Washington, D. C., EUA
O secretário de Estado Franklin Wilson estava a usar uma camisa branca debaixo de uma camisola de malha amarela. Com setenta e um anos e cabelo grisalho a rarear, parecia mesmo um estadista idoso e sábio. Advogado de sucesso, servira três administrações da Casa Branca; primeiro como chefe do Estado Maior, depois como secretário da Defesa e agora como secretário de Estado. O dinheiro vinha da família da mulher — um negócio lucrativo de peças de automóvel, em Ohio. Já a reputação era toda sua. Completara o curso na Faculdade de Direito de Harvard com uma das melhores médias da turma e entrara para um dos melhores escritórios de advogados de Washington. Entre as suas missões de serviço público, regressava ao escritório, do qual passara a ser sócio de pleno direito. Tinha sido uma bela aventura. Era um dos titãs do District — um homem respeitado por ambos os partidos e pela comunicação social.
Apesar de todos os seus feitos, estava de mau humor. A casa parecia-lhe solitária naquela tarde outonal de sábado. Wilson instruíra o pessoal a tirar umas horas para que aquela reunião fosse o mais privada possível. Mas a verdadeira razão para a casa lhe parecer solitária era que a mulher, com quem passara quarenta e sete anos casado, desaparecera — não física, mas mentalmente. Recebera um diagnóstico de doença de Alzheimer apenas dois anos antes e, embora todos tivessem tido esperança de que a doença avançasse devagar, ao invés destruíra-lhe a mente a um ritmo veloz. No espaço de um ano, ela esquecera os filhos e os netos, e já mal se lembrava do marido. Seis meses depois, morrera para o mundo. Um mês antes, Franklin Wilson fizera o que jurara jamais fazer.
Instigado por amigos, pelo pessoal e pelos filhos, internara a mulher num lar onde lhe seriam prestados cuidados vinte e quatro horas por dia. Essa era a justificação, fosse como fosse, mas Wilson não conseguia livrar-se da sensação de que a abandonara. Isso atormentava-o todos os dias. Aquele belíssimo casarão de Georgetown onde tinham sido anfitriões de tantas festas com a nata de Washington tornara-se um mausoléu. Recusava-se a vendê-lo, considerando que isso seria outra traição que lhe faria e à grande senhora que ela fora antes de a doença insidiosa ter começado a corroer a essência do que a tornava ela. Wilson sabia que perdera algum foco, mas as exigências do trabalho mantinham-no atarefado e proporcionavam-lhe uma distração bem-vinda da sorte trágica que lhe coubera.
Quando a campainha soou, sentiu o humor a melhorar. Havia assuntos importantes a tratar. Saltou de detrás da secretária, avançou pelo átrio de mármore e abriu a porta da casa de cinco andares. Saudou o convidado com entusiasmo:
— Paul, obrigado por ter vindo com tão pouca antecedência.
Paul Cooke, diretor-adjunto da CIA, correspondeu ao sorriso e apertou a mão do secretário.
— O prazer é todo meu, Sr. Secretário. Gosto sempre de ter uma desculpa para passar algum tempo em Georgetown numa tarde de outono.
— Bem que o percebo, e chame-me Franklin quando não estivermos nos nossos postos oficiais — disse Wilson, fechando a porta e levando o visitante pelo corredor. — Foi por isso que comprei esta casa, sabe. Para mim, os subúrbios não servem. Demasiado calmos. — Wilson abriu uma porta e apontou para os degraus. — Gosta de jogar bilhar?
Cooke encolheu os ombros.
— Haverá algum homem de Harvard que não goste?
Wilson deu-lhe uma palmada nas costas.
— Bom homem. É da turma de 1965, certo?
— Sim.
Depois de terem descido, Wilson ligou a aparelhagem e girou alguns botões atrás do bar. Na lareira já ardia um fogo quente e estava a dar um jogo de futebol americano universitário na televisão. Wilson não perdeu tempo a perguntar ao convidado o que queria beber. Agarrou em dois copos e colocou três cubos de gelo em cada um antes de os encher até meio com um uísque escocês single malt. Entregou um copo a Cooke e disse-lhe:
— Espero que não se importe de estar aqui em baixo, mas instalei certos aparelhos nesta sala que permitem que seja mais fácil discutirmos assuntos de natureza delicada.
Dado que trabalhava na CIA, Cooke compreendia perfeitamente. Perguntou-se a quem teria Wilson recorrido e quando teriam sido instalados tais equipamentos. Os dispositivos de escuta e as respetivas contramedidas estavam constantemente a mudar.
Wilson ergueu o copo.
— A Harvard. A melhor instituição do país.
Cooke sorriu.
— A Harvard.
Wilson foi fazendo conversa de circunstância enquanto dava tacadas e foi mantendo a conversa ligeira durante todo o primeiro jogo. Depois de vencer Cooke, lançou as bolas para o segundo jogo e passou a conversa para temas mais sérios.
— Paul, posso fazer-lhe uma pergunta?
— Claro.
— Isto é sério, Paul... de um homem de Harvard para outro.
Wilson fitou o homem do outro lado da mesa durante um segundo, deixando que as palavras fossem assimiladas. A insinuação era simples. Ambos somos cavalheiros. Não mentimos um ao outro.
Cooke inclinou a cabeça num gesto respeitoso, assinalando que compreendia.
— Confia em Thomas Stansfield?
Cooke estava a bebericar o seu uísque, o que o ajudou a esconder o sorriso. Depressa assumiu uma expressão séria, comentando:
— Que pergunta interessante.
Wilson sabia que teria de ser ele a orientar aquela conversa.
— Ouça, conheço o Thomas há cerca de trinta anos. Durante a Guerra Fria, não havia ninguém melhor, mas a Guerra Fria acabou e eu receio bem que ele esteja a deixar-se ficar para trás.
Cooke sabia que havia alguma razão para o secretário querer vê-lo, mas não esperava que fosse por causa de Thomas Stansfield. Assentiu com a cabeça, sem se comprometer.
— Confia nele? — tornou Wilson a perguntar.
Cooke permitiu-se rir abertamente.
— Se o conhecesse como diz conhecer, não se daria ao trabalho de fazer essa pergunta. Thomas Stansfield nasceu para ser espião e é o homem mais sigiloso que alguma vez conheci.
Wilson apontou o copo a Cooke e esticou o indicador.
— É exatamente a isso que me refiro.
Com cuidado, Cooke acrescentou:
— É uma coisa que faz parte dos ossos do ofício.
— Até certo ponto, mas ele não é rei absoluto. Continua a ter de dar satisfações a certas pessoas. — Wilson escrutinou o rosto do homem mais novo, em busca de um sinal de que pudesse ter ali um aliado. Até então, nada. — Ele nunca foi muito bom a lidar com a supervisão e receio bem que, com a vaga de diretor por preencher, se tenha tornado ainda pior.
O diretor anterior reformara-se inesperadamente um mês antes por motivos de saúde e o presidente ainda não nomeara um substituto, pelo que, entretanto, era Cooke quem tomava conta da loja.
— Ele tende a gerir o seu próprio território e não aceita muito bem que alguém meta o nariz nos seus assuntos.
Agora já estamos a chegar a algum lugar, pensou Wilson. Tornou a encher os copos e continuou a levar a conversa na direção que lhe parecia melhor para os seus objetivos. Tocava em Stansfield e depois passava para boatos de Washington ou alguma história engraçada acerca de quando, juntamente com o presidente, tinha pregado uma partida ao pobre vice-presidente. Mas não deixava de regressar a Stansfield. Foi a meio do quinto jogo de bilhar e da terceira bebida que viu a sua oportunidade.
— Paul, preciso de lhe confessar uma coisa.
Cooke apoiou-se ao taco de bilhar, ciente de que iam finalmente chegar ao cerne da questão.
— Está na lista restrita do presidente para diretor.
Isso foi uma surpresa para Cooke. As suas fontes diziam-lhe que o presidente estava determinado a nomear alguém que não tivesse sido contaminado pela Agência.
— A sério?
— Sim... e quer saber como acabou nessa lista?
Cooke assentiu com a cabeça.
— Fui eu que o pus lá. Disse ao presidente que é um homem em quem podemos confiar para que as coisas se façam.
— Obrigado, senhor.
Cooke levantou a guarda. Mal se conheciam. Se o recomendava ao presidente para o lugar mais alto em Langley, Wilson devia querer algo em troca.
— Sabe quem mais consta dessa lista?
— Ouvi alguns nomes — disse Cooke com honestidade. A fábrica de rumores de Washington lançava umas quantas possibilidades novas todas as semanas.
— O Thomas Stansfield está nessa lista — disse Wilson, abanando a cabeça. — Há um grupo de senadores muito influentes que estão a fazer pressão para que seja ele. E refiro-me a fortes pressões.
Cooke assentiu com a cabeça. Stansfield era bem relacionado e, além disso, sabia onde estavam todos os esqueletos. Cooke nunca o admitiria, mas sempre considerara que o diretor de Operações era um adversário em potência e que não se tratava de alguém a ser levado com ligeireza.
— A última coisa de que precisamos é de um cowboy da Guerra Fria ao comando de Langley — disse Wilson com verdadeiro vigor. — É por isso que estou a recomendá-lo a si. Conhece o sítio, subiu pela hierarquia e já tem o respeito das tropas na linha da frente. O que preciso de saber é o seguinte: consegue enfrentar o Stansfield?
Não havia dúvida de que Cooke conhecia o sítio. Trabalhava lá havia quase trinta anos. Tinha subido pelo lado administrativo e sabia manter a disciplina. Quanto ao respeito das tropas nas linhas da frente, isso era esticar um pouco a corda, mas decerto tinha o respeito da maioria dos funcionários que trabalhavam no campus de Langley. Já em relação a enfrentar Thomas Stansfield, isso era uma pergunta complicada. Não sabia ao certo se haveria alguém realmente capaz de o fazer. Os seus contactos chegavam bem longe e a sua capacidade de ver três passos além dos seus inimigos sempre o tornara um oponente formidável. Os Russos até o respeitavam, o que dizia imenso. Stansfield via ângulos e oportunidades onde outros viam caos, perigo e um problema que não valia a pena atacar. Porém, Cooke também tinha umas quantas surpresas.
Bebeu um trago de uísque e decidiu arriscar tudo.
— Posso enfrentar o Thomas. Não será fácil, mas sou capaz.
— Enfrentar e travá-lo são duas coisas diferentes. Preciso que controle o homem. Preciso que me prometa que o fará jogar de acordo com as regras. Há algum tempo que tenho vindo a avisar o presidente de que o Stansfield é uma bomba-relógio. Mais cedo ou mais tarde, uma das suas operaçõezinhas vai explodir-nos na cara e ele vai embaraçar o presidente até mais não. Acabaremos com audiências da comissão a arrastarem-se durante anos. Já é suficientemente complicado ser-se eleito presidente, mas é uma complicação infernal ser-se reeleito, mais ainda quando se é perseguido por um escândalo.
Cooke assentiu com a cabeça. Já tinha assistido a situações dessas.
— Compreendo.
— Então podemos contar consigo?
Cooke não tinha a certeza, mas havia de arranjar alguma coisa.
— Bom — Wilson ergueu o copo para brindar com o de Cooke —, vou dizer ao presidente que é o nosso homem.
Cooke tomou um gole e pensou: Assim, sem mais nem menos, passo a ser o novo diretor da CIA. Era o sonho de uma vida.
— Há uma coisa que queremos que investigue primeiro — disse Wilson.
O copo ainda não lhe tinha deixado os lábios e Cooke pensou: Cá vem o senão.
— A merda que se passou ontem à noite em Paris.
— Sim — disse Cooke, disfarçando a surpresa que sentia perante a nova direção da conversa.
— O presidente está furioso. Falou diretamente com o primeiro-ministro israelita hoje de manhã e ele nega qualquer envolvimento.
— Negam sempre. É assim que funciona.
— Pois... bem, desta vez é diferente. Há certas coisas que não tenho a liberdade de discutir, mas pode crer que o presidente acredita que a Mossad não teve mão nisto.
O rosto de Cooke não demonstrava qualquer emoção.
— Gostava de poder dizer mais, mas não posso. Vai simplesmente ter de confiar em mim. Consegue fazer isso?
Cooke não tinha a certeza, mas queria ver onde aquilo chegaria.
— Confio em si, Franklin.
— Bom — Wilson levou o seu taco e encostou-o à parede —, aqui é onde as coisas começam a ficar um pouco arriscadas. — Sem saber ao certo como dar o passo seguinte, decidiu simplesmente desembuchar. — Eu acho que o Thomas Stansfield está envolvido.
— Tem alguma prova disso?
— Nada em concreto. Só umas coisas que fui apanhando. O que interessa é que ele tem agido à margem da supervisão do Congresso há anos, e agora acho que meteu mesmo a pata na poça.
— O Thomas Stansfield é uma figura de peso. Se quer que o controle, vai ter de me dar mais do que isso.
— É o que farei, mas preciso que faça uma coisa primeiro — disse Wilson, contornando o pedido. — Lembra-se de um filho da puta tramado chamado Stan Hurley?
Não havia dúvida de que Cooke se lembrava, mas manteve a fachada de calma.
— Sei quem é.
— Parecia-me que sim. O sacana devia estar reformado, mas tipos como o Hurley não se reformam, continuam a meter-se nos assuntos nas sombras até morrerem.
Sem oferecer qualquer espécie de reação, Cooke disse simplesmente:
— Temos muitos operacionais reformados. Nem todos se mantêm tão ativos como o Stan Hurley.
— Então está a par do que ele tem andado a tramar?
— Ouço rumores, mas não passam disso.
— Bem — disse Wilson, assentindo vigorosamente com a cabeça —, pode acreditar pelo menos em metade deles. O homem é um esquizofrénico paranoico e um sádico de primeira apanha.
— Era muito eficaz, nos seus tempos. Pelo menos, é o que se diz.
— A expressão a reter aí é «nos seus tempos». Isto agora é um mundo novo. Já não há daquela espionagem de Check Point Charlie, Berlim, em que precisamos do nosso próprio filho da mãe implacável para fazer frente ao filho da mãe implacável dos Russos. O mundo está a mudar, Paul. Os satélites e a informação deitam muros abaixo. O que precisamos é de informações e diplomacia. O coração e a mente são essenciais. O presidente quer alguém em Langley em quem possa confiar. Alguém que não só controle o Stansfield, mas também se assegure de que brutamontes como o Stan Hurley ficam realmente na reforma. Consegue fazer isso por nós?
Cooke acolhia de bom grado o desafio. Reunindo toda a confiança que tinha e mais ainda, disse:
— Sou o vosso homem.
— Ótimo. — Wilson deu-lhe uma palmada nas costas. — Investigue a fundo o que raio se passou em Paris ontem à noite e abafe-o. Não informe ninguém, além de mim. Não queremos que a CIA se ponha a lavar a roupa suja em público e a envergonhar o presidente.
— Nem o FBI? — perguntou Cooke, fingindo-se surpreendido.
— Se pudermos evitar envolvê-los, ótimo. Se tivermos de os chamar, será o presidente a decidi-lo. — Wilson não ia dizer-lhe que estava a improvisar. Parte do seu trabalho consistia em isolar o presidente de escândalos, e era isso que ele estava a fazer. — Concentre-se em Stansfield e Hurley. Descubra o que têm estado a fazer. Traga-me essa informação e logo lidamos com eles. E depois desfrutará de uma das nomeações mais rápidas que esta cidade alguma vez viu.
Um sorriso largo espraiou-se no rosto de Cooke. Não nascia de mera confiança, nem da ideia de ocupar o escritório da esquina no sétimo andar do Edifício do Velho Quartel-General. Já havia bastante tempo que vinha a compilar um ficheiro bem grosso acerca de Stansfield e do seu velho amigo Stan Hurley.