O horizonte oriental estava cor de laranja com a luz que anunciava a manhã. Irene Kennedy, na pista de betão, observava o jato privado a descer e preparar-se para a aproximação final, refletindo o sol. De fato castanho-escuro e uma camisa bege, sentia o ar matinal um pouco frio, mas isso não a incomodava. Estava demasiado preocupada com o que ocorrera na noite anterior. Fora um desastre completo capaz de se transformar em algo suficientemente sério para fazer a CIA retroceder décadas. Haveria audiências no Capitólio e depois julgamentos em tribunais federais. Boas pessoas perderiam os seus empregos e era bem provável que outras quantas morressem.
Enquanto observava o avião a aterrar, tinha a mente repleta de detalhes, insinuações e sabia Deus quantas ilusões. Stansfield quereria respostas e, infelizmente, ela não as tinha. Só chegara ao país umas horas antes quando Hurley lhe telefonara a informá-la de que a casa secreta fora comprometida e, pior, que houvera vítimas mortais. Depois dissera-lhe as palavras em que ela ainda não conseguia acreditar.
— Foi o seu rapaz. Armou-lhes uma cilada.
Irene respondeu:
— Pensava que os seus homens tinham sido retirados da operação?
— Foram, e foi então que o seu brinquedo estragado atacou. Eu avisei que isto ia acontecer. — Como era seu hábito, desligara antes que ela pudesse fazer mais perguntas.
Irene não fazia ideia de quem morrera, ou de quantos tinham morrido e, depois de uma hora a tentar encontrar respostas, desistira e fora até à casa secreta.
A polícia tinha interditado o acesso a todo o quarteirão. Numa e noutra ponta da rua, vizinhos curiosos e jornalistas apinhavam-se contra as barricadas. Era fácil distinguir os jornalistas dos habitantes locais, já que tinham dictafones ou blocos de notas, enquanto outros traziam operadores de câmara. Ao contrário dos habitantes da zona, gritavam perguntas à polícia. Irene manteve-se longe da comunicação social e começou a interrogar os locais. O seu francês era irrepreensível, pelo que ninguém a encarava com desconfiança. As histórias variavam de pessoa para pessoa, mas numa coisa estavam de acordo: pelo menos duas pessoas tinham morrido e uma outra fora levada para o hospital. A bomba veio depois, quando ouviu dois polícias a conversar. O homem levado para o hospital era da DGSE. Se aquilo fosse verdade, Irene estava ciente das terríveis implicações. Seria altamente improvável que um agente da Direção-Geral se tivesse deparado por acaso com um tiroteio naquele pequeno enclave parisiense. Só lhe ocorriam duas razões para a DGSE estar naquele quarteirão. Ou tinham descoberto a casa secreta, ou tinham seguido os homens de Hurley. Tanto um caminho como o outro levavam à CIA.
Irene regressou à embaixada, telefonou a Stansfield por uma linha segura e contou-lhe tudo o que sabia. Ele escutou-a pacientemente e depois disse-lhe que ia antecipar a viagem. Percebera imediatamente que, se não pudesse abafar aquilo rapidamente, o incidente iria causar danos irreparáveis nas relações franco-americanas. Depois, Irene procurou Hurley, e começaram a voar faíscas. Ao longo das horas seguintes, parecia que ele perdia a cabeça a cada trinta minutos. Estava preso na embaixada, sabendo que, se saísse, era bem provável que o seu novo amigo Paul Fournier o sequestrasse e levasse a cabo um interrogatório completo e nada gentil. Depois da sexta ou sétima tirada de Hurley, Irene chegou ao limite e disse-lhe:
— Estou há mais de duas horas a ouvi-lo sem dizer nada. Mas deixe-me dar-lhe um pequeno conselho. Está a depositar muita fé num homem que tem defeitos graves. O Chet Bramble não é santinho nenhum. É um narcisista e um mentiroso chapado, e eu não acredito em nada do que ele diz, portanto é assim: se tiver razão... eu arrumo as botas. Demito-me e nunca mais terá de lidar comigo. Mas se estiver errado, é você que arruma as botas. Os seus acessos de raiva, as suas ordens e todas as suas tretas, acabam-se. Demite-se, afasta-se disto tudo e admite, não só a mim, mas a todos os envolvidos nisto, que a culpa foi sua, porque não supervisionou o estúpido do seu gorila.
Irene não ficou à espera de resposta. Deixou a cave da embaixada e foi até às divisões reservadas para operacionais da CIA que precisassem de uma cama. Encontrou uma, mas não dormiu. O melhor que conseguia fazer era fechar os olhos e repisar as mesmas perguntas vezes sem fim. Acabou por perceber que só haveria uma forma de obter respostas que a satisfizessem. Precisava de se sentar com Rapp e ouvir a sua versão da história.
Na manhã seguinte, depois de ter dormido apenas umas horas, estava na pista plana com esperança de que, para variar, Stansfield pusesse Hurley no seu lugar. Três Range Rovers pretos aguardavam em ralenti, uns atrás dos outros. O Gulfstream IV abrandou até parar a quarenta e cinco metros dos jipes. As escadas foram descidas e um agente alfandegário foi receber o avião. O chefe da equipa de segurança de Stansfield apresentou-lhe os devidos documentos. O homem olhou para os formulários e depois os passaportes e aplicou os devidos carimbos. Duas bolsas diplomáticas com cadeado foram apresentadas, ao que o homem consentiu com um aceno de cabeça. Kennedy estava sempre a olhar para trás, para ver se algum amigo da DGSE teria aparecido.
Por fim, Stansfield saiu do avião, com outro agente da segurança atrás de si. Estava de fato e gravata, com uma gabardina cinzenta. O porão do avião foi aberto e quatro malas pequenas com rodas e umas pastas pretas foram descarregadas por um membro da tripulação. Quando um quarto homem saiu do avião, Irene tentou perceber por que razão lhe parecia familiar. Stansfield dirigiu-lhe umas palavras breves e depois foi ao encontro de Irene.
Esta abriu a porta de trás do SUV do meio.
— Bom dia, senhor.
Stansfield assentiu com a cabeça, entrou para o veículo e fechou a porta. Irene entrou pelo outro lado e o chefe da segurança de Stansfield colocou-se ao volante. O outro guarda-costas entrou no primeiro veículo e o quarto homem seguiu no último, com a bagagem. A caravana começou a avançar para o portão.
O diretor-adjunto de Operações inclinou-se para espreitar pelo para-brisas.
— Algumas consequências novas?
— Não sei ao certo. Muitas pessoas estavam a dormir e vão acordar com umas notícias bem desagradáveis. Compreensivelmente, a Direção-Geral vai ficar incomodada.
— Diria que sim... e o Stan?
Irene decidiu deixar de parte todo o melodrama da discussão que tinham tido a altas horas da noite e ater-se aos factos.
— Está a salvo, mas não por muito. Esteve com a Paulette. Uns minutos depois de ele ter ido embora, arrombaram a porta da casa dela.
Stansfield assentiu com a cabeça.
— Estes veículos foram limpos?
Irene encolheu os ombros.
— A embaixada diz que são sujeitos a uma verificação rotineira.
Ele franziu o sobrolho e sacou de um bloco de notas e uma caneta. Iam ter de fazer aquilo à moda antiga. Colocou um isqueiro no suporte para copos no meio do carro, para o caso de precisar de agir rapidamente e destruir as notas.
— Onde está o Rob?
Irene sabia que se referia a Rob Ridley, um dos melhores agentes de campo que tinham.
— Está na cidade.
— Preciso de falar com ele hoje de manhã. Como está a embaixada? — perguntou Stansfield, e em seguida começou a escrever.
— A Direção-Geral tem homens colocados nas entradas da frente e das traseiras.
— Vamos ter de arranjar uma maneira. Quero que o Rob passe pessoalmente tudo em revista e tenho um pequeno trabalho para ele. — Deslizou o bloco de notas para Kennedy e mostrou-lhe o que tinha escrito: “Mitch?”
Ela abanou a cabeça.
— Até agora, nada.
Stansfield rabiscou: “Serviço de Mensagens?”
— Temos estado a verificar. — Tornou a abanar a cabeça.
“Victor?”, escreveu ele.
Irene encolheu os ombros. Não acreditava em nada do que lhe saía da boca, mas Stansfield ia ouvi-lo de Hurley, pelo que concluiu que mais valia dar-lhe as informações mais recentes. Ia começar a falar, mas decidiu-se antes por caneta e papel. Começou a escrever em letras de imprensa cuidadas. “Diz que o Mitch enviou um engodo à casa secreta e que depois os emboscou. Que matou o McGuirk, o Borneman e dois agentes da DGSE.”
Stansfield ia lendo à medida que ela escrevia.
— Oh, meu Deus.
Irene continuava a rabiscar o papel.
“V encontra-se a destruir a carrinha de vigilância e outras provas incriminadoras. Diz que teve de fugir para não morrer e que o corpo do Borneman ficou no local.”
O diretor-adjunto de Operações manteve a compostura, apesar de a situação ter acabado de piorar drasticamente. Foi a sua vez de pegar no bloco de notas. Segurou a caneta por um momento e depois escreveu:
“Acredita nele?”
Irene abanou vigorosamente a cabeça.
— É procurado? — perguntou Stansfield.
— Tanto quanto sabemos, não.
O diretor-adjunto rabiscou outra pergunta:
“Já identificaram o Borneman?”
— Não faço ideia. A polícia está a dirigir a investigação e a Direção-Geral não é propriamente conhecida pela sua cooperação.
— A menos que lhes seja vantajoso. — Stansfield levou de novo a caneta ao papel. “O que é que a DGSE estava a fazer ali?”
— Não sei ao certo, mas, se tivesse de adivinhar, diria que seguiram o V e os homens dele até lá.
— Porque é que diz isso? Podiam ter sabido antes.
— O Stan e a Paulette jantaram juntos ontem à noite. — Irene agarrou na caneta. “Paul Fournier apareceu inesperadamente e acompanhou-os numa garrafa de vinho.”
— Acha que têm o Stan sob vigilância?
— Sim. Eu fui seguida desde o aeroporto até à embaixada quando cheguei ontem à noite.
— E hoje de manhã?
— Vi um carro. Deve vir atrás de nós.
Stansfield assentiu com a cabeça.
— O diretor-adjunto Cooke faz alguma ideia do que se está a passar?
— Não.
— Disse-lhe que ia embora?
— Não, pedi outro jato. O dele vai estar à espera quando ele chegar ao aeroporto daqui a seis horas.
— E quando ele perguntar por si?
— Mandei o Waldvogel acompanhá-lo no voo. Vai dizer-lhe que me vi obrigado a fazer outros planos.
— E se ele insistir?
— Os Britânicos queriam reunir-se comigo por qualquer coisa.
— E se ele verificar a informação junto dos Britânicos?
— Há de ficar a saber que hoje de manhã tomei o pequeno-almoço na embaixada Britânica.
Os olhos de Irene semicerraram-se, revelando umas rugas mínimas.
— Ele poderia verificar isso, se quisesse.
— E pode fazê-lo à vontade.
— Vamos tomar o pequeno-almoço na embaixada Britânica?
— É isso mesmo.
— Posso perguntar porquê?
— Descobrirá quando chegarmos.
Seguiram em silêncio durante algum tempo e depois Stansfield escreveu:
“Preciso que convença o Mitch a falar comigo.”
— Nem sequer consigo que fale comigo.
Stansfield bateu com a caneta no que já tinha escrito.
— Eu sei. Tenho estado a tentar arranjar uma forma, mas ele não confia propriamente em nós neste momento.
— Vai ter de começar a confiar, Irene, caso contrário não vou ter alternativa.
Ela percebeu que ele queria dizer que emitiria uma ordem de execução. Já tinha assistido a isso. Era compilado um dossiê, determinado um preço e entrava-se em contacto com os suspeitos do costume. Alguns agentes de Langley também seriam usados, mas aquele tipo de coisa costumava ser resolvida por empreiteiros externos. Rapp era bom. Provavelmente duraria um ano ou dois, mais se estivesse disposto a submeter-se a cirurgia plástica, e havia uma probabilidade superior a 50 por cento de que matasse um ou dois dos primeiros homens enviados para acabar com ele. De súbito, recordou o que o Dr. Lewis lhe dissera escassos dias antes. Se alguma vez for necessário neutralizá-lo, é melhor não falhar. Porque, se ele sobreviver, há de matar-nos a todos.
Aquele pensamento provocou-lhe um arrepio na coluna. E se ela já tivesse perdido o controlo de Rapp? E se Victor estivesse a dizer a verdade? Ela recusava-se a acreditar nisso. Ela conhecia-o melhor do que qualquer outra pessoa. Ele não era apenas mais um dos assassinos impiedosos de Hurley. Kennedy precisava de tempo e de convencer Stansfield. Lewis podia ajudar a fazer a segunda coisa. Olhando para o seu mentor, disse-lhe:
— Preciso que fale com o nosso bom doutor hoje de manhã. Ele tem algumas observações que deve ouvir.
— Em relação a quê?
— A quem. — Irene agarrou no papel e na caneta e escreveu o nome de Victor.
— Está bem — disse Stansfield. Sabia o que se passava ali. Os seus dois principais tenentes iam defender os seus protegidos. Ele nunca devia ter permitido que aquilo chegasse a tanto. Havia demasiado rancor entre Rapp e Bramble. Devia ter-se livrado de um deles havia muito e, apesar das provas atuais contra Rapp, era Bramble quem teria despachado. Contudo, esse era o homem de Stan, e Stan quase sempre obtinha aquilo que queria. Infelizmente, o que Stan agora queria era Mitch Rapp morto.
Esticou as pernas e encostou-se à porta. Não podia deixar que a sua parcialidade interferisse. Era bem mais provável que o problema fosse Rapp. Bramble era um bruto obtuso, mas tinha os seus propósitos. Se Rapp não aparecesse e lhe dissesse exatamente o que tinha andado a fazer, só lhe restaria uma escolha. Teria de ordenar a execução daquele que talvez fosse o seu melhor operacional.