CAPÍTULO 37

A grua colocou o íman forte em posição e depois o fio foi desenrolado e o disco de metal enferrujado desceu até estar a pouco mais de um metro da carrinha. O íman foi acionado e os pneus traseiros levantaram-se do chão, até o tejadilho ficar colado ao disco metálico. Aumentando a intensidade, a parte da frente, apesar do motor pesado, começou a subir devagar. Quando o tejadilho ficou firmemente imobilizado na parte inferior do íman, o grande motor a gasóleo da grua acelerou e soltou fumo negro, após o que o cabo grosso de aço gemeu até ter a carrinha a seis metros do chão e a baloiçar em direção ao compactador de tamanho industrial.

Bramble viu a carrinha ser colocada, sem grande delicadeza, dentro da caixa metálica de três lados. O íman soltou-se, deixando a carrinha no lugar, e afastou-se. Umas mandíbulas de aço foram dispostas sobre a carrinha e o achatamento começou, primeiro uns quantos centímetros de cima para baixo, depois as laterais. Continuou assim durante vários minutos. Quando a carrinha finalmente ficou transformada num cubo de metro e vinte de lado, Bramble reparou num líquido vermelho a escorrer da base. Era de esperar. Havia dois cadáveres lá dentro. Deviam ter sido três, mas Borneman perdera-se pelo caminho.

O homem ao seu lado estendeu a mão e disse qualquer coisa crespa na sua língua sérvia nativa. Bramble não sabia uma única palavra que fosse em qualquer língua eslávica, mas também não precisava de saber. Tinham um acordo e o homem queria que lhe pagasse. Já contara o dinheiro, dois mil e quinhentos dólares à cabeça e outros dois mil e quinhentos quando tivessem acabado, e o tipo ia juntar um Renault de merda de três portas no qual ele regressaria a Paris.

Limpara as impressões digitais da sua arma, que deixara na carrinha para que fosse esmagada com todas as outras provas, os corpos, o equipamento de vigilância e, sobretudo, a gravação que o mostrava a alvejar o homem que julgava ser Rapp. Tudo tinha parecido estar a correr na perfeição. Rapp morrera e ele tinha tratado de Borneman e McGuirk. Poderia ter explicado tudo isso a Hurley. Diria que estavam a arrancar dali quando Rapp os apanhara de surpresa, matando Borneman e McGuirk, altura em que ele entrara em ação e enfiara um balázio na nuca de Rapp, fim de história. Mas depois aqueles dois françois tinham aparecido. Continuava sem fazer ideia de quem seriam. O mais provável era que fossem polícias, ou talvez dos Serviços Secretos franceses; fosse como fosse, aquilo não era bom. Continuava orgulhoso do disparo. Apostava que não havia mais do uma dúzia de homens no planeta capazes de atingir o primeiro tipo mesmo no centro da cara, como ele tinha feito. Fora uma estupidez irem assim atrás dele, sem qualquer proteção e demasiado perto um do outro. A seu ver, só tinham tido a sorte que mereciam.

Passou o resto do dinheiro ao homem, que lhe deu as chaves do Renault. No seu francês macarrónico, esforçou-se por transmitir a ideia de que voltaria dali a dois dias e que, se o que restava da carrinha não tivesse sido fundido, seria ele a enfiar umas quantas pessoas no compactador. Nunca voltaria, claro, mas só sabia realizar negócios de uma maneira — ameaçando.

A coxear, atravessou o recinto em direção ao seu calhambeque merdoso. Encolheu-se para caber atrás do volante, enfiou a chave na ignição e ligou o pequeno motor de quatro cilindros. O carro tinha mudanças manuais, coisa que, em circunstâncias normais, não lhe teria feito a menor diferença, mas tinha um buraco de bala na barriga da perna direita e outra bala alojada no músculo forte do tríceps do braço direito. Conduzir só com uma mão não era possível, pelo que carregou na embraiagem, cerrou os dentes com força e empurrou a alavanca teimosa para a primeira velocidade. Os pneus carecas da frente giraram na gravilha até ganharem tração e o carro lançou-se para a frente. Ele sentia agudamente cada solavanco e arrancou.

Também tinha umas quantas costelas magoadas, graças àquele maricas, Rapp, que lhe acertara com quatro projéteis nas costas do colete à prova de bala. Se o otário tivesse usado uma pistola de calibre .45, como ele, talvez tivesse conseguido matá-lo, mas as suas pequenas balas de 9 mm não davam conta do recado. Meteu a segunda no carro empoeirado, mas largou a embraiagem um pouco cedo demais. O sobressalto fê-lo perguntar-se se não teria mesmo alguma costela partida. Mas ainda bem, concluiu. Quanto pior estivesse, mais credível seria a sua história.

Depois de fugir, Bramble tinha parado cinco quarteirões mais adiante para fechar a porta lateral da carrinha. Ao virar o homem que tinha julgado ser Rapp, abanara a cabeça perante a sua própria estupidez. A seguir reparou na bolsa de tecido enfiada no cós das calças do homem. Agarrou nela e espreitou lá para dentro. O dinheiro e os diamantes podiam vir a dar jeito. Os passaportes falsos de nada valiam. Não estava encantado por ter perdido Borneman, mas como Rapp ia ser culpado de tudo, calculava que não fizesse diferença. O seu problema mais imediato era desaparecer da zona. As suas feridas não eram fatais, mas Rapp era. Precisava de alinhar a sua história, bem depressa, para depois falar com Hurley. À medida que se distanciava do belo trabalho que acabava de executar, começou a refinar a mentira. Ao sair da cidade propriamente dita, parecia-lhe que já tinha as coisas tão bem alinhavadas como alguma vez seria possível. Marcou o número de telemóvel de Hurley cinco vezes, mas não obteve resposta. Da última vez, deixou uma mensagem críptica com suficientes insinuações para Hurley perceber por alto o que tinha acontecido.

Não sabia a localização exata do ferro-velho, mas Hurley mencionara-o na reunião pré-missão. Ao que parecia, conhecia o rafeiro sérvio por causa de qualquer coisa que tinha feito na Jugoslávia quando a Jugoslávia ainda era um país. Ajudara o homem a emigrar para França, onde este se envolvera a fundo no crime organizado. Ele tinha dito que, desde que lhe pagassem bem, podiam confiar no sérvio. Já passava das dez da noite quando Hurley finalmente devolvera a chamada. Numa linha insegura era impossível transmitir todos os detalhes do que acontecera, mas, mesmo assim, ficou com uma ideia bastante aproximada. Bramble explicou que a carrinha era uma merda e que precisava de se livrar dela. Hurley percebeu a deixa e disse-lhe onde ir e, em seguida, que verificasse o serviço de mensagens para receber instruções.

Bramble foi diretamente para o ferro-velho. Ficava a apenas uma hora de Paris. As traseiras da carrinha estavam cravejadas de balas e ele não sabia se a polícia teria uma descrição do veículo, pelo que tomou a decisão cautelosa de sair da estrada assim que possível. Só havia dois problemas: o ferro-velho estava fechado e ele tinha dois cadáveres na parte de trás. A segunda parte não o incomodava assim tanto. Já tinha passado tempo com cadáveres e não era assim tão mau, pelo menos até começarem a cheirar mal. O problema era ser apanhado com eles se a polícia aparecesse.

Tinha estacionado em marcha atrás perto do portão para que os buracos de bala ficassem escondidos e depois tapara os corpos com uma lona, para o caso de algum polícia decidir dar uma espreitadela. Limpou a sua Colt de calibre .45 e colocou-a na mão inerte de McGuirk, para que ficasse com as impressões digitais dele. Enfiou a arma debaixo do cadáver e depois tirou-lhe a Beretta 92F de 9 mm, uma porcaria italiana que ele detestava, mas que sempre era melhor do que nada. A mesma arma que Rapp usava.

Em seguida, tirou o íman da caixa LED por baixo da consola de vigilância e passou-o em círculos à volta das cassetes de vídeo com as gravações. Era o costume em situações como aquela: destruir todas as provas que pudessem ligá-lo ao crime. E, por acaso, também lhe convinha. Não poderia haver uma gravação dele a aproximar-se dissimuladamente por trás do homem que julgava ser Rapp e a dar-lhe um tiro na nuca.

Tendo feito isso, sacou do estojo de primeiro-socorros e tratou das feridas. A barriga da perna era fácil de cuidar, o tríceps não tanto. E, quanto às costelas, a única coisa que poderia fazer era tentar descontrair e não se mexer. Recostou o assento, ignorou a dor e pensou em Rapp: como reagiria, que tipo de história tentaria contar e quem tentaria convencer. Por todos os ângulos por onde olhava, parecia-lhe que Rapp estava tramado. Tinha sido ele a não dar notícias depois de ter dado cabo da missão original. Tinha sido ele a enviar um chamariz para o apartamento para os emboscar. Hurley ia assumir o controlo daquilo tudo. Irene Kennedy bem que podia chiar e refilar o que quisesse, mas o seu rapazinho de ouro ia ser caçado.

Adormeceu com aqueles pensamentos felizes, acabando por ser acordado por um homem sujo a quem faltava pelo menos metade dos dentes e que lhe batia na janela. Bramble endireitou-se demasiado depressa e arrependeu-se de imediato. A dor nas costelas foi aguda e o sol a subir no céu incidiu-lhe diretamente nos olhos. Baixou a janela até meio e tentou perceber o que o homem dizia, num francês que conseguia o feito de ser ainda pior do que o seu. Lá acabou por entender que aquele era o formidável amigo mafioso de Hurley.

Bramble meteu a carrinha no recinto e o portão fechou-se. Olhou em redor e apercebeu-se de imediato de que estava no sítio certo. Depois de acionarem o equipamento, a carrinha seria reduzida a um cubo, amontoado junto de todos os outros veículos destruídos. A negociação, porém, revelou-se mais difícil. O sérvio queria ver o interior da carrinha e Bramble não queria mesmo que ele visse o interior da carrinha. Continha equipamento sensível de vigilância e dois cadáveres, além de algumas pistolas e uma metralhadora que queria que fossem destruídas.

No final, Bramble soube que lhe tinham passado a perna, mas não se importava lá muito. O dinheiro não era seu, e aquilo não era sequer sua responsabilidade. Pagou pela demolição da carrinha e de todas as provas do interior servindo-se do dinheiro de Rapp. Retirou algum prazer da ironia de tudo aquilo, mas não tinha tempo para a apreciar. Precisava de pôr a cabeça nos eixos e de cuidados médicos. Ter uma história consistente era a prioridade. A CIA era capaz de ser muito minuciosa e, embora ele tivesse destruído praticamente todas as provas, iriam passar a sua história a pente fino, o que envolveria detetores de mentiras quer humanos, quer mecânicos, a tentar passar-lhe a perna. Quando chegasse a esse ponto, e isso começaria quase de imediato, teria de acreditar nas suas próprias patranhas.

Uns quilómetros mais adiante, encontrou uma cabina telefónica, estacionou e saiu do carro como se fosse um homem de oitenta anos. Resmungou, gemeu e depois caminhou rigidamente até à cabina, enfiando algum dinheiro na ranhura. Quando ouviu o tom de marcação, premiu uma longa fiada de números e o seu código pessoal. A voz de Hurley reproduziu uma mensagem específica em código. Bramble ouviu atentamente e suspirou de alívio ao aperceber-se de que queriam recebê-lo. E isso queria dizer a embaixada dos EUA em Paris, onde um médico a sério o trataria. Bramble marcou o número do segundo serviço de mensagens e tornou a carregar numa longa fiada de teclas, com um código diferente. Naquela mensagem não havia códigos ou sentidos ocultos, apenas uma ordem direta. Olhou para o relógio. Dependendo do que acontecesse na embaixada, talvez conseguisse fazer aquilo resultar, mas seria Hurley a decidi-lo.

Voltou de novo para o carro a arrastar a perna. Teria de ser tratado e de convencer Hurley a pô-lo de novo na rua, para poder dar caça a Rapp e acabar o trabalho. Na noite anterior, ele surpreendera-o, mas isso fora uma sorte estúpida. Não permitiria que tal voltasse a acontecer. Da próxima vez que o visse, levaria a coisa até ao fim e, se tivesse sorte, talvez pudesse abater Irene Kennedy ao mesmo tempo.