Quando Rapp se levantou, o ombro disse-lhe logo que não estava satisfeito. Estacou entre a cama e a casa de banho, sem saber se deveria insistir ou deitar-se de novo. Contudo, a dor atenuou-se mais depressa do que no dia anterior. Ou ele estava a habituar-se, ou aquilo estava a melhorar. Passou para a pequena casa de banho e viu o ombro ao espelho. Não estava com bom aspeto. Um hematoma vermelho-vivo e roxo espraiava-se para lá da ligadura branca em todas as direções. Mas não lhe descia para o braço, o que ele interpretou como um sinal positivo. Depois lembrou-se de que tinha passado muito tempo deitado de barriga para cima.
Virando-se de lado, girou o pescoço rígido o mais que podia e viu o reflexo das costas no espelho. Em vez de vermelho-vivo, o hematoma estava roxo e quase negro nalguns pontos. Fez um esgar e perguntou-se se seria possível que a bala lhe tivesse cortado a artéria torácica lateral. Abanou a cabeça, descartando tal hipótese. Se esse grande canal tivesse sido atingido, ele já se teria esvaído em sangue. Além disso, essa artéria principal era bastante profunda. Quando ligara a ferida no dia anterior, esforçara-se ao máximo por alinhar os orifícios de entrada e saída. A bala tinha penetrado perto do meio do seu ombro esquerdo e saíra mais perto da lateral. O ângulo deveria tê-la mantido longe do terminal de artérias e veias que transportavam sangue de e para o braço esquerdo. Era mais provável que uma boa quantidade de capilares e muito tecido tivessem ficado danificados. A hemorragia interna devia ter parado e o sangue acumulara-se enquanto ele dormia. Pelo menos, era o que esperava.
Fitou-se ao espelho. Não fez qualquer tentativa de se iludir. Os olhos negros que o fitavam eram os de um assassino. Ao longe, ouviu mais sinos de igreja. Ainda ponderou ir à missa, mas depois, com uma tristeza pesada, disse a si mesmo que Deus não o quereria na Sua casa. Não matarás era um dos mandamentos importantes. Sentia-se a ir por um daqueles corredores escuros de introspeção que levavam a pena, recriminação e dúvida. Quando perdera a namorada e 34 colegas da Universidade de Syracuse no ataque terrorista de Lockerbie, deixara-se deambular algumas vezes por aqueles corredores onde o sol não brilhava. Depois de muitas lágrimas e de muito tempo a sentir pena de si mesmo, começara a reconhecer que poderia perder-se nesses corredores durante muito tempo se não praticasse alguma disciplina mental. Os corredores sombrios da sua mente estavam cheios de dor e fraqueza e não ofereciam quaisquer respostas.
Dirigiu um sorriso demoníaco ao seu reflexo ao lembrar-se de outra expressão bíblica, a que o arrancara à sua autocompaixão — olho por olho. Os Dez Mandamentos eram uma lista de pontos. Um guia de consulta rápida sobre como viver a vida. A Bíblia, sobretudo o Antigo Testamento, apresentava as referências mais detalhadas e estava cheia de exemplos acerca de como os malvados deveriam ser punidos. Não matarás, a menos que seja um terrorista merdoso... ou um traidor, ou um violador, ou um pedófilo... a lista podia alongar-se bastante.
Por ora, tinha problemas maiores e mais imediatos com que lidar. Teria de deixar para outro dia o debate sobre a salvação da sua alma. Naquele momento, estava mais concentrado em descobrir como Irene Kennedy reagiria ao que ele tinha a dizer. Depois, faria alguns testes aos colegas para ver em quem podia confiar e, se tivesse a sensação de estar a ser manipulado, talvez fosse necessário desaparecer por uns meses. Mesmo enquanto o pensava, já sabia que isso não era opção. Manter um perfil discreto não era a sua forma de agir. Haveria de descobrir e matar quem o traíra.
A batida na porta arrancou-o aos pensamentos de retaliação. Avançou rapidamente para a pistola com silenciador em cima da mesa de cabeceira e então lembrou-se de que Greta tinha ficado de ir ter consigo. Manteve a pistola, por precaução, e virou-se para a porta. Estacou ao ver o seu reflexo no espelho do outro lado do quarto. O seu aspeto correspondia a como se sentia: uma merda. O cabelo preto e espesso estava espetado em todas as direções e o rosto estava coberto por uma sombra carregada de barba, já que não se barbeava havia dois dias. Mas isso não era nem de longe o pior. O verdadeiro problema era o ombro. Pensou vestir uma t-shirt, mas isso ia doer e demorar demasiado, e Greta não tinha lá muito jeito para esperar. Ele sabia que ela estaria irritada por ele ter adiado o reencontro um dia inteiro. Abanou a cabeça, suspirou e decidiu que mais valia despachar aquilo. Mais cedo ou mais tarde, ela viria a descobrir.
Aproximou-se suavemente da porta, parando a uns centímetros de distância e espreitando pelo olho-mágico. Ali estava ela, todo o seu metro e setenta de perfeição nórdica. Olhos azuis, malares altos e um maxilar forte que se afunilava até um pequeno queixo em forma de maçã. Trazia o cabelo louro apanhado num rabo de cavalo alto, como quase sempre. Rapp preferia assim. O ar minimalista enquadrava-lhe o rosto perfeito. Ao longo do ano desde que a conhecera, vira homens adultos, perfeitos desconhecidos, ficarem tão hipnotizados por Greta que iam contra coisas. Ela era literalmente capaz de fazer virar cabeças. Ao início, irritava-o ter de lidar com todos os homens que a fitavam embasbacados quando estavam em público. Passado algum tempo, decidira vê-lo como um elogio. Se eles queriam ficar especados a olhar, pois que ficassem. Além disso, depressa aprendera que Greta era mais do que capaz de defender a sua própria honra. Fazia os possíveis por ignorar os olhares, mas, ocasionalmente, se algum homem fosse demasiado audaz ou óbvio, mostrava-se assustadora.
Observou-a a comprimir os lábios e a estender a mão para bater de novo. Estava a ficar sem paciência. Rapp baixou-se, puxou a cunha de borracha que tinha entalado debaixo da porta e soltou a corrente no momento em que Greta recomeçou a bater. Abriu a porta e desviou o ombro esquerdo para trás para que não fosse a primeira coisa que ela via. Também manteve a arma escondida atrás da porta. Sorriu e disse-lhe:
— Desculpa, estava na casa de banho.
Os olhos de um azul-vivo de Greta estreitaram-se com preocupação.
— Não estás com bom aspeto.
— Ora, obrigado, querida. Tu, como sempre, estás fabulosa.
Fez-lhe sinal para que entrasse. Ela agarrou na pega da mala de viagem com rodas e avançou. Rapp fechou e acorrentou a porta enquanto ela observava o pequeno espaço, terminando a inspeção mais ou menos ao mesmo tempo que ele acabava de enfiar a cunha debaixo da porta. Esperava que ela se comportasse de certa forma, e não se desiludiu. Greta não era do género de entrar em pânico e desatar a gritar o óbvio. Os seus olhos fixaram-se na ligadura branca e o seu maxilar contraiu-se, denotando preocupação. Aproximou-se mais e, devagar, estendeu a mão. Os seus dedos suaves tocaram na pele à volta da ligadura, ao que Rapp sentiu um pequeno choque de eletricidade a percorrer-lhe o tronco. Ela provocara-lhe aquilo quando se tinham conhecido e continuava a fazê-lo. O toque dela era capaz de lhe fazer tremer os joelhos.
Greta contornou-o para conseguir ver-lhe as costas. Rapp ouviu-a arquejar ligeiramente. Fez um esgar, não por estar com dores, mas por recear o que poderia seguir-se, muito provavelmente uma data de perguntas. Em vez disso, ela surpreendeu-o com uma afirmação.
— Foste alvejado.
De súbito, Rapp sentiu a garganta seca.
— Pois — rouquejou.
Ela passou a mão à volta do ombro dele, à frente e atrás.
— E parece que não foste ao médico.
Ele franziu o sobrolho e disse:
— Isso não é realmente opção.
A expressão dela manteve-se neutra.
— Suponho que não vás contar-me como é que isto aconteceu?
Rapp encolheu os ombros e respondeu:
— Talvez mais tarde.
Greta, de semblante carregado, abanou a cabeça.
Se cruzasse os braços, isso seria sinal de que ele estava mesmo em apuros, pelo que se apressou a dizer-lhe:
— Ainda há umas quantas coisas que preciso de perceber.
Depois esticou a mão boa, a que tinha a pistola com silenciador, e puxou-a para si.
Ela apoiou as mãos no peito dele e encostou a face direita mesmo acima delas.
— Estou apenas contente por estares aqui — disse ele, e depois beijou-lhe o cocuruto. A arma estava a incomodar, pelo que a atirou para cima da cama.
— Eu receava que isto acontecesse — disse Greta, numa voz cheia de tristeza.
Rapp esperou um longo momento e depois disse:
— Pois... não posso dizer que não tivesse noção do risco, mas julgava... — Deixou a frase incompleta.
— Julgavas que eras indestrutível. Que serias sempre tu a matar, e agora descobriste que és humano, como o resto de nós. Como é que isso te faz sentir?
Rapp revirou os olhos e disse:
— Já sabes que eu e sentimentos... uma coisa e a outra não ligam lá muito.
— Isso pode ser verdade com outras pessoas, mas comigo não. Não estou a julgar-te. Já devias saber isso. Não sei tudo o que fazes, mas faço uma boa ideia do que seja. Alguma vez me queixei?
— Não.
— Pois não. Não estou aqui a querer mudar-te. Respeito o que fazes, mas gostaria mesmo de que continuasses vivo.
— Já somos dois.
— Bem... então tens de ter mais cuidado. Aprender com os teus erros.
Rapp pensou no quarto de hotel, nos cinco cretinos de MP5 com silenciadores, e cometeu o seu primeiro grande erro da manhã.
— Tu achas que esta merda é fácil?
— Desculpa? — perguntou ela, afastando-se dele.
Rapp apercebeu-se do erro.
— Desculpa, têm sido uns dias duros. Não posso dizer-te o que aconteceu, para além de que outras pessoas não fizeram o seu trabalho e eu acabei a levar um tiro no couro.
— Stan?
O avô de Greta era bastante próximo de Stan Hurley e Thomas Stansfield. Era um banqueiro suíço muito discreto e bem-sucedido, o que dava jeito no ramo de atividade de Rapp. Mas, como não queria envolvê-la diretamente naquilo, suprimiu as suas teorias e disse:
— Não tenho a certeza, mas não me parece. — Num esforço para desviar a conversa, comentou: — Estás a lidar bastante bem com isto.
— O que é que queres dizer?
— Pensava que ias ficar possessa.
— Não estou propriamente extasiada, mas não estou a ver como é que zangar-me havia de ajudar... pelo menos agora. Teremos muito tempo para isso depois, mas agora preciso de ver essa ferida.
Rapp hesitou.
— Alguma vez trataste de uma coisa assim?
— Especificamente assim, não, mas tenho muita formação de primeiros socorros e cresci a caçar, para o caso de te teres esquecido.
— É claro que não me esqueci. Vi-te matar um alce a oitocentos metros de distância.
— Pois é. E não me parece que possa fazer pior do que tu fizeste. — Apontou para a fita adesiva colada às três pancadas. — Tens mais material?
— Sim... na casa de banho.
— Bom... mete-te na cama.
Ele sorriu.
— Calma lá, princesa. Não sou só um pedaço de carne. Se calhar podias levar-me a tomar o pequeno-almoço primeiro.
Ela ignorou-o e foi buscar o material de primeiros socorros.
— Está bem, peço o meu próprio pequeno-almoço. Queres que peça alguma coisa para ti?
— Não, estou bem. — Ela saiu da casa de banho com um saco de plástico e fez-lhe sinal para que se sentasse na cama. Pousou as coisas e despiu o casaco. Depois de arregaçar as mangas da camisola, voltou para a casa de banho e começou a esfregar as mãos.
Rapp pegou no telefone e pediu pequeno-almoço para duas pessoas. Se Greta não comesse a sua parte, comeria ele. Quando acabou de fazer o pedido, ela sentou-se ao seu lado na cama e começou a arrancar a fita adesiva tão cuidadosamente quanto era capaz. Rapp tolerou-o bastante bem até ela começar a puxar a ligadura da parte de trás do ombro. Uma crosta parcialmente seca estava presa à gaze e foi arrancada também. Greta pegou num pano com água quente e limpou suavemente as feridas de entrada e de saída. Em seguida, começou a ensopar bolas de algodão em álcool e limpou mais a fundo. Rapp esforçou-se ao máximo por ignorar o ardor.
— Como é que isso está?
— Não sei ao certo — respondeu ela. — Está muito inchado. Como é que te sentes?
— Nada mal.
Ela agarrou-o pelo queixo e virou-lhe o rosto para si.
— Não me mintas. Isto tem de te doer.
— Não é agradável, mas não há dúvida de que é melhor do que estar morto.
Ela olhou para a parte da frente do ombro dele e depois para a parte de trás.
— Alvejaram-te pelas costas.
— É verdade. Como percebeste?
— A ferida nas costas é mais pequena do que a da frente. Foi uma sorte não te ter atingido nada importante. Que tipo de bala... nove milímetros?
Rapp ficou surpreendido.
— Acho que sim. Como é que soubeste?
— Já te disse, cresci a caçar. No meu país, quase toda a gente aprende a disparar espingardas e pistolas, até as raparigas. Já vi o que um projétil de espingarda faz à carne. Se tivesse sido um desses a atingir-te, a ferida de saída seria muito maior.
— Tens razão. Devia ser uma bala de nove milímetros.
Greta acabou de limpar a ferida, colocou gaze nova nos dois orifícios e envolveu-lhe o ombro e a axila em ligaduras para garantir que tudo ficava no seu lugar. Quando acabou, voltou à casa de banho e lavou as mãos. Rapp não tinha deixado de notar que ficara muito calada nos últimos cinco minutos. Quando ela regressou, ele descobriu porquê.
Greta colocou-se à sua frente, encostou-se à parede, cruzou os braços e disse:
— Estiveste envolvido na carnificina que aconteceu no Hotel La Fleur há duas noites.
Rapp ficou estupefacto. Devia estar à espera, mas a dor e os comprimidos tinham-no deixado um pouco lento.
— Greta, tu sabes que não posso falar do meu trabalho.
Ela desviou o olhar e começou a morder o lábio inferior.
— Morreram inocentes. Vários hóspedes e um funcionário, já para não falar da prostituta, do ministro do petróleo e de toda a equipa de seguranças. — Ela virou os olhos azuis para ele. — Por favor, diz-me que não estiveste envolvido nisso.
Rapp estava a tentar definir a linha ténue em que caminharia quando alguém bateu à porta. Uma voz masculina anunciou que era o serviço de quartos. Greta parecia estar à beira das lágrimas. Ele agarrou na arma e espreitou pelo olho-mágico. O homem tinha vinte e poucos anos. Tirou a cunha de debaixo da porta para que o funcionário entrasse e depois aproximou-se de Greta. Numa voz que pouco mais era do que um sussurro, disse-lhe:
— Explico-te tudo depois de ele sair. — As palavras não pareceram serená-la, pelo que tentou de novo. — Greta, não matei inocentes. A comunicação social não está a transmitir a história certa. — Deu-lhe um beijo na testa, foi para a casa de banho e fechou a porta. Viu-se ao espelho, inspirou profundamente e tentou decidir quanto poderia contar-lhe.