CAPÍTULO 40

Irene Kennedy entrou com Thomas Stansfield na embaixada enquanto todos os restantes ficavam nos veículos. Rollie Smith esperava-os e escoltou-os pela segurança dizendo apenas uma palavra. Ao longo dos anos, Irene ouvira muitas histórias acerca de Smith, que ostentava um bigode substancial perfeitamente aparado e encerado. Começara a deixá-lo crescer quando tinha vinte e poucos anos, para ajudar a disfarçar a sobremordida e, com o passar do tempo, tornara-se o seu traço distintivo; isso e os laços que usava. Orgulhava-se de ser o consumado cavalheiro britânico. Era membro vitalício dos Serviços Secretos Britânicos, mais comummente conhecidos como MI6. O pai fora um diplomata de nível médio do Gabinete de Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha, e o jovem Smith, tal como as duas irmãs, tinha passado quase toda a juventude na Europa continental. A missão diplomática mais longa do pai fora em França, mas também passara tempo na Bélgica, na Áustria e na Alemanha.

Smith tinha dezoito anos e vivia na Bélgica quando Hitler invadira a Polónia e desencadeara a Segunda Guerra Mundial. Na primavera seguinte, os nazis fizeram a sua famosa manobra da Linha Maginot e a família regressou a Londres. O pai reconhecia que o jovem Roland ia juntar-se ao esforço de guerra com ou sem a sua autorização, pelo que puxou uns quantos cordelinhos para lhe conseguir um lugar no MI6. Quatro anos depois, Rollie conheceu um americano que passara a maior parte do último ano da guerra atrás das linhas nazis.

Ao longo das décadas seguintes, com a Guerra Fria a aquecer, Thomas Stansfield e Rollie Smith partilhavam uma paixão comum — ambos queriam destruir a União Soviética. Por vezes, estavam destacados nas mesmas cidades, com as suas embaixadas frequentemente a escassos quarteirões uma da outra. Noutras alturas, ficavam em continentes diferentes, mas a distância nunca fazia qualquer diferença. Continuavam a ser grandes amigos e confidentes.

Os dois homens cumprimentaram-se com apertos de mão firmes e sorrisos cálidos. Eram estoica e flagrantemente de uma geração em que os homens não se abraçavam.

Cheio de charme, Smith voltou-se para Irene.

— Que bela surpresa vê-la, Dra. Kennedy.

Ela sorriu.

— Igualmente, Sir Roland.

Por alguma razão, sempre que encontrava Smith, Irene não conseguia deixar de pensar na hilariante personagem Flashman, de George MacDonald Fraser.

Smith estava com pressa ou, mais provavelmente, partilhava o receio comum a agentes dos serviços secretos de todo o mundo. Falar em sítios transientes e inseguros nunca era boa ideia, a menos que se quisesse ser escutado. Tal como acontecia com a embaixada dos EUA em Paris, os gabinetes seguros do MI6 localizavam-se na segunda subcave. Desceram pelas escadas e, quando chegaram a uma porta pesada de aço com uma câmara por cima, Smith marcou um código num teclado e entraram. Saudou um homem sentado a uma secretária, mas não perdeu tempo com apresentações. Continuaram por um longo corredor feio, com paredes beges e chão de linóleo. Ao contrário do resto da embaixada, aquela área não sofrera uma grande remodelação.

Smith abriu uma porta à direita e fez-lhes sinal para que entrassem. Irene sentiu uma familiaridade imediata com o espaço. O chão era de borracha e as paredes e o teto estavam cobertos de espuma acústica cinzenta. Era ali que o MI6 realizava as suas reuniões mais delicadas. A mesa tinha quatro cadeiras de cada lado e uma em cada extremo. Ao fundo, um homem muito pequeno vestido de preto estava sentado e sorria-lhe. Ela correspondeu-lhe ao sorriso e calculou que ele tivesse cerca de noventa anos.

Irene reparou no colarinho branco do homem. Aproximou-se dele, estendeu-lhe a mão e apresentou-se.

O homem continuou a sorrir e disse-lhe em francês:

— É um prazer conhecê-la, menina Kennedy. Sou o monsenhor Peter de Fleury.

Stansfield perguntou:

— Não vou ter de lhe beijar as costas da mão, pois não?

— Sim — disse o velho padre. — E, já agora, o meu rabo branco e ossudo.

Irene foi apanhada completamente de surpresa. O seu superior nunca brincava.

Mas, naquele momento, Stansfield e Smith riam-se como colegiais.

— Eminência — disse Stansfield —, é uma honra estar na sua santa presença.

De Fleury sorriu e disse:

— Eu devia excomungá-lo.

— Provavelmente, e eu depois junto-me à Igreja Anglicana, como aqui o Rollie.

— E arderá no inferno juntamente com ele e todos os outros pagãos.

Já estavam os três a rir e continuaram a trocar picardias durante mais uns minutos, até finalmente acalmarem. De Fleury olhou para Irene e disse-lhe:

— Lamento que tenha de aturar um comportamento tão infantil, mas devia ter visto estes dois no final da Segunda Grande Guerra. — Voltou os olhos turvos para Smith e Stansfield e perguntou-lhes: — Lembram-se daquela vez que tive de vos salvar daquele bordel quando o...

— Ei, ei — gritou Stansfield —, não comece a dizer mentiras, caso contrário vou ter de entregar os meus ficheiros secretos ao Vaticano. Tiram-lhe esse novo título sofisticado e passará os últimos anos da sua vida no opróbrio.

— Força — replicou De Fleury. — Seria a coisa mais empolgante que aqueles velhos pavões liam há anos.

Seguiu-se outra ronda de risos e mais histórias. Irene nunca tinha visto o chefe assim e isso fazia-a vê-lo a uma luz diferente. Dada a sua juventude relativa e a mente aguçada que tinha, era fácil esquecer que tinha participado na Segunda Guerra Mundial. Quando os homens finalmente se acalmaram e pararam de se provocar, as coisas assumiram um tom mais sério.

Smith virou-se para Stansfield e disse:

— Quem me dera que as coisas agora fossem diferentes. Não haveria nada que me desse mais gozo do que passar uma noite a ouvir-vos contar mentiras acerca um do outro, mas receio bem que, à luz do que aconteceu na noite passada, não possa ser esta noite. A DGSE vai acossar-vos, sem dúvida.

Stansfield não se mostrou alarmado.

— Depois de se gerir uma estação em Moscovo, a DGSE não é tão intimidante.

— É verdade — disse Rollie num tom pensativo —, mas este novo tipo que está à frente da Divisão de Ação Especial não é alguém que deva ser encarado com ligeireza.

— É o que me consta.

— O Peter vai pôr-te a par de uma coisa muito importante, mas antes eu também tenho algo importante a partilhar.

Isso não constituía surpresa para Stansfield. Tinha recebido um telefonema do amigo em sua casa, no sábado. Umas quantas palavras em código tinham sido inseridas na conversa e, quando Stansfield chegara ao seu gabinete, encontrara à sua espera um cabograma seguro enviado pelo seu chefe de estação de Londres. Era um pedido de um encontro presencial. O tópico a discutir era o assassinato do ministro do petróleo da Líbia.

— Agradeço-te que me tenhas contactado, Rollie.

— É assim que eu e tu funcionamos. Protegemo-nos um ao outro. — Smith tamborilou os dedos na mesa e depois disse: — O ministro do petróleo da Líbia, Tarek al-Magariha... estava ao nosso serviço.

Stansfield não se mostrou surpreendido.

— Achei que era capaz de ser disso que querias falar.

— Mas há um pequeno problema. Também estava ao serviço da DGSE.

Essa informação já surpreendeu Stansfield.

— Quem é que o apanhou primeiro?

— Eles.

— E depois tu recrutaste-o.

— Não fui eu pessoalmente, mas sim, o MI6 recrutou-o.

Stansfield demorou um pouco a ponderar o que acabava de aprender e depois fez a pergunta mais óbvia.

— A Direção-Geral sabia?

Smith encolheu os ombros.

— Provavelmente.

— Provavelmente é a melhor resposta que consegues?

— Não temos nada de concreto, mas o contacto do Tarek disse que ele estava a ficar cada vez mais nervoso. Queria que o tirássemos do país. Achava que a Direção-Geral estava desconfiada e depois foi enviado para o estrangeiro nesta viagem mais recente sem nenhum segurança a acompanhá-lo. Disse ao contacto dele que eles iam matá-lo.

— Eles?

— Segundo me consta, o ministro receava mais os seus associados islâmicos do que a Direção-Geral.

O coração de Irene acelerou, pensando nas palavras de Rapp. Acerca de aquilo ter sido uma cilada. De estarem à espera dele.

— Disse que o mandaram para o estrangeiro sem qualquer segurança?

— Sim.

— Eu julgava que os jornais falavam de quatro guarda-costas assassinados.

Smith desviou a atenção de Irene para Stansfield e fitou-o com um olhar duro.

Stansfield pigarreou e disse:

— O Rollie sabe, Irene.

— Sabe o quê?

— Do Mitch. Sabe que ele esteve lá naquela noite.

Irene não moveu um único músculo, mas sentiu o sangue a afluir-lhe ao rosto. Antes que ela pudesse responder, Stansfield deu-lhe uma espécie de explicação.

— Não temos melhor aliado do que o Rollie e o MI6. Eles têm acesso a áreas onde nós não chegamos, e vice-versa. Confio mais no Rollie do que num bom número de gente no nosso edifício.

Irene assentiu com a cabeça.

— Eu não estou em posição de o julgar, senhor. Não me deve uma explicação. Só me apanhou desprevenida.

— Nesta profissão há uma tendência para entesourar a informação — disse Smith. — Todos sabemos porquê. Não queremos que certas pessoas deitem as mãos a essa informação, mas, como vai verificar durante esta manhã, quando confiamos nas pessoas certas, elas podem ajudar-nos a preencher lacunas que, sozinhos, nunca seríamos capazes de preencher. — Smith virou-se para De Fleury e disse: — Não é, Peter?

— É bem verdade.

De olhar fixo em Irene, Smith disse:

— O monsenhor De Fleury foi muito ativo na Resistência Francesa durante a guerra. Foi tão bem-sucedido que, depois da guerra, o general Charles de Gaulle lhe atribuiu a Legião de Honra numa cerimónia privada. Ao longo das décadas seguintes, sempre que pode tem continuado a ajudar tanto os serviços secretos franceses como os nossos.

— Não lhe ligue — disse De Fleury —, estou velho e imprestável, mas houve uma altura em que cumpri o meu papel.

— E continua a cumpri-lo, como eles não tardarão a descobrir. — Smith encorajou-o: — Conte-lhes o que testemunhou no sábado à noite.

De Fleury sorriu a Irene e disse:

— A minha igreja é a Basílica do Sagrado Coração... já ouviu falar?

— Claro.

— É um lugar muito movimentado. Muitos turistas. Muita gente a chegar e ir embora. Resulta que também é o local perfeito para realizar certas reuniões da Direção-Geral. Uma dessas reuniões teve lugar na noite de sábado. — De Fleury levou a mão ao interior do casaco, remexeu lá dentro por um momento e recuperou várias folhas brancas dobradas. Colocou os papéis à frente dela. — Tomei notas. A minha mente não é tão aguçada como antigamente. Um homem chamado Paul Fournier, que trabalha para a Direção-Geral, marcou a reunião. Os outros homens eram cruéis. Pelo menos dois deles. Eu já estive na presença do mal, e aqueles dois homens eram malvados. Eram assassinos. Eram muçulmanos e muito grosseiros. Queixaram-se por a reunião ter lugar numa igreja.

Irene assentiu com a cabeça.

— O terceiro homem era educado. Tinha a pele escura, mas falava francês muito melhor do que os outros dois. Chamava-se Max. Começaram a falar dos assassinatos no hotel. O Fournier disse a um dos homens zangado... não me lembro do nome dele, mas está nas notas. Ele disse-lhe: “Veio cá para matar um homem, não o fez e agora eu tenho que me haver com nove cadáveres. Entreguei-lhe este assassino numa bandeja de prata e você meteu os pés pelas mãos de tal maneira que passei o dia inteiro a tentar limpar a porcaria que deixou.”

— O senhor estava presente enquanto eles discutiam isso? — perguntou Irene.

— Não. — De Fleury sorriu. — Eles estavam na cripta. Há uma saída de ar que transporta a voz de quem fale ali até um dos confessionários.

Irene assentiu com a cabeça e pediu:

— Por favor, continue.

— Os ânimos ficaram muito exaltados, com os terroristas a culparem o Fournier por lhes ter armado uma cilada, enquanto ele os culpava por terem dado cabo da melhor oportunidade para matar aquele assassino. Fournier acusou o tal Samir, era esse o seu nome, de ter assassinado três civis inocentes enquanto saía do hotel.

Irene e Stansfield entreolharam-se e logo tornaram a concentrar-se em De Fleury.

— Eles ameaçaram-no, e ele por sua vez ameaçou fazer com que morressem afogados no oceano. Isso foi quando eles disseram que a Líbia poderia começar a divergir parte do seu petróleo e que talvez voltassem a detonar bombas em França. O Fournier riu-se deles e disse-lhes que entregaria os ficheiros que tinha acerca deles ao assassino e que ele os perseguiria a todos. Eles ameaçaram informar os chefes dele. O Fournier disse-lhes que os seus chefes sabiam tudo acerca daquele acordo. A coisa continuou até que aquele que se chamava Max interveio. Então falaram mais do assassino e da cena do crime. — Os olhos do monsenhor ficaram desfocados e ele olhou para a parede ao longe. — Depois disso... não me lembro ao certo do que disseram. — O seu olhar tornou a concentrar-se e ele voltou-se para Irene, dizendo: — Está tudo no meu relatório. Verifiquei tudo várias vezes. Está tudo aí. — Assentiu com a cabeça. — Só já não está tudo aqui. — E bateu com um dedo quase translúcido na cabeça.

Irene não se tinha dado conta, mas estava de queixo caído, incrédula. Pestanejou várias vezes e depois fitou os papéis que tinha nas mãos, folheando-os rapidamente. Eram oito páginas escritas à mão numa bela letra cursiva fluida. Parecia o melhor presente que alguma vez recebera. Tudo o que Rapp dissera era verdade.

— Obrigada, monsenhor.

— E é por isso — disse Rollie Smith num tom jovial —, que partilhamos informação.