VII

Entretanto da encosta chegava-nos o som de uma foice contra a madeira. E a cada golpe Cinto batia as pestanas.

— É o meu Pai — disse ele —, anda ali em baixo.

Perguntei-lhe porque é que há pouco tinha os olhos fechados quando eu o olhava e as mulheres estavam a falar. De imediato voltou a fechá-los, instintivamente, e negou tê-lo feito. Desatei-me a rir e disse-lhe que eu também fazia aquilo quando era rapaz — assim só via as coisas que queria e quando depois voltava a abrir os olhos divertia-me ao encontrar de novo as coisas como estavam.

Então ele descobriu os dentes, contente, e disse que os coelhos também faziam a mesma coisa.

— Aquele alemão — disse eu — deve estar todo comido pelas formigas.

Um berro da mulher, que gritava Cinto, chamava Cinto, maldizia Cinto, fez-nos sorrir. Ouve-se muitas vezes estes gritos nas colinas.

— Já não se percebia como é que o tinham matado — disse ele. — Esteve debaixo da terra dois invernos…

Quando irrompemos por entre as folhas espessas, as silvas e a hortelã do fundo, o Valino mal levantou a cabeça. Estava a podar com a foice os ramos vermelhos do cabeço de um salgueiro. Como sempre, enquanto noutros lados era agosto, o fundo ali em baixo era frio, quase escuro. Aqui a ladeira em tempos tinha água, que no verão formava uma poça.

Perguntei-lhe onde punha o vime a enxugar, este ano que estava tão seco. Ele baixou-se para pegar no feixe e depois mudou de ideias a observar-me, calcando os ramos com o pé e prendendo a foice atrás das calças. Trazia as calças e o chapéu todos manchados, quase azul-celeste, daqueles que se põem para sulfatar.

— Estão umas belas uvas este ano — disse eu —, só falta um bocado de água.

— Alguma há de sempre faltar — disse o Valino. — Estava à espera do Nuto para aquela dorna. Ele não vem?

Expliquei-lhe então que tinha passado por acaso por Gaminella e sentira vontade de voltar a ver os campos. Já não os reconhecia, de tão trabalhados que estavam. A vinha tinha uns três anos, não? E a casa, perguntei, também tinham feito obras em casa? Quando eu lá morava, era a chaminé que não fumava bem, sempre tinham aberto aquela parede?

O Valino disse-me que em casa estavam as mulheres. Elas é que devem pensar nessas coisas. Levantou o olhar através do campo por entre as folhinhas dos choupos. Disse que o campo era como todos os campos, para darem fruto eram precisos braços que agora não havia.

Falámos então da guerra e dos mortos. Dos filhos não disse nada. Tartamudeou qualquer coisa. Quando falei nos da Resistência e nos alemães, encolheu os ombros. Disse que nessa altura estava em Orto, e vira queimar a casa do Ciora. Durante um ano mais ninguém tinha feito nada nos campos, e se em vez disso todos aqueles homens tivessem voltado para casa — os alemães para casa deles, os rapazes para os campos — tinha-se ficado a ganhar. Que caras, que gente — nunca se tinha visto tanta gente de fora, nem nas feiras de quando era novo.

Cinto estava a ouvir-nos, a boca aberta. Quem sabe quantos, disse eu, não haverá ainda enterrados nas matas.

O Valino olhou para mim com uma expressão sombria — os olhos torvos, duros.

— Pois há — disse ele —, pois há. Basta ter tempo para os ir procurar. — Não havia aversão na voz dele, nem piedade. Era como se falasse de ir aos cogumelos, ou à lenha. Animou-se por instantes, depois disse: — Não deram frutos em vivos. Não dão frutos mortos.

Cá está, pensei, Nuto havia de o considerar um ignorante, um coitado, havia de lhe perguntar se o mundo ficará sempre como era dantes. Nuto, que tinha visto tantos lugares e conhecia as misérias de toda a gente aqui em volta, Nuto nunca teria perguntado se aquela guerra tinha servido para alguma coisa. Tinha de ser feita, o destino assim o decidira. Nuto tem muito esta ideia, que uma coisa que tem de acontecer diz respeito a toda a gente, que o mundo está mal feito e que é preciso refazê-lo.

O Valino não me perguntou se subia com ele a beber um copo. Apanhou o feixe de vimes e perguntou a Cinto se tinha ido apanhar a erva. Cinto, desencostando-se, olhava para o chão e não respondeu. Então o Valino deu um passo para ele e com a mão livre agarrou num vime como um chicote, Cinto afastou-se com um salto e o Valino tropeçou e endireitou-se. Agora, Cinto, ao fundo do campo, observava-o.

Sem uma palavra, o velho seguiu encosta acima, com os vimes debaixo do braço. Nem sequer se voltou quando chegou lá acima. Tive a sensação de ser um rapaz que tivesse vindo brincar com Cinto, e que o velho se tivesse atirado a ele por não poder descarregar em mim. Eu e Cinto olhámos um para o outro a rir, sem dizer nada.

Descemos a encosta sob a abóbada fria das árvores, mas bastava passar nos charcos descobertos, ao sol, para sentir o bafo do calor e o suor. Eu examinava o muro de tufo, aquele em frente do nosso prado, que servia de apoio à vinha do Morone. Viam-se no cimo, sobre o silvado, surgir as primeiras videiras ralas e um belo pessegueiro com algumas folhas já vermelhas como o que lá havia no meu tempo com pêssegos que caíam no campo e nos pareciam melhores do que os nossos. Estas macieiras, pessegueiros, que no verão ficam com as folhas vermelhas ou amarelas, fazem-me vir água à boca ainda hoje, porque as folhas parecem frutos maduros e nós ficamos por baixo, felizes. Para mim todas as plantas deviam ser de fruto; na vinha é assim.

Cinto e eu falávamos de jogadores da bola, depois de jogadores de cartas; e chegámos à estrada, sob o murito do campo, no meio das acácias. Cinto havia já visto um baralho de cartas na mão a um que tinha uma banca no largo, e disse-me que tinha em casa um dois de espadas e um rei de copas que alguém perdera na estrada. Estavam um bocado sujos, mas em bom estado e se a seguir encontrasse também as outras podiam servir. Eu disse-lhe que havia os que jogavam para viver e jogavam casas e terras. Tinha estado num país, contei-lhe eu, onde se jogava com uma pilha de marengos de ouro em cima da mesa e a pistola no colete. E mesmo cá, uma vez, quando era novo, os patrões das quintas, depois de venderem as uvas ou o cereal, atrelavam o cavalo e partiam pela fresca, iam para Nizza, para Acqui, com saquinhos de marengos e jogavam a noite inteira. Jogavam os marengos, depois as matas, depois os prados, depois a quinta, e na manhã seguinte davam com eles mortos na cama da pousada, sob o quadro da Virgem e do ramo de oliveira benzido. Ou então partiam na sua carriola e nunca mais se ouvia falar neles. Havia quem jogasse até a mulher, e então os filhos ficavam sós, punham-nos fora de casa, e são esses que se chamam bastardos.

— O filho do Maurino — diz Cinto — é um bastardo.

— Há quem os recolha — disse eu —, são sempre os pobres que recolhem os bastardos. Vê-se que o Maurino precisava de um rapaz…

— Se lhe chamam isso, zanga-se — disse Cinto.

— Não lhe deves chamar isso. Que culpa tens tu se o teu pai te abandona? Basta ter vontade de trabalhar. Conheci bastardos que compraram quintas.

Tínhamos desembocado do campo e Cinto, trotando à minha frente, tinha-se sentado no murito. Por trás dos choupos do outro lado da estrada ficava o Belbo. Era para aqui que íamos brincar, depois de a cabra nos ter levado a passear pelas encostas e pelos campos. As pedras da estrada eram ainda as mesmas, e os troncos frescos dos choupos tinham o odor da água corrente.

— Não vais apanhar a erva para os coelhos? — perguntei eu.

Cinto disse que já ia. Então pus-me a caminho e até à curva senti aqueles olhos que me seguiam do canavial.