Até aqui tivemos a oportunidade de acompanhar a escalada profissional de Mário Palmério por meio do estudo detalhado dos esforços que ele empreendeu para consolidar as suas escolas e firmar o conceito dessas instituições. No entanto, isso não é tudo – ou melhor, apenas isso não explica o êxito de sua ascendência nos círculos sociais e políticos da região. Imerso naquela sociedade do elogio mútuo, Palmério desde cedo percebeu que o reconhecimento social não seria consequência apenas do mérito pessoal, mas estaria diretamente condicionado à habilidade no teatro da consagração pública.
Desse modo, o professor aprendeu rapidamente a manejar toda aquela simbologia e, enquanto trabalhava pelas suas escolas, jamais deixou de lado a busca pela visibilidade social. Para isso, ele atuou conscientemente durante toda a década de 1940 para instituir a cenografia e compor a figuração de seu papel social, assim como para participar dos grupos de status, acumular prestígio e consolidar o seu nome no imaginário da cidade. É o que estudaremos a seguir.
O homem político empenha-se cuidadosamente para compor uma imagem de si mesmo capaz de atrair e de capturar a reverência permanente do público. “Essa imagem é uma reprodução mais ou menos fiel dele mesmo. É o conjunto de traços que ele preferiu apresentar à observação pública. É uma seleção, uma recomposição” – ensina Schwartzenberg (1978, p.21). Assim, observamos que Mário Palmério, atento à necessidade de edificar uma boa imagem pública, trabalhou zelosamente para selecionar e difundir determinadas qualidades que, de fato, acabaram sendo profundamente relacionadas à sua figura.
No início de 1940, quando os irmãos Palmério anunciaram pela primeira vez aquele modesto curso de madureza instalado em um cômodo da casa da família, o jovem Mário, com seus 23 anos de idade, ainda não era reconhecido em Uberaba por seu papel de professor. É certo que ele ministrara algumas aulas nos anos 1930, trabalhara como docente em São Paulo e uma vez já fora denominado como tal na coluna social do Lavoura e Comércio; contudo, na prática, as pessoas ainda não o chamavam propriamente de “professor Mário Palmério”. Uma evidência desse não reconhecimento é o fato de que, naquele primeiro anúncio do curso de madureza, Mário tenha sentido a necessidade de ser tão meticulosamente prolixo em sua apresentação: “Prof. Mário Palmério: Ex-professor de matemática dos cursos complementares Pré Médico da Escola Paulista de Medicina e do Colégio Universitário da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo” (Lavoura e Comércio, 15.2.1940, p.3).
Como vemos, a conceituada Lourencina não precisou de outras qualificações além de seu próprio nome – o que indica, ao contrário do irmão, uma notoriedade já implícita. Mas o jovem professor, até há pouco conhecido apenas como o garotão que gostava de pomares, caçadas e pescarias, não pôde deixar de propagandear-se por meio de uma verdadeira apologia para sugerir uma supervalorizada carreira docente em São Paulo (que, como sabemos, havia sido bem curta). A despeito da inconfessada – mas evidente – inexperiência, essa efusiva autoapresentação foi a primeira iniciativa de Mário Palmério no sentido de disputar um posto prestigioso no imaginário da cidade.
Figura 34 – Primeiro anúncio do curso de madureza “Triângulo Mineiro” publicado no Lavoura e Comércio, em 15 de fevereiro de 1940.
Entretanto, evidentemente o professor precisava de mais. Como vimos, assim que abriram o curso primário do Liceu, os irmãos procuraram o Lavoura para anunciar a iniciativa. E é claro que o jovem Mário aproveitou a oportunidade para apresentar, com todas as letras, o seu novo papel na cena social da cidade. Desse modo, com o diligente apoio do jornal, que cumpriu o obséquio de falar por ele, o jovem professor empenhou-se como pôde para atribuir a si mesmo a surpreendente e precoce competência que o habilitava, indubitavelmente, às responsabilidades na codireção de uma escola primária:
Melhor recomendado para o sucesso do “Liceu Triângulo Mineiro” não se poderia encontrar. O prof. Mário Palmério é uma personalidade talhada para mister de tal ordem. Esse professor do curso complementar pré-médico da Escola Paulista de Medicina, e ex-vice diretor do Liceu Pan-Americano, um dos maiores estabelecimentos de ensino da capital paulista e de propriedade da referida escola, o jovem conterrâneo, ainda aluno da secção de ciências matemáticas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, foi nomeado pelo governo do Estado de São Paulo para reger a cadeira de Análise Matemática, Cálculo Vetorial e Geometria Analítica do Colégio Universitário da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, no período letivo de 1939. E tal foi o brilhantismo com que se distinguiu em cargo tão honroso e difícil, que em agosto do mesmo ano, o governo paulista o comissionou para se especializar em engenharia aeronáutica no Curtiss Technical Institute, na Califórnia, Estados Unidos da América do Norte, dada a falta de técnicos brasileiros especialistas na construção de aviões e curso esse só possível aos bem iniciados na mais difícil e árdua ciência: a matemática. E só não foi realizada a viagem de estudos aos Estados Unidos pelo prof. Mário Palmério devido à insegurança do atual conflito europeu, suscetível de se estender ao mundo todo, o que iria prejudicar intimamente tão desvanecedora comissão dada pelo governo paulista ao jovem professor. (Lavoura e Comércio, 9.5.1940, p.2)
Por ocasião do anúncio precipitado daquela malograda Faculdade de Comércio em 1940, o diário local, obviamente induzido por Mário Palmério, ornamentou ainda mais a biografia do jovem professor, acrescentando adjetivos e tingindo de ouro a experiência profissional em São Paulo. Ao referir-se a Mário e Lourencina, o jornal reprocessou toda aquela loquacidade e registrou o seguinte:
A trajetória do primeiro pelas casas de ensino da capital paulista é uma verdadeira curva ascendente que culmina com a regência da cadeira da Matemática Superior do Colégio Universitário da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Suas credenciais como professor são, portanto, as mais decisivas. Um sólido e longo curso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo permite ao jovem conterrâneo, especializando-se nas cadeiras de Matemática e Física, inexcedível competência e segurança na regência de cadeiras de tão grande importância. (ibidem, 9.7.1940, p.5)
Assim, com a maior naturalidade, sete meses de docência no ensino secundário em São Paulo se transformaram na “curva ascendente que culmina com a regência da cadeira de Matemática Superior Colégio Universitário da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo”, e a experiência como aluno em um ano letivo no ensino superior virou um “sólido e longo curso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo”. Ainda que a prática da fabulação fosse usual naquela cidade, Mário Palmério seria particularmente talentoso no expediente de supervalorizar os próprios méritos por meio do manejo de um vocabulário abundante e persuasivo, capaz de embaralhar qualquer hesitação. Naquela Uberaba semirrural dos anos 1940, de fato era difícil não se impressionar com tal currículo.
Figura 35 – Notícia sobre a criação do Liceu Triângulo Mineiro publicada em 9 de maio de 1940.
Figura 36 – Notícia sobre a criação da Faculdade de Comércio Triângulo Mineiro publicada em 9 de julho de 1940.
Como vimos no capítulo anterior, no empenho em firmar o imaginário de uma cidade próspera, a imprensa local se empenhava em inflacionar a reputação profissional dos conterrâneos para que esses personagens pudessem corresponder às ilimitadas aspirações civilizatórias das elites sociais. Desse modo, é preciso ter em conta que o alcance daqueles elogios superava o mero indivíduo Mário Palmério, pois, na verdade, essa tradição integrava um projeto histórico de autoafirmação grupal. Uma evidência disso é que, já no noticiário sobre os primeiros empreendimentos dos irmãos, a imprensa jamais deixou de associá-los ao “impressionante surto de desenvolvimento” de Uberaba. Naquele primeiro semestre de 1940 – ou seja, antes mesmo da efetivação do curso primário –, o Lavoura e Comércio (9.5.1940, p.2) afiançava, por exemplo, que o Liceu se tratava de uma “modelar casa de ensino” que confirmava o extraordinário progresso da cidade. Quando Mário e Lourencina prometeram a jamais realizada Faculdade de Comércio, o jornal foi às alturas:
É incrível, para quem está acostumado com fatos normais, o movimento progressista que se desenvolve em Uberaba. A marcha para a frente que se processa dentro de nossa terra atinge velocidade e força raríssimas vezes alcançadas em coletividades humanas. E em todos os setores da atividade, Uberaba se revela desta maneira verdadeiramente extraordinária. Ainda há poucos meses noticiávamos nós, com a mais profunda satisfação, a fundação do Liceu Triângulo Mineiro, estabelecimento de ensino primário e secundário que se ergueu graças ao dinamismo e pujante iniciativa de dois irmãos uberabenses: o prof. Mário Palmério e a profa. Lourencina Palmério. […] Extendem eles agora, mais ainda, o seu raio de ação. Foi fundada a Faculdade de Comércio Triângulo Mineiro. (ibidem, 9.7.1940, p.5)
Para o Lavoura, essa notícia deveria inspirar o júbilo de toda a cidade, pois, além de marcar um verdadeiro “acontecimento” na história de Uberaba, os irmãos eram “conterrâneos” que se empenhavam em levar, mais adiante ainda, a civilização local: “E isso deve ser motivo de grande satisfação por parte de todos os uberabenses que querem que o progresso de sua terra seja feito por seus próprios filhos”.
Contudo, ainda que o jovem Mário tivesse interesse em participar dos circuitos sociais, ele não parecia disposto a abrir mão de sua individualidade em nome de uma ascensão meramente institucional do Liceu. Assim, tirando partido da disposição da imprensa em superdimensionar os feitos dos “uberabenses”, Maria Lourencina (natural de Sacramento) e Mário Palmério (nascido em Monte Carmelo), filhos de um imigrante italiano, ao ignorarem a tradição xenofóbica em Uberaba (cf. Fontoura, 2001), aproveitaram todas as oportunidades para impor os seus nomes na vida da cidade. Não era muito comum, no caso das demais escolas, por exemplo, que os diretores fossem nominalmente citados nos anúncios publicitários. No entanto, desde as primeiras propagandas do curso de madureza, os irmãos Palmério cuidaram de estampar os seus nomes e sobrenomes com destaque e raramente deixaram de se vincular com intimidade à imagem da escola.
Naqueles primeiros anos, a despeito da desenvoltura do jovem professor, alguns indícios nos apontam que, na percepção pública, a experiente Lourencina era reconhecida como a notória diretora do Liceu. Assim, de certo modo, o caçula não deixava de disputar com a irmã a primazia na imagem de principal representante da escola. Em julho de 1940, por exemplo, o Lavoura e Comércio (22.7.1940, p.4) registrou que havia sido Mário quem estivera no Departamento Nacional de Ensino para tratar do reconhecimento oficial. Mas, em janeiro de 1941, quando a prefeitura enviou ao governo de Minas um telegrama coletivo de homenagens, foi Lourencina quem assinou pelo Liceu (ibidem, 15.1.1941, p.6). No mês seguinte, Mário assumiu sozinho alguns anúncios de aulas particulares na escola (ibidem, 8.2.1941, p.5). Lourencina, por sua vez, reivindicou o mérito individual no sucesso da aprovação de ex-alunos em concursos públicos (ibidem, 20.2.1941, p.3), enquanto o irmão continuava assinando sozinho, agora com o seu nome em letras maiúsculas, os anúncios de classes particulares (ibidem, 25.2.1941, p.4). Na propaganda do curso primário do ano letivo de 1941, os irmãos apareceram juntos (ibidem, 14.3.1941, p.4); mas, quando o Liceu anunciou a incorporação dos alunos do recém-extinto Ginásio Brasil, foi Mário quem assinou, sozinho, o comunicado (ibidem, 25.3.1941, p.1). No fim do ano, foi noticiado que Mário mais uma vez era o responsável pelas transações com a fiscalização federal (ibidem, 23.12.1941, p.6). Até que, em dezembro de 1941, na notícia sobre a criação do curso secundário, Mário Palmério já era reconhecido como o único diretor-proprietário do estabelecimento (ibidem, 26.12.1941, p.1). Ou seja, a discreta Lourencina deixou a escola sem espalhafato, de modo que, a partir de 1942, os anúncios trariam apenas o nome do irmão (ibidem, 2.1.1942, p.6).
Figura 37 – Em dezembro de 1941, Mário Palmério já era reconhecido como único diretor do Liceu.
Figura 38 – O anúncio do ano letivo de 1942 trouxe apenas o nome de Mário na direção da escola.
Podemos notar que Mário Palmério passou a ser realmente respeitado na cidade quando conseguiu instalar o curso secundário, em fins de 1941. Se nos lembrarmos de que, em Uberaba, até então existiam apenas dois ginásios, devemos reconhecer que o feito tinha cacife para impulsioná-lo ao rol dos grandes realizadores locais. A notícia sobre o início das aulas na “vitoriosa casa de ensino”, por exemplo, já se referia à “orientação criteriosa e segura” do “conhecido educador”. Ou seja, em dois anos, Palmério já firmara, de modo inequívoco, a sua notoriedade profissional (ibidem, 7.4.1942, p.5).
Consciente da fragilidade daquela conquista, Palmério passou a procurar meios para garantir a visibilidade permanente da escola – e de sua própria figura – no imaginário da cidade. E foi assim que, ao lado dos anúncios publicitários e das colunas sociais, o professor começou a aparecer também nas colunas de esportes do Lavoura e Comércio. Vejamos como isso se deu.
Uma das ações que aparentemente mais entusiasmavam o diretor era o incentivo às práticas esportivas estudantis. Como vimos, Palmério vez ou outra se manifestava sobre a importância que conferia à educação física na formação escolar. A propósito, o slogan da escola em 1943 era “Uma perfeita educação intelectual ao par de uma completa educação física” (ibidem, 11.10.1943, p.2). Pois bem. Em geral, naquela época, as colunas de esporte da imprensa local noticiavam precisamente os torneios entre os times de colégios, associações e clubes recreativos. A despeito do amadorismo dos atletas, esses jogos eram descritos como “sensacionais” e conquistavam espaços privilegiados nas páginas do jornal. Foi nesse contexto que, no segundo semestre de 1942, Mário Palmério incentivou a criação do time de voleibol feminino, e, a partir de então, as garotas do chamado “six do Liceu” entraram animadas no circuito desportivo da cidade.
A participação nos torneios mobilizava a imaginação dos alunos e de suas famílias, garantia a publicação de fotografias das atletas nos jornais, promovia o nome da escola e popularizava ainda mais a figura do diretor. O Lavoura fazia a sua parte e se empenhava para espetacularizar a imagem das jovens jogadoras e criar a expectativa de jogos fantásticos e imperdíveis. Em uma partida entre o Liceu e o Ginásio Nossa Senhora das Dores, por exemplo, o jornal registrou que se tratava do “mais sensacional torneio” já organizado na cidade e “o maior espetáculo esportivo de todos os tempos”. Vale a pena reproduzir um trecho:
De um lado veremos o “combinado Liceu”, formado por seis jogadoras de méritos consagrados, quer no jogo defensivo quer no ofensivo. Como cérebro desse sexteto veremos Nirinha, a mais perfeita jogadora da cidade, deleitando seus “fans” com suas jogadas alucinantes e matemáticas. Veremos a maliciosa Estela colocando bolas no campo adversário em todos os claros que encontra. Integram ainda o “combinado Liceu” outras jogadoras de cartaz, como Norma Curi, uma das melhores levantadoras da cidade, Laurita, que está em toda a parte, Glaura, perita no jogo defensivo e Beatriz, que dia-a-dia firma-se com seu jogo calculado e calmo. (ibidem, 14.11.1942, p.4)
É interessante notar que, a despeito do trabalho do professor de educação física, era Mário Palmério quem aparecia no jornal ao lado das alunas. Mais tarde, os garotos do Colégio Triângulo Mineiro entrariam também no circuito estudantil de futebol (ibidem, 3.9.1947, p.3), e os alunos da faculdade passariam a disputar os “sensacionais” campeonatos de vôlei (ibidem, 7.8.1948, p.3). Foi assim, portanto, que o diretor utilizou as colunas esportivas para obter mais visibilidade e renome profissional.
Figura 39 – A coluna esportiva do Lavoura e Comércio conferiu visibilidade ao Liceu e à figura de Mário Palmério em 1942.
Figura 40 – Mário Palmério posa com as alunas Estela, Nirinha, Glaura, Laurita, Nair e Vanda, em setembro de 1942, na quadra do Liceu.
Além dessas exibições desportivas, a partir de 1943 Mário Palmério passou a organizar, sob os mais variados pretextos, uma série de desfiles de seus alunos pela cidade. Devemos nos lembrar de que as paradas de caráter cívico organizadas pela ditadura de Vargas eram uma das práticas de propaganda mais utilizadas na época. É preciso ponderar também que os desfiles escolares em Uberaba não foram uma tradição inaugurada por Mário Palmério ou pelo Estado Novo, pois há anos o Diocesano e o Nossa Senhora das Dores, por exemplo, já lançavam mão desse expediente para firmar presença na cidade.
A primeira passeata do Liceu seria realizada apenas em julho de 1943, por ocasião da comemoração dos três anos da escola. Nessa época, o primário e o secundário já tinham uma quantidade razoável de estudantes capaz de impressionar a cidade. Por isso, nas palavras do jornal, os alunos do “conceituado educandário” desfilaram “com muito garbo e disciplina” pelas principais ruas de Uberaba, “ostentando o seu alvo uniforme de paradas e transportando a bandeira nacional e o pavilhão do educandário”. Essas manifestações ofereceram uma contribuição nada desprezível para incorporar a escola na imaginação da cidade:
Grande número de pessoas acorreu às sacadas de nossos prédios e às janelas de nossas residências particulares, a-fim-de apreciar aquele espetáculo, digno de ser visto pela magnífica impressão causada e pela nota distinta da perfeita organização técnica e física do renomado estabelecimento de ensino uberabense.(ibidem, 19.7.1943, p.4)
Quando as elites locais passaram a se preocupar com a ostentação do seu espírito patriótico naqueles anos de guerra e de excitação nacionalista, Mário Palmério achou por bem organizar um grande desfile com todos os alunos de sua escola no dia 7 de setembro de 1944. Evidentemente, a parada do Liceu foi destaque no Lavoura e Comércio. Afirmando primeiramente o “brilhantismo” daquele “novel e já tão renomado educandário”, o jornal registrou que as apresentações “impressionaram vivamente a toda a grande massa popular” que comparecera à Praça de Esportes, em uma prova do compromisso do diretor com a pátria brasileira.
Os trezentos e tantos moços e moças que, sob o comando pessoal do Sr. prof. Mário Palmério, desfilaram pelas nossas principais ruas e que foram, em seguida, homenagear nossas autoridades […] deram, com sua magnífica apresentação, a demonstração cabal do esforço que se desenvolve no Ginásio Triângulo Mineiro, em prol da educação cívica da nossa juventude. (Lavoura e Comércio, 19.7.1943, p.4)
Em outras ocasiões, Mário Palmério determinou que a escola comemorasse, por exemplo, o centenário de Castro Alves (ibidem, 13.3.1947, p.6), assim como o Dia de Tiradentes (ibidem, 21.4.1947, p.4). E mais uma vez a repercussão foi muito favorável. Para o Lavoura, essas iniciativas demonstravam o “apreço” de Mário Palmério por “todas as datas nacionais” e pelo “culto dos homens que souberam engrandecer a pátria brasileira”.
As solenidades de formatura também foram transformadas em um importante ritual para afirmar o prestígio da escola e de seu diretor. Consciente da necessidade de impulsionar o conceito de seu ginásio, Mário Palmério fazia questão de trazer a Uberaba figuras de grande expressão para que pudessem atuar como paraninfos das turmas e, consequentemente, agregar valor à imagem da escola. Em 1944, como vimos, os primeiros bacharelandos tiveram como padrinho o próprio Afrânio Azevedo, o pecuarista que patrocinava dezenas de alunos. Em novembro do ano seguinte, Palmério conseguiu articular a vinda de João Alberto Lins de Barros, o recém-demitido chefe de polícia do Distrito Federal, para apadrinhar os alunos (ibidem, 6.11.1945, p.6). Naquele tempo, João Alberto era um nome popular no país, pois a sua demissão e a imediata nomeação de Benjamim Vargas para a chefia de polícia haviam sido o estopim para a deflagração do golpe que destituíra Vargas no mês anterior. Contudo, o convite a João Alberto estava relacionado sobretudo ao seu papel como ex-presidente da Fundação Brasil Central, criada em 1943, que tinha, entre os objetivos, a promoção do desenvolvimento da Região Centro-Oeste. Os fazendeiros triangulinos haviam estabelecido estreitas alianças com o governo para trazer recursos ao Triângulo Mineiro; assim, é provável que o professor tenha se valido da amizade com os pecuaristas para fazer daquela personalidade o paraninfo de seus ginasianos.
Figura 41 – Mário Palmério, à frente dos alunos, comandou pessoalmente a parada de 7 de setembro de 1944 de sua escola e, assim, garantiu visibilidade nos jornais.
Figura 42 – Em 1955, o desfile dos alunos do Colégio Triângulo Mineiro perpetuava a tradição do Liceu, inaugurada por Mário Palmério em 1943.
Em 1946, Mário Palmério trouxe Carlos Coimbra Luz, ex-ministro da Justiça no governo de Gaspar Dutra, para apadrinhar a turma de bacharelandos do Ginásio Triângulo Mineiro. As palavras do Lavoura e Comércio (18.12.1946, p.2) indicam o imaginário que esses eventos procuravam estimular: “Será uma festa das mais brilhantes e imponentes, a exemplo daquelas que o educandário do prof. Mário Palmério realiza todos os anos e terá a abrilhantá-la ainda mais a figura marcante de homem ilustre que é o Sr. dr. Carlos Luz”. A paraninfa da turma de 1947 foi a viúva de Vitório Marçola – uma homenagem ao industrial que apoiara o Liceu (ibidem, 13.12.1947, p.6). No ano seguinte, Palmério convidou o ex-deputado federal Alaor Prata para apadrinhar os formandos (ibidem, 27.11.1948, p.6). Essas cerimônias eram também prestigiadas por políticos, juízes e diversas autoridades, de modo que, ano a ano, a escola acumulou um histórico notável de eventos prestigiosos. O Lavoura rejubilava-se pelo fato de que, “anualmente, na oportunidade das solenidades de colação de grau”, todas aquelas “figuras proeminentes do cenário nacional” se dispusessem a prestigiar o “conceituado estabelecimento de ensino” da cidade.
Figura 43 – As cerimônias de colação de grau do Ginásio Triângulo Mineiro eram rituais importantes para conferir prestígio à escola.
Como vimos, Mário Palmério jamais deixou de cuidar de sua própria imagem ao mesmo tempo que se empenhava para conferir visibilidade à sua escola. Quando em outubro de 1943 foi assinado o contrato de financiamento da nova sede do Liceu, por exemplo, o professor preparou um verdadeiro espetáculo de autoconsagração. Para monumentalizar aquele instante, Palmério convidou as maiores autoridades em questão e produziu uma imagem de grande poder expressivo que, certamente, impressionou bastante a imaginação da cidade.
Em uma bela fotografia, nove autoridades, de pé e postados no segundo plano em uma semicircunferência, quase que se curvam diante do jovem professor que, no centro das atenções, sentado na única cadeira disponível em uma extensa mesa no gabinete do prefeito, assina solenemente o contrato (ibidem, 11.10.1943, p.6). Entre as autoridades, estavam o próprio prefeito Carlos Prates; o diretor do Departamento de Eletricidade de Uberaba, Thomas Bawden; o gerente da Caixa Econômica, José Sebastião da Costa; além dos representantes da firma construtora e da imprensa local. Mário Palmério, então com 27 anos, é o mais jovem deles. Senhor absoluto da situação, o professor impressiona pela compostura e pela pose de maturidade diante da responsabilidade. O fotógrafo conseguiu compor a cena de modo que a luminosidade partisse do centro, tal como uma aura de Mário Palmério, e irradiasse o rosto de todos.
Figura 44 – Mário Palmério e as autoridades municipais encenam o instante da assinatura do contrato de construção da nova sede da escola, em outubro de 1943.
Em outra circunstância, por ocasião do anúncio da iminente criação dos cursos clássico e científico, Mário Palmério convidou a imprensa para uma longa entrevista que seria publicada na primeira página do Lavoura e Comércio (9.4.1946, p.1). Para compor a fotografia, o professor que sempre trajava jaqueta esportiva preferiu vestir um terno escuro e, aparentemente, arrastou uma mesa para o vértice de uma estante da biblioteca, de modo que os livros preenchessem todo o fundo da imagem – trazendo assim uma inequívoca atmosfera de erudição à cena. Mas é claro que ninguém tem o controle de tudo: ainda que o cabelo e o bigode estivessem bem penteados para a fotografia, a postura jovialmente desleixada não deixou de desarranjar o desenho do terno. A mesa foi decorada com uma luminária, dois dicionários cuidadosamente displicentes sobre a mesa e alguns papéis dispostos ao alcance do professor. No momento da fotografia, Mário Palmério não quis aparecer fumando e preferiu deixar o cigarro aceso no cinzeiro. Contudo, a fumaça da brasa indica que aquela abstinência não duraria muito.
Mário Palmério era vaidoso e estava ciente da impressão que o seu 1,81 de altura e sua voz grave deixavam nas pessoas. O seu próprio figurino – bigode aparado e cabelo penteado para trás – reproduzia com fidelidade a última moda da época, cujos maiores representantes eram artistas de Hollywood, tais como Cesar Romero, Melvin Douglas, George Brent, Clark Gable, entre outros. Desse modo, não é improvável supor que o professor empregou o seu charme pessoal de modo muito consciente para seduzir e convencer as pessoas.
Por fim, notamos que Palmério tinha muita consciência sobre a importância de idealizar um cenário fabuloso para desempenhar o seu papel social, ao ponto de se envolver pessoalmente no planejamento de seu próprio espaço de atuação. Como vimos, antes mesmo da edificação, a nova sede do Ginásio Triângulo Mineiro já era apresentada como “a maior realização de sentido educacional em toda a região” e “o maior e mais moderno estabelecimento de ensino do interior do país” (ibidem, 6.6.1944, p.15). Por meio de um vocabulário apurado, Palmério discorria com paixão sobre cada um dos detalhes do projeto e empenhava-se com entusiasmo para impressionar os interlocutores. Aquela fachada imponente do pavilhão central e toda aquela descrição das “perfeitas” instalações esportivas (que, por fim, nunca seriam construídas), das salas especiais, da biblioteca e da própria infraestrutura da escola acabaram por se constituir como os elementos mais consistentes de seu prestígio social. “Porque ele é o Ginásio Triângulo Mineiro e o Ginásio Triângulo Mineiro é ele” – definiu o Lavoura e Comércio (20.12.1946, p.6). E se o público interno eventualmente tivesse consciência do exagero retórico, o fato é que o colégio ingressou triunfalmente no imaginário da cidade e logo passou a ser considerado como um dos mais evidentes exemplares do “desfile de grandezas” daquela prodigiosa Uberaba (ibidem, 6.7.1947, p.3).
Figura 46 – O pavilhão central do Colégio Triângulo Mineiro simbolizava um dos mais importantes exemplos do patrimônio material de Uberaba nos anos 1940.
É preciso notar ainda que o próprio estilo arquitetônico concebido para ornamentar o pavilhão central expressava, com clareza, o ideal de erudição que Palmério conscientemente procurava trazer ao cenário de seu empreendimento. Ao recuperar referências do classicismo greco-romano e da arquitetura renascentista, o prédio de estilo neoclássico passaria a inspirar, de imediato, aquele imaginário de instrução e cultura clássica já consagrado nos livros didáticos de história. Ou seja, para efetuar sua dramatização com eficácia, Palmério preferiu deixar de lado a modernidade instável do art dèco – a coqueluche estética do momento – para investir em um signo mais conservador, porém já consagrado, das academias de ensino e do saber.
Por tudo isso, a Faculdade de Odontologia de Mário Palmério passou a ser considerada, nas palavras do Lavoura e Comércio (20.9.1948, p.1), “o florão maior dos nossos cabedais de cultura”.
Circuitos de amabilidades
Toda aquela encenação dramática e cenográfica teria sido inútil – ou mesmo contraproducente – se Mário Palmério não tivesse aprendido a transitar com eficácia no circuito de amabilidades das elites locais. Consciente da necessidade de louvar os pares para ser aceito e enaltecido por eles, o jovem professor se empenharia com muita naturalidade para encenar aquele teatro de elogios e, assim, reforçar os símbolos que consagravam determinados personagens e circunscreviam o poder àquele conjunto restrito de atores sociais – do qual, evidentemente, ansiava fazer parte.
Tendo em vista que o papel de “professor Mário Palmério” deveria, necessariamente, corresponder ao imaginário do “intelectual uberabense”, era imprescindível fazer exatamente aquilo que as elites ilustradas faziam: ostentar os dotes literários nos jornais. Desse modo, associando essa autoafirmação à necessidade de louvar os pares, o jovem Mário aproveitou a ocasião do aniversário do Lavoura e Comércio para estrear uma série de artigos que publicaria entre julho e novembro de 1940. E não por coincidência, o primeiro texto que veicularia naquele ano foi, precisamente, um louvor ao próprio jornal onde escrevia:
O “Lavoura” sempre foi a minha cachaça. Desde guri que transito por entre as suas oficinas. O “expressamente proibido” que até hoje se vê por cima de sua porta de entrada nunca pôde me barrar. Quando menino, tomei pitos e levei corridas. Mas era sem vergonha demais para não tentar penetrar aquele recinto adorado, onde me babava de gozo ouvindo o barulhão de suas máquinas e me espantando com a habilidade dos tipógrafos. E o amor pelo “Lavoura” foi crescendo e, hoje, gosto dele como de uma coisa minha. Naquele tempo, no meu tempo de menino, eu me espantava com o trabalho lá feito. Hoje, continuo me espantando. O “Lavoura” é ainda a minha cachaça. Continuo levando pitos do Quintiliano. Mas o vício é forte para que eu deixe dele.
Hoje, dia de mais um aniversário do “Lavoura e Comércio” é mais uma oportunidade que se oferece para lembrar o benefício que o jornal de Quintiliano Jardim tem prestado a Uberaba. Todo mundo começa a lembrar-se das campanhas memoráveis em que o paladino da opinião uberabense se tem envolvido. E todo o uberabense, o uberabense que gosta de Uberaba e agradece aqueles que o beneficiaram vêm dar parabéns ao Quintiliano por mais essa vitória conseguida. Os meus parabéns não valem muito porque lá me consideram menino de casa e não prestam atenção no que digo. Isso, porém, pouco importa. Dou meus parabéns ao querido “Lavoura” e duvido que alguém fique mais feliz do que eu, vendo-o ir assim de uma maneira tão bonita, para a frente. Os homens que tangem o nosso grande jornal causam-me inveja. Quintiliano, Brasilino, Olimpio e todos os outros continuam sendo homens maravilhosos que me encheram os olhos de espanto nos meus tempos de menino. Se algum deles me disser: “Saia de perto, não me atrapalhe, vá para sua casa” e outras coisas assim, saio de mansinho, do mesmo jeito, sem ficar zangado. E no dia seguinte, estarei de novo firme.
Gosto demais do “Lavoura”, e acabou-se. O “Lavoura” vai para a frente, como esses novos “tanks” que a guerra fez aparecer. Voam, a não sei quantos quilômetros por hora, grandes e poderosos como são. Eu vou agarrado a ele. Sou o mesmo menino enjoado e mexilhão de sempre. Não largo o “Lavoura” de jeito nenhum.
Nem sei se o Brasilino vai compor isso que escrevo. Que felicidade, meu Deus, se eles, os homens extraordinários do “Lavoura”, me derem um pouquinho de atenção! (ibidem, 6.7.1940, p.2)
Em uma construção hábil, em termos literários e retóricos, Palmério indicou, no primeiro parágrafo, uma intimidade familiar histórica com o jornal – relação que, naturalmente, o distinguia já no início do relato, tendo em vista que, em Uberaba, era uma honra e um privilégio pertencer ao círculo da família Jardim. Retoricamente, essa intimidade prévia o autorizava a emitir opiniões consideradas legítimas, pois Palmério podia falar do que viu e ouviu – ou melhor, do que testemunhou. Desse modo, quando o jovem professor qualifica Quintiliano Jardim como “o paladino da opinião uberabense” e chama os funcionários do jornal de homens “maravilhosos” e “extraordinários”, esses elogios são ungidos por uma aura de evidência testemunhal, o que os torna ainda mais poderosos. Desse modo, o texto confirma o talento de Mário Palmério no circuito de amabilidades, pois, ao se empenhar na valorização do louvor que direcionava ao jornal, o professor sabia que poderia esperar uma reciprocidade igualmente enfática por parte dos redatores.
E naturalmente a gratificação seria imediata. Contrariando a falsa modéstia daquele professor que se apresentava como um mero “guri” e “menino de casa”, o Lavoura e Comércio (6.7.1940, p.2) retribuiu prontamente o louvor, com o destaque habitual que concedia aos apologistas:
Moço de inteligência brilhantíssima, o prof. Mário Palmério integra, hoje, o selecionado de valores da intelectualidade uberabense. Com um sólido curso de Ciências Físicas e Matemáticas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e ex-professor da cadeira de Matemática Superior do Colégio Universitário da Escola Politécnica de S. Paulo, o ilustre professor é também dono de um estilo fino e agradável tantas vezes mostrado em colaborações no “Lavoura e Comércio”. O prof. Mário Palmério é grande amigo nosso. Residindo, atualmente, conosco, lucra muito Uberaba com sua presença.
Ou seja, lançando mão daquelas mesmas qualificações que o professor se autoconcedia nos anúncios das escolas – e adicionando outros elogios por conta própria – o Lavoura e Comércio supervalorizava o autor do relato e, consequentemente, superdimensionava a qualidade do louvor. Mário Palmério aprenderia rapidamente essa regra de reciprocidade, pois, como veremos, a troca de elogios públicos que efetuaria a partir de então seria constante naqueles anos 1940.
Em seus artigos no Lavoura, Palmério teria o cuidado de enaltecer os principais símbolos e personagens da cidade. Sob o argumento de discutir caminhos para o desenvolvimento regional, por exemplo, vários de seus textos foram verdadeiras homenagens aos criadores de zebu: “Não fosse a perseverança quase fanática do triangulino, notadamente do uberabense e, hoje, ver-se-iam os grandes industriais da carne privados do melhor tipo no gênero para o mercado mundial” (ibidem, 13.7,1940, p.5). Em outra circunstância, Palmério defendeu que Uberaba tinha plenas condições de persistir no aperfeiçoamento do gado e “assumir o comando que regerá os destinos da futura pecuária nacional” (ibidem, 24.7.1940, p.2). Em outra ocasião, o professor chegou a argumentar a favor dos fazendeiros em relação ao desejo contrário das novas gerações de deixar a vida rural para estudar nas capitais:
Sair um moço de uma fazenda para buscar, nas faculdades, um título de médico, advogado ou engenheiro civil não será um contra-senso? […] Que frequentem, porém, as escolas que foram feitas para eles. O Triângulo Mineiro, zona essencialmente de criação de gado, possui poucos filhos especializados em técnica agrícola e veterinária. Melhor campo para experimentação e especialização não poderão desejar eles. Basta-lhes voltar para casa. Maior serviço não poderão prestar ao Brasil aqueles que auxiliarem a sua agricultura e sua pecuária. Maior patriotismo não poderá existir que o de dar a mão a esses abnegados fazedores de riqueza nacional: os fazendeiros e criadores. (ibidem, 2.8.1940, p.2)
Em outro artigo, Palmério voltaria ao tema, reforçando o “convite aos moços do Triângulo Mineiro para que se dirijam às Escolas de Veterinária e de Agronomia” (ibidem, 15.8.1940, p.2) para ajudar seus pais fazendeiros e contribuir no desenvolvimento da agropecuária regional. Em todas essas ocasiões, os louvores direcionados aos pecuaristas foram expressos nos termos precisos do tradicional circuito de amabilidades:
Os fazendeiros e criadores de todo o Triângulo Mineiro irão, daqui a algum tempo, ter entrada livre na nova e majestosa sede da Sociedade Rural do Triângulo Mineiro.
Daqui a algum tempo, todos os numerosos componentes da laboriosa classe de pecuaristas de todo o Brasil poderão, dentro da agremiação triangulina, examinar bem de perto a gigantesca e maravilhosa obra aqui realizada: a seleção do gado indiano. […] A nossa Sociedade Rural começou como começam todas as causas fadadas ao sucesso. Começou com luta e dificuldades […]. Mas a maioria dos nossos criadores foi, pouco a pouco, desprezando o malfadado interesse particular e cedendo lugar ao interesse geral e de todos. (ibidem, 30.8.1940, p.2)
Evidentemente, não se pode afirmar que o apoio concreto do pecuarista Afrânio Azevedo ao Ginásio Triângulo Mineiro, por exemplo, foi uma espécie de reciprocidade ao apoio simbólico de Palmério ao zebu. Mas não há dúvidas de que a cortesia do professor contribuiu para a simpatia e a boa vontade dos criadores de gado à sua figura e à sua causa.
Contudo, para mensurarmos o teor dessa encenação, é interessante buscarmos, em outros documentos, indícios de uma crítica contundente que Mário Palmério jamais deixaria transparecer em seus artigos ou nas entrevistas na imprensa na década de 1940. Em 1947, chegaria ao ápice uma grande crise que levaria os criadores de zebu à bancarrota. Esse colapso empobreceria a cidade e forçaria os habitantes a desenvolver alternativas para a economia local. Assim, em um rascunho que aparentemente não foi incorporado a um relatório interno para a fiscalização federal de sua escola no início dos anos 1950, a criação da Faculdade de Odontologia em 1947 seria justificada precisamente pelo desejo de Mário Palmério em trabalhar para o “surgimento de novas iniciativas destinadas a modificar o caráter unilateral até então reinantes nessa cidade, a maioria das quais dependentes da criação e da seleção do gado Zebu” (“Relatório para efeito…”, 1947). Ou seja, se na esfera pública Palmério expressava lisonjas incondicionais ao zebu, não deixava de assumir, para si, uma postura mais crítica em relação ao “caráter unilateral” da pecuária que “reinava” (eis um termo nitidamente pejorativo) na vida econômica da cidade.
O fato é que, sobretudo a partir de 1942, após a criação do Ginásio Triângulo Mineiro, Mário Palmério firmou o seu reconhecimento social e passou a faturar os privilégios do circuito de amabilidades. Desse modo, não era mais necessário que ele mesmo se autoelogiasse em matérias encomendadas, pois o círculo social já falava por ele. Anunciante contumaz e vizinho da família proprietária do jornal, Palmério era chamado de “amigo devotado” pelo Lavoura e Comércio (26.12.1941, p.1) que, em contrapartida, jamais deixou de apoiá-lo em seu projeto de visibilidade social, garantindo sempre os “mais vivos aplausos” às suas iniciativas. Mário Palmério passou a ser qualificado como “moço de grandes predicados pessoais e espírito progressista” (ibidem, 19.7.1942, p.4), e, em geral, as notícias sobre suas iniciativas contavam com um desfecho tal como: “Jovem, dinâmico e empreendedor, merece esse valente brasileiro as nossas mais entusiásticas e prolongadas palmas” (ibidem, 8.1.1942, p.4).
Até mesmo os articulistas consagrados passariam a louvá-lo. José Mendonça, não por coincidência professor do Liceu Triângulo Mineiro, afirmou que Mário Palmério estava a “inscrever o seu nome entre os grandes benfeitores da nossa querida Uberaba” (ibidem, 26.1.1942, p.2). Santino Gomes de Matos, jornalista e também professor do Liceu, acostumado a louvar as figuras eminentes da cidade a pretexto das circunstâncias mais prosaicas, não teve dificuldade para elogiar Mário Palmério por ocasião da construção da nova sede do ginásio: “Nada mais fácil do que bater palmas a um empreendimento da natureza e do vulto a que o Prof. Mário Palmério mete ombros”. Assim, Gomes de Matos escreveu uma verdadeira ode à figura de Palmério, afirmando “o idealismo robusto e impenitente deste moço que sabe respirar em horizontes amplos, infinitos” (ibidem, 2.2.1944, p.2).
Em julho de 1943, mais uma vez Mário Palmério uniu-se às personalidades que homenageavam o Lavoura por ocasião do aniversário do jornal. E a retórica foi a mesma: o professor escreveu sobre suas relações de infância com a família proprietária para tecer seu testemunho elogioso. Ao lisonjear Quintiliano Jardim, Palmério afirmou que ele era “uma das mais poderosas alavancas que conseguiram soerguer nossa querida Uberaba, espalhando pelos quatro cantos suas grandezas, animando […] todas as grandes iniciativas que fizeram de Uberaba o que ela é hoje”. Nas suas palavras, o “querido” Lavoura e Comércio, o “melhor jornal de todo o nosso interior”, era um verdadeiro exemplo de esforço e tenacidade. “Do meu abraço é que ele não fica livre, ele, o jornal que noticiou o meu nascimento, o meu casamento e, se Deus quiser, cada vez melhor, maior e mais querido, irá noticiar, também, o meu enterro” (ibidem, 6.7.1943, p.10).
Como vimos, uma das melhores formas de mensurar o prestígio de um ator social naquela cidade é observar a distinção conferida a ele nas colunas sociais por ocasião de um aniversário. Desse modo, se em 1940 o recém-chegado Mário Palmério foi homenageado com 58 palavras e nenhuma fotografia, os efeitos de sua atuação profissional e de seu ingresso no circuito garantiriam, no ano seguinte, um incremento considerável de prestígio. A nota de 1941 no Lavoura e Comércio (1º.3.1941, p.4) indica essa capitalização:
Transcorre hoje a data natalícia do nosso particular amigo prof. Mário Palmério, ilustrado diretor do “Liceu Triângulo Mineiro”, dotado de excelentes qualidades pessoais a que alia uma fulgurante inteligência e grande competência profissional.
O distinto aniversariante, que integra com brilhantismo o corpo de colaboradores desta folha, muito benquisto em nossa sociedade onde desfruta de justo destaque, mercê de seus excelentes predicados morais e sociais, será alvo de expressivas manifestações de apreço e consideração por parte de seu vasto círculo de relações e amizade.
Incluindo entre suas mais legítimas aspirações a de contribuir, com a sua melhor energia, para o progresso de sua terra, não tem poupado esforços no fito de dotar Uberaba de uma modelar casa de ensino, o que vem conseguindo com o “Liceu Triângulo Mineiro”, estabelecimento dos mais considerados na cidade.
“Lavoura e Comércio”, que conta, na pessoa do prof. Mário Palmério, com um de seus melhores amigos, envia-lhe um grande abraço, portador de seus mais sinceros parabéns.
Se em termos quantitativos as 160 palavras de deferência ao professor foram quase o triplo do ano anterior, o aspecto qualitativo, ao seu modo, também foi particularmente incrementado. Mário Palmério, o “particular amigo” do Lavoura, era dotado de “excelentes qualidades”, “fulgurante inteligência”, “grande competência profissional”, escrevia com “brilhantismo”, era “benquisto” e alcançara “destaque” na sociedade devido aos “excelentes predicados morais e sociais”. Além disso, todo um parágrafo procurou introduzir a noção de que Palmério era um homem comprometido com o progresso de Uberaba. Porém, outro aspecto nessa nota parecia ainda mais significativo para indicar o alcance de seu prestígio social: pela primeira vez, Palmério mereceu a publicação de sua fotografia que, propositalmente ou não, foi publicada acima da imagem do consagrado Gomes de Matos.
Figura 47 – Nota de aniversário de Mário Palmério em 1944.
Em 1942, 1º de março caiu em um domingo, dia em que o jornal não circulava. Por isso, não houve homenagens a Mário Palmério (Gomes de Matos, por sua vez, foi homenageado no dia anterior com um texto de três colunas). Contudo, em 1943, as deferências ao professor mereceram 96 palavras e uma fotografia.
O sr. prof. Mário Palmério, ilustrado diretor do Liceu Triângulo Mineiro, desta cidade, moço talentoso e empreendedor, a que Uberaba deve bastante do incremento de seu ensino secundário.
Inteligente, culto e trabalhador, aliando a estes predicados o de amigo prestativo e bem educado, conhecedor perfeito de seu métier, o prof. Mário Palmério se impôs ao conceito de nossa gente, e o seu colégio dia a dia mais progride, dada a confiança que inspiram seus métodos educacionais.
Por isto nesta data as homenagens mais significativas serão prestadas ao distinto moço e nós a elas nos associamos cordialmente. (ibidem, 1º.3.1943, p.5)
Vemos, portanto, que, em 1943, os conceitos referentes ao imaginário criado em torno da figura do professor já pareciam firmados: “ilustrado”, “inteligente”, “culto”, “talentoso”, “empreendedor”, “trabalhador”, “amigo prestativo”, “bem educado” e “conhecedor perfeito” das questões relacionadas à educação, a quem Uberaba deveria ser grata.
Em 1944, a ascendência do Ginásio Triângulo Mineiro e a intimidade no trânsito pelos círculos sociais da cidade o credenciaram à sua maior homenagem de aniversário na coluna social:
[…] digno diretor do Ginásio Triângulo Mineiro, desta cidade, e elemento de destacada projeção nos nossos meios culturais e sociais.
Espírito empreendedor e dinâmico, o distinto aniversariante constitui uma das mais vivas expressões da inteligência e da capacidade realizadora da nova geração uberabense. Dirigindo o antigo Liceu Triângulo Mineiro, o sr. prof. Mário Palmério tem contribuído de maneira positiva e eficiente para a formação moral e espiritual de centenas de jovens, que encontram no seu modelar estabelecimento os mais modernos processos de ensinamento, a par de uma educação física completa.
Ainda há pouco, o jovem professor uberabense, demonstrando o seu invulgar dinamismo, contratou com idônea firma construtora a edificação do novo Ginásio Triângulo Mineiro, obra de grande vulto, que representa mais um fator preponderante para o progresso e embelezamento de nossa cidade.
As atividades do ilustre nataliciante não se limitam somente à direção do seu conceituado estabelecimento de ensino. Mário Palmério é também um fulgurante cronista, de estilo atraente e agradável, figurando entre os nossos destacados colaboradores. No que se refere à educação física, Uberaba muito deve a este ilustre filho, de vez que tem sido um propugnador incansável dos nossos esportes, particularmente os especializados, que no Ginásio terão departamentos especiais, dotadas das mais modernas instalações.
Moço de sólida cultura, possuidor de esmerada educação e fina lhanesa de trato, o jovem educador uberabense desfruta em nossos meios sociais de um elevado círculo de relações e amizades, que nesta auspiciosa oportunidade lhe renderão as mais expressivas e sinceras homenagens a que faz jus, e às quais nos associamos com satisfação, fazendo votos pela sua sempre crescente prosperidade e pela sua felicidade junto aos seus. (1º.3.1944, p.3)
Esse texto indica claramente o grau de consagração alcançado por Mário Palmério naquele ano. Para o Lavoura, o professor era “uma das mais vivas expressões da inteligência e da capacidade realizadora da nova geração” e se tornara um homem de “destacada projeção” nos meios culturais e sociais uberabenses, tendo em vista seu “espírito empreendedor” e seu “invulgar dinamismo” aliados às qualidades de “fulgurante cronista”, “sólida cultura”, “esmerada educação” e “fina lhanesa de trato”.
Precisamos notar que Mário Palmério, membro assíduo do circuito de amabilidades, também louvava publicamente as eminências de Uberaba, tal como o prefeito Carlos Prates, que o ajudara nas negociações para a obtenção do empréstimo na Caixa Econômica Federal em 1943. “Moço de invulgares qualidades de inteligência e de caráter, a atenção e simpatia com que acompanhou as minhas démarches determinaram, em grande parte, o êxito do meu empreendimento”, afirmou Mário Palmério em entrevista (ibidem, 6.7.1943, p.2). Em retribuição, todo o circuito era mobilizado para prestigiar o professor nas auto-homenagens que ele se concedia, tal como no churrasco de comemoração às obras de seu colégio:
Figuras as mais representativas de nossa sociedade, nossas altas autoridades administrativas, representantes […] de nossos vários estabelecimentos de ensino e um grande número de amigos e admiradores do dinâmico moço que está realizando em Uberaba uma notável obra de caráter educacional, ali estiveram e saborearam um farto e suculento churrasco com profusão de bebidas. (ibidem, 23.10.1944, p.3)
Ainda nesse evento, Palmério reiterou sua “grande e imorredoura” gratidão a Carlos Prates e a Benedito Valadares, e, também por isso, obteve o prestígio máximo do município, que foi a presença do próprio prefeito que, elogiado anteriormente, não deixou de discursar a favor dos “sacrifícios” vencidos pelo jovem professor em sua empreitada:
O discurso do ilustre governador da cidade foi entusiasticamente aplaudido, várias vezes interrompido por vibrantes salvas de palmas e manifestações de simpatia ao sr. Mário Palmério, cujas lutas pela realização de seu ideal foi tão fielmente reproduzido na bela e eloquente oração do sr. Prefeito. (ibidem)
Em suma, a disposição do professor em louvar os atores proeminentes da cidade contribuiu para que sua figura fosse igualmente enaltecida naquela circularidade de louvores. O discurso do paraninfo Afrânio Azevedo, homenageado por Mário Palmério por ocasião da formatura da primeira turma de bacharelandos do ginásio, por exemplo, configurou-se como uma verdadeira homenagem ao professor que o homenageava. Ou seja, ao ser louvado, Azevedo elogiou o “arrojado empreendimento” de Mário Palmério e, citando-o nominalmente, exaltou “o valor daqueles que vencem pelo seu próprio esforço” (ibidem, 27.12.1944, p.3).
No seu aniversário de 1945, Mário Palmério, tratado como o “competente diretor do Ginásio Triângulo Mineiro”, foi louvado no Lavoura e Comércio (1º.3.1945, p.3) como “moço arrojado e inteligente”, dotado de “grandes qualidades de iniciativa, de audácia”, além de portador de grandes predicados de coração, caráter e inteligência. No diário O Triângulo (1º.3.1945, p.2), Palmério foi descrito como “espírito organizador e dinâmico”, além de “professor dotado de grande vocação, inteligência lúcida e culta”. No ano seguinte, tais adjetivos já pareciam definitivamente incorporados à figura do professor:
Às suas qualidades pessoais e ao seu reconhecido tirocínio profissional alia o distinto aniversariante marcantes predicados de inteligências, coração e de caráter, trato lhano, formosa cultura e tantos outros dotes que lhe granjearam admiração, estima e apreço de quantos formam o seu vasto círculo de relações. (Lavoura e Comércio, 1º.3.1946, p.5)
Como vemos, Palmério não deixou de lançar mão de sua própria escola para prestar homenagens às grandes figuras da cidade. Em 1946, por exemplo, foi noticiado que o Ginásio Triângulo Mineiro, “que obedece a direção competente e patriótica do sr. prof. Mário Palmério”, prestara homenagens a Artur Reis, ex-diretor do Centro de Saúde de Uberaba, por ocasião de sua promoção ao Centro de Saúde Modelo em Belo Horizonte. Para isso, Palmério mobilizou cerca de 700 alunos para homenagear aquele que fora também um professor da escola. “Em nome do Ginásio falou o seu inteligente diretor, prof. Mário Palmério que, pronunciando belíssima oração, enalteceu as excelentes qualidades do ilustre homenageado, sendo muito aplaudido o seu brilhante discurso”, registrou o Lavoura e Comércio (24.7.1946, p.6). Assim, a homenagem garantiu visibilidade à escola e aplausos à sua própria figura.
Isso, entretanto, não é tudo. Já tivemos a oportunidade de notar que uma das formas mais utilizadas para a circulação do status social naquela cidade era a participação em clubes e associações representativas. Portanto, não foi uma surpresa observar o interesse do professor em se apropriar de um símbolo prestigioso daquela natureza. E foi assim que, no dia 11 de junho de 1946, a fotografia de Mário Palmério foi novamente estampada com destaque no Lavoura e Comércio (p.3), mas, dessa vez, por causa da criação do “Clube de Xadrez de Uberaba”, agremiação que fundou e da qual se tornaria o primeiro presidente: “o Clube de Xadrez de Uberaba está fadado a uma existência vitoriosa, de vez que são enxadristas entusiastas, dispostos a trabalhar em prol da difusão do esporte dos reis em nossa cidade” – rejubilou o jornal, argumentando também que a criação de um clube daquela natureza era uma grande conquista do esporte uberabense (ibidem, 21.6.1946, p.3). E a partir de então, o Lavoura sempre conferiria destaque aos campeonatos de xadrez promovidos pela agremiação.
No ano seguinte, Mário Palmério assumiu também o conselho fiscal do Clube de Caça e Pesca, fundado solenemente em 27 de fevereiro no salão nobre da Casa do Comércio e da Indústria de Uberaba (ibidem, 8.3.1947, p.3). E nas suas próprias escolas, Palmério assumiria ainda a presidência de honra da diretoria de esportes do Colégio Triângulo Mineiro (ibidem, 24.8.1948, p.3) e seria homenageado nomeando a primeira agremiação estudantil da sua faculdade, o “Centro Acadêmico Mário Palmério” – Camp (ibidem, 10.11.1948, p.2). A participação nessas associações garantiu ainda mais visibilidade ao seu nome, tendo em vista que o noticiário local jamais deixava de prestigiar cada um dos associados, sobretudo por ocasião das eleições de diretorias.
A propósito, como vimos, os eventos anuais de formatura dos alunos se tornaram os pontos culminantes de seu empenho em se autoafirmar perante o circuito de amabilidades. Na prática, essas solenidades – representadas nos jornais como “festa de entrega de diplomas” – se transformaram em verdadeiras auto-homenagens veladas, em que os uberabenses ilustres eram mobilizados para prestigiar a escola e aplaudir o diretor. Em 1948, por exemplo, a festa foi “abrilhantada” pelo paraninfo Alaor Prata, pelo prefeito Boulanger Pucci, pelo inspetor Jorge Frange, além de vereadores e autoridades militares. Evidentemente, parte do discurso do paraninfo não pôde deixar de “tecer um justo e largo elogio” ao “Colégio do professor Mário Palmério” (ibidem, 13.9.1948, p.2).
Em 1949, por ocasião das comemorações do cinquentenário do Lavoura, o já consagrado professor reafirmou suas relações de infância com o jornal, garantindo, dessa vez, que o tradicional vespertino uberabense fora, na verdade, a sua primeira cartilha onde ele aprendera a ler as primeiras palavras, nas lições particulares do irmão mais velho. “Alio-me a estas homenagens não apenas na qualidade de amigo certo de Quintiliano Jardim e de seus filhos”, afirmou o professor. “Faço-o, principalmente, pelo respeito que tenho pela grandeza de seu trabalho e, sobretudo, pela fortaleza e tenacidade de sua personalidade.” Argumentando que ninguém podia negar o mérito de Quintiliano Jardim no auxílio a “todas as iniciativas, grandes ou pequenas, que nasceram em Uberaba e visaram o seu engrandecimento”, Mário Palmério empenhou-se para firmar aquele conceito tão caro às aspirações de glória das elites ilustradas locais: “A história de Uberaba foi feita por poucos homens. Quintiliano Jardim é um dos seus maiores” (ibidem, 25.6.1949, p.1).
O elogio recíproco imediato do Lavoura direcionado a Mário Palmério o enalteceu com termos muito similares aos que recebia. “O professor Mário Palmério é, sem nenhum favor, um dos homens que mais têm contribuído para a prosperidade de Uberaba e para o engrandecimento da nossa civilização”, afiançou o jornal.
Patriota dos mais sinceros, crendo firmemente nos destinos da nacionalidade; trabalhador infatigável, de todas as horas e de todos os instantes, construiu, para os seus estabelecimentos de ensino, o esplêndido conjunto de edifícios, que toda Uberaba admira.
Caráter imaculado, coração boníssimo, amigo dos mais devotados, chefe de família carinhoso e exemplar, o professor Mário Palmério enobrece a nossa sociedade. (ibidem, 25.6.1949, p.1)
Naquele ano, o nome de Mário Palmério apareceria também nas infalíveis listas de subscritores do banquete oferecido em homenagem a Quintiliano Jardim, ainda por ocasião do aniversário do jornal (ibidem, 30.6.1949, p.1). E na colação de grau dos alunos da 4ª série do Colégio Triângulo Mineiro naquele mesmo ano, Quintiliano mereceria uma “distinção toda especial” ao ser convidado para presidir a cerimônia de entrega de diplomas. Evidentemente, o discurso do diretor do Lavoura nessa “memorável e seleta cerimônia” louvou efusivamente a figura de Mário Palmério, qualificando-o como “moço de invejável capacidade de realização, a quem Uberaba já servia um sem número de benefícios no campo da instrução” (ibidem, 16.12.1949, p.6). Assim, as lisonjas do professor favoreceriam uma reciprocidade permanente do jornal.
A virtude estética
Tal como faziam as elites sociais naquela cidade, Mário Palmério não deixou de se empenhar para construir em torno de sua figura uma imagem pública de homem devotado e de espírito misericordioso. Como vimos, ao lado do poderio econômico e das trocas de lisonjas, a ostentação das “qualidades de coração” era um expediente largamente empregado na busca e na legitimação da distinção social. Em seu empenho para ascender socialmente, parecia, portanto, imprescindível corresponder também a essa expectativa moral da boa sociedade uberabense. Assim, depois de louvar o Lavoura e o zebu naquela série de artigos de 1940, Mário Palmério juntou-se às vozes que defendiam a criação de um abrigo para as crianças carentes e escreveu o seguinte texto:
Uma esmolinha pelo amor de Deus…
Um fato verdadeiramente constritor marca, hoje, a civilização de nossa grande cidade: a legião de meninos-mendigos abalroando o uberabense nas ruas, nas casas comerciais e nos cafés. Imundos, esfarrapados, a maioria ainda na primeira infância, estendem eles as mãozinhas sujas e solicitam a esmola num gesto que foi o primeiro aprendido conscientemente e numa frase que, antes de qualquer outra, lhe foi ensinada. E são os pobrezinhos recebidos, quase sempre, de dois modos: pelo uberabense comum, sem teorias sociais revolucionárias que, sem discussão, pinga o níquel; e pelo uberabense pão duro que solta um seco “não há, meu filho”. Todos os dois tipos de uberabenses procedem de acordo com sua consciência. São decentes. Há, porém – infelizmente os há em número reduzido – os reformadores, os bam-bam-bans, donos de soluções infalíveis para tudo e que sabem sempre ter o pobre guri esfarrapado um pai preguiçoso e malandro que faz do filho um meio mais cômodo para viver folgado. Negam, esses turunas de cafés, solenemente, o níquel, e ainda justificam sua conduta, aos olhos dos circunstantes, sugerindo medidas de proteção e outras coisas parecidas.
E, enquanto nós podemos levantar os olhos a Deus e agradecer por nos ter feito nascer numa cama melhorzinha, a gurizada, pobre, maltrapilha, suja e doente de Uberaba vai aumentando, escapulindo, de manhãzinha, dos altos, em busca, na cidade, de uns níqueis e pedaços de pão para levar ao pai paralítico, ao cair da noite (Os tais reformadores, os tais bam-bam-bans, donos de soluções infalíveis acham que malandros só são os pobres e que o luxo da posse de um “tábis”, de uma tuberculose e de um câncer só pode caber aos ricos).
E vai aumentando o número de meninos mendigos, enquanto os outros meninos protegidos pelo acaso vão tendo destinos mais felizes.
Uberaba, porém, possui, graças a Deus, gente boa, caridosa, justa. Gente que sabe que poderia ter nascido no Campo das Amoras ou em outro lugar parecido se não fosse o misterioso acaso. Gente nobre como Paulo Rosa e Antônio Alberto. Gente que não se envergonha de se debruçar por sobre o colchão imundo para auscultar um peito ainda mais imundo de uma pobre criança nascida numa baiuca de subúrbio. Gente que não tapa o nariz com lenços de cambraia quando entra em casinhas fétidas e esburacadas. Gente que tem o coração feito de carne tenra.
A Casa da Criança e agora o Patronato de Menores estão aí para demonstrá-lo.
Auxiliai-os, povo de Uberaba!
Auxiliai-os, ó vós que acreditais que a infância de hoje são os homens de amanhã!
Auxiliais-os, também vós que deveis a Deus um imposto pesado sobre a renda que começastes a gozar desde o vosso nascimento!
Auxiliais-os, ainda vós, que vos sentis mal com o mau cheiro das roupas que a miséria deixa existir. Ficareis, assim, livres deles!
Uberabenses: quando um Paulo Rosa e um Antônio Alberto estender-vos a mão, solicitando-vos um óbulo para a Casa de Criança e para o Patronato de Menores, não o negueis. Prestais ouvidos aos bater desses dois grandes e generosos corações e ouvireis as vozes de milhares e milhares de meninos pobres, doentes, imundos, miseráveis, maltrapilhos, balbuciando, este doloso apelo:
“Uma esmolinha pelo amor de Deus…” (ibidem, 3.8.1940, p.5)
É interessante observar que, na retórica do texto, o uso do imperativo afirmativo na segunda pessoa do plural e de frases curtas e repletas de ensinamentos morais trouxe aos últimos parágrafos um caráter inequívoco de uma oração – ou de uma parábola. Foi com essa bela prece literária direcionada aos “pobrezinhos”, portanto, que Palmério manifestou, pela primeira vez, os sentimentos humanitários que deveriam legitimar sua atuação social. É injusto, evidentemente, acusar Mário Palmério de cinismo, ou de demagogia, pois não há indícios de que ele não acreditava no que dizia. Ao contrário, sua crítica aos que tapavam o nariz “com lenços de cambraia” é um dado revelador de certa aversão ao luxo que o professor sempre fazia questão de manifestar em diversas circunstâncias – ainda que, por necessidade social e política, atuasse naquele cenário de requinte. Contudo, notamos que o tema das crianças de rua jamais seria abordado novamente em seus artigos – o que significa que essa questão não se tratava de uma causa que inspirasse engajamento permanente. Não obstante, o que nos interessa, acima de tudo, é verificar a sintonia de Palmério com o imaginário caritativo daquelas elites, assim como apontar o seu empenho em expressar publicamente a sua índole altruísta e piedosa.
Pois bem. Duas semanas depois, um católico Mário Palmério fez questão de escrever um artigo sobre Nossa Senhora da Abadia, a padroeira da cidade:
Boa, milagrosa e misericordiosa Senhora da Abadia: faz anos hoje, meu tempo feliz de menino. Tempo em que, junto à minha mãe, levantava-me cedinho, ainda na hora de poder ver a estrela d’Alva, bonita e grande, ir se sumindo devagarinho e bem longe, no céu.
Tempo feliz, em que não havia causa melhor no mundo de que passar pela praça da Misericórdia, pelos trilhos orvalhados e rasgados no meio dos “mal-me-queres” e das “maravilhas” de todas as cores, em busca, lá no alto, de Sua pequenina igreja.
Tempo feliz, em que podia repousar meus olhos na Sua imagem e ficar, o tempo todo da missa, pedindo à Senhora coisas e mais coisas impossíveis. […]
Hoje, tenho um medo enorme de Seus olhos. Sinto que eles estão sempre olhando para mim, com tristeza, pela ingratidão, que tive com a Senhora e pelo muito que pequei.
Boa, milagrosa e misericordiosa Senhora da Abadia. Não me olhe com tristeza… Eu preciso voltar, de novo, a seus pés. Tenho tantas coisas para pedir a Deus! E só a Senhora poderá consegui-los para mim… (ibidem, 12.8.1940, p.2)
Uma vez mais, em outro artigo que novamente sugeria uma prece, Mário Palmério procurava, nessa oportunidade, afirmar a sua identificação com a cultura católica local por meio da exibição de uma intimidade histórica e familiar com a padroeira da cidade. Amparado por essas declarações públicas de misericórdia e de fé, o jovem professor parecia moralmente habilitado a integrar o círculo de uberabenses virtuosos naquela sociedade cristã e conservadora.
Ainda que não seja possível precisar o período exato do seu despertar para as aspirações partidárias, temos observado que a atuação social de Mário Palmério jamais deixou de manifestar alguma ambição pelo poder. Assim, conscientemente ou não, a apropriação que faria da simbologia sagrada – e, de outro modo, a representação que a imprensa faria de sua atuação social – acabaria se revelando de natureza eminentemente política. Por isso, podemos notar que, devido também ao imaginário que envolvia sua própria atuação profissional, a escalada social e empresarial de Mário Palmério foi, aos poucos, sendo interpretada, nos jornais da época, como uma verdadeira ascensão de um ídolo sagrado que – à custa de infindáveis sacrifícios – assume uma missão divina, entrega-se a uma jornada legendária e vence cada um dos desafios até alcançar a “vitória integral”. Ou seja, em um prenúncio daquilo que se configuraria como uma autêntica ascensão mítica, Mário Palmério passou a ser paulatinamente representado como o herói que levaria o seu povo ao triunfo e à glória.
Vejamos. Desde as primeiras notícias sobre a criação do Liceu Triângulo Mineiro em 1940, o Lavoura e Comércio (22.7.1940, p.4) já deixava registrado os seus votos pelo êxito da “missão” de que Mário Palmério estava imbuído. O jornal dizia que aquele professor era um dos homens que “se empenhavam em levar, mais adiante ainda, nossa civilização” (ibidem, 9.7.1940, p.5) e noticiava com entusiasmo as “sensacionais” conquistas que ele trazia para a cidade em suas viagens à capital (ibidem, 22.7.1940, p.4). Mário Palmério, por sua vez, sempre que tinha oportunidade, não deixava de afirmar o seu “compromisso sagrado” (ibidem, 26.12.1941, p.1) com a educação em Uberaba. Nas homenagens que recebia no dia de seu aniversário, Palmério era sempre representado como aquele que não poupava esforços para contribuir com o progresso de sua terra (ibidem, 1º.3.1941, p.4) e, em outras circunstâncias, era descrito como o homem que punha “todas as forças do seu idealismo a serviço da causa da instrução entre nós” (ibidem, 16.1.1942, p.2).
Ninguém melhor que o prof. Mário Palmério soube compreender as necessidades da população uberabense e, também, ninguém melhor que ele soube ir ao encontro dessa necessidade. O Liceu Triângulo Mineiro está fadado ao mais absoluto sucesso e a fé e confiança que o ilustrado professor declarou depositar na colaboração do povo uberabense não foram formuladas em vão. Pode-se dizer que o Liceu Triângulo Mineiro já venceu, embora tenha aberto as portas de seu ginásio há dez dias. (ibidem, 8.1.1942, p.4)
Em pouco tempo, todo o circuito de amabilidades passou a afirmar a ideia de que Mário Palmério era uma espécie de guerreiro irredutível que jamais se desvia de sua missão. “Surpreende-me, sim, o esforço heroico despendido pelo nosso jovem conterrâneo no sentido de realizar o seu benemérito ideal”, afirmou o prefeito Whady Nassif (ibidem, 22.1.1942, p.6).
Na medida em que a surpreendente ascensão profissional o tornava cada vez mais célebre, Mário Palmério passou a ser descrito por meio de um vocabulário repleto de metáforas míticas e religiosas. Com isso, ano a ano, após inúmeras menções aos “sacrifícios vencidos”, às “lutas pelas realizações de seu ideal” e à superação das etapas de seu “grandioso empreendimento” rumo à “vitória” ou ao “triunfo”, percebemos um momento de ascendência do herói mundano à categoria de guerreiro de fé.
Era comum, naquele tempo, que as elites ilustradas associassem a ideia da educação a uma dimensão sagrada. Por ocasião da fundação do Ginásio Triângulo Mineiro, por exemplo, José Mendonça argumentou, em tom épico, que “ensinar, transmitir à mocidade os conhecimentos acumulados pelas gerações, perpetuar no futuro o resultado dos esforços dos nossos antepassados e das nossas próprias vigílias” era “uma das mais nobres e altas missões que se pode atribuir a um homem”. Assim, Mendonça construiu o louvor a Mário Palmério a partir da seguinte argumentação:
Uma casa de ensino é um foco de cultura, e, por isso mesmo, um sol vivo no meio social, a esclarecer os espíritos; a difundir a luz e o calor da ciência e das experiências adquiridas pelo gênero humano em séculos e séculos de pesquisas, de trabalhos e de sacrifícios; a orientar a juventude pelos caminhos seguros do bem, da verdade e da justiça; a redimir os povos das brumas e das caligens da ignorância e da submissão.
Por isso, quando entro numa casa de ensino, sinto a emoção profunda e o fervor religioso de quem penetra num templo de Deus. (ibidem, 26.1.1942, p.2)
Gomes de Matos foi um dos que melhor expressaram esse empenho em carregar de mágico e de sagrado a atuação de Mário Palmério em sua “grandiosa aventura”. Afirmando que Palmério parecia erguer a sua escola tal como se a obra já tivesse saído completa da lâmpada maravilhosa de Aladim, Gomes de Matos saudou o “idealismo robusto e impenitente deste moço que só sabe respirar em horizontes amplos, infinitos” e louvou a obstinação heroica e a abnegação plena daquele homem que não distraía “um instante sequer” de seus objetivos.
Mário Palmério possui a seu serviço a maior força com que se movimentam os elementos de vida, de realização e de progresso. É essa alavanca poderosa da vontade, a que nada resiste, quando tem como ponto de apoio a cristalização pura de um apostolado. A vocação do educador adquiriu em Mário Palmério, um sentido de absorvência, de vida integral. (ibidem, 2.2.1944, p.2)
Até mesmo os personagens que participavam de sua trajetória passaram a ser descritos em termos religiosos. Ao comentar sobre a decisão de Afrânio Azevedo em custear trinta alunos no Ginásio Triângulo Mineiro, por exemplo, o Lavoura e Comércio (16.1.1942, p.2) publicou o seguinte: “Só mesmo os que privam com o sr. Afrânio Azevedo, os que conhecem os tesouros de bondade do seu coração e a largueza de vistas do seu espírito, não duvidam da verdade de uma dádiva tão generosa”. Quando se anunciou que um dos pavilhões das novas instalações do Ginásio Triângulo Mineiro teria o nome de Afrânio Azevedo, o Lavoura e Comércio (28.7.1943, p.1) mais uma vez afirmou que o pecuarista era “portador de um coração boníssimo, voltado sempre para o bem” e por isso merecia ver seu nome imortalizado naquele prédio, sobretudo tendo em vista que toda a população já o cercara de uma “auréola” de simpatia de admiração.
Desse modo, em 1944, as representações do triunfo do guerreiro de fé já estavam consolidadas. “Mário Palmério venceu”, registrava o Lavoura e Comércio em 1944. “E vencerão também aqueles outros jovens que vierem buscar, junto com os ensinamentos de um grande professor, a Fé, esta grande Fé que nunca abandonou um grande trabalhador, dono de um espírito indomável, tecido com fibras que não sabem o que é ceder” (ibidem, 14.7.1944, p.6, 2). Para O Triângulo (1º.3.1946, p.2), Palmério fazia de sua profissão “um verdadeiro sacerdócio”.
Em 1946, Palmério já estava consagrado como o “grande incentivador” da educação na cidade e, nos dizeres do Lavoura e Comércio (1º.3.1946, p.5), ocupava um “lugar inconfundível na galeria dos que mais se esforçam e trabalham pelo engrandecimento do ensino e do erguimento do nível cultural desta região”. Quando em 1946 anunciou a criação de uma faculdade em Uberaba, foi descrito como um homem que tinha “vocação para o professorado” e cuja capacidade e espírito de iniciativa já o haviam celebrizado como “um dos maiores benfeitores da educação da mocidade uberabense”, que não poupava esforços “para impulsionar o progresso” da cidade: “O prof. Mário Palmério sagra-se na admiração dos habitantes desta vasta região brasileira como um dos legítimos paladinos da instrução e merece por isto mesmo os mais acalorados aplausos […]” (ibidem, 9.4.1946, p.1).
A conquista da inspeção permanente ao Ginásio Triângulo Mineiro – o “mais alto grau do reconhecimento oficial”, nas palavras do Lavoura e Comércio (9.10.1946, p.6) – foi descrita como mais uma “magnífica vitória” de Mário Palmério. E a partir desse momento, as referências sagradas à sua figura alcançaram um novo patamar. Sob o título “Cruzada de instrução do Ginásio Triângulo Mineiro”, por exemplo, um editorial do Lavoura representou a trajetória de Mário Palmério por meio de uma retórica que invocava uma verdadeira guerra santa contra as trevas do analfabetismo e a favor da iluminação dos espíritos por meio da educação.
Todos os louvores são poucos […] para saudarmos a vitória dos que põem o seu ideal a serviço da educação e da juventude no Brasil. Aparecem no campo de luta do magistério particular como verdadeiros cruzados. […] Devorados pela chama sagrada da vocação, fazem da própria vida um altar de oferenda, por um Brasil maior e mais consciente de si mesmo.
Mário Palmério é um desses. Na falange de denodo dos jovens professores da nossa terra, conquistou um lugar de exceção. […]
Quis, persistiu, venceu. Se as suas mãos se mostravam pobres de elementos materiais, a sua alma tinha a riqueza infinita de um idealismo incomportável. Mário Palmério sentiu que não se pertencia a si mesmo, mas à sua terra, ao seu povo, às gerações novas de Uberaba, que ele ajuda a nutrir com o pão do espírito, fortalecendo-a intelectual e moralmente, para as lides maiores, nos planos superiores da vida. E a sua obra se mediu pelo tamanho do seu ideal. Aí está, na paisagem das nossas conquistas, ligando um presente de grandezas a um futuro de portentosidade. Uberaba tem razão de orgulhar-se de filhos dessa estirpe, de moços que têm a temeridade confiante dos Jasões, na conquista dos velocinos de ouro. (ibidem, 20.12.1946, p.6)
Ou seja, a partir de 1946, Mário Palmério passou a ser descrito como um desses guerreiros “devorados pela chama sagrada da vocação” que faziam “da sua própria vida um altar de oferenda” em favor do país. Em mais uma representação de abnegação e de altruísmo absolutos, Palmério era um homem que “não se pertencia a si mesmo, mas à sua terra, ao seu povo”. Ao oferecer o “pão do espírito” às novas gerações, conduzindo-os aos “planos superiores de vida” com aquela “temeridade confiante dos Jasões na conquista dos velocinos de ouro”, Mário Palmério era o portador sagrado de “um presente de grandezas” de um “futuro de portentosidade”. Desse modo, podemos afirmar que os termos utilizados para representar Mário Palmério, como “sacrifícios”, “heroico”, “auréola”, “apostolado”, “sagra-se”, “paladino”, “Cruzada”, “chama sagrada da vocação”, “altar”, entre outros, sugerem um empenho inequívoco em carregar a sua figura de sagrado. Portanto, não foi casual que, por ocasião da criação da Faculdade de Odontologia, o Lavoura e Comércio (5.8.1947, p.1-2) tenha atribuído propriedades miraculosas ao dinamismo do professor: “Os que não creem em milagres apenas têm de abrir os olhos e ver, como nós vimos, em três tempos transformados dois pavilhões do Colégio do Triângulo Mineiro, que antes se destinavam ao internato, em anfiteatros, em salas especiais disso ou aquilo”.
É particularmente interessante notar o empenho da imprensa em distinguir as promessas de Mário Palmério das “confabulações de gabinete” que, podemos facilmente deduzir, diz respeito à tradição local em contentar-se com o imaginário. Gomes de Matos empenhou-se bastante para firmar essa distinção. Referindo-se a Mário Palmério, escreveu:
E sonho, para ele, não quer dizer nefelibatismo, não significa viagens de abstração pelos intermúndios. Sonho para ele significa princípio de ação e dessa ação grandiosa que põe estremecimentos de contágio em todos quantos bem avaliam o valor e a grandiosidade de uma das mais ousadas iniciativas que já se tomaram entre nós. (ibidem, 2.2.1944, p.2)
Assim, vemos que, nesse processo de consagração, Mário Palmério passou a ser representado como o herói sagrado capaz de sobrepujar todas as frustrações históricas da “Terra Madrasta” e de seu povo infeliz. A sincronia daquele empreendedorismo épico com o caráter sagrado de sua figura parecia querer forjar a imagem quase mágica do homem que transforma sonhos em realidade – a partir da lâmpada mágica de Aladim, na metáfora antológica de Gomes de Matos.
Quem transformou o espólio de falência do antigo Ginásio Brasil no incomparável triunfo do Colégio Triângulo Mineiro, também podia reabilitar a cidade do fracasso da sua antiga escola de Odontologia e Farmácia, que não passou de uma aventura malograda, por lhe terem faltado os necessários fundamentos de patrimônio material e de convicção idealista. (ibidem, 5.8.1947, p.1)
Em outro editorial publicado por ocasião da criação da Faculdade de Odontologia, Palmério foi descrito como um homem que seguia “transformando as suas palavras em cimento armado” antes que as pessoas tivessem tempo de duvidar das suas promessas.
Ainda mal se sussurrava que Mário Palmério iria fazer em Uberaba uma Escola de Odontologia e já os pedreiros estavam levantando paredes, o material necessário já começava a chegar para a montagem dos laboratórios e gabinetes e as démarches junto às autoridades oficiais do ensino estavam quase concluídas. (ibidem, 6.8.1947, p.2)
O caráter épico de seu empreendedorismo era expresso por meio de metáforas diretamente relacionadas ao imaginário da mitologia clássica, bem ao gosto do ideal de erudição daquelas elites ilustradas. Como vimos, o professor chegou a ser comparado a Jasão em busca dos velocinos de ouro. Referindo-se mais uma vez a Mário Palmério, certa vez um editorial do Lavoura e Comércio (1º.8.1947, p.6) registrou o seguinte: “A Faculdade de Odontologia que funda e que, como Minerva saiu armada da cabeça de Júpiter, sai dos seus planos de ação e de dinamismo pronta a funcionar”.
Todo aquele dinamismo de sua escalada profissional inspiraria um discurso cada vez mais apoteótico no Lavoura e Comércio (30.1.1947, p.6), tal como no seguinte editorial:
Com Mário Palmério, uma das etapas decisivas da nossa vida educacional
Não devem faltar as nossas felicitações ao prof. Mário Palmério quando sobe mais um degrau, na escalada do grandioso cometimento que é o Ginásio Triângulo Mineiro. Classificado entre os primeiros do país, o estabelecimento de ensino que concretiza toda a sua poderosa vocação de educador, agora recebe autorização para funcionar como Colégio.
Já tivemos ocasião de acentuar o arrojo de ideal, num sentido de conquistas plenas, que conduz à ação deste jovem uberabense. O prof. Mário Palmério, como que ajuda o tempo, na sua marcha veloz, para o amadurecimento dos seus planos. Que era, há quatro anos passados, o Ginásio Triângulo Mineiro? Nada mais do que um sonho alto e distante, talvez inacessível. A massa falida de uma série de tentativas frustradas foi ter às mãos do prof. Mário Palmério. Toda gente dizia que era mesmo impossível dotar Uberaba de nova e grandiosa casa de instrução secundária. Quantos tentaram a empreitada, encontraram, ao fim de muita luta e muita canseira, o zero dos desenganos.
Mário Palmério, entretanto, mostrou que era de outra fibra o valor de sua coragem, na caminhada audaciosa. Em vez de marcar passo, com a lentidão dos tímidos, fez-se de velas pandas, abertas a todos os ventos de uma ousadia quase temerária, em direitura ao seu desiderato. E a vitória impossível lhe sorriu. Impossível a quem não se armou cavaleiro para as justas da perseverança e da fé, impossível a quem não participa da confiança ilimitada que o prof. Mário Palmério deposita nos destinos da sua terra.
O Ginásio Triângulo Mineiro aí está, como um monumento de força de vontade e de abnegação. Custa a crer que, em tão pouco espaço de tempo, se conseguisse tanto, em favor da instrução e educação da juventude uberabense. E a admiração sobe de ponto, já raia pelo assombro, quando se verifica que tudo é obra de uma só pessoa, que tudo se deve à iniciativa de grandezas de um jovem professor, marcado da vocação de assinalados serviços à terra de seu berço. […]
Os elogios são muita vez [sic] o leito fofo e macio em que adormecem os empreiteiros de fôlego curto. Pagam-se deles inteiramente satisfeitos, repousando, em definitivo, da marcha que já não continuam.
Tal não acontece com o prof. Mário Palmério. Certamente que não desdenha o estímulo dos aplausos. Mas procura sempre fazer deles um motivo novo de confiança e de certeza, para prosseguir com redobrado ânimo.
De Ginásio a Colégio e de Colégio a Universidade. Quem o duvida? Os progressos da organização do prof. Mário Palmério se acentuam a passos gigantes. Se ele meter ombros à conquista maior da Universidade do Triângulo Mineiro, podemos contar certo com esse cometimento. Porque com ele estará não somente Uberaba, como todas as outras comunas desta região, para apoiar o jovem professor pioneiro destacado da causa da instrução em terras mineiras, na sua escalada sempre para o alto, cada vez mais para o alto. […]
Ou seja, reforçando o caráter mítico do herói na “escalada do grandioso cometimento”, o editorial lançou mão de metáforas mágicas para atribuir a Mário Palmério a capacidade de transitar em uma esfera atemporal para realizar tarefas “impossíveis” a toda gente. Representado ora como “cavaleiro” de “perseverança”, “fé”, “fibra” e “coragem” diferenciados; ora como navegador fabuloso de “ousadia quase temerária” com suas velas abertas em direção aos seus sonhos, Mário Palmério era o herói que, sozinho, em sua escalada a “passos gigantes” e “sempre para o alto, cada vez mais para o alto”, erguera um assombroso “monumento de força de vontade e de abnegação”. Em outro editorial, o Lavoura e Comércio (4.3.1947, p.6) sentenciou:
Só mesmo uma energia à prova de todos os percalços de dificuldades, uma força de vontade que não mede a extensão dos trabalhos e sacrifícios, para que conseguisse o jovem educador realizar uma obra de tamanho vulto, inteiramente sozinho e em tão curto espaço de tempo.
O tema da abnegação heroica foi um dos elementos mais presentes nessa dinâmica de consagração. Quando Palmério anunciou a criação do curso noturno no Ginásio Triângulo Mineiro, por exemplo, o Lavoura e Comércio (13.2.1946, p.6) afiançou que o professor não tinha em vista nenhum lucro material, “mas apenas aumentar a pauta de serviços à sua terra”. No editorial “A obrigação do louvor ao prof. Mário Palmério”, o Lavoura e Comércio empenhou-se ainda mais para reafirmar esse imaginário. Afirmando que o professor nascera “com a predestinação dos prodígios” e caminhava a passos largos em direção à “Universidade do Brasil Central”, a energia de Palmério foi louvada nos seguintes termos:
Mário Palmério possui o segredo dos dinamismos aproveitados, sem dispersões comprometedoras do lucro total da ação. Quando objetiva qualquer decisão, soma as horas do dia com as horas da noite, desdobra-se, multiplica-se, está ao mesmo tempo em toda parte, como num tom de ubiquidade portentoso, sem nunca sair, todavia, de dentro de si mesmo, da linha reta que se traçou, para a seguir até o fim, constante, teimoso, infatigável, disposto à derradeira tentativa e ao último sacrifício. (ibidem, 6.2.1948, p.8)
Assim, vemos que todas as características importantes do herói já pareciam assentadas nessa representação construída durante toda a década de 1940. O guerreiro solitário, que possuía o “segredo” e a “predestinação dos prodígios”, empreendia uma “ação grandiosa” para “reabilitar a cidade do fracasso”. Atuando como “Júpiter”, realizando tarefas “impossíveis” por meio do dom da ubiquidade, o herói estava disposto “à derradeira tentativa e ao último sacrifício” em nome de sua terra.