A sala de interrogatórios costumava ser usada para receber os relatórios de agentes, mas, ocasionalmente, já tinha sido usada para coisas mais violentas. As paredes estavam pintadas de branco-sujo e o pavimento era de betão. Uma mesa de dois metros por um e vinte estava presa ao centro da sala. Hurley encontrava-se de um lado, Victor do outro. Por mais que Stansfield se sentisse inclinado a autorizar que apertassem com Victor, parecia-lhe que havia uma forma melhor de proceder, pelo que ficou calmamente a observar pelo espelho unidirecional enquanto Stan Hurley revia os acontecimentos das últimas catorze horas com Victor.
Irene Kennedy aproximou-se do espelho e disse:
— Senhor, acho que precisa de ouvir o que o Tom Lewis tem a dizer.
Stansfield olhou para Irene e assentiu com a cabeça. O psicólogo juntou-se-lhes em frente ao espelho e perguntou:
— Tem lido os meus relatórios?
— A maioria.
Com um homem meticuloso como Stansfield, isso queria dizer que os seus relatórios tinham deixado de ser importantes, ou que o resto do trabalho não lhe dava tempo para tudo.
— Leu os mais recentes, sobre o Victor?
— Não.
Stansfield observava o rosto de Victor e ouvia-lhe a voz pelas colunas do teto.
— Tem-se tornado cada vez mais difícil lidar com o Bramble, ou Victor, como a maioria dos homens lhe chama.
— É difícil lidar com a maioria das pessoas neste ramo — disse Stansfield, sem o menor laivo de humor. — Mas prossiga.
— Ele não é estimado.
— Suponho que se refira pelo Mitch.
— Sim, e por basicamente todos os outros.
— Isso não é verdade — contrapôs Stansfield. — O Stan e o Victor dão-se bem.
— Isso é porque o Victor é o cão amestrado dele — interveio Irene.
— E o Stan diria o mesmo acerca de si e do Mitch.
— O Victor e o Mitch são pessoas muito diferentes. — Olhando para Lewis, ela disse: — Explique.
Lewis assentiu com a cabeça e concentrou-se em Stansfield.
— No meu último relatório, indiquei várias preocupações sérias com o Victor. Tenho reparado num vasto desprezo e abuso dos direitos dos outros. É desonesto e mente facilmente aos colegas, sobretudo se isso contribuir para seu próprio proveito. É extremamente irascível e agressivo, sendo dado a lutar à mínima indicação de uma desfeita. Tem uma desconsideração imprudente pela segurança dos outros, o que muitas vezes se manifesta em partidas a que só ele acha graça. Não revela praticamente remorso algum quando magoa um recruta... na verdade, parece-me que tira um prazer perverso de infligir dor.
Stansfield tamborilou os dedos no parapeito em frente ao espelho.
— Acaba de descrever uma boa porção dos homens com quem tenho trabalhado ao longo dos anos — lamentou.
Lewis pigarreou.
— À primeira vista, pode parecer que assim é, e não duvido de que terá trabalhado com muitos homens duros que partilham uma ou duas dessas qualidades, dos quais se destaca o Stan, mas posso garantir-lhe que há sete particularidades que caracterizam o distúrbio de personalidade antissocial e que o Victor tem as sete.
Stansfield desviou o olhar do interrogatório e fitou o psicólogo.
— Quantas tem o Stan?
— Três... talvez quatro.
— E eu? — perguntou Stansfield, com um ar muito sério.
— Só uma — disse Lewis, com um sorriso ténue. — Por outro lado, precisaria de mais tempo para o observar adequadamente... mas não me preocuparia. Por norma, é preciso ter pelo menos quatro dessas particularidades para a doença ser diagnosticada.
— E o Mitch, quantas tem?
— Só uma ou duas.
— Essa sua avaliação... quão séria é?
— Muito séria.
— E, se eu pedisse uma segunda opinião, a pessoa que a desse chegaria às mesmas conclusões.
— Tenho praticamente a certeza.
— Este problema pode ser resolvido com tratamento?
Lewis hesitou por um segundo e depois abanou a cabeça.
— Seria necessário muito tempo e esforço, e o paciente teria de estar disposto a isso.
Olhando pelo vidro, Stansfield perguntou:
— E parece-lhe que o Victor estaria disposto a submeter-se ao tratamento?
— Não.
Stansfield fitou a sala do outro lado do espelho e disse:
— O Stan não vai gostar disto.
— Não, não vai, mas ele não vê as realidades deste problema. Isto vai bem mais além do que o Stan e de quem gosta ou deixa de gostar. Escrevi tudo isto no meu relatório. Pessoas como o Victor são extremamente voláteis. Costumam acabar na cadeia, financeiramente arruinadas, ou as duas coisas.
Stansfield deu um passo atrás.
— Não recrutamos escoteiros para fazer este trabalho. Sabem-no bem. Os escoteiros estão todos no FBI. Nós precisamos de gente disposta a esticar as regras... a fazer certas coisas que um indivíduo mentalmente estável nunca consideraria fazer.
Lewis assentiu com a cabeça e disse:
— E o senhor contratou-me para me manter atento... para garantir que temos agentes que sabem que há certos limites que não se ultrapassam, e estou a dizer-lhe que o Victor ultrapassará qualquer limite desde que isso o ajude a obter o que quer.
— Sabe que telefonei ao Stan ontem à noite e lhe disse para extrair o Victor e a equipa?
Lewis assentiu com a cabeça.
— O Victor alega que estavam a preparar-se para ir embora quando o Rapp mandou o chamariz.
— Estou a par disso.
— Acredita nele?
Lewis foi cuidadoso a responder.
— Não tenho a certeza de acreditar no que quer que o Victor diga.
— Mais alguma coisa?
— Uma coisa é tê-lo na quinta a brutalizar recrutas... mas largá-lo à solta em Paris... — Lewis abanou a cabeça. — Isso foi má ideia.
— E porque é que não me chamou a atenção para isto antes?
— Grande parte disto estava no meu último relatório.
Thomas Stansfield fixou os seus olhos frios, cinzentos e argutos no psicólogo.
— Recebo muitos relatórios. Porque é que não veio falar comigo?
Lewis suspirou e disse:
— Eu não estava presente quando ele foi recrutado, mas, ao longo do ano passado, fui ficando cada vez mais preocupado. E há também que ter o Stan em conta.
— O que é que ele tem?
— Vocês os dois são muito leais um ao outro.
— Conhecemo-nos há muito, e eu sei como ele é.
— Dá-me permissão para ser brutalmente honesto, senhor?
Stansfield sabia que aquelas palavras eram um sinal do treino das Forças Especiais a revelar-se no psicólogo, e também percebeu que, se pedia permissão para falar livremente, era porque diria algo altamente crítico acerca dele. Como nunca tinha tido medo da verdade, disse:
— Permissão dada.
— O senhor tem um ponto cego no que diz respeito ao Stan. Já por várias vezes tenho tentado fazê-lo ver certas coisas, e a Irene também, mas o senhor ignora-nos. Eu compreendo que ele tem uma carreira cheia e não há dúvida de que pode ter a sua utilidade, mas receio bem que torná-lo responsável por recrutar e treinar estes homens tenha sido um erro tremendo. E o Victor é a principal prova disso. O homem já devia ter sido expulso há anos.
Olhando pelo espelho unidirecional, Stansfield perguntou:
— Então o que recomenda que faça em relação a este problema?
— Mande o Victor embora e faça-o o mais depressa possível.
— E se ele não quiser demitir-se?
O psicólogo de olhos azuis e antigo soldado das Forças Especiais hesitou por um segundo e depois disse:
— Devia eliminá-lo.
Aquilo era bem mais sério do que tinha esperado. Considerava Lewis um homem pensativo que era muito escrupuloso quanto às suas recomendações. Era a primeira vez em três anos que sugeria tal coisa. Stansfield não tinha quaisquer ilusões quanto a quem era. Já matara e já tinha dado ordens para matar. Isso fazia parte do seu trabalho.
— Vou ter tudo isso em consideração. — Afastou-se do espelho e depois parou e olhou de novo para Lewis. — E o que lhe parece que deveria fazer com o Stan?
Apesar de ter umas quantas opiniões bem fortes acerca disso, Lewis não tinha a presunção de julgar que devesse comunicá-las a Stansfield.
— O senhor conhece-o melhor do que qualquer um de nós. Creio que será mais do que capaz de tomar essa decisão por si mesmo.
Um sorriso levíssimo enrugou a boca de Stansfield.
— É um homem esperto, doutor. Aprecio a sua honestidade.