Alexandria, Virgínia, EUA
Irene Kennedy estava sentada na varanda da sua casa de dois quartos em Old Town. O seu marido saíra para treinar para mais uma maratona, enquanto ela ia a meio do segundo jornal e da terceira chávena de chá. O seu casamento podia ser melhor, mas também podia facilmente ser pior. Não havia gritos ou violência, mas tinham uma trégua tácita e uma noção partilhada de que não se amavam mais hoje do que no ano anterior. Irene vivia absorta no seu trabalho, ele vivia absorto em si mesmo, e ela não conseguia decidir se deveria continuar assim ou partir para outra. O divórcio era uma batalha complicada e prolongada e ela não era pessoa para desistir tão facilmente de algo tão importante.
Havia bastante autorrecriminação pela sua falta de esforço, mas o seu trabalho dava-lhe pouco tempo para recuperar o fôlego e, como aprendera ao longo dos anos, o marido não era propriamente o tipo de pessoa que se encontrasse com ela a meio caminho. Era basicamente um rapazinho mimado e egoísta que se recusava a crescer. Tudo isso lhe passara ao lado quando namoravam — quando as coisas eram fáceis. Ele entusiasmara-se por ela trabalhar para a CIA, e ela entusiasmara-se pelo facto de ele ser um homem bem-parecido e inteligente que a fazia rir. Para mais, era professor universitário com um horário muito flexível, o que lhe convinha. Quando namoravam, Irene não via nenhum dos pontos negativos. Os primeiros anos do casamento também tinham corrido bem. Depois, as queixas tinham começado. Parecia que Karl era sempre prejudicado por alguma coisa. Costumava envolver uma discussão simples numa festa, ou uma saída a quatro com um dos membros com contrato permanente do departamento dele. Para Irene, as conversas pareciam normais — dois adultos que concordavam discordar. Mas depois chegavam a casa e Karl passava horas a rezingar acerca de como era grosseira a outra pessoa. Como tinha sido insultuosa e que ele podia tolerar muitas coisas, mas adultos malcomportados, não. Irene nunca via a coisa assim. No seu emprego, todos tinham de estar sempre a defender a posição. Dia após dia, ela precisava de assumir decisões difíceis e os superiores diziam-lhe com frequência que estava enganada. Com tanto a acontecer, não havia tempo para birras. Por fim, começou a ver o marido como um homem incrivelmente inseguro, que não suportava a ideia de ser ultrapassado, pelo menos a nível intelectual. Supunha que fosse por isso que ensinava filosofia a caloiros na Universidade Americana. Esse trabalho permitia-lhe armar-se em Deus perante uma data de miúdos que estavam maravilhados por viverem longe dos pais pela primeira vez e que não se atreveriam a desafiar um professor erudito.
Depois de ver essa faceta desagradável do marido, distanciou-se, e ele viu instintivamente a retirada dela como uma traição, tendo sido assim que tinham acabado no estado atual de armistício conjugal. Assim, aos domingos de manhã ele corria e ela tinha uma folga muito necessária. Também era o único dia em que não se esperava que trabalhasse, ainda que, se surgisse uma crise, não importava que dia ou que hora fosse, ela teria de se apresentar. Nada disso a incomodava. Tinha um trabalho interessante, desafiante, frustrante e, em última instância, crucial para a segurança do país. O que os domingos ofereciam, desde que o inimigo cooperasse, era um certo grau de solidão. Davam-lhe o tempo necessário para filtrar os milhares de dados com que lidara durante a semana — todas as operações e necessidades dos seus agentes, bem como as operações preparadas contra o seu país. Ela precisava de ter pelo menos um dia da semana para se afastar de tudo isso e tentar obter alguma perspetiva.
Estava a fazer isso a um nível subconsciente, avançando pela secção de Artes do Times, quando o telefone tocou. Ficou irritada. Ainda não eram nove da manhã, o que, para uma manhã de domingo, era cedo. Ponderou não atender, mas depois pensou que podia ser a mãe. Pousou o chá e foi até à cozinha, onde tinha o telefone na parede. Olhou para o pequeno ecrã que indicava o número de quem ligava e estreitou os olhos. Era uma chamada internacional. Ela já tinha verificado o gravador de mensagens duas vezes desde que se levantara e passara uma boa parte da manhã a perguntar-se se Rapp se teria metido num esgoto de Paris e morrido afogado, coisa que, apesar de gostar dele, não seria a pior saída possível para o seu empregador.
Ligar-lhe diretamente para casa era uma grande infração ao protocolo, mas ele já tinha mais do que provado que não era muito adepto de seguir as regras dela. A curiosidade levou-lhe a melhor e deitou a mão ao auscultador.
— Estou.
— Bom dia.
A voz do outro lado era inconfundível. Era Rapp. Irene até corou, indignada por ele ser tão imprudente.
— Sabe que isto não é uma linha segura — atirou-lhe, sem conseguir disfarçar por completo a irritação na voz. Do outro lado da linha ouviu-se um suspiro de frustração e depois...
— Ouça-me com atenção. — A voz dele tinha um tom duro, de Estou-me bem a cagar para isso. — Tanto quanto me é dado a ver, não há linhas seguras desse lado.
— O que é que isso quer dizer?
— É esperta, veja lá se entende.
— Não estou com disposição para os seus jogos — disse ela, numa tentativa de recuperar o controlo. — Está metido numa bela alhada. Algumas pessoas acham que deu cabo desta coisa da pior maneira possível, e, como não se deu ao trabalho de dar notícias, levou a que especulassem acerca do quanto se poderá confiar em si.
— Ainda bem que vocês aí na porra das vossas secretárias a mais de seis mil quilómetros de distância já perceberam tudo. Eu até ouço o seu tio a pôr em causa todos os movimentos que fiz apesar de não fazer ideia do que se passou.
— Ouça... isto não teria melhor ar visto a três metros de distância. É um caos, e é o seu caos.
— Pode ter a certeza de que é. O único problema é que nenhum de vocês faz a menor ideia do que aconteceu.
— É difícil saber o que aconteceu quando o nosso subordinado não se dá ao trabalho de pegar no telefone e comunicar-se.
— Bem... enquanto você estava a bebericar o seu latte ou chá ou a porra que seja que bebe, o seu subordinado estava a flutuar por um rio abaixo com uma ferida de bala no ombro.
Irene fitou a parede de olhos arregalados. Duas imagens atulhavam-lhe os pensamentos. A primeira era de Rapp, ferido e submergido nas águas turvas do Sena; a segunda era a da caverna imensa por baixo da Agência de Segurança Nacional, no Maryland, que albergava os supercomputadores Cray, os quais provavelmente estariam a gravar e a processar aquela chamada. Instigada pela informação de Rapp, disse-lhe:
— Não sabia. Lamento. Ouça, posso estar no meu gabinete daqui a vinte minutos. Pode telefonar-me para lá?
Rapp riu-se.
— Acho que não está a perceber o problema. Armaram-me uma cilada.
— Uma cilada? — O rosto dela contorceu-se, formando uma careta.
— Eles estavam à minha espera. A vossa equipa de batedores não deu por eles, eu não dei por eles. Foi por pouco que consegui sair dali com vida.
Irene estava estupefacta.
— Não compreendo como é que isso pode ter acontecido.
— Parecia-me que diria isso. Vou tornar isto bem simples. Foram sabotados. Não sei por quem, mas ou alguém se infiltrou no nosso pequeno grupo, ou há um traidor entre nós e, dado que sou eu aqui a arriscar-me e a ser alvejado, vão ter de me desculpar se não confio lá muito em nenhum de vocês até resolverem o problema.
Irene andava de um lado da cozinha para o outro, desesperada por tentar perceber que raio se passaria. Ocorria-lhe uma dúzia de perguntas óbvias, mas estavam a falar no seu maldito telefone de casa e ela não podia correr o risco de fazer as perguntas necessárias. Olhou para o relógio no micro-ondas e perguntou-se se conseguiria apanhar o voo seguinte para Paris.
— Vou ter consigo. Trago-o para cá.
— E como é que eu sei que posso confiar em si?
Irene esforçou-se por dar uma resposta. Pensou que fora ela a recrutá-lo, que fora a sua única apoiante desde o início. A única a reconhecer-lhe verdadeiramente o talento e o potencial. E depois pôs-se na posição dele. Tinha estado em campo muitas vezes, mas nunca numa situação tão stressante como aquela em que ele se encontrava naquele momento. A sensação de isolamento devia ser avassaladora. A admoestação do Dr. Lewis atingiu-a com toda a força. Tinham-no criado, e se ele se virasse contra eles... o pensamento fê-la estremecer.
— Pode confiar em mim, e sabe que pode.
— De momento não estou mesmo com disposição para confiar em quem quer que seja.
— Tenho-o defendido em todos os momentos — alegou ela. — Ainda ontem lutei por si. — Pensou na discussão no gabinete de Stansfield. — Como calcula, o meu tio foi muito crítico.
— Ora que chocante.
Irene ia dizer uma coisa, mas conteve-se. Precisava mesmo de falar com Stansfield e contar-lhe o que Rapp lhe dissera.
— Ouça, temos de sair desta linha. Eu vou ter consigo. Verifique as mensagens daqui a uma hora e terei mais informação para lhe dar.
— E o que é que lhe dá tanta certeza de que eu queira voltar? Conhecendo a forma como o seu tio opera, vou acabar na solitária durante um mês, amarrado à bateria de um carro.
Ela encolheu-se. Ele tinha razão, claro. Correndo um grande risco, disse-lhe:
— Quero que tenha cuidado. Verifique o gravador de mensagens e... outra coisa... ele ontem enviou uns tipos à sua procura.
— Quem? — perguntou Rapp, com uma suspeita evidente na voz.
Irene hesitou por um momento e depois disse:
— O Victor, o seu velho amigo, foi um deles. Eu reclamei.
Do outro lado, silêncio. Irene imaginou-o a espumar — a sua concentração a alimentar o ódio a Victor.
— Estão a vigiar o apartamento. Não vá para lá — indicou-lhe. — Eu irei assim que possa para o trazer de volta. Está bem? Verifique as mensagens. Não faça nada estúpido.
— Vou pensar nisso. — Seguiu-se uma longa pausa e depois Rapp disse: — Cinco homens entraram à força no lugar marcado. Eu despachei quatro. Restou um... o que me alvejou. Compreende o que estou a dizer?
O sobrolho de Irene franziu-se enquanto ela tentava decifrar aquela informação.
— Não.
— Eu ative-me ao protocolo. Não fiz nada que não estivesse autorizado a fazer.
— OK — disse Irene, ainda a tentar perceber o que estava ele a insinuar.
— Não fui o único a sair dali. O quinto homens foi responsável pelos outros três. Eu saí pela janela.
— Acho que ainda não percebo...
— Vai chegar lá. Tenho de desligar.
A chamada caiu e, devagar, Irene devolveu o auscultador ao descanso. Reviu mentalmente toda a conversa, perguntando-se se haveria algo que a NSA ou o FBI pudessem usar contra si. Era tudo bastante vago, mas poderia bastar para chamar a atenção no radar de alguém. Amaldiçoou Rapp por lhe ter ligado para casa, e depois pensou no que ele lhe tinha dito. Que aquilo fora uma cilada. Estava a avançar para o roupeiro do vestíbulo sem pensar. Precisava de informar Stansfield de imediato. Agarrou no casaco e tirou a chave do carro do cabide junto à porta. Esperava que Stansfield visse as coisas à sua maneira. Se não visse, rezava para que o Dr. Lewis se enganasse. A última coisa de que precisavam era de que Rapp, enfurecido, tentasse um ajuste de contas.