<!DOCTYPE HTML> <html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> <head> <title>A construção do mito Mário Palmério</title> <link rel="stylesheet" href="css/scielobooks.css" type="text/css"/> <meta charset="UTF-8"/> </head> <body> <div class="chapter"> <div class="title"> <p id="ct08"><a id="page_185"></a>6 - As crises</p> </div> <div class="section"> <p>A despeito de toda essa onda de esperança desencadeada com o fim do conflito na Europa e com o retorno da democracia no Brasil, a realidade daqueles primeiros anos de pós-guerra não correspondeu às expectativas de progresso e de paz social, tal como apregoadas pelos excitados cronistas do <i>Lavoura e Comércio</i>. Na verdade, no que diz respeito à história de Uberaba e região, podemos observar que a segunda metade da década de 1940 foi marcada por recorrentes instabilidades sociais, econômicas, políticas e identitárias que desembocariam em crises regionais relativamente graves no início dos anos 1950. Evidentemente, parte dessa crise diz respeito ao próprio contexto do país. O otimismo inicial com a política econômica liberal de Dutra foi rapidamente substituído por uma grande apreensão diante das dramáticas improvisações e mudanças de rumo empreendidas no decorrer de seu governo. Em poucos meses, o país já sofria uma grave crise social, manifestada em políticas de restrição no tocante a economia interna, congelamento de salários, recessão econômica, inflação alta, perda do poder aquisitivo de parte da população e aumento da concentração de renda. Para muitos analistas, a situação social do país no final do governo Dutra era “caótica” (Ianni, 1971). Todos esses elementos criariam condições favoráveis para que o ex-ditador Getúlio Vargas fosse eleito presidente da República em 1950.</p> <p><a id="page_186"></a>No contexto do Triângulo Mineiro, tendo em vista que as pessoas comuns dificilmente fazem questão de distinguir se os problemas concretos de sua vida são questões nacionais ou locais, notamos que uma série de perturbações faria despertar no imaginário regional aquele “estado de receptividade” particularmente favorável ao tempo do apelo e da espera de uma figura heroica que pudesse dissipar as sombras do horizonte de seu povo. Se Vargas parecia encarnar o herói nacional, aquela população parecia disposta à elaboração de seu próprio herói em nível regional.</p> </div> <div class="section"> <div class="title"> <p id="c08-h1-001">A crise social</p> </div> <p>Em 1946, os jornais uberabenses ainda se empenhavam para manter aquela imagem da metrópole fabulosa que irradiava civilização para todo o Brasil Central. No entanto, com a abertura política, aos poucos as contradições sociais também passaram a conquistar espaço, de modo que uma outra Uberaba começou a emergir em contraste à assepsia dos arranha-céus imaginários. E foi assim que o rude cotidiano dos habitantes da zona rural apareceu por entre as representações literárias da “Capital do Triângulo”:</p> <blockquote> <p>Reside numa palhoça miserável, ele a mulher e os filhos, em promiscuidade com galinhas, cachorros e porcos, que são uma espécie de prolongamento da família. […] Nunca viu um médico, não sabe o que seja uma escola para os filhos e quando os braços fraquejam pelas doenças ou pela velhice, recorre à mendicância para cumprir os últimos dias de um destino miserável. (<i>Lavoura e Comércio</i>, 12.3.1946, p.6)</p> </blockquote> <p>Se observarmos que quase a metade da população desse município de 60 mil habitantes morava na zona rural (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1948), não é difícil imaginar o quadro social que aquele imaginário da civilização uberabense procurava negar.</p> <p>Entretanto, não era apenas o mundo rural que aparecia miserável nas novas representações da imprensa, pois o empobrecimento do <a id="page_187"></a>núcleo urbano também começava a se manifestar. Inicialmente, sem deixar de lado a imagem da metrópole fabulosa, o jornal procurava explicar o aumento visível da miséria por meio da ideia de que, enquanto a modernidade avançava “em progressão aritmética”, a miséria o fazia “em progressão geométrica”. Contudo, os repórteres passaram a admitir que era preciso sair da zona dos “arranha-céus” e das casas luxuosas do centro de Uberaba para penetrar nos bairros distantes e registrar o cotidiano de uma gente esquecida que “vive por milagre ou, melhor, que morre a prestações, de fome e de doenças, carecendo de todo o socorro e entregue à sorte de uma devastação cruel e inevitável”.</p> <blockquote> <p>Um passeio pelos arredores da cidade enche a alma de consternação e de revolta. Em casebres, se é que se pode dar tal nome a uma coberta de zinco sobre paredes de terra batida, agoniza uma população de miseráveis, homens, mulheres e crianças, atirados como coisas inúteis, para os monturos da vida. (<i>Lavoura e Comércio</i>, 10.10.1947, p.6)</p> </blockquote> <p>A propósito, é provável que o maior símbolo da pobreza de Uberaba nos anos 1940 tenha sido o Asilo Santo Antônio, localizado na área urbana. Em uma dessas nascentes reportagens de teor social no <i>Lavoura e Comércio</i> (6.10.1944, p.5), publicada em outubro de 1944, Rui Miranda expôs com requintes literários a penúria de uma das instituições filantrópicas mais antigas da cidade. O dormitório das mulheres, registrou o repórter, era de extrema miséria, e o próprio forro ameaçava ruir a qualquer momento. Na parte inferior, “onde outras tantas deserdadas da sorte se alojam em verdadeiros cubículos”, vivia Maria Alexandre, uma interna que, nas palavras do jornalista, era uma “doida” que se levantava altas horas da noite para espancar as outras mulheres. “É o verdadeiro pesadelo do asilo e por isso dorme separada e bem vigiada”, escreveu o repórter cada vez mais assombrado: “Nesta seção, vimos tipos verdadeiramente disformes, verdadeiras aberrações da natureza e que se não sofrem muito é porque nunca conheceram a felicidade e julgam que a vida é igual para todos”. Na seção dos homens, a miséria ainda era maior: “No dormitório a luz da lua e das estrelas penetra pelas aberturas do telhado. Se chove, o dormitório <a id="page_188"></a>transforma-se num lago. Se faz frio, nem é bom pensar. Muitos não resistem ao inverno, tendo por cobertas minguados farrapos”. Por tudo isso, Rui Miranda conclui o texto clamando por auxílio financeiro ao asilo e evocando o espírito caritativo dos uberabenses: “Do contrário, a nossa cidade terá a pecha de ser um centro onde um zebu vale milhões de cruzeiros e a vida humana não vale um centavo…”.</p> <p>Por meio da Assistência Vicentina, as autoridades e a boa sociedade uberabense procuravam resolver, a seu modo, a questão da miséria na cidade. Para isso, realizaram, em outubro de 1944, a “Semana do Pobre”, que consistia em missas, palestras e “publicidade diária pela imprensa local sobre as múltiplas conveniências da retirada dos pobres das ruas” (ibidem, 21.10.1944, p.6). Ou seja, o objetivo final dessas ações era a criação de um “dispensário” para recolher aqueles inúmeros mendigos que faziam o seu “doloroso desfile pelas ruas modernizadas, resfolegando-se pelas colunas de mármore ou pelos sócolos de granito dos nossos arranha-céus”.</p> <blockquote> <p>São os cegos, os coxos, os paralíticos, as crianças maltrapilhas, as mães com a prole desnutrida, formando o cortejo dos desamparados no seio da nossa majestosa metrópole.</p> <p>Esse é o espetáculo de todos os dias, porque essa pobre gente, oprimida pelo custo asfixiante da vida, não tem dia e nem hora para deixar as suas cafuas vazias e miseráveis em busca do que matar a fome. (ibidem, 27.10.1944, p.2)</p> </blockquote> <p>Ao lado dos miseráveis, as famílias pobres também passavam por um período de grande desamparo. Tendo em vista o crescimento da cidade, o jornal apontou as dificuldades a que os trabalhadores de bairros distantes estavam submetidos ao serem obrigados a caminhar a pé os quilômetros entre os locais de trabalho e as suas residências. Por isso, o jornal defendia que a cidade deveria contar com pelo menos uma linha de ônibus para oferecer transporte barato a essas pessoas de baixa renda (ibidem, 6.1.1944, p.2).</p> <p>Entre os fatores que inspiravam a desilusão das famílias pobres, destacava-se a noção de que, naquele período, havia poucas perspectivas <a id="page_189"></a>de ascensão social para os seus filhos: nem mesmo escolas públicas havia em número suficiente. O ano letivo de 1944, por exemplo, já havia sido marcado pelo que a imprensa chamou de “espetáculo acidentado e tumultuoso” do último dia de matrículas do Grupo Escolar Brasil – o único estabelecimento público de ensino primário regular de Uberaba até aquele ano. Centenas de pais e familiares se direcionaram à escola e passaram a disputar com ânimo acirrado as vagas já inexistentes das classes superlotadas de 1º grau. Quando a diretora Corina de Oliveira anunciou de modo categórico a indisponibilidade de novas matrículas, a multidão que enchia a sala de espera ameaçou um tumulto e passou a ofendê-la de forma exaltada, acusando-a de preterir alguns em benefício de outros e expressando a decepção de ver que seus filhos não tinham escola para estudar naquele ano (ibidem, 31.1.1944, p.2). Evidentemente, aquela não seria nem a primeira nem a última vez que centenas de pais seriam frustrados pela falta de vagas nos grupos escolares. O <i>Lavoura e Comércio</i> (10.3.1944, p.2) procurava esclarecer que esse era um problema nacional, pois milhares de crianças em todo o Brasil também não haviam conseguido ingressar no 1º grau. Mas, evidentemente, a realidade nacional não servia de consolo aos pais impotentes que não sabiam direito a quem reclamar. “A que porta iriam eles bater, a fim de conseguirem um banco de escola e uma professora para os filhos?” – questionou o repórter, sem responder à própria pergunta.</p> <p>Os anos se passavam e o problema permanecia sem solução definitiva: em 1946, o jornal continuava lamentando o número insuficiente de escolas públicas para atender à crescente quantidade de crianças. Além disso, as instituições que existiam na cidade eram muito precárias, tal como o Grupo Minas Gerais, inaugurado havia pouco mais de um ano: “Funciona com as duas salas de aula providas de velhas carteiras desirmanadas e desconjuntadas, caindo pedaços. Suspensos das paredes, veem-se tábuas irregulares, pintadas, à guisa de quadros-negros” (ibidem, 16.2.1946, p.6). Em 1946, foram criados mais dois grupos escolares, o Uberaba e o América. Apesar de celebradas no início, as instituições tampouco conseguiram suprir a carência de instrução de Uberaba: “É precária, precaríssima, a <a id="page_190"></a>situação da Capital do Triângulo no tocante aos recursos de ensino público das primeiras letras. Centenas de crianças ficam, anualmente, entre nós, sem os benefícios da alfabetização, à míngua de escolas”. Por tudo isso, ao descrever mais um lamaçal que tomava o pátio do Grupo Minas Gerais, o jornal resumiu o espírito de desamparo da época com o seguinte lamento: “É ou não é de desanimar?” (ibidem, 11.10.1946, p.6).</p> <p>Na década de 1940, o cotidiano da cidade ainda foi marcado por várias privações. Ainda em 1946, por exemplo, a população de Uberaba sofria o racionamento de açúcar estabelecido pelo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) – órgão criado em 1933 para controlar o mercado no país (Moura, 2007). Em uma ocasião, uma multidão chegou a se aglomerar na porta de um armazém, ameaçando arrombar as portas para saquear açúcar (Lavoura e Comércio, 23.10.1945, p.2). No empenho para suprir parte do fornecimento, a própria prefeitura passou a comprar as sacas e distribuir cotas aos varejistas que deveriam vender de acordo com uma tabela (ibidem, 12.2.1946, p.4). Evidentemente, essas medidas estimularam o câmbio negro que, por sua vez, alargou ainda mais a distância entre os consumidores (ibidem, 10.5.1946, p.1, 6). O <i>Lavoura e Comércio</i> se ressentia particularmente com essa situação, pois algumas lideranças de Uberaba haviam efetuado uma denúncia no IAA contra a Cooperativa dos Usineiros de Pernambuco, mas não obtiveram nenhum resultado – nem mesmo uma resposta oficial: “Sim, o povo não tem outro recurso senão baixar o pescoço e aceitar todas as cangas que os exploradores acharem de lhe impor” (ibidem, 13.6.1946, p.6). Somente em julho, depois que o governo revisou as cotas e determinou que a Usina Junqueira atendesse ao mercado local, é que a situação prometia normalizar (ibidem, 10.7.1946, p.1).</p> <p>Naquele mesmo ano, a escassez de farinha de trigo no mercado nacional (tendo em vista a diminuição das importações da Argentina e dos Estados Unidos) fez com que a cidade passasse também por um desconfortável racionamento de pão, pois as cotas estabelecidas pela prefeitura não eram suficientes para atender à demanda local (ibidem, 10.5.1946, p.6). O jornal esclarecia a medida deste modo:</p> <blockquote> <p><a id="page_191"></a>Haverá um corte de cinquenta por cento no fornecimento das padarias a todos os seus fregueses, sem exceção de ninguém. Quem, por exemplo, habitualmente comprava cinco cruzeiros de pão por dia, doravante somente poderá comprar dois cruzeiros e cinquenta centavos.</p> </blockquote> <p>Para agravar a questão, a partir de setembro daquele ano, a população passou a perceber uma piora significativa na qualidade do pão. Segundo o <i>Lavoura</i>, o problema era a mistura de 30% de fubá na farinha de trigo, o que deixava a massa com uma cor amarelo-escura. O problema do chamado “pão amarelo” chegou a ser debatido em uma reunião na prefeitura (ibidem, 14.9.1946, p.6), mas não foi resolvido tão cedo. Em fevereiro de 1947, por exemplo, o <i>Lavoura</i> relatou a visita de um leitor que trazia nos braços um pãozinho tão pequeno, recém-comprado em uma padaria, que mais parecia assado por crianças em forninho de brinquedo. “Não encontrando a quem apelar, nosso assinante trouxe o rebento, autêntico aborto de sete meses à nossa redação, como um protesto contra a ganância de alguns padeiros que querem arrancar até os olhos da cara de seus fregueses”, indignava-se o jornal, questionando-se até quando a cidade ficaria à mercê de negociantes sem escrúpulos (ibidem, 14.2.1947, p.6).</p> <p>Além disso, desde 1946 a população também passara a ter dificuldades para comprar café devido ao aumento de preços. O jornal mostrava-se pasmo ao notar que, se no Rio de Janeiro o quilo do café custava sete cruzeiros, em Uberaba chegava a doze cruzeiros. Afirmando desconhecer a existência de uma comissão de tabelamento em Uberaba, o jornal lamentava que não tinha ninguém para apelar (ibidem, 21.4.1946, p.6). Em outro artigo, seu lamento se transformou em indignação contra a prática do câmbio negro no mercado de café:</p> <blockquote> <p>Uberaba não tem comissão de preços e a Prefeitura toma conhecimento por tomar, da alta de custo das utilidades. Quem quiser açambarcar, está na hora. A capital do Triângulo transformou-se no paraíso dos exploradores. […] Café moído a doze cruzeiros o quilo! Era o que faltava para completar o rosário das extorsões. (ibidem, 23.4.1946, p.1)</p> </blockquote> <p><a id="page_192"></a>Outro problema que fez o “calvário” dos uberabenses na segunda metade dos anos 1940 foi a deficiência do leite. Na verdade, desde meados de 1944 a cidade sofria períodos de absoluta falta de leite no mercado local (ibidem, 5.7.1944, p.1). Uma síntese geral dessas inquietações foi expressa no artigo “O Brasil está passando fome”, de José Mendonça:</p> <blockquote> <p>Acentua-se, de modo alarmante, a crise econômica em nossa pátria.</p> <p>Não temos açúcar, não temos pão, não temos macarrão, não temos transportes econômicos. O leite, a carne, a batata, os óleos comestíveis só se encontram em quantidades mínimas.</p> <p>E os demais gêneros de primeira necessidade estão sendo vendidos por preços exorbitantes, quase proibitivos. (ibidem, 28.5.1946, p.2)</p> </blockquote> <p>O problema foi se arrastando, e, como consequência, em 1948 o jornal ainda reclamava com indignação, afirmando que o leite que circulava na cidade, um verdadeiro “atentado vivo á saúde das nossas crianças”, era composto de 50% de “água suja, de qualquer charco”.</p> <blockquote> <p>Pão microscópico, leite com água, arroz e feijão com preços de escala acima, cada vez mais caros, carne três vezes por semana – a vida do uberabense é uma verdadeira tortura, assemelhando-se a nossa situação de carestia, de penúria e de miséria, à de uma cidade sitiada, por obra da ação malfadada dos que podem navegar à vela solta no mar largo da exploração. (ibidem, 19.10.1948, p.1)</p> </blockquote> <p>Foi somente no dia 1º de outubro de 1946 que Uberaba teria a sua Comissão Municipal de Tabelamento de Preços, uma instância independente que, com o apoio da prefeitura, deveria estabelecer e fiscalizar o “equilíbrio necessário dos interesses dos vendedores e dos consumidores” na cidade (ibidem, 2.10.1946, p.6). “O pobre que faça por onde ficar rico, que procurem cavalgar os que hoje são cavalgados, mas não se venham com panaceias de justiça social, de princípios humanitários, para remediar o irremediável” – era uma das expressões correntes nessa época de frustração com as promessas do mundo pós-guerra.</p> <blockquote> <p><a id="page_193"></a>Desde que a crise estalou, num dia que vai velho e longínquo, no calendário do pobre, que se procura explicar as suas causas. A vida está pela hora da morte por causa da guerra. A frase fez furor. […] Mas a guerra se foi e as coisas não melhoraram. Antes pelo contrário, a corrida dos altistas se verificou bem mais acentuada. (ibidem, 10.10.1946, p.6)</p> </blockquote> <p>Por fim, o dilema histórico que persistia impondo obstáculos determinantes ao desenvolvimento da cidade era o péssimo funcionamento do sistema de abastecimento de água e de energia na cidade. O próprio diretor do Serviço de Força, Luz e Águas de Uberaba, Thomas Bawden, admitia publicamente a deficiência: “Realmente, ainda é precário o suprimento desta zona da cidade, cuja linha mestre de abastecimento não foi totalmente concluída por ocasião da construção do Serviço, devido à dificuldade de material e seu elevado custo” (ibidem, 19.1.1946, p.1). Apesar dos esforços federais, concentrados sobretudo no Plano Salte,<sup><a href="#ch11-1" id="rch11_1">1</a></sup> no sentido de propor soluções aos problemas relacionados à carência na infraestrutura de transportes e energia em todo o país, os jornais locais jamais deixaram de relacionar as crises sociais à administração municipal e sobretudo estadual.</p> <p>A instabilidade no sistema de água favorecia a emergência de inúmeras teorias conspiratórias no imaginário da cidade. Em setembro de 1946, por exemplo, a população ficou atemorizada pelo boato de que a água servida em Uberaba estava comprometida por causa de uma avaria no aparelho de clorificação. Foi preciso que o <i>Lavoura e Comércio</i> (21.9.1946, p.6) tranquilizasse os leitores, garantindo que não havia nada de anormal no tratamento de água. Contudo, tendo em vista a extrema degradação a que as pessoas assistiam dia a dia em suas torneiras, o próprio jornal passou a alertar que Uberaba estava consumindo “água imprestável”, “barrenta”, com o “mais alto índice bacteriológico”, implicando “gravíssimo perigo” para a população. “A água poluída pode, de um momento para outro, provocar o alastramento de uma grave epidemia de tifo, paratifo, disenteria e outras <a id="page_194"></a>moléstias graves do aparelho digestivo”, advertia o <i>Lavoura e Comércio</i> (4.3.1948, p.6).</p> <p>Em um editorial em tom de desabafo, o <i>Lavoura e Comércio</i> registrou que Uberaba, cidade que já sofria todas as inconveniências da escassez de água, estava prestes a ver o sistema entrar em pane definitivo a qualquer momento.</p> <blockquote> <p>Em certas horas do dia, Uberaba não tem água, até mesmo para as mais inadiáveis serventias, e bem se pode ajuizar a tragédia que disso decorre. O povo sofre, o povo brada, o povo reclama e se desespera, em vista das providências que tardam, que não vêm nunca, em seu benefício. (ibidem, 26.2.1949, p.1)</p> </blockquote> <p>A situação do sistema de energia era ainda mais perturbadora. Segundo o <i>Lavoura e Comércio</i>, rara era a semana em que, uma ou duas vezes, o próprio jornal não era forçado a paralisar os trabalhos por falta de eletricidade. E se na área central da cidade os <i>blackouts</i> eram rotineiros, um passeio à noite pelos bairros era, nas palavras do <i>Lavoura</i>, um “mergulho no reino da escuridão” (ibidem, 10.9.1948, p.1). Em março de 1949, quando a cidade ficou por oito horas seguidas sem energia, o jornal publicou mais um editorial furioso, indignando-se contra a frequência dessa “irregularidade exasperante e prejudicialíssima” que “descontrola os nervos” de qualquer um.</p> <p>Entre as inúmeras instabilidades que Uberaba experimentava no pós-guerra, o “retardamento” da industrialização era interpretado como consequência direta da precariedade da energia na cidade. “Estamos com a vida de atividades da cidade em colapso.”, exasperava-se o jornal. “Nenhuma máquina se movimenta, em qualquer oficina. Nos hospitais, nas casas de saúde, nos consultórios médicos, casos urgentes de intervenção cirúrgica têm de ser adiados, nem se pode tirar nenhuma chapa radiográfica, muita vez de necessidade inadiável” (ibidem, 3.4.1948, p.1). É importante notar que tanto o desespero pela falta de energia quanto esse recente discurso em favor da modernização estavam ligados à súbita mudança de paradigmas às quais as lideranças locais procuravam se lançar, em meio à mais grave instabilidade <a id="page_195"></a>econômica que Uberaba vivenciava desde a derrocada comercial no século XIX – trata-se da inesperada crise do zebu, uma verdadeira catástrofe na economia local que em poucos meses provocou a ruína de pecuaristas e assombrou o imaginário da cidade com a perspectiva de uma nova era de empobrecimento e decadência urbana.</p> </div> <div class="section"> <div class="title"> <p id="c08-h1-002">A crise econômica</p> </div> <p>“Uberaba, o maior centro de criação de gado zebu de todo o mundo, apresenta sensacional desfile de valores”, vangloriava-se o <i>Lavoura e Comércio</i>, em março de 1945, em um anúncio publicado em toda a primeira página. A peça de propaganda exibia oito espécimes de touros reprodutores que valiam milhões de cruzeiros e evidenciavam, mais uma vez, a fabulosa fortuna que circulava nas mãos dos pecuaristas. Ao mesmo tempo, a manchete realimentava aquela tradicional representação da cidade que se consolidara no imaginário local: Uberaba, a capital mundial do gado zebu – título honorífico que os pecuaristas conseguiram incorporar à identidade local para reivindicar o orgulho de toda a população.</p> <div class="image"> <img alt="Image" src="images/f0195-01.png" /> <p>Figura 50 – Notícia sobre a crise da pecuária.</p> </div> <p><a id="page_196"></a>No entanto, já naquele ano, diversos sinais indicavam a cada vez mais visível fragilidade dos criadores de gado perante o contexto econômico da época, que experimentava um processo de “transferência de renda” dos “setores produtivos agrícolas e manufaturados para os setores industriais voltados para o mercado interno” (Saretta apud Szmrecsányi; Suzigan, 2002, p.114). Na primeira metade da década de 1940, auge do zebu, pecuaristas de diversas regiões do Brasil passaram a manifestar o interesse na compra dos reprodutores e, de certo modo, pareciam ameaçar a supremacia dos uberabenses nesse ramo. Contudo, como o Indubrasil era um gado fabulosamente caro, eram poucos os pecuaristas com recursos para uma aquisição em quantidade suficiente para atender aos seus rebanhos. Para se ter uma ideia da escalada de preços, se em 1941 o touro “Aragão” foi comercializado por quinhentos mil cruzeiros, em 1943 “Turbante” valeria um milhão e, no ano seguinte, “Soberano” seria vendido por dois milhões (Mendonça, 2008, p.165). No intuito de pensar soluções para democratizar o acesso aos animais, o político Fidélis Reis chegou a sugerir que o governo comprasse gado zebu e cedesse, por empréstimo, aos pecuaristas necessitados (<i>Lavoura e Comércio</i>, 15.3.1945, p.2).</p> <p>Contudo, uma ideia bastante desfavorável à causa dos uberabenses começou a circular no país: criadores paulistas, liderados pelo pecuarista Rolin Gonçalves, defenderam que o governo brasileiro deveria importar levas de zebus diretamente da Índia para fornecê-los a todo o país e abaixar os preços dos reprodutores puros-sangues (ibidem, 21.2.1945, p.6). Os grandes zebuzeiros uberabenses ficaram atemorizados e passaram a defender que o zebu uberabense era “bem mais perfeito” e “dotado de superiores qualidades econômicas” em relação ao nativo indiano, pois o gado local já estava aclimatado e havia sido aperfeiçoado por cinquenta anos de seleção e melhoramentos. Segundo os uberabenses, a incorporação desses espécimes no rebanho nacional poderia anular por completo todo o paciente trabalho empreendido pelos zebuzeiros históricos e, portanto, significaria uma “marcha à ré de consequências catastróficas” (ibidem). Para contrapor esse argumento, Rolin Gonçalves afirmou que os novos zebus indianos não afetariam o gado “multimilionário” de Uberaba, pois os animais seriam encaminhados <a id="page_197"></a>“tão somente aos 98% dos criadores brasileiros que não fazem parte dos privilegiados”. Gonçalves fez questão de criticar os preços do gado de Uberaba, que estavam atingindo “cifras astronômicas, quase absurdas” (ibidem, 21.3.1945, p.4-5). Todo esse debate, realizado às vésperas da exposição anual de gado zebu na cidade, despertou grande polêmica na imprensa local:</p> <blockquote> <p>Sem dúvida começa agora uma propagandazinha contra o Zebu. Cuidado com ela! É um movimento organizado, capitalizado, incorporado, imprensificado etc. etc., para uma queda, uma baixa no maravilhoso boi de Uberaba, e do Brasil. Queda e baixa em estilo de terremoto. Coisa pavorosa!! (ibidem, 17.3.1945, p.2)</p> </blockquote> <p>Não foi por acaso que, em maio daquele ano, os pecuaristas tenham decidido dar publicidade aos planos de edificar um grande monumento ao zebu, que deveria ser confeccionado em cobre e teria o custo de um milhão e quinhentos mil cruzeiros. A notícia foi destaque no <i>Lavoura e Comércio</i> (19.5.1945, p.1, grifo nosso) sob pomposo título: “O monumento pró Zebu se erguerá como símbolo da <i>verdadeira grandeza econômica de Uberaba”</i>. Para justificar a utilização de recursos públicos, o jornal dizia o seguinte: “Não foi somente Uberaba que se beneficiou com a aclimação e o selecionamento do boi de cupim. Foi o Brasil inteiro, sacudido por uma autêntica revolução nos domínios da pecuária”. Assim, diante dos ataques e da crise iminente, os pecuaristas procuravam lançar mão de procedimentos simbólicos para reafirmar a legitimidade de sua ascendência.</p> <p>No entanto, as investidas contra os zebuzeiros ganharam força na campanha eleitoral de 1945, quando o candidato brigadeiro Eduardo Gomes, ao discursar em Uberlândia, atacou a prodigalidade da política financeira de Vargas em relação ao zebu e criticou a falta de critérios na distribuição de “graças” aos pecuaristas, argumentando que tais recursos eram “não raro desviados para especulações artificiosas” (ibidem, 17.10.1945, p.6). O <i>Lavoura e Comércio</i> (18.10.1945, p.6), ao afirmar que o gado indiano entrara para a ”lista negra” de Eduardo Gomes, empreendeu a partir de então uma campanha sistemática <a id="page_198"></a>contra o candidato. Falando em “conspiração contra o Zebu”, o jornal alertava contra a “terrível ameaça aos destinos da pecuária uberabense, caso o brigadeiro lograsse ir à presidência da república” (ibidem, 22.10.1945, p.6).</p> <p>No entanto, o brigadeiro não estava equivocado. Como contam Lopes e Rezende (2001, p.106), um dos mais importantes fatores que favoreceram a era de ouro do zebu foi, de fato, a ação governamental que, por meio da Carteira Agrícola do Banco do Brasil, liberara empréstimos ilimitados sem estabelecer controles efetivos sobre os preços: “A facilidade para obter estes financiamentos levou muitas pessoas inexperientes a abandonarem antigas profissões e entrarem nos negócios do zebu, comprando e vendendo sem verdadeiro conhecimento quer da mercadoria, quer do mercado”. Quando o governo anunciou em 1945 mais rigor na política de créditos, a instabilidade já se anunciara.</p> <p>Por isso, em janeiro de 1946, mesmo com a vitória de Eurico Gaspar Dutra, a “crise da pecuária” e “a situação aflitiva em que se debatem os meios ruralistas triangulinos” já apareciam com todas as letras no jornal. Em um relatório encaminhado ao presidente Dutra, o deputado federal uberabense João Henrique foi enfático em seu diagnóstico: “A pecuária nacional se debate em tremenda crise. Não apenas o criador de reprodutores finos, mas a própria criação de gado destinado ao corte”. O deputado esclarecia que, ao mesmo tempo que faltava carne nas grandes cidades do país, o gado de corte se atulhava nas invernadas por falta de comprador. Para agravar a situação, os impostos, os salários concedidos aos trabalhadores do campo e o preço das utilidades de uso corrente nas propriedades rurais estavam quase impraticáveis: “As fazendas de boa administração rendem menos de 5% sobre seu valor. Isso é um convite ao abandono das atividades ruralistas” (<i>Lavoura e Comércio</i>, 16.1.1946, p.1).</p> <p>A falta de compradores dava margem ao “jogo baixista dos frigoríficos e matadouros” e depreciava ainda mais o valor do gado (ibidem, 1º.2.1946, p.6). Por fim, os criadores passaram a sentir mais fortemente as consequências da suspensão das linhas de crédito pelo Banco do Brasil, que também estabelecera um valor máximo do preço do gado financiado. Naturalmente, a tabela mantinha-se muito aquém das <a id="page_199"></a>cotações milionárias dos reprodutores de elite e, por consequência, acelerou o movimento já corrente de depreciação dos rebanhos. Com tudo isso, a classe ruralista foi lançada a uma situação incontornável de insolvência.</p> <p>As restrições ao crédito não se restringiram aos pecuaristas, pois era parte da política de estabilização empreendida pelo governo (Saretta apud Szmrecsányi; Suzigan, 2002). No entanto, o colapso do zebu se alastrou em proporções avassaladoras sobretudo devido aos exageros nos anos anteriores, quando uma geração de novos pecuaristas se entusiasmou temerariamente com as promessas de fortuna fácil, tendo em vista os valores astronômicos que envolviam o negócio de zebu. Havia relatos de infindáveis excessos e abusos na obtenção de créditos, tanto do lado dos bancos como dos fazendeiros, de modo que não era incomum encontrar zebuzeiros negociando valores dez vezes maiores do que a sua verdadeira capacidade financeira. “E o povo como que se enlouqueceu pela pecuária” (<i>Lavoura e Comércio</i>, 22.3.1946, p.2). Com a extinção da era de crédito ilimitado, a estrutura que sustentava as fortunas dos pecuaristas se desmoronou.</p> <blockquote> <p>Num clima de euforia, com as transações e os lucros se multiplicando, ninguém poderia prever a queda do zebu. No início de 1945, às vésperas da <i>débâcle</i>, provocada pelo corte sumário e repentino do crédito, para qualquer negócio ligado ao zebu, na Carteira Agrícola do Banco do Brasil, um touro de nome “Tigre” foi vendido em Uberaba por 1 milhão e 200 mil cruzeiros. Duas semanas depois, o dono não encontraria nem cem mil cruzeiros pelo boi. O ato do Governo apanhou todo mundo de surpresa. Foi um pânico geral. Homens acostumados a lidar com grandes somas, de repente ficaram sem crédito. […] Era uma classe inteira, toda poderosa na véspera, que entrara em concordata. (Amorim apud Lopes & Rezende, 2001, p.109)</p> </blockquote> <p>A falência generalizada dos pecuaristas foi rapidamente incorporada no imaginário local. Em pouco tempo, qualquer habitante era capaz de relatar alguma história de um conhecido ex-pecuarista falido que perdera todos os bens “quando a crise do gado quebrou <a id="page_200"></a>meio mundo em Uberaba” (Carvalho, 2006, p.81). Todos sabiam que as famílias “mais importantes e progressistas” de Uberaba se achavam “emaranhadas nas malhas da questão da queda do Zebu”. Entretanto, ao lado do folclore e do vexame expresso na ruína fragorosa dessas parentelas, a crise do zebu começou a disseminar um temor verdadeiro na cidade.</p> <blockquote> <p>Não fazemos mal em dizer que quase toda a fortuna de Uberaba está fundamente abalada. E podemos adiantar que, se não vier uma medida ampla em benefícios dos zebuzeiros de Uberaba, nossa cidade, talvez, será em breve um montão de casas desabitadas e de ruas mortas. (<i>Lavoura e Comércio</i>, 22.3.1946, p.2)</p> </blockquote> <p>A crise do zebu se aprofundou e a insolvência dos pecuaristas perturbou substancialmente a economia local. “Uberaba atravessa, nesta hora, uma das suas grandes crises econômicas em face da queda vertiginosa do zebu, pedra de toque de sua economia e base de todo o seu movimento financeiro” – registrou o <i>Lavoura e Comércio</i> (16.11.1946, p.2). Nesse momento, o jornal já começava a argumentar que essa crise sem precedentes impunha um ultimato para que a população começasse a se dedicar a “profundas cogitações em torno do futuro da cidade”, pois era preciso se convencer definitivamente de que Uberaba não podia e não deveria mais viver “exclusivamente da pecuária” e nem esperar “milagres continuados na multiplicação das fortunas”. Em outras palavras, a crise da pecuária parecia favorecer a libertação de um discurso de modernização urbana que deveria ser efetuada por meio do incentivo ao comércio e da instalação de um parque industrial da cidade. (Daí a angústia das elites locais com a questão da energia.) No entanto, esse discurso nascente ainda precisava vencer uma mitologia conspiratória que ameaçava paralisar Uberaba com um dilema aparentemente insolúvel: deixar de lado a pecuária poderia implicar a derrocada final de Uberaba, que seria inevitavelmente arrastada a uma nova era de decadência e de miséria social. O melhor exemplo dessa mitologia se encontra em um artigo apocalíptico que José Mendonça publicou no <i>Lavoura e Comércio</i> (4.3.1947, p.2):</p> <blockquote> <p><a id="page_201"></a>Se vier o “CRACK” da pecuária, sofreremos, no Brasil, uma catástrofe sem precedentes em nossa história.</p> <p>Credores e devedores rolarão no abismo.</p> <p>O Banco do Brasil, os bancos particulares e os demais credores terão prejuízos tremendos, calamitosos.</p> <p>Arrasada a pecuária, a economia nacional entrará em colapso.</p> <p>As fazendas despovoadas, as lavouras definhadas […] e as nossas cidades do interior transformar-se-ão em Itaocas, iguaizinhas àquela que Monteiro Lobato descreveu.</p> <p>As gerações futuras de nossa pátria serão totalmente sacrificadas, porque os pais não terão mais recursos para educar os seus filhos e estes, além de tudo, em vez de herdarem uma situação próspera, receberão o quinhão da miséria e do desalento.</p> </blockquote> </div> <div class="section"> <div class="title"> <p id="c08-h1-003">A crise política</p> </div> <p>Como temos visto, a tendência à paralisia, à resignação e ao sentimento de impotência diante da dimensão dos problemas sociais era uma constante na cultura daquela sociedade em crise. “A que porta bater?”, “É ou não é de desanimar?”, “O povo não tem outro recurso senão baixar o pescoço…”, “Não há a quem apelar…”, “Até quando a cidade ficaria à mercê…”, “Brada aos céus a falta de solução…”. Todas essas expressões, empregadas de modo recorrente na imprensa local, revelam a sensação de desamparo a que até mesmo as elites ilustradas pareciam se entregar.</p> <p>A despeito do retorno à democracia, o sentimento de impotência se agravava com a frustração das pessoas diante da visível desordem partidária nos diretórios locais. “A situação atual da nossa política é mais confusa do que o emaranhado que o morcego faz nas crinas dos cavalos”, escreveu um cronista referindo-se à política de Uberaba: “e por isso mesmo deixamos para os grandes resolver a situação, porque em festa de jacu nhambu sempre fica de fora” (ibidem, 17.10.1947, p.6). Essa perplexidade naturalmente aumentava ainda mais a desconfiança das pessoas em relação aos políticos tradicionais. Em outubro de 1947, por exemplo, quando os diretórios locais ainda buscavam <a id="page_202"></a>os nomes para compor suas listas de candidatos naquela que seria a primeira eleição municipal depois do fim da ditadura, o <i>Lavoura e Comércio</i> lamentava que essas escolhas se davam “de acordo com as conveniências” de pessoas meramente vaidosas que, tendo mordido “a isca da vereança”, mostravam-se dispostas a “dar uma perna ao diabo” em troca da oportunidade da sua própria candidatura. Para o jornal, o objetivo da maioria dos candidatos era apenas:</p> <blockquote> <p>Ver o nome escrito nas faixas vistosas de cinco ou seis metros e a fotografia mais cinematográfica ocupando lugar de destaque nos jornais, poder aliciar votos, com um abraço carinhoso para a direita e para a esquerda, enfim sentir, por alguns dias uma elevação de prestígio, mesmo ilusória, no requesto da opinião pública. (ibidem, 19.10.1947, p.6)</p> </blockquote> <p>Em um reflexo da desorientação partidária da época, o próprio <i>Lavoura e Comércio</i> (23.10.1947, p.6) admitia que as suas notícias sobre a política local não faziam mais do que reproduzir os rumores que circulavam na própria sociedade: “Nós, francamente, não sabemos de nada. Vendemos os boatos pelo preço que compramos”. Um desses rumores dizia respeito, por exemplo, à improvável combinação de forças entre a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social Democrático (PSD) local – fato que, quando oficialmente anunciado, não deixou de causar surpresa na cidade. Todos sabiam que o PSD estava profundamente ligado a Getúlio Vargas desde a criação. Reunindo sobretudo os políticos tradicionais da área rural, o partido tornara-se particularmente forte em Minas Gerais, graças ao significativo prestígio de Benedito Valadares, getulista histórico. A UDN, por sua vez, era constituída pelos constitucionalistas liberais, identificava-se com o corpo de oficiais do Exército brasileiro e se caracterizava por um agressivo sentimento anti-Vargas (Skidmore, 1979, p.80-9). Uma combinação de forças daquela natureza não podia deixar de desnortear os eleitores.</p> <p>Nos municípios do interior, em especial, o retorno à democracia não impediu a emergência dos antigos coronéis ou de seus descendentes diretos na política local. Como testemunha o ex-político petebista <a id="page_203"></a>tijucano Luiz Junqueira (apud Fonseca, 2006a), a UDN de Uberaba era quase que a institucionalização partidária da família Rodrigues da Cunha e de seus protegidos. Da mesma forma, o PSD “pertencia” aos Borges, chefiados por um grande fazendeiro, o coronel Ranulfo Borges do Nascimento. Distante de qualquer discussão programática, o controle de um partido significava acima de tudo um empenho para o retorno das famílias tradicionais ao governo local. Com essa falta de critérios nas alianças, esses homens que “não fazem questão de legendas”, nas palavras do <i>Lavoura</i>, acabaram por desequilibrar ainda mais a vida político-partidária local.</p> <p>Para se ter ideia da desordem dos diretórios locais, notamos que, além da aliança entre o PSD e a UDN, causaram “admiração de pasmo” outras combinações de partidos que nacionalmente se separavam por verdadeiros “abismos ideológicos”, tal como as uniões entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e uma ala da UDN local, assim como a do PSD agrário com o Partido Popular Progressista (PPP) – “pseudônimo do partido comunista brasileiro”, nas palavras do <i>Lavoura</i>. Com tudo isso, os eleitores sentiram-se definitivamente desorientados ao se depararem, na campanha eleitoral municipal, com anúncios políticos francamente contraditórios e discrepantes, tais como os seguintes, publicados na mesma página, no dia 24 de outubro de 1947.</p> <div class="image"> <img alt="Image" src="images/f0203-01.png" /> <p>Figura 51 – Anúncio político do PTB e da “ala renovadora” da UDN, em 24 de outubro de 1947.</p> </div> <div class="image"> <a id="page_204"></a><img alt="Image" src="images/f0204-01.png" /> <p>Figura 52 – Anúncio político da UDN em 24 de outubro de 1947, publicado na mesma página do anúncio anterior.</p> </div> <p>Contudo, o PTB acabou se tornando o grande vitorioso nas eleições municipais de 1947. Além do prefeito Boulanger Pucci e do vice-prefeito Antônio Próspero, o partido elegeu oito dos quinze vereadores. O PSD ficou com quatro cadeiras e a UDN com três (<i>Lavoura e Comércio</i>, 29.11.1947, p.1). Essa vitória não foi casual. Como argumenta Ferreira (2005), o sucesso político dos trabalhistas e o crescimento eleitoral do PTB não foram somente o resultado de propaganda ideológica e controle estatal sobre os sindicatos, mas correspondeu a “tradições, crenças e valores” que circulavam na cultura política da sociedade brasileira. Na verdade, desde a década de 1940, expressivos segmentos da sociedade já manifestavam a crença de que a modernidade seria alcançada com políticas nacionalistas de industrialização e distribuição de renda. Os anos 1950 seriam marcados precisamente pela emergência de toda uma geração de homens e mulheres entusiasmados pelo discurso da “utopia desenvolvimentista”, em que o nacionalismo, a soberania nacional, as reformas socioeconômicas e a ampliação dos direitos trabalhistas passaram a ser interpretados como elementos imprescindíveis para alcançar o progresso e o bem-estar social. “Da personalização da política, o ‘getulismo’ institucionalizou-se em um partido político, <a id="page_205"></a>o PTB, transformando-se em um projeto para o país, nomeado de trabalhismo” (Ferreira, 2005, p.12). Em Uberaba, o PTB também encarnou esses ideais e tornou-se um partido muito popular.</p> <p>A vitória dos trabalhistas em Uberaba e o festejado retorno do município à vida constitucional, entretanto, não aplacaram a descrença da sociedade com os políticos. Esse espírito foi expresso em um editorial contundente do <i>Lavoura e Comércio</i> (19.1.1948, p.6), intitulado: “Estamos fartos de partidos políticos”. Para o jornal, três anos após a criação dos novos partidos e apenas dois meses depois das eleições, a “politiquice” havia dominado e absorvido toda a vida partidária local, “torcendo rumos e intenções, para o espetáculo medíocre e desolador das vantagens pessoais sobrepostas às conveniências coletivas”. Por isso, o diário posicionou-se contra a criação até mesmo do “Partido Ruralista Brasileiro”, fundado para defender a causa dos pecuaristas em crise.</p> <p>Além disso, a despeito do sucesso nas eleições de 1947, o PTB local logo entraria em uma grande crise devido a uma série de discordâncias internas irreconciliáveis, mas sobretudo por causa de uma disputa de poder entre suas duas principais lideranças: o prefeito Boulanger Pucci e Antônio Próspero, vice-prefeito e presidente do diretório local. Visivelmente ambicioso, Próspero começou a reivindicar uma autonomia que por fim incomodou profundamente o colega. Quando o vice Antônio Próspero geriu a prefeitura entre 28 de março e 14 de junho de 1949, por ocasião de uma cirurgia do prefeito, foi acusado pela Câmara de cometer irregularidades na gestão financeira e não contou com o apoio de Pucci em sua defesa. Essa instabilidade impôs um racha irreversível no diretório. Em 1949, o líder udenista na Câmara chegou a comemorar o fato de que o PTB local estava se “esfarelando” devido à sua crise interna. Por sua vez, a facção descontente com o “acordo absurdo e sem nexo” com a UDN começou a se articular para organizar um diretório dissidente com o auxílio dos “verdadeiros trabalhistas e getulistas” (ibidem, 25.7.1949, p.1). No entanto, Antônio Próspero empregou todo o seu prestígio para conquistar o apoio do diretório estadual, manteve-se na presidência e, com vistas às eleições de 1950, obteve a autorização para liderar a criação de diretórios do PTB em <a id="page_206"></a>diversas cidades do Triângulo, tais como Campo Florido, Nova Ponte, Santa Juliana, Conceição das Alagoas, Prata, Monte Alegre de Minas, Tupaciguara, Veríssimo e Ituiutaba (ibidem, 1º.8.1949, p.1). Desiludido com o PTB sob o comando de seu desafeto, Pucci desfiliou-se do partido e ingressou no Partido Social Progressista (PSP), levando consigo um grupo de ex-trabalhistas que guardariam um rancor profundo dos antigos colegas.</p> </div> <div class="section"> <div class="title"> <p id="c08-h1-004">A crise identitária</p> </div> <p>Desde os primeiros anos de povoamento, no início do século XIX, a região do Triângulo Mineiro tem experimentado, de forma mais ou menos cíclica, uma recorrente crise de identidade que, em regra geral, tende a se manifestar com toda força nos períodos de instabilidades econômicas, sociais e políticas. Devido a um intercâmbio econômico e cultural intenso com o norte paulista, com o sul goiano e com leste mato-grossense, em contraste ao quase isolamento em relação aos mineiros metropolitanos, os triangulinos ora se identificam com esses Estados, ora procuram negar ou confrontar a “mitologia da mineiridade” (Arruda, 1990) em nome de uma suposta identidade própria, autônoma, mas sobretudo desvinculada de Minas.</p> <p>Uma das principais expressões dessa crise identitária se relaciona aos recorrentes movimentos separatistas (ou emancipacionistas) que, desde meados do século XIX, propõem que o Triângulo se desligue definitivamente de Minas Gerais para que a região possa se tornar uma nova unidade federativa independente. Como observa Gomide (1993), os movimentos emancipacionistas do Triângulo Mineiro são regulares e sempre emergem quando se associam determinadas condições históricas. Para Oliveira (1997), em síntese, essas campanhas costumam ser acionadas quando as lideranças se unem para reclamar que o Estado mineiro não confere a devida atenção à região; e se encerram, em geral, quando as reivindicações são atendidas ou quando o governo promove algum outro investimento de impacto nas principais cidades.</p> <p><a id="page_207"></a>Oliveira (1997, p.29) verificou que, no discurso dos emancipacionistas, o Triângulo é sempre interpretado como uma região rica, povoada por gente trabalhadora, “mas que se vê prejudicada pelo Estado de Minas Gerais, na medida em que a maior parte da arrecadação de impostos vai para a capital […] e não retorna, através de benefícios, para a região”. Dessa forma, o “vizinho” Estado de Minas é invariavelmente representado como um parasita que apenas suga as riquezas dos produtores locais. O Triângulo, por sua vez, era comumente descrito como “uma espécie de filho enjeitado, do qual o governo provincial só se lembrava para as arrecadações de impostos” (Pontes, 1978, p.108).</p> <p>É importante observar que, na verdade, a concentração do poder no Brasil sempre se processara por meio do enfraquecimento do município. No Império, as províncias pressionadas pelo fisco apertavam os municípios, de forma que as finanças, nas palavras de Leal (1978, p.142), “mal lhes permitia[m] definhar na indigência”. A situação não foi diferente na República: a deficiência fiscal dos Estados fizera com que os governadores passassem a invadir deliberadamente a esfera tributária municipal, o que resultava em um estrangulamento das fontes de renda locais. Ou seja, esse verdadeiro saque nas finanças das municipalidades não era uma exclusividade do relacionamento entre Minas e o Triângulo, mas era a regra geral entre Estados e municípios brasileiros. As circunstâncias que levaram às ideias separatistas devem ser compreendidas, portanto, no cruzamento de diversos fatores da história e da cultura local.</p> <p>Podemos afirmar que as crises identitárias e a questão do emancipacionismo se configuraram como elementos fundamentais da cultura política regional. Como explica Berstein (1998), a “cultura política” pode ser compreendida como um conjunto de referentes difundidos em uma tradição, formando assim um sistema mais ou menos coerente de normas e valores que acabam determinando a representação que uma comunidade faz de si mesma, do seu passado e do seu futuro. Essa visão de mundo pode se formar por meio de uma leitura comum e normativa do passado, expressa mediante “um discurso codificado em que o vocabulário utilizado, as palavras-chave, as fórmulas repetitivas são portadoras de significação, enquanto ritos e símbolos <a id="page_208"></a>desempenham, ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante” (ibidem, p.350-1).</p> <p>Assim, observamos que os ideólogos do separatismo procuravam direcionar a interpretação da memória regional no sentido de salientar um sentimento de “não pertencimento” à “Minas histórica” e de enfatizar os elementos que contrariavam os “valores da mineiridade”, utilizando principalmente a imprensa para difundir essas representações anti-Minas: “Por não ter nascido com Minas, e nem pertencer a ela na época da Inconfidência, por não possuir laços econômicos, culturais e de comunicações com o centro do Estado durante décadas, o Triângulo, segundo os defensores da emancipação, criou uma identidade regional peculiar” (Longhi, 1997, p.30). Até mesmo aspectos da geografia local – como a localização entre rios, a ausência de montanhas, a predominância de chapadões e a demarcação natural imposta pela Serra da Canastra – eram anunciados como argumentos determinantes de uma desunidade original. Em outra mão, fundamentados em uma leitura histórica bem particular, os líderes emancipacionistas buscavam produzir discursos e símbolos para forjar uma identidade triangulina – ou uma “triangulinidade” (ibidem) – e legitimar a luta pela autonomia. Dessa forma, desenvolveu-se a ideia de que um dos principais aspectos que justificam a independência era a própria formação histórica da região do Triângulo.</p> <p>O atual território de Minas Gerais, criado e isolado pela Coroa a partir de muitas porções de outras capitanias (tendo em vista que, sendo mediterrâneo, não teve origem direta nas donatárias), conquistara grande proeminência no período colonial por causa da exploração mineral. Mas a distribuição populacional e o dinamismo econômico ficaram circunscritos em zonas bem definidas ao redor das áreas de mineração. Ou seja, enquanto as regiões auríferas fervilhavam de vitalidade, os territórios mais longínquos permaneciam inóspitos. Como vimos, foi apenas no decorrer do século XIX, a partir da decadência das minas e do esgotamento das terras agricultáveis, que uma forte emigração dos geralistas passou a ocupar o oeste. Desse modo, as migrações internas favoreceram o desenvolvimento de novas experiências econômicas e sociais distantes da centralidade administrativa <a id="page_209"></a>da província e, por isso mesmo, propensas a fundar núcleos regionais relativamente autônomos.</p> <p>Desse modo, como argumenta Longhi (1997, p.30), o território de Minas Gerais impôs sérias contradições ao processo de construção de uma identidade mineira, na medida em que apresentou uma grande diferenciação interna. E não é de causar surpresa que essas diferenças sejam potencializadas nos conflitos entre as retóricas separatistas de algumas de suas regiões e a “mitologia da mineiridade”.</p> <p>Sabemos que a noção definidora de uma região não está necessariamente vinculada aos limites fronteiriços definidos pela organização territorial administrativa, mas se relaciona, acima de tudo, com a existência de um polo capaz de centralizar uma dinâmica cultural e socioeconômica de um conjunto representativo de formações sociais. Ou seja, organizada por um campo de forças com interesses objetivos, a demarcação regional transcende limites territoriais fixados pelo Estado (Guimarães, 1990).</p> <blockquote> <p>Este é o caso particular da região do Triângulo Mineiro, cuja delimitação territorial de suas fronteiras, com certeza, é muito mais perceptível pela objetividade dos marcos geográficos naturais, representados pelo formato geométrico dos leitos fluviais dos rios Paranaíba e Grande, do que pelas características intrínsecas de sua formação socioeconômica, cuja integração com São Paulo e Centro-Oeste, ao mesmo tempo, ultrapassam os limites do território estadual e se dissociam das tradicionais características da formação socioeconômica das Minas Gerais. (Guimarães, 2004, p.9)</p> </blockquote> <p>Como vimos, as terras que hoje compreendem a região do Triângulo Mineiro pertenceram a São Paulo (1720-1748), a Goiás (1748-1816) e finalmente a Minas Gerais. No período em que o Desemboque se tornava um centro de contrabando de ouro, uma grave disputa fronteiriça foi travada entre Minas e Goiás. Quando os habitantes se dispersaram para o interior, autoridades goianas passaram a impor obediência a fazendeiros cujas propriedades localizavam-se em lugares sabidamente fora da linha de demarcação. Dessa forma, novos conflitos de jurisdição entre Minas e Goiás tornaram a ocupar <a id="page_210"></a>os ânimos de seus representantes, até que, em 1816, a região foi desagregada da Capitania de Goiás e incorporada a Minas Gerais (Pontes, 1978, p.70).</p> <p>É interessante observar que esse episódio fundou um dos primeiros mitos políticos do imaginário regional. Nos relatos memorialísticos, conta-se que a anexação do Triângulo a Minas Gerais teria sido vitoriosa porque um ouvidor mineiro, em visita a Araxá – então sob jurisdição goiana –, teria se apaixonado perdidamente por uma jovem conhecida como Dona Beija e mandado raptá-la para que pudessem se casar. Processado em Goiás – de cujo governo era desafeto –, o ouvidor teria uma atuação decisiva junto a D. João VI no processo de transferência da região a Minas, onde ele estaria protegido juridicamente (ibidem, p.69). O aspecto mais interessante a ser ressaltado nesse mito triangulino é um esforço – talvez inconsciente – de abastecer a memória regional com uma fábula popular que inspirasse a ascensão de um folclore e, consequentemente, de uma identidade comum. Além disso, de forma pejorativa, se a anexação do Triângulo a Minas, afinal de contas, fora fruto de um arbitrário capricho de um aliciador, não haveria, de fato, nenhuma legitimidade nessa transação.</p> <p>Vimos que a primeira população do Triângulo passara a dedicar-se à produção agropecuária, aproveitando uma série de facilidades no processo de empossamento de terras, tendo em vista a necessidade de criar um ponto de apoio de suprimentos alimentícios para a conquista do interior. Dessa forma, os povoados de Araxá, Uberaba, Santa Maria, São Pedro de Uberabinha e Araguari conheceram um período de relativo desenvolvimento. No entanto, sentindo-se cada vez mais prejudicadas pela dificuldade de escoamento da produção, as elites econômicas passaram a se empenhar pela inserção da economia regional em um mercado mais amplo. Dessa forma, vinculado às economias de São Paulo, de Goiás e do Mato Grosso, o Triângulo, por um lado, fortalecia a interação mais ou menos independente com esses Estados e, por outro, se afastava cada vez mais da longínqua administração mineira. Para Guimarães (2004, p.3), “esta histórica inserção complementar à economia paulista imprimiu uma singularidade na estruturação espacial dessa atípica região mineira”.</p> <p><a id="page_211"></a>Como observou Wirth (1982, p.74), aquele distanciamento físico, econômico e cultural da capital já servira de pretexto nas primeiras movimentações emancipacionistas da segunda metade do século XIX. A “negligência” da capital Ouro Preto, os altos impostos e o fato de o comércio regional ser efetivamente realizado por meio do porto de Santos foram os fatores que despertaram o interesse dos líderes triangulinos ora em incorporar a região a São Paulo, ora em instituir uma província independente. Segundo Pontes (1978, p.108) – um memorialista abertamente favorável ao emancipacionismo –, em 1857 já haviam sido registradas agitações nesse sentido na cidade do Prata. Em 1875, Des Genettes, médico e jornalista francês radicado em Uberaba, liderou o que é considerado o primeiro movimento que defendia a anexação do Triângulo à Capitania de São Paulo. No ano anterior, o francês fundara <i>O Paranaíba</i>, o primeiro periódico da região, sucedido pouco depois pelo <i>O Eco do Sertão</i>.</p> <p>Em 1890, por ocasião da elaboração da Constituição da República, foi proposta ao Congresso constituinte uma revisão das antigas províncias em nome de uma equitativa redistribuição territorial dos Estados. Nesse momento, as elites do Triângulo Mineiro, do sul de Goiás e do sudoeste de Mato Grosso – regiões unidas por intensas trocas comerciais – lançaram uma campanha em prol da criação do Estado do Paranahíba. Uberaba seria a capital do novo Estado que agregaria, além de municípios mineiros que hoje compreendem as regiões do Triângulo e Alto Paranaíba, algumas cidades goianas (como Ipameri e Catalão) e mato-grossenses (como Campo Grande e Três Lagoas). No entanto, o governo mineiro conseguiu desbaratar a iniciativa separatista.</p> <p>Em 1906, novas agitações emancipacionistas foram despertadas a partir do fechamento da Escola Normal, do 2º Batalhão de Polícia e, uma vez mais, de uma genérica “falta de apoio do governo estadual”. As nascentes elites urbanas, descontentes com as deficiências infraestruturais, notaram a oportunidade de unir-se às elites agrárias que demandavam pontes, estradas e isenções de impostos (Longhi, 1997, p.35). Naquele mesmo ano, as lideranças fundaram o Clube Separatista em Uberaba e o Partido Separatista em Araguari. Mas o <a id="page_212"></a>governo de Minas logo tratou de atender a algumas reivindicações no setor de educação e transportes, de modo que o movimento perdeu novamente o sentido (Oliveira, 1997).</p> <p>Evidentemente, a imprensa foi um fórum privilegiado para os emancipacionistas do começo do século XX. Um importante veículo desses ideais surgiu com a fundação de um outro jornal igualmente chamado <i>O Paranahíba</i>, em 1914, que apresentava como base de seu programa de ação “o compromisso de se fazer propugnador da velha legítima e natural aspiração da nossa terra”, qual seja, a “organização do novo Estado”. Entre 1918 e 1920, sob o impacto de novas elevações de imposto sobre a terra, uma nova campanha emancipacionista tomou corpo. Nesse período, os <i>slogans</i> partiam da crença de que o Triângulo sustentava Minas e que o Estado retirava muito mais do que oferecia. Em 1919, foi fundado o semanário <i>A Separação</i>, editado por Boulanger Pucci, também em nome da causa manifesta de defender o ideal emancipacionista. Segundo Leila Gomide (1993, p.25), diversos jornais regionais expressaram essa ideologia separatista, reclamando em coro das históricas dificuldades de integração com a capital do Estado e dos impedimentos infligidos pelo governo no sentido de atender aos “justos reclamos da população”.</p> <p>No final da década de 1920, o jornalista Orlando Ferreira (1927) passou a expressar a antiga ideia da transferência da região do Triângulo para o Estado São Paulo. Afirmando que Uberaba era habitada por um povo infeliz e resignado, que passava os dias a queixar-se em lamúrias, Ferreira (1927) indignava-se ao ver a sua comunidade “nesse estado deprimente e vergonhoso”, enquanto as cidades do interior paulista cresciam vertiginosamente devido à “inteligência e patriotismo de seus filhos”. Assim, em busca de respostas para essa falta de ânimo, o autor procurou analisar a cultura local e, citando <i>Populações meridionais do Brasil</i>, de Oliveira Viana, concluiu que o atraso de Uberaba estava ligado a uma característica do modo de vida rural do mineiro, voltado para o retraimento, a timidez e a rotina.</p> <blockquote> <p>Porque não é nada recomendável viver-se <i>como o mineiro vive</i>, triste, recluso, isolado, numa vida de quietude e “simplicidade”; e se isto é uma <a id="page_213"></a>das feições da alma mineira, deve-se-o ao atraso material, moral e intelectual a que o povo está entregue há muitos anos… […]</p> <p>Ora, o mineiro <i>não conquistou nada</i>, <i>vive muito mal</i>, <i>não é homem enfim</i>; logo, não é simples; a sua “simplicidade” deve ser batizada com outros nomes: covardia, acanhamento, pessimismo, analfabetismo, atraso, miséria, tristeza, doença no corpo e na alma… Em outras palavras: população de jeca-tatus!… (Ferreira, 1927, p.5-6)</p> </blockquote> <p>A retórica anti-Minas é um elemento fundamental na sua argumentação em busca da identidade triangulina. Para Ferreira (1927, p.7), em violento contraste à tradicional boa imagem da “mitologia da mineiridade”, o Estado de Minas era, na prática, constituído por uma gente “inepta e indolente”, de modo que os mineiros viviam “tristes e retraídos”, em “cidades imundas”, “sem conforto”, “dispersos e sem meios de comunicação”. Por isso, a administração era “acanhada, nula, improdutiva”, precisamente devido às próprias características do mineiro, um sujeito ignorante, desonesto e rotineiro, historicamente destituído do sentimento progressista, do “arroubo” e do “entusiasmo sadio” dos paulistas: “Uberaba é uma cidade mineira. Infelizmente está encaixada no Estado de Minas e por isso sofre as consequências do atraso mineiro: não progride” (ibidem, p.25). Por conseguinte, em seu receituário para promover a modernização, Ferreira (1927) propõe a anexação da região a São Paulo, um “Estado adiantado” cujas lideranças mostravam-se “preocupadas com o progresso”. Para ilustrar sua retórica, o autor idealizou às alturas a modernização paulista e fez questão de incluir em seu livro um mapa com a região do Triângulo acoplada a São Paulo. Para ele, os uberabenses não eram mineiros de coração, mas queriam ser “ardentemente” paulistas de fato.</p> <p>Ferreira (1927, p.180) animava-se com a ascensão do paulista Washington Luiz à Presidência, pois assim o “sonho dos triangulinos” poderia obter um importante apoio. Longhi (1997) afirma que o presidente de fato chegou a cogitar a criação do novo Estado, mas o governador de Minas, Benedito Valadares, enfraqueceu o emancipacionismo ao efetivar mais uma série de medidas concretas e simbólicas para “apaziguar os ânimos”: mandou construir estradas, edificou o <a id="page_214"></a>Grande Hotel de Araxá e instalou a Companhia de Força e Luz de Uberaba. Porém, quatro anos depois, a campanha ressurgiu quando o governo mineiro determinou a supressão da Escola Normal e do Aprendizado Agrícola em Uberaba. Além disso, as lideranças reclamavam que o governo não havia cumprido as promessas em relação às melhorias no serviço de água, esgoto e eletricidade do município (Oliveira, 1997). Um dos articuladores desse movimento foi Quintiliano Jardim, o diretor do jornal <i>Lavoura e Comércio</i>. Contudo, o governo mineiro mais uma vez realizou um conjunto pontual de benfeitorias e as lideranças se desmobilizaram. É importante observar que as efervescências separatistas, pelo menos até meados da década de 1940, ocorreram basicamente em Uberaba e não se alastraram pela região.</p> <div class="image"> <img alt="Image" src="images/f0214-01.png" /> <p>Figura 53 – O mapa elaborado por Orlando Ferreira anexou o Triângulo Mineiro ao Estado de São Paulo.</p> </div> <p>Na era Vargas, foi firmada uma aliança entre essa oligarquia regional e os interesses da União (Gomide, 1993, p.33). Tendo em vista o plano nacional de integração e colonização expresso na chamada “Marcha para o Oeste”, as elites econômicas vislumbraram uma oportunidade para convencer o governo federal da necessidade de dotar o Triângulo de infraestrutura para a efetiva ocupação do Centro-Oeste. Essas negociações <a id="page_215"></a>implicaram a criação de uma série de dispositivos de apoio ao desenvolvimento, capitaneados pela Fundação Brasil Central. Instalada primeiramente no Triângulo e em regiões de Goiás, a fundação promoveu a abertura de estradas, a criação de pequenos núcleos industriais, além de campos de pouso, de abastecimento, hospitais e escolas (Lenharo, 1985, p.73). É importante notar que, durante o Estado Novo, a imprensa deixou de veicular a propaganda separatista. No contexto da ditadura e das relações diretas entre as elites regionais e o governo federal, a causa recolheu-se aos bastidores.</p> </div> <div class="section"> <div class="title"> <p id="c08-h1-005">O separatismo no pós-guerra</p> </div> <p>Com a abertura democrática, o movimento separatista não irrompeu de modo imediato, mas desenvolveu-se a partir da emergência de uma série de ideias políticas em meio a um crescente ressentimento daquela região historicamente predisposta a descontentar-se com o governo mineiro. Com a politização da vida local, promovida sobretudo pelas eleições municipais de 1947, tornou-se mais comum o lamento e depois a manifestação da revolta das elites econômicas com as irregularidades nos serviços de água e de energia da cidade, que na época estavam sob responsabilidade estadual. “Pobre terra, vítima de tanta injustiça e de tanto descaso”, lastimavam os articulistas, queixando-se que Minas promovia uma sangria de recursos em impostos que jamais beneficiavam a cidade (<i>Lavoura e Comércio</i>, 5.9.1947, p.6). A imprensa aproveitou a oportunidade para acender as antigas mágoas com o fechamento da Escola Normal de Uberaba (ibidem, 11.9.1947, p.6), com as promessas sempre adiadas da construção de rodovias e estradas de ferro e com tudo aquilo que chamavam, de modo genérico, de política de “abandono do pontal do Triângulo” (ibidem, 4.9.1947, p.6).</p> <p>Ainda no calor do resultado das eleições municipais, um grupo de políticos e intelectuais passou a expressar um entusiasmo desmedido com a perspectiva de que, a partir da recente Constituição, os municípios ganhariam autonomia e seriam mais valorizados na vida política nacional (ibidem, 16.12.1947, p.2). Esse novo ânimo é explicado também pela difusão nacional das ideias municipalistas no pós-guerra, <a id="page_216"></a>que, segundo Melo (1993), haviam alcançado “notável capacidade de mobilização e surpreendente apelo programático” entre as elites burocráticas de diversas localidades do país.</p> <blockquote> <p>Durante a redemocratização de 45, o municipalismo ressurge com um apelo doutrinário espetacular, vindo a ter forte penetração na Constituinte de 1946. Não seria exagerado supor que se buscou, em larga medida, convertê-lo em mito <i>fundador</i> da segunda República.</p> </blockquote> <p>Melo (1993) observa no ideário central do municipalismo desse período a presença de um forte apelo simbólico que favoreceu a disseminação de toda uma “elaboração discursiva, mítica e apologética” sobre a questão da modernização do “interior”. Quando se analisa o caso de Uberaba, pode-se verificar essa mitologia em inúmeros artigos publicados a partir de dezembro de 1947, onde se expressava a ideia de que o município, “célula <i>mater</i> da nacionalidade”, havia sido confinado no trabalho rural, na penúria e no analfabetismo para sustentar o “luxo”, a “magnificência” e os arranha-céus das capitais (<i>Lavoura e Comércio</i>, 27.2.1948, p.6). Nesse contexto, surgiu, sob a égide da Sociedade dos Amigos de Uberaba (ibidem, 11.3.1948, p.6), um movimento político liderado pelo vereador e simpatizante do emancipacionismo Antônio Alberto de Oliveira, no qual se propagava a ideia de que Uberaba poderia se tornar a pioneira do municipalismo na região. “Ou fortalecemos o município”, diziam as lideranças, “ou sucumbiremos no abismo de erros que nós mesmos cavamos” (ibidem, 24.7.1948, p.6).</p> <p>Com tudo isso, não foi uma surpresa notar que o grupo municipalista de Uberaba logo se desdobrasse em um franco movimento emancipacionista, desencadeado oficialmente em fevereiro de 1948, quando Afrânio Azevedo, banqueiro, pecuarista e deputado estadual em Goiás, decidiu publicar um manifesto que provocou algum debate na região. Argumentando que os habitantes do Triângulo Mineiro haviam desenvolvido “usos e costumes próprios, divergindo dos paulistas e dos outros mineiros”, Azevedo louvou com todas as palavras esse “povo de fibra ímpar nos anais da história do Brasil” para reforçar a <a id="page_217"></a>mitologia da conspiração e reacender, de modo solene, a chama do movimento separatista.</p> <blockquote> <p>Apesar de viver relegado ao abandono e ao esquecimento dos governantes mineiros durante dois séculos, construiu um Estado dentro de outro Estado, conseguindo fazer do Triângulo o melhor pedaço de Minas Gerais.</p> <p>Quase duzentos milhões de cruzeiros são arrecadados aqui anualmente, e remetidos para Belo Horizonte para ajudar a construir a sua beleza, o seu conforto, as suas escolas, as suas largas e belíssimas avenidas […] quando nos falta tudo isso e muita coisa, como estradas, energia elétrica etc. (<i>Lavoura e Comércio</i>, 23.2.1948, p.2)</p> </blockquote> <p>Assim, conclamando-se herdeiro dos pioneiros do emancipacionismo, tal como Leopoldino de Oliveira, Boulanger Pucci e Camilo Junior, entre outros, Azevedo reafirmou o orgulho de ser uberabense “de sete gerações” e enalteceu o pulso desse “povo heroico que vem atravessando os séculos, tudo dando e nada recebendo”. Para Azevedo, a riqueza da região tinha todas as condições para se criar “o melhor Estado do país”. Graças às facilidades geográficas, a administração seria “facílima” com a articulação dos municípios por meio de “ótimas rodovias” e estradas de ferro: “As suas escolas, hoje insuficientes, poderão ser duplicadas ou triplicadas e poderemos ter até uma capital nova, construída a propósito, com universidade própria, para que nossos filhos tenham facilidade de estudar”. Assim, vemos que a emancipação passou a ser apresentada como a derradeira solução, ou melhor, a salvação para os problemas sociais, econômicos e políticos da região.</p> <p>Em outro manifesto publicado duas semanas depois, o próprio Camilo Chaves Junior, emancipacionista histórico, procurou reafirmar a ideia de que o Triângulo sempre tivera uma vida à parte e buscou instituir um novo mito fundador para legitimar a luta. Para Chaves Junior, os emancipacionistas triangulinos eram autênticos herdeiros do “espírito autonomista” dos aguerridos índios caiapós que, nos “primórdios” da colonização do oeste mineiro, haviam lutado sem tréguas contra o branco invasor: “Agora, novo alento, novo sopro de <a id="page_218"></a>idealismo sacode o Triângulo de ponta a ponta. Aqui, ali e acolá o ideal surge espontâneo, vivo, e a voz da Terra, o sangue do Caiapó brada: A SEPARAÇÃO!” (ibidem, 9.3.1948, p.2).</p> <p>A partir desses manifestos, o municipalismo e o separatismo jamais deixaram de se cruzar no debate político regional – ainda que houvesse profundas divergências, tendo em vista que um influente grupo de municipalistas defendia a ideia de que os tempos eram outros e que a região já havia se integrado ao Estado. “Minas e o Triângulo estão em boa harmonia, fumando tranquilamente o cachimbo da paz”, defendeu Odorico Costa (<i>O Triângulo</i>, 10.3.1948, p.1). “Mutilar Minas é ferir mortalmente o Brasil”, escreveu Moacyr Pimenta Brant (<i>Lavoura e Comércio</i>, 8.4.1948, p.6). Naqueles tempos de carestia nacional, alguns defenderam a ideia de que um movimento separatista como aquele chegava a ser impatriótico: “O contrário disso é que deveria acontecer, isto é, campanhas que visassem o congraçamento de todos os mineiros, afim de que reconquistemos o nosso lugar de prestígio no seio da federação” (ibidem, 20.7.1948, p.6). Nesse período, a principal voz do sentimento de “comunhão mineira” era o influente deputado federal Rondon Pacheco da UDN (ibidem, 6.7.1949, p.171).</p> <p>Considerando que Uberaba arrogava a si o papel de “Capital do Triângulo”, uma terceira linha de ideias políticas logo passou a defender uma perspectiva mais regionalista do que propriamente municipalista, buscando alguma autonomia sem partir para o franco emancipacionismo. No decorrer de 1948, é notável o esforço do <i>Lavoura e Comércio</i> para estimular um senso de identidade regional e encorajar a sensação de “pertencimento” das cidades circunvizinhas à comunidade triangulina. Era preciso encontrar um historiador com a virtude excepcional de síntese, argumentavam as elites ilustradas, para oferecer uma visão de conjunto sobre a história do Triângulo, de modo que todos pudessem conhecer os grandes feitos desse povo e se entusiasmar por eles (ibidem, 20.12.1947, p.2). O <i>Lavoura</i> intensificou a veiculação de notícias sobre esses municípios, criou uma coluna especial para publicar um resumo da imprensa regional e fez com que a expressão “Triângulo Mineiro” passasse a aparecer com mais frequência nos títulos.</p> <p><a id="page_219"></a>No entanto, entre as três tendências havia um consenso: o ressentimento contra Minas Gerais, elemento presente até mesmo no discurso daqueles que pregavam a união com o Estado. Os problemas com a questão da água, da energia e das vias de transporte jamais deixaram de inspirar o discurso de que a região era “a mais esquecida” pelo governo mineiro e, por isso, estava “condenada à rotina, sem capacidade para desenvolver todas as suas possibilidades de progresso” (ibidem, 11.6.1948, p.6). “Por piedade, mais boa vontade para conosco”, clamou o <i>Lavoura e Comércio</i> (24.6.1948, p.1) para o governo mineiro.</p> <p>Discretamente, o diretório local do PTB passou a expressar solidariedade pelo “sentimento de revolta” dos uberabenses e triangulinos que estavam submetidos à “indiferença” do governo em relação aos problemas da cidade (ibidem, 26.6.1948, p.6). Essa seria a primeira manifestação de uma simpatia que, em pouco tempo, levaria o movimento emancipacionista ao programa central dos principais líderes trabalhistas no Triângulo Mineiro.</p> <p>Enquanto isso, o tema da conspiração e o tempo da espera de um salvador cresciam no imaginário local. O <i>Lavoura</i> registrou que a população “pressentia” e “aguardava”, “quase já desiludida”, a “ação salvadora” que pudesse resolver os problemas regionais e evitar que o Triângulo afundasse na decadência: “Até quando se perderá sem eco o clamor das nossas súplicas?”. Os títulos desse período são eloquentes: “O velho tema do abandono do Triângulo Mineiro” (ibidem, 9.9.1948, p.1), “Prejuízo intenso no presente e prejuízo indizível para o futuro enquanto os poderes públicos fazem ouvidos de mercador ao nosso apelo” (ibidem, 10.9.1948, p.1) e “A velha conspiração contra os destinos do progresso de Uberaba” (ibidem, 8.10.1948, p.1). Os exemplos são inúmeros.</p> <blockquote> <p>Que há contra Uberaba? É a pergunta que nos acode, irreprimivel-mente diante de tanta má vontade, de tanto desprezo. Nenhum motivo já se pode alegar que justifique o feroz castigo infligido à terra de Major Eustáquio. […]</p> <p>O mal não é de hoje […]. Mas nunca houve um governo como o atual, em que depositássemos tantas esperanças e tanta confiança. E nada se <a id="page_220"></a>faz em nosso favor. Não se arreda uma palha. Estamos condenados a clamar no deserto, até que não tenhamos mais voz para as lamentações e os protestos. (ibidem)</p> </blockquote> <p>No segundo semestre de 1948, o <i>Lavoura e Comércio</i>, que apesar do pessimismo ainda mantinha uma postura pró-Minas Gerais, lançou a ideia de realizar um Congresso de Prefeitos do Triângulo e foi logo atendido pelo prefeito Boulanger Pucci. Ainda que reclamasse da “política de abandono”, o jornal passou a conclamar a união dos municípios para promover o fortalecimento regional e a intensificação das relações com o Estado (ibidem, 5.11.1948, p.6). Marcado para janeiro de 1949, o evento e todos os seus preparativos foram entusiasticamente noticiados pelo <i>Lavoura</i> – que até então tinha o cuidado de registrar que essa iniciativa nada tinha a ver com as “águas passadas” dos movimentos pela emancipação. Prova disso era a presença confirmada do próprio secretário do Interior de Minas, Pedro Aleixo, na presidência da mesa de abertura (ibidem, 26.1.1949, p.1).</p> <p>O congresso foi realizado em 30 de janeiro de 1949 e contou com a presença de prefeitos ou representantes de vinte e três cidades da região. Diversos temas sociais e econômicos foram discutidos, tais como melhoria das vias de transporte, reforma de escolas e nomeação de professores, criação de pequenos núcleos industriais, empréstimos para obras de infraestrutura, aprovação de leis em benefício dos pecuaristas em crise, entre inúmeros assuntos de interesse local ou regional (ibidem, 2.2.1949, p.1). Contudo, não há dúvidas de que o aspecto mais relevante foi o caráter simbólico do discurso de união e fortalecimento regional, expresso no interesse em se fundar a “União dos Municípios Triangulinos” (ibidem, 26.1.1949, p.1).</p> <p>O congresso conseguiu esfriar por algum tempo o calor das discussões emancipacionistas e, apesar da ausência de soluções concretas, fomentou a esperança e reduziu sensivelmente as queixas durante o primeiro semestre de 1949, a despeito de algumas manifestações emancipacionistas na Câmara Municipal de Uberaba que se estenderam até final de fevereiro (ibidem, 24.2.1949, p.1). No entanto, o pânico inspirado pela derrocada dos zebuzeiros, o acirramento das tensões políticas <a id="page_221"></a>no cenário local e a escalada dos problemas sociais aliada à frustração geral com a sensação de inoperância do Estado despertaram com todo ímpeto o discurso de ressentimento, tal como podemos verificar em um editorial do <i>Lavoura e Comércio</i> (9.6.1949, p.4):</p> <blockquote> <p>Só mesmo a paciência bíblica de nossa gente e a benevolência de nossa imprensa tem evitado aos dirigentes de nosso Estado críticas acerbas e campanhas ásperas, no sentido de conseguir providências capazes de resolver esse problema capital em nossa terra. […]</p> <p>Inúmeros apelos, verdadeiros gritos de desespero de uma coletividade que está sendo economicamente estrangulada, já foram dirigidas ao Palácio da Liberdade.</p> <p>Infelizmente, porém, até agora esses brados não encontraram acolhida, o que vai aumentando amargamente a nossa penosa sensação de abandono.</p> </blockquote> <p>Discretamente, o emancipacionismo ressurgia nas entrelinhas das ideias políticas ventiladas pelas elites ilustradas de Uberaba. E foi assim que o professor Alceu Novais, sob o pretexto de discutir reformas territoriais, explorou uma outra perspectiva da retórica separatista, sugerindo que a causa dos triangulinos dizia respeito a um debate que interessava a todos os brasileiros, pois era urgente discutir um novo mapa da nação em nome de uma divisão mais equitativa das unidades federativas. Com essa perspectiva patriótica, argumentava Novais, os mineiros não teriam justificativas para se opor: “Minas sempre apoiou a grande pátria” (ibidem, 25.10.1949, p.2). Ao mesmo tempo, o debate em busca de uma identidade regional inspirou a sistematização ou mesmo a reinterpretação sobre o que se queria entender pela expressão “Triângulo Mineiro”.</p> <blockquote> <p>A atual divisão territorial do Estado rouba à região grande parte de suas terras, incluindo cidades como Araguari, Patrocínio, Araxá, na chamada zona do Paranaíba. Mas o nosso rincão ao qual estamos ligados pela mesma história, pela mesma personalidade, e pelo mesmo destino, é o Triângulo formado pelos Rios Grande e Paranaíba e os contrafortes das Serras da Canastra e Mata da Corda. (ibidem, 24.11.1949, p.3)</p> </blockquote> <p><a id="page_222"></a>Desse modo, começaram a surgir na imprensa da capital alguns artigos pontuando a indiferença ou mesmo a “aversão” que os triangulinos faziam questão de demonstrar por Belo Horizonte, tal o grau de “desligamento econômico e espiritual” em que se encontravam em relação ao Estado de Minas. “Exceto o do sr. Benedito Valadares, os governos de Minas nunca deram importância ao Triângulo”, afirmou um articulista no jornal <i>O Diário</i>, de Belo Horizonte, em um texto republicado no <i>Lavoura e Comércio</i> (24.11.1949, p.3). “Inda bem que o comércio da região é feito quase que exclusivamente com São Paulo e Goiás”.</p> <p>“No futuro os movimentos tendentes à separação, hoje latentes, poderão volver à tona e vir a constituir problema sério para o governo estadual, desde que não se promovam medidas eficazes para contorná-lo”, profetizou Sétimo Moreira em um artigo publicado em dezembro de 1949 no <i>Diário de Minas</i>, e reproduzido no <i>Lavoura e Comércio</i> (31.12.1949, p.3), antecipando uma histeria que de fato estaria prestes a explodir às vésperas da campanha eleitoral de 1950, tal como veremos mais adiante.</p> <div class="image"> <img alt="Image" src="images/f0222-01.png" /> <p>Figura 54 – Mapa do Triângulo Mineiro publicado por ocasião do aniversário de cinquenta anos do jornal <i>Lavoura e Comércio</i>, em junho de 1949.</p> </div> </div> <div class="footer"> <p><a href="#rch11_1" id="ch11-1">1</a> O Plano Salte (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia) foi um programa criado em 1947 no governo de Eurico Gaspar Dutra. O objetivo era promover o desenvolvimento integrado desses setores no país.</p> </div> </div> </body> </html>