Langley, Virgínia, EUA
Thomas Stansfield estava sentado à secretária, de calças caqui e uma camisa azul. Era o seu uniforme de domingo. Tinha ido à missa com a mulher e vários dos filhos e netos, e estava desejoso por voltar para casa em Potomac para um belo empadão de ovo e algum tempo com os netos: Molly, Bert e o pequeno Thomas. Molly tinha quatro anos e, segundo a opinião parcial do avô, já demonstrava grande potencial. Na verdade, era a única pessoa na família que se atrevia a dar-lhe ordens, o que proporcionava grande entretenimento aos filhos adultos de Stansfield. Ele próprio ficava altamente divertido com a confiança demonstrada por aquela lourinha de noventa centímetros. O irmão mais novo, Bert, não fazia muito mais para além de correr pela casa e de ir contra coisas, e o bebé Thomas era, bem, bebé. Só tinha três meses e Stansfield não demonstrava grande interesse pelas crianças até que fossem capazes de verbalizar as suas exigências. A mulher gostava dos bebés, pelo que dividiam e conquistavam, e era tudo muito engraçado.
Os seus próprios filhos ficavam chocados ao vê-lo tão envolvido, já que passara grande parte da infância deles ausente. Eram outros tempos, claro. Os pais não participavam tanto na vida dos filhos como agora. Tinha havido alguns debates interessantes acerca disso à mesa da família, e Stansfield, na maior parte, deixara que os filhos expressassem as suas opiniões e lhe fizessem reparos. Eles sabiam onde ele trabalhava. Além disso, eram suficientemente astutos para preencherem as lacunas e fazerem extrapolações. Tinham crescido em vários países e não era segredo algum para quem o pai trabalhava, mas este nunca falava do assunto. Era uma regra constante que não infringira vez alguma durante toda a sua carreira.
Stansfield era o tipo de pai que demonstrava a sua desaprovação com umas quantas palavras cuidadosamente selecionadas e talvez um olhar desapontado. Nunca erguia a voz e, depois de terem feito cinco anos, nunca lhes tocara. A verdade era que a mulher tinha feito um trabalho espetacular. Também não era de desprezar o facto de a genética cerebral ter funcionado a favor dos miúdos. Todos tinham completado cursos universitários e três deles tinham prosseguido os estudos depois disso. Nenhum tivera problemas com drogas ou álcool, e só houvera um divórcio. Somadas as coisas, não era nada mau, e Stansfield gostava de os lembrar discretamente de tudo isso quando eles criticavam o facto de passar mais tempo com os netos do que com eles. Todos tinham ficado bem, apesar de si. Também gostava de salientar que o veredicto acerca do tipo de pais que eles eram ainda não fora passado. Tinha um mau pressentimento de que aquela parentalidade tão próxima acabaria por ser prejudicial para a geração seguinte, mas isso era problema deles, não seu. Segundo lhe parecia, a ele cabia-lhe desfrutar dos netos e mimá-los até mais não.
Olhou para o seu Timex dourado e viu as horas. Irene estava atrasada, o que não era normal, sobretudo porque fora ela a requisitar aquela reunião de emergência. Quando Stansfield saíra da igreja, percebera pela expressão do guarda-costas que algo acontecera. Dissera à mulher e aos filhos que fossem andando para a casa e que ele voltaria assim que possível. Estava habituado àquelas interrupções, que, por norma, não o incomodavam, mas tinha fome e estava a precisar de descansar. Olhou pela janela, vendo as copas coloridas das árvores. Era uma bela tarde de outono e Molly estaria ávida por explorar os bosques com a sua camada lustrosa de folhas em tons luminosos. Já ia telefonar a Irene quando ouviu uma batida na porta.
Como era seu hábito, fechou o ficheiro que tinha em cima da secretária, escondendo o telegrama que lhe enviara o chefe de estação na Tailândia apenas uma hora antes.
— Entre — quase que gritou, dado que o gabinete era à prova de som. A porta abriu-se e Stansfield ficou surpreendido ao ver o número dois de Langley, Paul Cooke, o diretor-adjunto da CIA.
— Paul, não estava a contar consigo. Entre.
Stansfield indicou-lhe o sofá e as cadeiras perto da janela.
— Desculpe interrompê-lo — disse Cooke, fechando a porta depois de entrar. Também estava de calças caqui e camisa azul, além de um blazer azul. — Como tem passado?
Apesar de os seus gabinetes ficarem relativamente próximos, os dois homens não falavam muito. Stansfield não era conversador, e o seu trabalho requeria que fosse reservado em todas as conversas. Sendo o homem que geria os operacionais e os espiões da América, confiava em muito poucas pessoas. O diretor anterior tinha tido grande fé em Stansfield e deixara-o tomar as suas próprias decisões na maior parte das situações e, quando se envolvia, nunca consultava o diretor-adjunto. A Cooke cabia supervisionar as operações do dia a dia em Langley e os seus mais de dez mil funcionários. Stansfield tomava conta do seu pequeno, mas importante, feudo, e Marvin Land, o diretor-adjunto dos Serviços Secretos, tinha um entendimento similar. O lugar agora estava numa espécie de limbo, com Stansfield e Land a gerirem os seus próprios departamentos cruciais até o diretor seguinte ser nomeado e confirmado. Até então, Cooke deixara que o velho entendimento se mantivesse.
Respondeu-lhe:
— Bem, obrigado.
— Achava que tinha como regra manter-se longe daqui aos domingos — disse Cooke.
Stansfield ofereceu-lhe um sorriso ténue.
— Sabe como é... lá por ser domingo, isso não quer dizer que os nossos inimigos folguem.
— É bem verdade — concordou Cooke, sentando-se num dos cadeirões cinzentos.
Stansfield recostou-se no sofá.
— Em que posso ajudá-lo?
Cooke uniu as mãos em frente ao queixo e pareceu considerar por onde haveria de começar. Depois de mais um momento e de uma inspiração profunda, disse:
— Esta coisa em Paris... está a causar uma grande agitação.
Stansfield assentiu com a cabeça. Além de não ser grande conversador, não ia alongar-se sobre o óbvio.
Passaram-se vários momentos antes de Cooke continuar, dizendo:
— Tive uma reunião estranha, ontem.
E olhou pela janela, como se não soubesse bem como continuar a conversa.
Stansfield não lhe deu mais do que um ligeiro aceno de cabeça que indicava que podia continuar. Se tinha uma história para contar, teria de o fazer por sua conta.
— O Franklin Wilson convidou-me a ir a casa dele.
O secretário de Estado muitas vezes exagerado tinha passado por uma espécie de reforma desde o declínio da saúde da mulher. Tanto quanto Stansfield sabia, Cooke e Wilson mal se conheciam. Convidar Cooke a ir a sua casa era um pouco estranho.
— Numa tarde de sábado?
— Sim, eu sei. — Cooke alinhou como se também achasse aquilo tudo um pouco bizarro. — Está muito incomodado com esta coisa de Paris.
— Muita gente está incomodada com o que aconteceu em Paris... sobretudo os Líbios e os Franceses. Porque é que o nosso secretário de Estado está tão aflito?
— Está incomodado porque acha que você não está a ser honesto com ele. — Cooke observou Stansfield em busca de um sinal de nervosismo, mas o velho sacana granítico nem sequer pestanejava. — Isso deixa-o preocupado?
— Já aprendi há muito tempo, Paul, que não posso controlar o que as pessoas dizem ou fazem nesta cidade. Franklin Wilson é um homem cheio de opiniões fortes, que se tem comportado de forma algo estranha desde que teve de internar a mulher. Se tem alguma razão para estar incomodado comigo, bem que pode pegar no telefone e dizer-mo diretamente.
Cooke cruzou as pernas e depois descruzou-as. Teria de dizer a Wilson exatamente o que Stansfield dissera acerca da mulher dele. Talvez até pudesse exagerá-lo um pouco. Se o homem já estava com vontade de se atirar a Stansfield, depois de ouvir aquilo ia querer desfazê-lo.
— É um pouco mais profundo do que isso — disse-lhe. Pigarreou e depois acrescentou: — Ele acha que esteve envolvido no que aconteceu na outra noite.
— Quando diz outra noite, quer dizer...
— Paris.
Stansfield fitou-o sem dizer palavra.
— Não há nada que queira dizer? — perguntou Cooke.
— Sempre achei melhor não responder a acusações descabidas.
— Bem — disse Cooke, com um grande suspiro —, eu estou só a tentar dar-lhe um pequeno aviso. O presidente dá ouvidos ao homem, por amor de Deus, e ele por algum motivo acha que você esteve envolvido no assassinato do ministro do petróleo da Líbia.
— E como é que ele chegou a essa ideia?
— Não me disse.
— Interessante.
— É essa a sua resposta? — perguntou Cooke, sem fazer qualquer esforço por disfarçar a frustração. — Trata-se de uma acusação muito séria. Não vai negá-la?
Stansfield estudou Cooke durante muito tempo. Pressentiu qualquer coisa de que não gostava. Cooke estava à pesca, e ele teve a distinta sensação de que tinha sido Wilson a convencê-lo a fazê-lo. Com a vaga para o lugar de diretor a chamar mesmo ao fundo do corredor, quem sabia que ilusões de grandeza flutuariam pela cabeça das pessoas naqueles tempos? Cooke não tinha as capacidades analíticas para gerir Langley, mas Stansfield decerto conseguia imaginar Wilson a acenar-lhe com o cargo à frente do nariz para o pôr a fazer o que queria.
— Paul, deveria recordar ao secretário que fazemos todos parte da mesma equipa e que ele provavelmente deveria pensar bem antes de começar a lançar acusações infundadas que podem prejudicar seriamente este país e as nossas relações internacionais.
— Então nada teve que ver com o que aconteceu na outra noite?
Cooke poderia não ter percebido na altura, mas Stansfield via que uma linha fora traçada. Qualquer homem de Langley que fosse suficientemente tonto para servir de mensageiro do Departamento de Estado era perigoso. Stansfield fitou-o diretamente nos olhos e disse-lhe:
— Nada tive que ver com isso. Está satisfeito?
Cooke aceitou a resposta, apesar de saber que era mentira.
— Bem — com uma palmada nos joelhos, pôs-se de pé. — Eu vou para Paris de manhã. Ver se posso ajudar a amenizar as coisas.
— E o que terá para amenizar, ao certo?
— É capaz de ter sido uma palavra mal escolhida. Quero assegurar aos nossos aliados que não tivemos nada que ver com isto. — Cooke começou a avançar para a porta e, quando chegou, olhou de novo para Stansfield e disse-lhe: — Sinta-se à vontade para me acompanhar, se quiser.
Stansfield recebeu o convite com um aceno de cabeça razoável.
— Vou pensar nisso. Teria de mudar algumas coisas na agenda, mas é capaz de valer a pena ir. Já se passou algum tempo desde que visitei os nossos amigos na DGSE.
— Ótimo.
E Cooke saiu do gabinete, fechando a porta com um sorriso satisfeito no rosto.
Stansfield ficou imóvel durante cerca de um minuto, percorrendo mentalmente as possibilidades. Por onde quer que olhasse, não lhe agradava o que pressentia. A força do velho espião era a sua capacidade de analisar factos, perceber a motivação de uma pessoa e prever o que pretendia. Cooke estava a tramar alguma. Considerou a possibilidade de ter subestimado o homem. Concluiu rapidamente que era bem possível. De semblante carregado, decidiu que teria de se mover rapidamente para lidar com a situação. Percorreu uma lista de operacionais de confiança com que poderia contar. Não havia ficheiros sobre esses homens; todos estavam reformados, mas continuavam a ser muito úteis. Decidiu-se por um ativo e depois perguntou-se se deveria ter uma conversa com Marvin Land. Stansfield e Land tinham um grande respeito profissional um pelo outro, dado que tinham combatido lado a lado contra os Soviéticos. Perguntou-se se Cooke já teria tentado manipular Land. Isso seria uma jogada interessante, mas muito estúpida.