Os pés de Rapp corriam pelo pavimento, marcando um ritmo constante de um quilómetro a cada três minutos. Sentia o ombro a latejar, mas esforçava-se ao máximo por ignorá-lo e, quando não foi capaz, disse a si mesmo que merecia pior. Um homem tinha morrido. Luke Auclair, um inocente metido na sua vida até ele o ter procurado e incluído no seu grande erro de cálculo.
Fora uma noite dura. Tinham viajado até aos arredores de Paris, onde tinham parado para pôr gasolina e para Rapp esfregar o sangue seco do agente da DGSE que ainda lhe sujava as mãos. Continuava sem saber se o homem teria sobrevivido. Esperava ter conseguido salvar uma vida daquele desastre. Depois, tinham seguido um pouco para norte, instalando-se num dos hotéis de uma grande cadeia junto ao Aeroporto Charles de Gaulle. O sítio estava degradado, era um desses gigantes de quinhentos quartos para viajantes empresariais que estavam dispostos a sacrificar o serviço e o asseio para ficarem perto do aeroporto. O espaço precisava mesmo de ser remodelado, mas Rapp nem reparou. Não estava em choque, antes um pouco abalado pela noite cheia de acontecimentos inesperados.
Em silêncio, ele e Greta jantaram tarde e depois foram para o quarto. Ela teve o bom senso de não fazer demasiadas perguntas. Percebia que ele estava a tentar dar resposta a algumas questões muito pesadas. Por volta da meia-noite, depois de os dois terem passado horas às voltas sem conseguir dormir, Rapp começou a falar. Luke era a parte que lhe pesava mais. Era um inocente, um civil, e a primeira regra do seu trabalho era nunca prejudicar civis.
— Mas tu não sabias que eles agiriam assim — disse Greta. — Estavas a pô-los à prova.
— Não importa. Nunca deveria tê-lo envolvido.
Ela ficou calada durante um momento e depois disse:
— Mas se não o tivesses feito, terias sido tu a ser abatido no meio da rua.
— Não — respondeu Rapp, num tom carregado de autodesprezo. — Eu sabia que não devia ir àquele apartamento e, mesmo que o tivesse feito, teria saído pelas traseiras, com a arma a postos e bem atento. Ninguém me teria apanhado assim de surpresa.
Falaram durante mais algum tempo e depois Rapp deu-lhe um beijo na testa, disse-lhe que a amava e sugeriu:
— Vamos tentar dormir um pouco.
Abraçou-a com o braço bom e ficou agradecido quando ouviu a respiração dela a instalar-se num padrão de sono pouco tempo depois. Quanto a si, continuou a fitar o teto, a rever os acontecimentos a que assistira a partir do apartamento de Bob e Tibby McMahon como se este fosse um camarote no teatro. Adormeceu umas quantas vezes, mas nunca durante muito tempo. Raramente tinha dificuldade em dormir, pelo que, quanto mais elusivo se tornava o sono, mais irrequieto ia ficando. Percorreu todos os cenários possíveis para determinar quem poderia tê-lo traído. Imaginou cada rosto e depois considerou a possibilidade de todos terem conspirado para o matar. Teriam decidido matá-lo baseando-se em informação falsa, ou nalguma informação de que ele não tivesse conhecimento? Deslizou o braço de debaixo de Greta e decidiu que tinha de confiar em Irene Kennedy. Avisara-o para se manter afastado da casa secreta. Ela sabia que Victor estava lá, mas saberia que o tinham mandado matá-lo?
Por fim dormiu umas horas e acordou pouco antes das sete. Mais agitado que nunca, saiu da cama e procurou os ténis de corrida e uma camisola.
Greta acordou sonolentamente e perguntou:
— Onde vais?
— Vou correr. Preciso de resolver umas coisas. — Rapp via que ela não ficava satisfeita com a ideia de ele sair, mas não dizia nada. — Não te preocupes, daqui a uma hora estou de volta e podemos tomar o pequeno-almoço e tomar algumas decisões.
— Que tipo de decisões?
— Não tenho a certeza. — Rapp passara a noite a debater-se com essa pergunta, mas sentia que uma boa corrida lhe daria a clareza necessária para ver o melhor caminho a seguir.
Perguntou na receção se havia algum sítio bom para correr ali perto e indicaram-lhe um parque a um quilómetro do hotel. Correndo a um ritmo tranquilo, encontrou o parque sem grande dificuldade, e depois acelerou. Em retrospetiva, era tudo brutalmente claro. A sua atitude negligente causara a morte de um homem inofensivo. Então, uma voz interior que não reconhecia disse-lhe que Luke não passava de um passador merdoso. Que o mundo ficaria melhor sem ele. Que precisava de aguentar e seguir em frente. A última parte estava certa, mas as primeiras duas não. Combateu o instinto de justificar os seus erros e a sua estupidez. Aquela era uma lição que precisava de lhe ficar gravada no cérebro, para nunca mais ser esquecida. Sabia que, se falhasse nesse aspeto, estaria na via rápida para se transformar numa versão de Stan Hurley, e mais depressa se atiraria de uma ponte do que permitiria que isso acontecesse.
À medida que dava voltas ao parque, esforçando-se cada vez mais, a clareza que buscava começou a emergir do caos. Irene Kennedy era a única pessoa em quem podia confiar e a única pessoa a quem ele não faria mal. Victor era como se já estivesse morto. Rapp não queria saber onde o veria da próxima vez, mas esperava que fosse frente a frente. Queria fitar-lhe os olhos quando carregasse no gatilho. Ocorreu-lhe que era improvável que Victor fizesse uma jogada tão ousada por sua própria conta. Não era suficientemente esperto para isso, o que significava que seria Hurley a dar as ordens. A grande incógnita era Stansfield. Das três pessoas que o supervisionavam diretamente, era Stansfield quem ele conhecia pior.
Em grande parte, isso devia-se ao trabalho do homem. Como diretor-adjunto de Operações, tinha mais de mil pessoas a seu cargo. Recebia centenas de chamadas e faxes por dia dos seus chefes de estação em vários destacamentos por todo o globo. Havia adjuntos ao longo do corredor e por todo o edifício que não se mexiam sem a sua orientação, e Rapp não passava de um dente de uma roda dentada muito intrincada, ainda que fosse um dente muito importante. Rapp tinha a impressão de que Stansfield estava fortemente envolvido na decisão de lhe dar rédea solta, pelo que só fazia sentido que estivesse igualmente envolvido na decisão de o aniquilar.
Contudo, toda a autoridade de Stansfield poderia ser ignorada pelo homem mais teimoso que ele alguma vez conhecera. Hurley era o problema e sim, Rapp era parcial na avaliação que fazia dele, mas essa parcialidade baseava-se por completo na forma como o homem se comportara desde que o conhecera, dois anos antes. Ele era tudo aquilo de que o acusava, e mais ainda. Era egomaníaco, imprudente, desrespeitoso, ditatorial e mesquinho. Concluiu que Hurley era mais do que capaz de emitir a ordem para o matar sem o conhecimento de Stansfield. Porém, porque haveria de fazer Victor matar os outros dois tipos da equipa? De que seriam culpados?
Rapp conhecia o seu ritmo de corrida praticamente ao segundo e, depois de cinco quilómetros, acelerou para um ritmo constante de um quilómetro a cada três minutos. Três quilómetros depois, sentia pontadas no ombro, tinha os pulmões a arder e uma ideia atingiu-o como um raio. As pernas pararam de acelerar e, devagar, foi parando. Tinha o peito a ofegar, os pulmões a trabalharem a dobrar para obterem oxigénio. Endireitou-se o mais que pôde e olhou para longe, vendo três torres de arrefecimento de uma central nuclear. Continuou a dar voltas e mais voltas à ideia e, quanto mais o fazia, mais se tornava a única coisa que fazia sentido. Victor achava que o tinha matado, e depois virara a arma contra os membros da equipa, que não desconfiavam de nada. Porque haveria um homem de fazer tal coisa? Só havia duas razões. Ou eles tinham feito algo gravíssimo e sido marcados para eliminação, ou tinham sido assassinados por causa do que tinham visto.
Era como se uma imagem turva se tivesse focado repentinamente. Se os outros dois tipos tivessem feito algo grave, haveria formas muito melhores e mais discretas de se livrarem deles. De súbito, Rapp ficou convencido de que tinham sido assassinados por terem visto Victor alvejar na nuca um homem que julgavam ser ele. Victor e Hurley tinham sido brutalmente óbvios quanto a não o aprovarem. Estariam dispostos a incriminá-lo para se livrarem dele? Victor era incapaz de aceitar culpa, o que significava que teria de culpar outra pessoa pelas mortes, e essa pessoa seria Rapp.
Virou-se e começou a correr na direção do hotel. Precisava de entrar em contacto com Irene Kennedy e, para poder fazer isso, tinha de estar em andamento e, se possível de todo, manter Hurley na ignorância.