CAPÍTULO 26

Fizeram amor e adormeceram nos braços um do outro, o braço bom dele e os dois dela. Quando Rapp acordou uma hora e quarenta minutos mais tarde, fitou o teto sem pestanejar. Não tinha a visão indefinida ou turva, não havia qualquer confusão acerca de onde se encontrava ou de que horas eram. Sentia-se vivo e alerta e relaxado, tudo ao mesmo tempo. Greta fazia-lhe isso. Ele não sabia como, ao certo, mas desconfiava de que tinha algo que ver com o corpo nu dela encostado ao seu. Dormiam sempre com os corpos entrelaçados, com o máximo possível de pele contra pele. O calor e a energia dela reconfortavam-no e, ao mesmo tempo, faziam-no sentir-se vivo.

Era impossível negar que ela o fazia feliz, mais do que fora durante muito tempo. Tanto assim que, ali deitado, chegou mesmo a pensar em largar tudo e voltar para Zurique com ela. Podia pregar um susto de morte a Irene Kennedy e a outros tantos. O telefonema seria simples. Bastava ligar para o serviço e deixar uma mensagem. Dizer-lhe que para ele acabara. Que dera o corpo ao manifesto e que a paga tinha sido traírem-no. E depois viria a parte que tornaria tudo muito definitivo. Teria de a ameaçar, explicando detalhadamente o que faria a qualquer pessoa que fosse à sua procura e que, se isso acontecesse, ele regressaria aos Estados Unidos e deixaria atrás de si um rasto de cadáveres. Até poderia acrescentar algo acerca de um pacote de informação a ser enviado para o FBI, para o Departamento de Justiça ou, Deus os livrasse, para a comunicação social.

Franziu o sobrolho ao pensar aquela última parte. Não seria capaz de o fazer. Se optasse por isso, não seria melhor do que todos os políticos egomaníacos e oportunistas que estavam constantemente a atacar a CIA. Irene Kennedy e Thomas Stansfield eram boas pessoas, ou pelo menos tentavam fazer a coisa certa. Stan Hurley talvez não tanto. Quer Stansfield o ordenasse, quer não, Hurley iria atrás dele. O tipo era assim. Se Rapp ia por um atalho ou fazia as coisas à sua maneira, Hurley ficava furioso, mas nunca se dava ao trabalho de confrontar o facto de não haver uma só regra que ele próprio nunca tivesse infringido. Uma vez, Stansfield dissera-lhe que o problema que ele e Hurley tinham era serem demasiado parecidos. Esperava bem que não fossem. Hurley muitas vezes era mesquinho, sádico e extremamente injusto, e Rapp dissera isso mesmo a Stansfield. O diretor-adjunto juntara mais umas quantas observações negativas à lista de Rapp e depois concluíra:

— E, em última instância, é muito bom naquilo que faz. Não perde tempo com tretas. Vê o caminho mais puro para alcançar o seu objetivo e segue em frente... tal como você.

Rapp respondera:

— Mas é um canalha.

Stansfield esboçara o seu sorriso afável para dizer:

— Sim, é, e quando tiver feito isto durante três décadas, talvez você também seja.

Esperava mesmo que não. Em parte, respeitava Hurley pela sua resistência e tenacidade, mas não imaginava passar a vida como um sacana tão amargurado. Perguntou-se se seria mesmo capaz de o matar. Tinha-o imaginado várias vezes, mas nunca de uma forma definitiva e profissional. As suas fantasias eram mais do género de lhe bater com a cabeça no chão vezes sem conta, até os miolos lhe saírem. Apercebia-se agora de que havia uma possibilidade muito concreta de que abater Hurley fosse justamente para onde tudo aquilo se encaminhava. Se fugisse, e talvez não tivesse outra alternativa, teria de o matar, caso contrário ele persegui-lo-ia até ao fim da vida.

A cabeça de Greta estava apoiada no seu peito e ele tinha o braço direito à volta dela. Tinham-se conhecido quase um ano antes, em Zurique, e fora amor, ou pelo menos paixão, à primeira vista. A família dela tinha vários bancos localizados na maioria dos principais centros financeiros. O avô e Thomas Stansfield haviam sido aliados na luta contra o comunismo, e a família ainda ajudava o diretor-adjunto com alguns dos aspetos mais delicados das operações. Até então, tinham mantido a relação em segredo. Greta sabia o que Rapp fazia, até certo ponto, mas a ferida no ombro era uma dura lembrança de que se apaixonara por um homem que tinha um trabalho muito perigoso. Deslizou a mão pelo flanco dela, pela cintura estreita e depois pela anca. Beijou-lhe o alto da cabeça e inspirou profundamente. Queria lembrar-se daquilo. Paz absoluta; alegria no seu coração e uma mulher que amava arrebatadamente a seu lado. Era assim que viviam as pessoas normais, mas ele não. O seu treino fora exaustivo, e de formas que não esperava. Hurley tinha-lhes falado de mulheres. A sua norma era curta e grossa:

— Podem comer todas as mulheres que quiserem, mas não podem apaixonar-se e nem pensar em casar. Se se apaixonarem ou casarem, eu ponho-os a pastar ou mato-vos.

E essa era uma das muitas razões pelas quais achava que Hurley era um cretino.

Era tentador passar o resto da vida nu e na cama com Greta, mas sabia que isso não passava de uma fantasia romântica. Para ter esperança de algum dia o fazer, havia muito trabalho a executar primeiro. Provavelmente houvera uma altura em que ele poderia ter optado pelo caminho mais comum, mas isso tinha acabado. A verdade era que era um assassino treinado. Era bom no que fazia, gostava do que fazia e não estava preparado para virar costas a isso. Talvez viesse realmente a ser como Hurley, se vivesse o suficiente. A ideia deprimiu-o.

Deslizando cuidadosamente o braço sem acordar Greta, prometeu a si mesmo que nunca permitiria que isso acontecesse. Na casa de banho, fechou a porta e olhou-se ao espelho. As olheiras negras já quase tinham desaparecido. Era incrível o que o corpo conseguia fazer, com alguma comida e muito sono. A ligadura no ombro não estava ensanguentada, mas os hematomas nas costas tinham bastante mau aspeto. Fletiu os dedos da mão esquerda e depois mexeu o braço, numa pequena rotação no sentido dos ponteiros do relógio. Fletir os dedos não lhe doía, mas rodar o ombro doía como o caraças. Tentou mais alguns movimentos com várias taxas de sucesso, e depois meteu-se no duche. Como não queria molhar as ligaduras, lavou-se da cintura para baixo, embrulhou-se numa toalha e ponderou barbear-se. Já tinha dois dias de barba rija por fazer. Havia prós e contras em manter a barba, mas os contras acabaram por ganhar e barbeou-se. Qualquer encobrimento que pudesse proporcionar-lhe era marginal e do outro lado da balança estava a montanha de provas de como a polícia tratava homens bem vestidos e barbeados, por oposição a como tratava os outros.

Greta continuou a dormir enquanto ele enfiou as calças de ganga escura, uma t-shirt preta e umas botas da tropa pretas. Infelizmente, acordou com o som do ajuste das tiras de velcro do colete à prova de bala. Ergueu mais a cabeça com outra almofada e puxou o lençol até ao pescoço.

— Porque é que estás a usar isso?

— É só uma precaução — disse Rapp honestamente.

Greta não acreditou.

— Mitch?

— Greta?

— Estou a falar a sério.

— Eu também, e é por isso que estou a usá-lo.

Ela fitou-o durante um longo momento, com os olhos azuis um pouco mais frios do que o habitual.

— Achava que tinhas dito que isto ia ser fácil.

Rapp colocou as duas tiras de baixo como mais gostava e respondeu:

— Não conto ter um acidente de cada vez que me meto ao volante, mas não é por isso que deixo de usar cinto de segurança.

— E isso quer dizer o quê?

— Que não estou a contar ser alvejado, mas como já me aconteceu uma vez esta semana, vais ter de me desculpar se me parece que usar isto é boa ideia.

Ela franziu o sobrolho e assim ficou, sem se mexer, até que acabou por concluir que não havia muito mais que pudesse acrescentar. Viu Rapp a vestir cuidadosamente uma camisa de algodão preto. Ele abotoou todos os botões exceto o de cima, para esconder o colete. Aproximou-se e sentou-se na beira da cama. Segurando-lhe o queixo com a mão em concha, disse-lhe:

— Tens duas horas para te preparares e ficares a postos. Se não quiseres vir, não faz mal. Podes esperar aqui ou ir para casa, se quiseres.

Ela abanou a cabeça.

— Vou contigo.

— Bom. E consegues estar pronta e no sítio daqui a duas horas?

— Sem problema, mas onde é tu vais?

— Tenho mais umas coisas que preciso de ir buscar e tenho de dar uma vista de olhos pela zona.

— Não podes ficar e comer comigo?

— Adorava, mas não há tempo. Pede qualquer coisa do serviço de quartos e, quando estiveres pronta, não te esqueças de guardar as tuas coisas todas na bagageira.

— Eu sei — repetiu ela, como uma boa aluna. — E levo a tua mochila e não faço o check-out porque se calhar precisamos de voltar.

Rapp observou a expressão tensa e ansiosa do rosto dela. Debruçou-se e deu-lhe um beijo na testa.

— Não te preocupes tanto. Isto vai ser só uma pequena observação a uma distância segura. Nada vai correr mal. Prometo.

— Belo epitáfio.

Rapp sorriu.

— És mesmo otimista.