CAPÍTULO 42

A sala de interrogatórios costumava ser usada para receber os relatórios de agentes, mas, ocasionalmente, já tinha sido usada para coisas mais violentas. As paredes estavam pintadas de branco-sujo e o pavimento era de betão. Uma mesa de dois metros por um e vinte estava presa ao centro da sala. Hurley encontrava-se de um lado, Victor do outro. Por mais que Stansfield se sentisse inclinado a autorizar que apertassem com Victor, parecia-lhe que havia uma forma melhor de proceder, pelo que ficou calmamente a observar pelo espelho unidirecional enquanto Stan Hurley revia os acontecimentos das últimas catorze horas com Victor.

Irene Kennedy aproximou-se do espelho e disse:

— Senhor, acho que precisa de ouvir o que o Tom Lewis tem a dizer.

Stansfield olhou para Irene e assentiu com a cabeça. O psicólogo juntou-se-lhes em frente ao espelho e perguntou:

— Tem lido os meus relatórios?

— A maioria.

Com um homem meticuloso como Stansfield, isso queria dizer que os seus relatórios tinham deixado de ser importantes, ou que o resto do trabalho não lhe dava tempo para tudo.

— Leu os mais recentes, sobre o Victor?

— Não.

Stansfield observava o rosto de Victor e ouvia-lhe a voz pelas colunas do teto.

— Tem-se tornado cada vez mais difícil lidar com o Bramble, ou Victor, como a maioria dos homens lhe chama.

— É difícil lidar com a maioria das pessoas neste ramo — disse Stansfield, sem o menor laivo de humor. — Mas prossiga.

— Ele não é estimado.

— Suponho que se refira pelo Mitch.

— Sim, e por basicamente todos os outros.

— Isso não é verdade — contrapôs Stansfield. — O Stan e o Victor dão-se bem.

— Isso é porque o Victor é o cão amestrado dele — interveio Irene.

— E o Stan diria o mesmo acerca de si e do Mitch.

— O Victor e o Mitch são pessoas muito diferentes. — Olhando para Lewis, ela disse: — Explique.

Lewis assentiu com a cabeça e concentrou-se em Stansfield.

— No meu último relatório, indiquei várias preocupações sérias com o Victor. Tenho reparado num vasto desprezo e abuso dos direitos dos outros. É desonesto e mente facilmente aos colegas, sobretudo se isso contribuir para seu próprio proveito. É extremamente irascível e agressivo, sendo dado a lutar à mínima indicação de uma desfeita. Tem uma desconsideração imprudente pela segurança dos outros, o que muitas vezes se manifesta em partidas a que só ele acha graça. Não revela praticamente remorso algum quando magoa um recruta... na verdade, parece-me que tira um prazer perverso de infligir dor.

Stansfield tamborilou os dedos no parapeito em frente ao espelho.

— Acaba de descrever uma boa porção dos homens com quem tenho trabalhado ao longo dos anos — lamentou.

Lewis pigarreou.

— À primeira vista, pode parecer que assim é, e não duvido de que terá trabalhado com muitos homens duros que partilham uma ou duas dessas qualidades, dos quais se destaca o Stan, mas posso garantir-lhe que há sete particularidades que caracterizam o distúrbio de personalidade antissocial e que o Victor tem as sete.

Stansfield desviou o olhar do interrogatório e fitou o psicólogo.

— Quantas tem o Stan?

— Três... talvez quatro.

— E eu? — perguntou Stansfield, com um ar muito sério.

— Só uma — disse Lewis, com um sorriso ténue. — Por outro lado, precisaria de mais tempo para o observar adequadamente... mas não me preocuparia. Por norma, é preciso ter pelo menos quatro dessas particularidades para a doença ser diagnosticada.

— E o Mitch, quantas tem?

— Só uma ou duas.

— Essa sua avaliação... quão séria é?

— Muito séria.

— E, se eu pedisse uma segunda opinião, a pessoa que a desse chegaria às mesmas conclusões.

— Tenho praticamente a certeza.

— Este problema pode ser resolvido com tratamento?

Lewis hesitou por um segundo e depois abanou a cabeça.

— Seria necessário muito tempo e esforço, e o paciente teria de estar disposto a isso.

Olhando pelo vidro, Stansfield perguntou:

— E parece-lhe que o Victor estaria disposto a submeter-se ao tratamento?

— Não.

Stansfield fitou a sala do outro lado do espelho e disse:

— O Stan não vai gostar disto.

— Não, não vai, mas ele não vê as realidades deste problema. Isto vai bem mais além do que o Stan e de quem gosta ou deixa de gostar. Escrevi tudo isto no meu relatório. Pessoas como o Victor são extremamente voláteis. Costumam acabar na cadeia, financeiramente arruinadas, ou as duas coisas.

Stansfield deu um passo atrás.

— Não recrutamos escoteiros para fazer este trabalho. Sabem-no bem. Os escoteiros estão todos no FBI. Nós precisamos de gente disposta a esticar as regras... a fazer certas coisas que um indivíduo mentalmente estável nunca consideraria fazer.

Lewis assentiu com a cabeça e disse:

— E o senhor contratou-me para me manter atento... para garantir que temos agentes que sabem que há certos limites que não se ultrapassam, e estou a dizer-lhe que o Victor ultrapassará qualquer limite desde que isso o ajude a obter o que quer.

— Sabe que telefonei ao Stan ontem à noite e lhe disse para extrair o Victor e a equipa?

Lewis assentiu com a cabeça.

— O Victor alega que estavam a preparar-se para ir embora quando o Rapp mandou o chamariz.

— Estou a par disso.

— Acredita nele?

Lewis foi cuidadoso a responder.

— Não tenho a certeza de acreditar no que quer que o Victor diga.

— Mais alguma coisa?

— Uma coisa é tê-lo na quinta a brutalizar recrutas... mas largá-lo à solta em Paris... — Lewis abanou a cabeça. — Isso foi má ideia.

— E porque é que não me chamou a atenção para isto antes?

— Grande parte disto estava no meu último relatório.

Thomas Stansfield fixou os seus olhos frios, cinzentos e argutos no psicólogo.

— Recebo muitos relatórios. Porque é que não veio falar comigo?

Lewis suspirou e disse:

— Eu não estava presente quando ele foi recrutado, mas, ao longo do ano passado, fui ficando cada vez mais preocupado. E há também que ter o Stan em conta.

— O que é que ele tem?

— Vocês os dois são muito leais um ao outro.

— Conhecemo-nos há muito, e eu sei como ele é.

— Dá-me permissão para ser brutalmente honesto, senhor?

Stansfield sabia que aquelas palavras eram um sinal do treino das Forças Especiais a revelar-se no psicólogo, e também percebeu que, se pedia permissão para falar livremente, era porque diria algo altamente crítico acerca dele. Como nunca tinha tido medo da verdade, disse:

— Permissão dada.

— O senhor tem um ponto cego no que diz respeito ao Stan. Já por várias vezes tenho tentado fazê-lo ver certas coisas, e a Irene também, mas o senhor ignora-nos. Eu compreendo que ele tem uma carreira cheia e não há dúvida de que pode ter a sua utilidade, mas receio bem que torná-lo responsável por recrutar e treinar estes homens tenha sido um erro tremendo. E o Victor é a principal prova disso. O homem já devia ter sido expulso há anos.

Olhando pelo espelho unidirecional, Stansfield perguntou:

— Então o que recomenda que faça em relação a este problema?

— Mande o Victor embora e faça-o o mais depressa possível.

— E se ele não quiser demitir-se?

O psicólogo de olhos azuis e antigo soldado das Forças Especiais hesitou por um segundo e depois disse:

— Devia eliminá-lo.

Aquilo era bem mais sério do que tinha esperado. Considerava Lewis um homem pensativo que era muito escrupuloso quanto às suas recomendações. Era a primeira vez em três anos que sugeria tal coisa. Stansfield não tinha quaisquer ilusões quanto a quem era. Já matara e já tinha dado ordens para matar. Isso fazia parte do seu trabalho.

— Vou ter tudo isso em consideração. — Afastou-se do espelho e depois parou e olhou de novo para Lewis. — E o que lhe parece que deveria fazer com o Stan?

Apesar de ter umas quantas opiniões bem fortes acerca disso, Lewis não tinha a presunção de julgar que devesse comunicá-las a Stansfield.

— O senhor conhece-o melhor do que qualquer um de nós. Creio que será mais do que capaz de tomar essa decisão por si mesmo.

Um sorriso levíssimo enrugou a boca de Stansfield.

— É um homem esperto, doutor. Aprecio a sua honestidade.