Paris, França
O par invulgar descia pelo passeio estreito num ritmo descontraído. Um era alto, com um metro e noventa, de pele clara e cabelo louro como areia. O segundo homem tinha uma altura média e uma musculatura poderosa. O seu cabelo preto e denso parecia não ver um pente havia uma semana. Usava barba comprida que acabava a misturar-se com os tufos de pelo denso no peito que espreitavam pelo colarinho aberto da camisa azul. Quanto ao homem alto, trajava calças de ganga, uma camisola de gola alta castanha com uma camisola cor de ferrugem por cima e um blazer de fazenda com a gola virada para cima. Um lenço de caxemira bege à volta do pescoço ajudava-o a combater o frio. Jones estava quase sempre com frio, enquanto o seu amigo que parecia um urso dispensava luvas, gorros e cachecóis até nos dias mais gelados.
Naquele dia, como na maioria dos dias, Bernstein levava um casaco militar aberto e a adejar à medida que caminhava. Não o usava para se aquecer, usava-o porque costumava ter de transportar muitas coisas. Os bolsos eram uma necessidade para o seu trabalho de fotógrafo freelance. Nunca andava sem pelo menos uma câmara pendurada ao pescoço, por norma a sua Leica M6 preta de confiança. Tinha sempre os bolsos a abarrotar de baterias, rolos e lentes extras, bem como de todo o género de ferramentas, incluindo mapas e várias formas de identificação e dinheiro escondido em bolsos secretos.
Os dois homens pararam na esquina da Rue de Tournon com a Rue de Vaugirard. O Palais du Luxembourg impunha-se do outro lado da rua. Tratava-se de um edifício atraente, que remontava ao início do século XVII, mas Paris estava cheia de edifícios do género e, ao fim de dezasseis anos a considerar aquela cidade como sua, os dois homens já mal davam por tais coisas. Umas nuvens carregadas tinham-se instalado sobre a cidade. Jones observou o céu cinzento e frio e estremeceu. Achava que o dia ia aclarar, não piorar. Encolheu o queixo, enfiou mais as mãos nos bolsos e resmungou de si para si.
— Trouxeste as ceroulas? — perguntou-lhe Bernstein com um sorriso matreiro.
— Podes crer. Está um gelo.
Bernstein virou a cabeça larga para o amigo e disse-lhe:
— Estão treze graus.
— E não há sol e o vento está a ficar mais forte. Está um gelo.
Bernstein nunca deixava de se espantar por alguém que crescera no Minnesota poder ficar tão afetado por uma descida da temperatura. Sorriu e abanou a cabeça.
— Eu sei o que estás a pensar. Se ganhasse algum peso, talvez não estivesse sempre com frio.
— Não... não era isso que estava a pensar.
— Então o que era?
Em vez de discutir acerca de algo tão inútil, Bernstein disse:
— Estava a pensar que estou mesmo curioso por saber o que ele quer que façamos.
— Eu até fico agoniado, mas que escolha temos?
— É verdade que não temos escolha nenhuma, mas isso não quer dizer que não devamos ser cautelosos.
— E lembra-te... por mais que ele nos intimide, não temos de fazer tudo o que ele diz.
Bernstein soltou uma risada sarcástica, viu o semáforo ficar verde e começou a atravessar a rua. Quando Jones o alcançou, disse-lhe:
— Ele tem todos os trunfos. Recrutou-nos, ajudou-nos a começar e facilmente poderia pôr fim às nossas carreiras... ou pelo menos à tua.
— Não julgues que não daria cabo da tua também.
— Não digo que não o tentasse, só que ninguém quer saber quem eu sou. Se as minhas fotos forem boas ou as minhas gravações forem espetaculares, as pessoas vão continuar a querer comprá-las, como sempre. Já contigo, por outro lado, as coisas são completamente diferentes.
Passaram para o parque e caminharam pelo lado oriental do palácio.
— Tenho pensado muito nisso ultimamente — disse Jones. — Não tenho a certeza de que o fizesse. Acho que Langley também não ia gostar da exposição.
— Tu estás a falar de Langley. Ele não é de Langley, já não é há muito tempo. Detesta Langley. — Bernstein afastou-se do amigo para deixar passar entre eles um idoso de bengala. — O teu erro é acreditares que ele pensa como todos os outros tipos governamentais com quem lidamos. — Bernstein abanou a sua grande cabeça. — Ele não é nada como eles.
O rosto de Jones fechou-se.
— Tens razão. Ele adoraria denunciar-nos e dar cabo das nossas carreiras.
— Esse contrato para um livro que acabaste de assinar... podes dizer adeus ao adiantamento de cem mil dólares.
Jones ficou zangado. Aquilo era tudo tão injusto. Tinha-se esforçado muito, mais do que cumprira a sua parte do acordo, mas não o largavam. Detestava admiti-lo, mas sabia que o amigo tinha razão. Dezasseis anos como jornalista de renome, os primeiros dez com a Associated Press e os últimos como correspondente do Médio Oriente para a CBS. Um sussurro acerca de ser um espião da CIA e tornar-se-ia o maior pária da sua profissão. Seria despedido e perderia a conta das despesas e todo o estilo de vida a que estava habituado, além de ser ostracizado por todos os colegas e odiado por praticamente todos os amigos que fizera ao longo da sua carreira. Se bem que era capaz de ajudar o livro a vender mais, pensou. Os tempos tinham mudado, apesar do que o seu supervisor sempre dissera. O velho sacana malvado adorava descrever-lhe detalhadamente o que lhe aconteceria se alguma vez fosse denunciado.
— Não podes deixar que esta merda te afete — disse Bernstein, tentando arrancar o amigo ao mau humor. — Ao menos ouve o que ele tem a dizer.
Enquanto continuavam pelo caminho de gravilha, Bernstein pensou nos papéis que desempenhavam. Jones era o talento no ecrã — o rosto bonito com uma voz profunda e uns olhos azul-acinzentados bonitos. Uma cabeça cheia de cabelo, que começava a rarear o suficiente para lhe dar o ar de um homem que vira mundo e sabia a diferença entre o certo e o errado. Infelizmente, era um ofício que acarretava insegurança. Havia sempre alguém mais jovem e com melhor aparência a pisar-lhe os calcanhares. Bernstein era o despachado — nunca receava ir onde quer que fosse, para conseguir um bom plano. Juntos, tinham recebido uma data de prémios. Se Bernstein era imprudente, Jones era cauteloso. Salvara ambos várias vezes, ao recusar-se a entrar em determinadas zonas mais problemáticas. Tinha uma intuição impressionante para situações prestes a explodir, e Bernstein aprendera a respeitar isso.
Continuaram por uns mais cem metros sem falar, passando o Lago Octagonal e avançando para o canto eclético do parque onde os jovens, velhos, geniais e estranhos se reuniam para jogar xadrez. Enquanto contornavam o lago, Jones decidiu fazer uma das suas proclamações.
— Estou com um mau pressentimento.
Havia muito que Bernstein deixara de o xingar quanto àquelas premonições. Pigarreou, olhou para trás, para um lado e para o outro, e perguntou:
— O que é?
— Acho que isto tem qualquer coisa que ver com o massacre no hotel.
Bernstein assimilou a notícia, deu uns quantos passos pensativos e disse:
— Não serve de nada preocuparmo-nos com isso até ouvirmos o que ele tenha a dizer.
— Não sei. Posso simplesmente mandá-lo à merda. Ao cair da noite já terei chegado ao Cairo e eles podem ir todos para o raio que os parta. Continuo a escrever o meu livro e se calhar exponho estes cabrões todos.
Bernstein conhecia o amigo suficientemente bem para saber que era dado ao drama e a declarações grandiosas quando estava nervoso.
— Se calhar é melhor guardares essa ideia só para ti.
— Oh, confia em mim... eu sei. É comigo que ele grita, não contigo.
— Isso é porque eu fico de boca fechada. — Bernstein enfiou as mãos nos bolsos. — Tu fazes demasiadas perguntas.
— Sou um jornalista. É isso que faço na vida. Faço perguntas. Montes delas.
— Bem, se calhar hoje podias não fazer. Ficar só a ouvir, para variar.
Encontraram uma mesa vaga com algum espaço entre eles e os tipos que estavam a jogar xadrez. Bernstein tirou do casaco um tabuleiro desdobrável e dois sacos com fecho — um cheio de peças brancas, o outro cheio de peças pretas. Colocando os sacos debaixo da mesa, extraiu uma peça de cada e depois estendeu os punhos fechados para que Jones escolhesse.
O jornalista do Minnesota bateu na mão direita e Bernstein fez um esgar ao abri-la e revelar um bispo preto.
— Oh, fantástico. Ficas com as brancas. Mais vale desistir já.
Bernstein não queria ouvir mais queixas, pelo que passou o saco branco para o outro lado da mesa.
— Não quero a tua caridade.
— E eu não quero ouvir-te rezingar mais... além disso, ambos sabemos que não preciso de ter a primeira jogada para ganhar.
— Oh, vai-te foder.
— Não, obrigado — replicou Bernstein, começando a colocar as peças pretas nos seus lugares.
Estavam os dois tão concentrados em preparar o tabuleiro que não repararam num careca de gabardina caqui sentado na mesa ao lado deles. Tinha óculos escuros e luvas de pele fina, próprias para conduzir. Tirou um jornal debaixo do braço e pousou-o na mesa. Numa voz baixa, pouco mais do que um sussurro, disse:
— Então preferia mandar-me à merda. Chegar ao Cairo ao cair da noite e deixar tudo isto, uma ova.
Ambos ficaram exangues e Bernstein lançou ao amigo um olhar que dizia que tinha vontade de lhe enfiar as peças de xadrez todas pela boca abaixo. Devagar, viraram-se para o homem sentado a um metro deles.
Stan Hurley deslizou os óculos até à ponta do nariz e fitou Jones.
— E se eu lhe enfiasse uma bala na nuca e assim ficávamos quites?
O jornalista ficou boquiaberto durante algum tempo, demasiado chocado para pensar numa resposta. Lentamente, a sua boca começou a mexer-se, mas não lhe saíam palavras, até que começou a gaguejar como se estivesse de novo na faculdade.
— Pare de balbuciar, foda-se — ordenou-lhe Hurley. — Há quanto tempo é que trabalho convosco?
Mais uma vez, Jones começou a gaguejar.
Hurley, impaciente como sempre, respondeu à sua própria pergunta.
— Dezassete anos, porra, e é assim que quer tratar-me, seu sacana egoísta? Salvei-vos o couro daquela embrulhada na Turquia. Ajudei-vos aos dois a arranjar empregos e não tem faltado dinheiro a chegar-vos aos longo dos anos, e agora arma-se em vítima, foda-se?
— Eu estava só...
— Cale-se. Ainda não quero ouvi-lo falar. Ainda estou a ver se vale a pena o risco. — Hurley recostou-se e cruzou as pernas. — Turquia... estou a falar do Expresso da Meia-Noite. Dois putos universitários estúpidos que decidem que vão trazer uma data de drogas do país para vender nos Estados Unidos com um belo lucro. Estou a falar de guardas turcos grandes e peludos a atirarem-se ao cu de dois estudantes de jornalismo da Costa Leste. Eu achava que essa bela imagem vos tinha ficado gravada na cabeça quando estavam os dois a chorar como bebés para que eu vos salvasse.
Bernstein olhou solenemente para Hurley e disse:
— Eu não me esqueci de que nos salvou, e nunca esquecerei.
— Não é você que me preocupa, Dick. É aqui o lindinho.
Jones tinha conseguido recuperar alguma saliva para não ter de rouquejar as palavras.
— Eu... eu peço desculpa. Não me tenho sentido muito bem e isso pôs-me de mau humor.
— Humor? — Hurley devolveu-lhe a palavra, enojado. — Isto não tem nada que ver com humor. Isto é uma merda séria, e embora eu saiba que acha que fez um pacto com o diabo, devia abrir a mente à possibilidade de todos os anos que passou a dar-se com os seus colegas jornalistas sensíveis o terem transformado numa espécie de comunista. — Aproximou-se mais. — A porra dos EUA não são o inimigo nesta luta. A CIA não é o mau da fita, e se abrisse os olhos e olhasse para todas as merdas horríveis que tem visto, saberia isso. Não somos perfeitos, mas somos bem melhores do que a oposição. Agora... quero ouvi-lo, Brian, que raio tem sido assim tão difícil na nossa pequena relação?
Jones olhou para o tabuleiro de xadrez e pigarreou.
— É só que não é ético para um jornalista trabalhar para si e para a sua organização. Isso coloca-me sob muito stress. Se alguma vez se soubesse... — A voz falhou-lhe e ele começou a abanar a cabeça.
— Não é ético. — Hurley riu-se. — Quer dizer, como tentar levar drogas ilícitas de um país para outro? Isso também não seria ético, ou será melhor deixarmo-nos de merdas e elevá-lo a crime punível com vinte anos numa prisão turca?
— Éramos jovens e estúpidos.
— E agora são mais velhos e continuam estúpidos. E o dinheiro que vos tenho dado ao longo dos anos? Presumo que tenha aliviado o seu fardo ético entregando-o todo às Irmãzinhas dos Pobres?
Jones levantou o queixo e abanou a cabeça.
— Sabe que mais, Brian, precisa de deixar essa indignação. Não é o único jornalista que tenho a trabalhar para mim, e nem sequer fui eu quem inventou este jogo. Houve muitos antes de si e haverá muitos outros depois. Precisa de me ver como um padrinho. Acha que teria recebido o Prémio Murrow há três anos, se eu não me tivesse assegurado de que não o abatiam?
— Não — respondeu Bernstein, como se houvesse dúvida na afirmação.
— Precisa de lhe dar mais ouvidos — disse Hurley, apontando para Bernstein. — O seu problema, Brian, é que, embora até seja bom tipo, é demasiado inseguro. Pare de se preocupar com o que os seus colegas pensam de si. Alguns poderão ser seus amigos, mas a maioria dar-se-ia por contente se o visse cair e pudesse ficar-lhe com o emprego. Fez um acordo comigo há muito tempo e eu salvei-lhe o couro. Isso é uma coisa que nunca deve esquecer. Se estiver disposto a dar um passo atrás e olhar para esta relação com honestidade, vai compreender que tem sido muito benéfica para todos nós. Se não estiver disposto a isso, então acabemos com isto já, e acredite no que lhe digo: serei eu a expô-lo e a acabar-lhe com a carreira, e daqui a um mês vão encontrá-lo pendurado das vigas daquela cabana que tem lá em Thunder Lake. Há de estar tão cheio de drogas que ninguém duvidará nem por um segundo de que tenha sido suicídio.
De olhos arregalados, Jones perguntou:
— Como é que sabia que tenho uma cabana em Thunder Lake?
Hurley abanou a cabeça e exclamou:
— Oh, valha-me Deus. — Virou-se para Bernstein e disse: — Vou responsabilizá-lo por ele. Têm quinze minutos para se decidirem. Um tipo grandalhão chamado Victor vai aparecer. Se vocês não estiverem aqui, vou partir do princípio de que querem pôr fim à relação, o que seria uma verdadeira estupidez, porque entenderei que passam a ser meus inimigos e terei de pôr certos planos em andamento... o tipo de planos quase impossíveis de travar depois de serem iniciados.
— Não tem de se preocupar com isso — apressou-se Bernstein a garantir.
— Bom. Vou prescindir do Victor por agora. Presumo que ambos estejam a par da chacina que teve lugar na outra noite?
Jones dirigiu um olhar de Vês, eu disse-te ao amigo e perguntou:
— No hotel no Sena?
— Isso... vocês já estão a cobrir essa notícia?
— A redação encarregou alguém disso.
Hurley pensou durante um segundo.
— Se calhar seria bom demonstrarem alguma iniciativa. Comecem a investigar. Presumo que ainda tenham contactos na polícia.
Não lhe faltavam contactos em Paris, mas não queria revelar a sua jogada. De momento, tudo o que tinha baseava-se em boatos e rumores. Precisava dos factos puros e duros com que a polícia estava a lidar.
Bernstein coçou a barba.
— Temos algumas fontes bastante boas, mas estamos em Paris, sabe o que isso quer dizer.
Hurley sabia, pelo que levou a mão ao bolso, de onde tirou um envelope grosso.
— Dez mil francos. Se precisarem de mais, digam-me.
— Recibos? — perguntou Jones, recuperando um pouco do sentido de humor.
— Juntamente com relatórios de despesas em triplicado, por favor. — Hurley tirou do bolso dois dispositivos relativamente pequenos. Entregou um a Jones e outro a Bernstein. — Isto, cavalheiros, é o que há de mais recente em tecnologia de telemóveis... o StarTAC, da Motorola. O meu número já está programado. Assim que souberem alguma coisa, quero ser informado. — Também lhes passou dois carregadores. — Não nos parece que os Franceses já andem a intercetar estas coisas, mas sejamos cuidadosos. Já fizeram suficientes chamadas internacionais para saberem como é.
Os dois homens assentiram com a cabeça. De facto, tinham feito. As nações podiam tornar-se muito agressivas quanto a jornalistas estrangeiros que quisessem falar ao mundo de certas atrocidades cometidas. Muitas vezes, Jones e Bernstein tinham de criar códigos especiais com os seus produtores em Nova Iorque.
— Além disso — começou Hurley —, sou capaz de precisar que façam uns quantos turnos de vigilância.
Jones soltou um gemido que queria dizer Só pode estar a gozar.
— Não se preocupem — disse Hurley. — Garanto que são compensados. Voltem a concentrar-se nisto, deem-me o que eu preciso e eu asseguro-me de que ambos saem daqui com uma batelada de dinheiro.
Agora que Hurley se acalmara, Bernstein não ia esperar que o amigo tornasse a inflamá-lo.
— Obrigado. Vamos começar já a tratar disso.
— O Victor é um tipo grande... não dá para não o ver. Façam o que ele disser e tudo correrá bem. — Hurley levantou-se e pousou uma mão no ombro de Jones. — Brian... você não é mau tipo... é só sobranceiro. Acha que é o único homem virtuoso neste jogo. — Hurley abanou a cabeça. — Confie em mim, é um pouco mais complicado do que isso.