisava de encontrar algum lugar seguro onde pudesse descansar e tentar resolver tudo aquilo. Havia uma casa secreta no bairro de Montparnasse e protocolos que ele devia seguir, mas tudo isso tinha mudado. Quão bem conheceria realmente a sua supervisora e as outras pessoas da equipa? A quantas pessoas prestariam contas, e seriam todas de confiança? Até ter algumas respostas, os seus instintos de sobrevivência diziam-lhe que fizesse aquilo para que fora treinado — operar por conta própria e escapar ao radar fosse de quem fosse, incluindo o da CIA.
Saiu do duche e começou a verificar os cacifos. Estavam todos trancados. Recuperou a Beretta com silenciador e disparou contra o primeiro cadeado de combinação. O cadeado abriu-se e ele pousou-o no banco, ao lado das suas roupas. Foi recompensado com um trapo sujo e não muito mais. Disparou contra outros dois cadeados e conseguiu uma toalha decente. Secou-se e depois começou a procurar algumas roupas secas. Quando acabou de pilhar os cacifos, tinha um macacão cinzento, um par de botas de trabalho, um casaco de lona azul puída e um gorro de lã preta.
Prendeu todas as armas e equipamento às roupas novas e depois regressou à copa. Depois de mais alguma busca, encontrou um saco de papel para as roupas molhadas e um pacote pré-preparado de ramen. Juntou água ao preparado, meteu-o no micro-ondas durante 90 segundos e depois devorou os noodles. Depois de enfiar as roupas e os cadeados rebentados no saco, começou a avançar para a frente do edifício, sentindo-se muito melhor do que quando tinha chegado.
Ao espreitar para o pátio, ficou aliviado ao ver que não precisaria de lidar com um guarda — só um gradeamento e arame farpado. Verificou a porta, em busca de fios de alarme e deixou o edifício, fechando a porta depois de sair. Atravessou descontraidamente o pátio até ao portão, onde sacou mais uma vez da Beretta com silenciador. Dois disparos resolveram o problema do cadeado. Enfiou-o no grande bolso do casaco e em seguida abriu e fechou o portão. Atravessou a rua até ao passeio e começou a afastar-se do sol nascente. A sua mente focava-se de novo na operação e ele recomeçou a perguntar-se quão bem conhecia as pessoas para quem trabalhava. A resposta era que não as conhecia e que, mesmo com a idade relativamente jovem de vinte e cinco anos, era capaz de distinguir disfunção, coisa que havia a rodos no seu grupo. Decidiu que a casa secreta estava fora de questão.
Três quarteirões mais adiante, deu por si a atravessar o rio com um estado de espírito soturno e cauteloso. A meio da ponte, começou a atirar discretamente os cadeados rebentados para o lado e para o rio. Não queria atirar a Beretta, mas sabia que tinha de o fazer. Ainda tinha a pistola extra, na qual o silenciador também encaixaria, mas perderia a capacidade da Beretta 92F. Com as luvas postas, tirou a arma do coldre, desatarraxou o silenciador e enfiou-o no grande bolso do casaco. Com a mão esquerda quase incapacitada, ejetou o carregador, atirou-o para o lado e começou a desmanchar a arma, livrando-se de peças à medida que caminhava. Quando chegou à outra margem, estava concentrado em Irene Kennedy — a sua supervisora. Esta era necessariamente quem mais sabia acerca dele e dos pormenores daquela missão. As suas ordens vinham dela. Se alguém se encontrava numa posição em que pudesse armar-lhe uma cilada, era ela.
Pensou nos seus protocolos. Falhar um controlo era um pecado capital. Em Washington, todos começariam a trepar pelas paredes se ele não telefonasse rapidamente. Juntando-se isso à carnificina nada cirúrgica no hotel, e haveria algumas pessoas muito irritadas. Já ouvia Stan Hurley a praguejar em altos berros. De súbito, apercebeu-se de como aquilo se desenrolaria. Hurley iria culpá-lo por dar cabo da missão. Culpá-lo-ia por não ter dado pelo destacamento de segurança e o preço a pagar seria terrível. A decisão nesse momento foi fácil. Ter sido atingido era toda a justificação de que precisava para explicar por que não tinha dado notícias, pelo menos para Washington, mas havia outra pessoa que precisava de avisar. Não queria desapontá-la e, se não lhe ligasse, faria mais do que isso. Ela preocupava-se consigo em circunstâncias normais, e aquilo estava longe de ser normal. Ela sabia que algo se passava e precisava de sair de França durante algum tempo. Era por isso que deviam encontrar-se em Bruxelas à uma da tarde. O encontro estava mais do que confirmado. Se ele não aparecesse, ela poderia fazer alguma estupidez, como telefonar a Stan Hurley.
Ninguém sabia que eles andavam e, se ela ligasse a Hurley, o homem perderia a cabeça. A meio de um passo, uma pontada de dor arrepanhou-lhe o ombro e desceu-lhe pelo braço. Rapp parou de andar, parou de respirar e, com o braço direito, agarrou-se ao poste de um candeeiro de rua para se amparar. Apesar do frio, gotas de suor cobriram-lhe a testa. Uma vaga de náusea atingiu-o e, por um segundo, achou que ia vomitar. Passaram-se dez segundos, depois vinte, trinta e, por fim, a dor começou a recuar como a maré a baixar. Abandonou-lhe primeiro os dedos e depois foi deixando lentamente o braço. Rapp inspirou profundamente e depois recomeçou a caminhar. Precisava de encontrar uma farmácia e depois um hotel. Tinha alguns em mente, o tipo de sítios onde passaria despercebido entre os turistas. E teria de telefonar a Greta. Tentar limpar aquela ferida sozinho não seria fácil. Ela estava longe de se melindrar com o que ele fazia. Na verdade, isso excitava-a, e a alternativa tinha demasiada incerteza. Se ele não aparecesse, ela poderia causar alguns problemas sérios. Tinha de encontrar uma cabina telefónica e ligar-lhe. Com alguma sorte, talvez a apanhasse até antes de ela sair de Genebra. Além disso, sentia-lhe a falta, coisa que não queria reconhecer. Só se tinham passado três semanas desde que se tinham visto e ele dera por si a contar os dias até se reunirem na Bélgica como um rapazinho apaixonado.
Riu interiormente enquanto avançava pela rua deserta. Caminhava sobre uma linha muito fina. A lista de coisas que ocultara aos seus supervisores crescera bastante e ele sabia que isso seria tomado como prova de que não era digno de confiança. No entanto, também sabia mais do que eles julgavam. Não era o único a infringir as regras.