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Na Broadway, altura da rua 113, não somente se fala num espanhol anasalado e contaminado: também se poderia dizer que se pensa, se caminha e se come em espanhol. Letreiros, que algumas quadras antes ainda indicavam Groceries & Delicatessen, aqui se transformaram em Groserías y Delicadezas. Os cinemas não anunciam, como os da rua 42, filmes de Marlon Brando, Kim Novak e Paul Newman, mas exibem grandes cartazes com as fotos de Pedro Armendáriz, María Felix, Cantinflas ou Carmen Sevilla.

Caiu a noite numa sexta-feira de abril de 1959, de modo que em cima já não se vê o céu, e embaixo o ar parece menos sujo. Nesta esquina da mais longa rua de Manhattan os anúncios luminosos são modestos, mas mesmo assim modificam a cor dos insetos que se aproximam da luz. A Broadway não é tão representativa do Harlem Espanhol como a Madison pode ser; pelo menos aqui não vêm turistas de Idaho e Wyoming para fotografar porto-riquenhos em Kodachrome.

É a hora em que se volta ao lar, se é que a gente pode chamar de lar estas miseráveis casas de aluguel. Através das janelas abertas veem-se quartos com rachaduras e grandes manchas de umidade nas paredes, gente amontoada em cinco ou seis camas desarrumadas, crianças descalças que berram entre melecas e uma televisão com a tela manchada de gordura ou de sorvete.

A esquina é pobre. A gente é pobre. As casas têm as fachadas descascadas. Junto a um rosto sorridente de Coca-Cola, alguém escreveu a giz Viva Albizu Campos. Um cego avança com rosto impassível, enquanto faz soar as moedas dentro de uma lata. A esquina é pobre. De modo que o grande letreiro luminoso que anuncia TEQ LA RESTAURANT (porque o U e o I de TEQUILA se apagaram) destoa do ambiente. Não é exatamente um restaurante de luxo, mas um exame superficial da lista de preços, afixada numa moldura negra junto da porta, permite assegurar que nenhum integrante do Harlem Espanhol pertence a sua clientela. Tampouco é exatamente um restaurante porto-riquenho; é vaga e medianamente latino-americano. Embora ainda seja cedo, as mesas estão prontas, com suas toalhas, pratos, talheres e guardanapos. Numa mesinha junto à parede da direita, há até um casal que, cabeças coladas, examina a lista de pratos.

Na seção que dá para a Broadway, cinco garçons estão prontos para atender as trinta mesas. No fundo do salão há uma porta dupla, que comunica com o Reservado, onde está preparada uma mesa para umas vinte pessoas. No fundo do Reservado há outra porta, esta de folha única, que leva à cozinha através de um corredor estreito. O telefone está precisamente no corredor, em cima de uma estante que tem ainda uma estatueta: um touro, no amargo momento de receber as banderilhas.

Quando toca o telefone, José vem da cozinha. José é um espanhol com vários lustros de residência nova-iorquina. Adaptou-se tanto que até quando fala espanhol mistura palavras inglesas.

– Alô. Tequila Restaurant. Speaking. Ah, speak espanhol. Sim, senhora. Não, senhora. Sim, senhora. Tudo típico, of course. Não, senhora. Sim, senhora. Não, senhora. Primeira qualidade. E quantos gringos pensa trazer? Sim, senhora. Não, senhora. Claro, quando vêm gringos trazemos os pandeiros. Typical, you know. Também as gaitas. Gaitas nicaraguenses? Sim, com certeza. Nossas gaitas são para todo serviço. Pode ficar tranquila, senhora, tudo sairá bem. E para quando? Next Friday. Ok, senhora, estou anotando. Como, como? Ah, sua comissão. You mean a comissão da senhora. Como é natural, deve ligar mais tarde, assim fala com o Manager. Pergunte por mister Peter. Peter González. Ele é que resolve isso das comissões. Sim, claro. Bye-bye.

José vem para o salão da frente, observa os cinco garçons com um amplo olhar fiscalizador e retrospectivo e começa a arrumar uns guardanapos. Ajeita somente uma meia dúzia. O telefone volta a tocar.

– Alô. Tequila Restaurant. Speaking. Oh, senhor Embaixador. Como está o senhor? Há tempos que não temos o prazer de tê-lo por aqui. E a senhora Embaixatriz? Me alegro, senhor Embaixador. Sim, senhor Embaixador. Vou tomar nota, senhor Embaixador. Sim, senhor Embaixador. Next Friday? Pois, sabe como é, senhor Embaixador, para essa noite o salão reservado já está pedido. Pedido e concedido. Quem são? Não estou certo, senhor Embaixador, mas creio que são cubanos de Miami, alto nível. Claro, senhor Embaixador, muito importante, isso é o que eu digo. Com certeza. Particularmente se o dos senhores é diversão simples e sadia. Exatamente como diz, senhor Embaixador: sempre e em tudo, primeiro os profissionais. Eu sabia que ia entender, senhor Embaixador. Isso sim. Não o divulgue. Creio que é um jantar secreto. Se vêm os gringos? Não estou certo, senhor Embaixador, mas algum sempre vem. Não, senhor Embaixador, isso não posso dizer. Segredo profissional. O senhor não gostaria, senhor Embaixador, que eu andasse comunicando por aí que em junho de 1957 o senhor jantou aqui três vezes com uma formosura que depois apareceu como sócia dos barbudos. Não, senhor Embaixador. Não, senhor Embaixador! O senhor pode dormir tranquilo, só estava dando um exemplo. O senhor sabe que eu sou um túmulo. Não tenha medo, senhor Embaixador. Obrigado, senhor Embaixador. Muito obrigado, senhor Embaixador. Eu sabia que o senhor ia compreender. Então faço a reserva para next Saturday. Ok, senhor Embaixador. Boa sorte, senhor Embaixador. E meus respeitos à senhora Embaixatriz.

Antes que José regresse a seus guardanapos, o telefone volta a tocar. O gesto de José não é exatamente de resignação, mas de pesada responsabilidade.

– Alô. Tequila Restaurant. Speaking. Peter? Finalmente, Pedro. Não, não aconteceu nada. Você simplesmente podia ter chamado antes. Os uruguaios? Não, ainda não vieram, mas devem estar para chegar. Ouve, são gastadores como os argentinos ou pobretões como os paraguaios? Mesquinhos? Só queria me informar; sempre convém saber o que nos espera. Não se preocupe, homem. Mas claro que houve chamadas. Olha, ligou a velha tagarela anunciando a vinda de pelo menos quinze gringos, todos rotarianos de Duluth. Disse-lhe que sim. Vai telefonar de novo, porque quer a comissão. Minha modesta opinião é que você deve dar. Traz sempre muita gente. É uma andaluza, sabe? Horrível, mas habilidosa, e aos gringos lhes tocou ver o lado folclórico. Depois, chamou o Embaixador. Como qual deles? O gordinho da maconha. Imagine se ele começa a exigir-me que conte por telefone os top secrets. Queria o Reservado, também para next Friday. Como já o havia prometido à velha tagarela e como estou ciente de que você não quer mais complicações, disse-lhe que o havíamos reservado para os cubanos de Miami. Sabe, pareceu-me melhor dizer isso porque o gordo não se atreve com o State Department. Fiz bem? Ok. Transferi para next Saturday. Como que next Saturday vêm os guatemaltecos? Mas quais? Os de Arbenz ou os de Ydígoras? Caramba! Por que não me avisou? Ouve, deixe por minha conta, amanhã falo com o Embaixador e o ajeito para next Sunday. E não há mais novidades. Bye-bye.

Agora já há quatro mesas ocupadas. Com exceção de um dos garçons, o mais alto, que ameniza seu ócio forçado metendo discretamente o dedo mindinho no nariz, os outros começaram a mover-se. Vão até a cozinha e voltam com algum prato, mas sem forçar o ritmo, como se reservando para a hora em que certamente cairá uma grande avalanche de comensais. Quando aparecem três tipos, exageradamente abrigados para a agradável temperatura de abril, e ocupam uma mesa central, o quinto garçom tira o dedo mindinho da fossa nasal esquerda e dirige-se sorridente para os recém-chegados.

Um quarto de hora depois, a porta principal se abre com mais ruído que de costume e entram, todas juntas, com risadas e exclamações, oito, dez, quinze pessoas.

– Os uruguaios – murmura José, e se adianta a recebê-los. – Os senhores são os uruguaios?

– Sim! – responde um coro de pelo menos sete vozes.

Um homem gordo, lustroso e sessentão, dá um passo adiante e diz:

– Meu nome é Joaquín Ballesteros. Pedimos uma mesa no salão Reservado desde a semana passada.

– Naturalmente – diz José. – Tenham a bondade de entrar.

José e o garçom do dedo mindinho seguram os dois lados da porta para que passem Ballesteros e os seus. São oito homens e sete mulheres. Ballesteros toma a iniciativa para a distribuição dos assentos.

– Um homem, uma mulher, um homem, uma mulher – diz. – Aqui, como em todo lugar, essa é a distribuição mais divertida.

Três das mulheres dão uma risadinha.

– Indique, Ballesteros – diz um dos homens. – Indique, com nome e sobrenome, onde nos sentamos. Também serve como apresentação.

– Tem razão, Ocampo – responde Ballesteros. – O fato de que tenha decidido juntar em torno de uma mesma mesa quinze uruguaios que, por distintos motivos, estão em Nova York, não impede que se cumpra a formalidade de que todos conheçam o nome de todos. Embora eu saiba que vocês mesmos já improvisaram algumas apresentações, vou seguir a ideia de Ocampo e distribuí-los com nome e sobrenome. Aqui, à minha direita, Mirta Ventura. Ao lado de Mirta: Pascual Berrutti. Ao lado de Berrutti: Célica Bustos. Ao lado de Célica: Agustín Fernández. Ao lado de Fernández: Ruth Amezua. Ao lado de Ruth: Ramón Budiño. Ao lado de Budiño: Marcela Torres de Solís. Ao lado de Marcela: Claudio Ocampo. Ao lado de Ocampo: Angélica Franco. Ao lado de Angélica: José Reinach. Ao lado de Reinach: Gabriela Dupetit. Ao lado de Gabriela: Sebastián Aguilar. Ao lado de Aguilar: Sofía Melogno. Ao lado de Sofía: Alejandro Larralde. E ao lado de Larralde: outra vez um seu criado, Joaquín Ballesteros. De acordo?

– É parente de Edmundo Budiño? – pergunta Ruth Amezua, à esquerda de Ramón.

– Sou o filho.

– O filho de Edmundo Budiño, o do jornal? – escuta Ramón que outra voz, a de Marcela Torres de Solís, pergunta à sua direita.

– Sim, senhora, o do jornal e o da fábrica.

– Caramba – diz Fernández, surgindo por trás de Ruth. – Então é uma pessoa importante.

– Bem, o importante é meu pai. Eu só tenho uma agência de viagens.

Não havia necessidade de escolher os pratos, pois Ballesteros já encomendara o menu: tomates recheados, raviólis à genovesa, arroz à cubana, taça melba.

– Preocupei-me de que fossem pratos simples – esclarece Ballesteros no momento em que chega o presunto. – Bem sei que nós uruguaios sofremos unanimemente do fígado.

– Ótimo que tenha dito fígado – disse José Reinach. – Fez me lembrar de meus comprimidos.

– Que tal? Fizeram muitas compras? – pergunta Sofía Melogno, com um sorriso que lhe tira dez anos.

– Só artigos elétricos – diz Berrutti, em frente a ela.

– Onde? Em Chifora?

– Naturalmente.

Célica Bustos inclina-se confidencialmente para Berrutti e lhe pergunta em tom envergonhado o que é Chifora.

– Como? Não sabe? É uma loja, num segundo andar da Quinta Avenida. Fazem uns descontos fenomenais para os latino-americanos.

– Ai, deixa-me anotar o endereço, por favor.

– Como não. 286 Fifth Avenue.

– Não creia – diz Ballesteros, ainda mais silenciosamente, ao ouvido de Larralde – que Chifora seja importante só em artigos elétricos. Também trabalha lá um cubaninho que consegue umas garotas estupendas.

– De verdade? Vou anotar o endereço.

– Sim, vale a pena: 286 Fifth Avenue.

– E o empregado?

– Olha, o nome eu não sei. Mas você entra e presta atenção. À direita está a vitrine com os aparelhos de som e de televisão. À esquerda, um armário com meias stretch. Bom, o sujeito que lhe falo é um moreninho, magro, com olhinhos de víbora, que está atrás do armário.

– Eu estou deslumbrada – diz Mirta Ventura, pondo sua mão sobre o Longines de Berrutti. – Cheguei só há uma semana e já estou deslumbrada. O Radio City é esplêndido, com aquela orquestra que aparece e desaparece, e aquele organista sensacional, e os tapetes, já notou que tapetes? A gente pisa e afunda.

– O Radio City é uma sala enorme onde dançam as Rockettes? – pergunta Aguilar, do outro lado.

– Esse mesmo – responde Berrutti –, viu que perfeição?

– Isso eu pensava quando fui vê-las, numa tarde. Porque está bem que nós não tenhamos nada, porque Montevidéu não é nada. Mas Buenos Aires, que tem tantas vaidades, hein? Diga-me, Berrutti, que tem Buenos Aires que possa se comparar com as Rockettes?

– Refere-se somente às pernas, ou também à disciplina?

– A tudo. Pernas e disciplina. Lembre-se do Maipo e vai ter vontade de chorar.

– Bom, resta saber em que época foi ao Maipo. Porque eu me lembro de que em cinquenta e cinco havia duas morenas estonteantes.

– Estonteantes porque robustas?

– Por isso e algo mais.

– Perguntei porque tudo é questão de gosto. Não gosto delas tão cheias, prefiro o tipo mais estilizado, como as Rockettes.

– Claro, tudo é questão de gosto. Também me agradam as estilizadas, mas sempre que haja alguma coisa para agarrar.

Com certa satisfação escondida, como se no fundo se sentisse aludida, intervém Gabriela Dupetit.

– Não acham que esse diálogo é, como direi, demasiado para homens sós?

– Tem razão – diz Berrutti, e estabelece-se um silêncio um pouco embaraçoso.

Só então ouviu-se o barulho de garfos e facas. Também o ruído que faz Ocampo ao engolir um copo inteiro de Chianti. Todos o olham com alegre surpresa e o sobe e desce do pomo de adão de Ocampo adquire certa notoriedade durante dez segundos.

– Excelente vinho – diz Ocampo quando se dá conta de que é o centro dos olhares.

Há três risadinhas na ala esquerda, e Reinach se sente obrigado a intervir.

– Isso é o que esse país tem de extraordinário. É bom até no que não tem. Os vinhos da Califórnia são medíocres, é certo. Mas aqui se pode comprar qualquer vinho, de qualquer parte do mundo. Ontem mesmo, comprei uma garrafa de Tokaj, que como os senhores sabem é um vinho comunista. Isso é amplitude. Os senhores percebem o que significa os Estados Unidos permitirem que aqui se vendam vinhos comunistas?

– Eu proporia que nos tratássemos sem cerimônia – diz Fernández a Ruth Amezua.

– É uma boa ideia – responde ela, e com um gesto descontrolado, como se houvesse mordido o lábio ou arranhado o nariz, olha seu reloginho, que marca dez e vinte.

– Eu sempre digo que é melhor não fazer cerimônia logo de entrada, senão depois fica mais difícil – insiste Fernández. Larga o garfo com as ervilhas e apoia exploratoriamente sua mão no antebraço nu da moça.

– Porte-se bem – diz ela, num tom que é ao mesmo tempo de censura e abertura.

Relativamente conformada, a mão volta a seu garfo, mas as ervilhas deslizaram novamente para o tomate recheado.

– De modo que a senhora é casada – diz Budiño à senhora Solís.

– Não tenho cara de casada?

– Bem, não sei como é uma cara de casada. Só sei que é demasiado jovem.

– Não tanto, Budiño. Tenho vinte e três anos.

– Ui, que velhice.

– O senhor ri, mas às vezes me sinto velha.

– Olhe, eu a compreendo, porque às vezes me sinto jovem.

– Por favor, Budiño, o senhor tem cara de rapaz.

À esquerda de Budiño, soa a voz nervosa de Ruth.

– Por que não se tratam menos formalmente, como nós?

– Acontece que ainda não consideramos essa possibilidade – diz Budiño. – Aliás, acho melhor considerarmos.

– Verdade? – diz Marcela levantando as sobrancelhas.

– Sempre e quando estes pesados quase vinte anos de diferença não inibam a senhora.

– A senhora?

– Quero dizer, não inibam você.

– Não, garanto que não.

– Eu pergunto – diz no outro extremo da mesa Sofía Melogno – por que somos tão do contra, por que estamos sempre procurando defeitos nos Estados Unidos, sendo como é um país maravilhoso? Além disso, aqui as pessoas trabalham de verdade, da manhã à noite, não como em Montevidéu, em que saímos de uma greve para entrar em outra. É doloroso, mas devemos reconhecer que entre nós o operário é uma ralé. Aqui não, o operário é um homem consciente, que sabe que seu salário depende do capital que lhe dá trabalho, e por isso o defende. Querem me dizer quem no Uruguai trabalha de manhã à noite?

– Imagino que a senhorita – diz imprevistamente Larralde –, pelo menos para difundir seus princípios.

– Não faça piadas, Larralde. Você sabe muito bem que eu não preciso trabalhar.

– Ah, eu pensava que sim.

– É a única coisa que nos falta. Que as moças de boa família virem empregadas de escritório. Um modo como qualquer outro de perder a feminilidade.

– Tudo depende, senhorita. Às vezes a mulher tem que escolher entre morrer de fome ou perder a feminilidade.

– Serei curiosa, Larralde. Você é comunista?

Berrutti escuta Mirta Ventura. Fernández flerta com Ruth. De modo que Célica Bustos se sente isolada, ladeada pelas costas de seus respectivos vizinhos. Decide-se por Aguilar, que nesse momento está olhando para ela.

– O que faz em Nova York?

– Estou em Nova York só de passagem. Na realidade, estou morando em Washington.

– Então, o que faz em Washington?

– Números.

– Continuo em brancas nuvens. O que é? Contador? Engenheiro? Empregado de escritório?

– Arquiteto.

– Caramba.

– Trabalho na OEA.

– E se sente bem?

– Sim, muito bem.

– O que faz lá?

– Planos de urbanização. Em geral, para os países subdesenvolvidos.

– Não me diga que vão nos encher desses povoados antissépticos, simétricos, polidos, todos iguais e sem identidade.

– Em todo caso, é preferível isso que as favelas, as vilas miseráveis. Ou não?

– Sim, claro. Mas por que todos iguais?

– Sai mais barato. Agora estamos projetando vários para o Paraguai. Provavelmente no ano que vem tenha que ir a Assunção por oito ou dez meses.

– Eu não poderia ir a Assunção.

– Por quê? Por Stroessner?

– Sim.

– Eu também pensava isso, lá em Montevidéu. Mas reconheço que somos infantis. Pensando assim, não fazemos nada de nada. Quando eu era estudante, trabalhei muito na Federação Universitária. Depois me aborreci de ser cheio de princípios e sem um tostão. Posso até parecer cínico. Mas aqui me pagam muito bem. Claro que em Montevidéu fiquei sem amigos.

– E está contente? Quero dizer, contente consigo mesmo.

– Bah, tanto quanto possível. Chega um momento em que a gente tem que se decidir: ou continua fiel a seus princípios ou ganha dinheiro.

– E o senhor se decidiu.

– Sim. Mas não vou fazer como alguns colegas que, para calar seus escrúpulos e tapar a boca às recriminações, querem fazer crer que isto é uma maravilha. Posso assegurar que não é. E a OEA é mais suja ainda. Mas ganho muitos dólares.

– Nada, não produzimos nada – diz Reinach a Gabriela Dupetit. – Como querem que os capitalistas norte-americanos façam inversões em nosso país, se não produzimos nada? Para investir, tem que haver algo como o milagre alemão: lá, trabalham. Acho engraçado esses intelectuais de botequim, que estão sempre reclamando mais independência na política internacional. O que me importa é o negócio. E como comerciante, garanto, não ficaria absolutamente atingido se o Uruguai fosse menos independente do que é, chame como quiser a esta falta de independência: estado associado, área do dólar ou, mais francamente, colônia. Nos negócios, a pátria não é tão importante quanto o hino, e às vezes o comércio funciona melhor numa colônia que numa nação aparentemente independente.

– Tudo depende. Preste atenção, Reinach, que se fôssemos colônia dos Estados Unidos ou, em último caso, da Inglaterra, bah, não seria tão mal... Mas imagine por um momento que fôssemos colônia da Rússia. Fico toda arrepiada.

– Nem pensei nessa possibilidade. Devo esclarecer-lhe que para mim há uma só pátria: o conceito de empresa privada. Onde o conceito não existir, apago esse país do mapa. Do meu mapa, pelo menos.

– Sabe como percebi que Ocampo era uruguaio? – pergunta, ravióli no ar, o bem-nutrido Ballesteros ao silencioso Larralde. – Entrei num barzinho que existe atrás do Carnegie Hall e numa mesa havia três sujeitos falando espanhol. De repente um deles disse: “Decidi jogar nesse cabajo”. Preste atenção: não disse caballo, nem cabaio, nem cabalio mas cabajo. Eu me aproximei e disse: “De Buenos Aires ou de Montevidéu?” E ele me respondeu: “Do Paso Molino”. Que satisfação! Eu também sou do Paso Molino, percebe?

Budiño serve Chianti no copo de Marcela; depois serve também seu copo.

– Não esteve no Bowery?

– Não, o que é isso?

– O bairro dos bêbados. Você deve ir olhando onde põe os pés. Do contrário, pode pisar o corpo de algum infeliz, jogado na calçada ou na rua. É muito deprimente.

– Este bairro também é deprimente.

– Nunca conseguirei entender o problema dos porto- riquenhos. Primeiro, isso de Estado associado soa mal. O preço da dignidade nacional é tantos e quantos dólares. Dá a impressão de uma venda coletiva. Depois, com o anzol da livre entrada nos Estados Unidos, o que conseguem é isso: viver amontoados num só quarto e trabalhar como burros para que lhes paguem menos que a qualquer norte-americano. Não, não os entendo.

– Sabe o que me acontece com os Estados Unidos? Compreendo tudo isso, de que se comportaram horrivelmente com a América Latina. Aquilo de México, Nicarágua, Panamá, Guatemala. Meu irmão me ensinou bastante sobre todo esse pedigree. Eu entendo e me dá raiva. Mas depois chego aqui, e me fascina. Olhe, estive também na Europa, mas Nova York é uma das cidades em que mais aproveito.

– E como seu marido deixa que ande sozinha por esses mundos de Deus? Não sabe que pode ser perigoso? Para ele, pelo menos.

– Não é que ele deixe. É que nós estamos nos divorciando.

– Ah.

– Meu casamento só durou seis meses.

– Não gosta de dólares? – pergunta Angélica Franco a Claudio Ocampo.

– Quem não gosta?

– Eu adoro. Além disso acho fantástico que todos sejam do mesmo tamanho: a nota de um dólar igualzinha à de cem. Como não vão ser donos do mundo, se têm um dinheiro tão lindo? Quem pode resistir? Se quisessem comprá-lo, Ocampo, poderia resistir? Pois eu não. Se me mostram um dólar caem todas as minhas defesas. Por que será isso?

– Que quer que lhe diga? Em minha opinião pode tratar-se de duas coisas: ou é terrivelmente ambiciosa, ou...

– Pode dizer, pode dizer.

– Ou tem poucos preconceitos.

– Vou ser franca: não sou ambiciosa.

Agustín Fernández fez grandes progressos. Enquanto o arroz à cubana esfria um pouco, sua mão direita descansa na coxa esquerda de Ruth.

– Eu não deveria vir aos Estados Unidos, porque cada vez que venho tenho febre. Pensando no Uruguai, sabe? Pensando no limitado que somos. Aqui tudo é grande e tudo se faz grande.

A mão sobe lentamente.

– Porte-se bem – diz Ruth baixinho.

– Nós temos uma filosofia de tango – continua imperturbável o dono da mão. – A garota, a velha, o chimarrão, o futebol, a cachaça, o velho bairro Sul, muito sentimentalismo. E assim não se vai a parte alguma. Somos blandos, entende? Perceba que até nossos guardas de honra se chamam os Blandengues. Somos isso, brandos. E temos que ser o contrário, duros, como são estes sujeitos. Ao negócio, e se acabou. O que serve, serve, e o que não serve, não serve.

A mão progride até sentir debaixo da saia a beirada da calcinha.

– Agustín, vão ver-nos – murmura ela com certo desespero.

– Sociologicamente – continua o rosto severo de Fernández – não gosto de como somos. Economicamente, tampouco. Humanamente, menos ainda. Pensar que aqui, no Norte, temos este exemplo e nos damos ao luxo de ignorá-lo. Não imagina a raiva que me dá toda vez que venho a Nova York.

Os cinco dedos movem-se independentemente, cada um por seu lado e, de repente, como se estivessem satisfeitos com a exploração, apertam em uníssono.

– Aaai – deixa escapar Ruth.

– Eu não penso em voltar para o Uruguai – diz na cabeceira Ballesteros, jogando o bafo quente em Larralde. – Algum dia, pode ser, para ver minha mãe ou meus sobrinhos, mas radicar-me, jamais.

– Eu não sei se poderia desenraizar-me a esse ponto.

– Claro que poderia. Todo mundo pode. Sabe o que é mais indicado para curar nostalgia? O conforto. Eu aqui consegui conforto e agora já nem me lembro do Paso Molino. Esta sensação de que você aperta um botão e o mundo lhe responde. Não acha que a vida aqui é maravilhosamente mecânica? Outro dia alguém, creio que um mexicano, me dizia só com a vontade de atrapalhar minha digestão: “Sim, tudo é maravilhosamente mecânico, mas já pensou quantos milhares passam fome no resto da América para que os norte-americanos possam apertar seu botão?”. Mas eu lhe garanto que não arruinou minha digestão, porque respondi... sabe o que respondi? Ha, ha! Olhei fixamente para ele e disse: – E que me importa isso?

– Por isso gosto de estar longe de Montevidéu – explica a boca de Angélica Franco à orelha de Ocampo –, porque aqui perco minhas inibições. Estou certa de que se você, por exemplo, que me parece tão simpático, me fizer agora qualquer proposta, por mais escandalosa que possa parecer-me em Montevidéu, tenho certeza de que aqui você me diz algo brutalmente comprometedor e eu não me escandalizo. E é isso: a distância. Se me houvesse visto no Uruguai, não teria me reconhecido aqui. É estranho, mas lá sou tão acanhada, tão tímida, tão retraída, tão vacilante. Aqui, ao contrário, eu me liberto. Diga-me, Ocampo, com toda a sinceridade, eu lhe pareço tímida?

– Nunca dos nuncas. Parece-me tremendamente decidida, quase diria arrojada.

– Ah, que bom que o diga. Não sabe como me faz bem sentir-me assim, livre, decidida. Lá é tão diferente; tudo me inibe. Vejo o Palácio Salvo e me retraio. Alguém se senta perto de mim no ônibus e me retraio. Se um rapaz me toca, mesmo sem intenção, logo me retraio.

– E aqui não se retrai?

– Faça o teste, Ocampo, faça o teste.

– E então – confia Marcela a Ramón Budiño – não pude mais. Para mim era horrível sentir que inspirava uma atração exclusivamente sexual. Uma mulher aspira a ser querida, além disso, por outras razões.

– Imagino que não deve ser difícil querê-la por essas outras razões. Além das primeiras, é claro.

– Você me escuta com benevolência e me olha com certo ar condescendente. Acha que sou uma menina?

– Acontece que você não tem cara de adulta.

– Entretanto, garanto que é horrível ter sido casada e depois ficar sozinha. Quando solteira também estava sozinha, mas era outro tipo de solidão. Uma solidão com esperança.

– Caramba, que frase! Pretende convencer-me que perdeu a esperança aos vinte e três anos?

– Não. Mas agora já tive uma experiência conjugal e sei que pode não funcionar.

– Tudo na vida está pendente dessa alternativa. Tudo pode funcionar ou não.

– E você? É feliz em seu casamento? Funciona sua vida conjugal?

– Sabe o que acontece? Depois de tantos anos de casamento, minha vida conjugal não é um tema interessante. Não tem suspense, entende?

– Tem filhos?

– Um, de quinze anos. Chama-se Gustavo.

– Deve ser lindo ter um filho. Se eu tivesse tido um, tenho certeza de que meu casamento teria sido salvo.

– Vejamos, conte-me mais.

– Mas diga-me, o que você é, romancista, jornalista, detetive? Faz falar as pessoas mas não conta nada...

– Já disse por que: um veterano, casado e com um filho, é sempre aborrecido, mas uma moça como você, jovem, linda e sem marido, sempre é interessante.

Marcela mastiga lentamente um pedacinho de pão. Depois, quando pergunta, tem um sorriso ambíguo.

– Está me gozando?

A gargalhada de Budiño faz com que se voltem as cabeças de Ruth Amezua, Claudio Ocampo e José Reinach. Só quando os três olhares retornam a seus primeiros desígnios, Budiño olha alegremente para Marcela. Mas não toca nela.

– Sabe que isso não tinha me ocorrido? Mas é uma ótima ideia.

Agora é ela que dá uma risada.

– Pilantra.

Mas desta vez só Ocampo vira-se e comenta:

– Parece que os jovens se divertem.

Mirta Ventura tirou o casaco e mostra as pintas estratégicas de seus ombros. Berrutti lança, como por acaso, olhares laterais, mas está um pouco constrangido para apreciar em toda a sua riqueza o panorama destas costas exoticamente bronzeadas. Enquanto isso, e pelas dúvidas, fala.

– Nosso erro vem de muito longe. Vem do colégio. Essa falta de religiosidade, essa educação inexoravelmente laica. Além disso, toda essa conversa de que a criança se expresse livremente. Bons tapas me davam quando ia à Escola França. Agora, se uma professora lhe puxa a orelha, nada mais que a orelha, de um desses infanto-juvenis que povoam o curso primário, imediatamente lhe abrem um processo.

– Eu me eduquei nas Dominicanas.

– Aí está. Qual é o resultado? Você tem personalidade, não é uma na multidão.

– Obrigada, Berrutti.

– Não digo isso como galanteria, mas simplesmente como confirmação de minha tese. Isso me agrada nesse país: aqui sim, Deus está em tudo. No ensino, na Constituição, na discriminação racial, nas forças armadas. Os Estados Unidos são um país fundamentalmente religioso. Nós, ao contrário, somos um país fundamentalmente laico. Por isso somos incoerentes. Deus une; o laicismo separa.

O pezinho de Mirta se encosta, como por acaso, no sapato número quarenta e dois de Berrutti. Ele não o retira, e embora não tenha a certeza absoluta de que ela não o está confundindo com o pé da mesa, continua com brio renovado.

– Eu não pretendo que o ser humano deixe de pecar. Errare humanum est. O erro, o pecado estão na própria essência do homem.

– Está falando do pecado original?

– Isso mesmo, você me compreendeu. Mas reconheça que é muito diferente pecar sem sentimento de culpa, quase com prazer, como o faz o ateu, e pecar, como podemos fazê-lo você ou eu, sentindo-nos cristãmente culpados perante Deus.

– Digo-lhe mais; creio que o sentimento de culpa dá outro sabor ao pecado.

Berrutti move dois centímetros seu sapato quarenta e dois e, imediatamente, o pezinho de Mirta restabelece o contato. Já sem dúvidas, seguro de si mesmo, levanta a cabeça, com uma mão acomoda o cabelo um pouco revolto e conclui seu pensamento:

– Exatamente, outro sabor. Que coisa aborrecida deve ser pecar quando se é ateu! Realizar o pecaminoso sem que ninguém lhe peça contas.

– Horrível. Penso e sinto um aperto no coração.

– Por isso as grandes obras de arte sempre foram construídas ao redor do pecado.

– O que, no fundo, significa construí-las ao redor de Deus.

– Naturalmente, porque sem Deus o pecado não existe. E foram construídas ao redor do pecado, porque o pecado é proibido e tem castigo, e isso é o estético: o conflito entre a proibição e a culpa. Melhor dizendo, a arte é a chispa que resulta de friccionar a proibição com o castigo.

– Resumo perfeito.

– Verdade? Ocorreu-me agora, enquanto falava com você.

– Você é notável, diz Mirta – enquanto sua panturrilha calçada com meia de náilon sente o calor da outra panturrilha com calça wash & wear.

Larralde encolhe os ombros. Na realidade não lhe interessa muito a dissertação ligeiramente oligárquica de Sofía Melogno. Nem mesmo o atrai fisicamente. Mas Sofía se propôs a catequizá-lo.

– Larralde, não me faça duvidar do equilíbrio de seu juízo. A não ser que esteja me gozando. Quer me dizer onde há mais liberdade do que aqui? Diga, diga, um só lugar, não peço mais.

– Nas selvas do Amazonas, por exemplo. E olhe que curioso: lá não há democracia representativa.

– É o que eu digo: você está me gozando. Como bom jornalista que é. É a única coisa que vocês sabem fazer: gozar os outros.

– Não creia, senhorita, sabemos fazer outras coisas.

– Não poderia deixar de chamar-me de senhorita?

– Perdoe-me, pensei que era solteira.

– Naturalmente que sou, bobo. Mas me chamo Sofía. E em casa me chamam de Nena.

– Ah.

– E o que vai contar, de tudo que está vendo?

– Não tudo, com certeza.

– E por que não?

– Porque não se pode, Nena. Jornalisticamente falando, temos que ajustar os Estados Unidos que vemos aos Estados Unidos que chegam a Montevidéu pelos filmes de Hollywood. Para que escrever sobre Little Rock se podemos escrever sobre Beverly Hills? Se eu conto que em São Francisco um poeta beatnik se jogou de um terceiro andar, simplesmente porque não aguentava mais o American Way of Life, e não morreu, e assim ficou com o American Way of Life intacto e as duas pernas quebradas, se conto isso, lá não vão gostar, e o secretário de Redação me telegrafará um severo puxão de orelhas com a recomendação de Não Dar Comida às Feras. Assim, prefiro escrever sobre as vantagens do cérebro eletrônico. É disso que gostam. O ideal de nossos ministros da Fazenda, nossos treinadores de futebol e nossos chefões do contrabando é o cérebro eletrônico. Cálculos exatíssimos, nada de improvisação, pouco material humano e, principalmente, algo em que se apoiar. Você gosta do cérebro eletrônico? Em muitos países subdesenvolvidos, entre eles o Uruguai, usam ainda um sucedâneo desvantajoso e primitivo. Refiro-me ao horóscopo. Mas posso lhe garantir que o cérebro eletrônico é mais digno de confiança. Precisamente, esta é a tese de meu próximo artigo. Agradeça-me a primeira mão.

– Você está um pouco bêbado, não é, Larralde? Pode-se saber para que jornal escreve?

– Para La Razón. Mas não procure as iniciais A.L. Geralmente meus artigos aparecem sem assinatura, ou com o pseudônimo de Aladino.

– Diga-me, senhor Aladino, qual o seu signo?

– Virgem, às suas ordens.

– Virgem? Impulsivo, sensível, reservado, ativo, inteligência racional, sentido prático, devoção, fidelidade. E também tendência ao stress.

– Conversa. Mas você é uma erudita. Pelo menos no stress, acertou. De todo modo, aviso-a de que terei que verificar pelo cérebro eletrônico essa bela e estimulante ficha pessoal.

Larralde empunha convincentemente a garrafa.

– E agora tome outro vinhozinho. Para acomodar a sobremesa, Nena.

O telefone toca relativamente baixo e longe, pois num extremo da mesa Ballesteros sacode ritmicamente seu abdômen como resposta a uma brincadeira de Aguilar; no centro Gabriela Dupetit diz em voz alta: “Juro para você aqui que tenho vergonha de ser uruguaia”, e no outro extremo Ocampo e Angélica Franco encontraram mais uma afinidade e cantam em dueto No te engañes, corazón. De modo que até que entra José e pede silêncio, ninguém interrompe sua atividade.

– Senhor Ballesteros, chamam-no ao telefone e dizem que é very urgent.

Ballesteros interrompe tão bruscamente suas sacudidelas, que seu estupor termina num arroto, habilmente prolongado numa tosse de emergência.

– Meu Deus, very urgent – diz ao levantar-se. Ao sair, cambaleia um pouco. Apoia-se nas costas da cadeira de Larralde e logo arranca de novo, com passinhos curtos e não muito seguros.

Gabriela calou-se. O tango também fica suspenso em no creas que es la envidia o el despecho. Debaixo da mesa, todas as mãos e pernas voltam a suas bases. Marcela toca pela primeira vez, mas sobre a mesa, a mão de Ramón.

– Não sei por que – murmura com voz autenticamente preocupada –, mas tenho o pressentimento de que se trata de algo de mau que concerne a todos nós.

Reinach, os olhos fixos num quadro da parede, que mostra Ike, mastiga e de vez em quando deixa ouvir um estalido de sua língua. Sofía Melogno torce as mãos. Célica Bustos assoa o nariz. Aguilar acende um Republicana trazido da pátria e aproxima a chama do isqueiro ao Chesterfield que está nas mãos, um pouco trêmulas, de Fernández. Mirta Ventura, com a solícita colaboração de Berrutti, torna a pôr o casaco. Ruth Amezcua espirra, mas ninguém lhe diz salud. Ramón respira profundamente e, com a mão esquerda, já que com a direita está ocupada com Marcela, levanta o copo e acaba um restinho de vinho.

A entrada de Ballesteros é muito diferente de sua saída. Evidentemente algo ocorreu que o abalou repentinamente e por completo. Sua expressão é de tremendo desconcerto e parece a ponto de chorar.

– Uma coisa horrível. Aconteceu algo horrível.

É quase um murmúrio, mas chega a todos.

– Onde? – perguntam vários.

– Lá.

– No Uruguai? – concretiza Larralde.

– Sim.

– Fale de uma vez. O que aconteceu?

– Uma catástrofe. Uma inundação espantosa. Um maremoto. Ainda não se sabe direito. Logo vão me telefonar de novo. Tudo destruído. O país totalmente em ruínas. A água arrasta tudo pelas ruas. Não há mais pontes. Não se sabe quantas vítimas. Tudo destruído. Uma catástrofe como nunca. O país riscado do mapa. Campo e cidade. Arrasado, totalmente arrasado.

Ruth lança um grito agudo e cai para trás. Fernández e Budiño amparam-na. Sofía Melogno começa a chorar com um barulho espantoso. Célica Bustos olha para a parede e grandes lágrimas caem sobre seu segundo sorvete. Gabriela morde o lábio inferior, depois cobre o rosto com as mãos. Reinach é, por enquanto, o único homem que chora de forma ostensiva. Larralde pergunda, tenso:

– Mas como soube?

– Meu vizinho, um mexicano, ouviu no noticiário da televisão. Sabia que eu estava aqui e me telefonou.

Angélica Franco põe um frasquinho de perfume debaixo do nariz de Ruth e esta se recupera, abre os olhos e imediatamente os fecha para chorar. Mirta Ventura reza.

– E em Jesus Cristo, Seu único Filho, nosso Senhor.

Berrutti olha para ela sem solidariedade e também pergunta:

– E há vítimas?

Ballesteros sacode a cabeça.

– Não me pressionem, que já estou bastante sufocado. Disse-lhes que não sei. A única coisa que informaram foi que o país está riscado do mapa. Arrasado, totalmente arrasado. Acabou-se totalmente.

De um canto, José olha o espetáculo. Está um pouco aturdido. Sai para a cozinha, a tempo de deter o rapaz do dedo mindinho.

– Wait a minute. Não leve a conta ainda.

Marcela soluça baixinho, sem perder a cabeça.

– Não dá para acreditar numa coisa assim – diz Budiño.

– Eu sabia. Falei quando Ballesteros saiu. Sabia que era algo que tinha a ver com todos nós.

– Que horrível!

– E César está lá.

– Seu marido?

– Sim.

– É importante para você?

– Sim.

– É o castigo de Deus – guincha Gabriela –, porque eu disse que tinha vergonha de ser uruguaia. É o castigo de Deus e eu o mereci. Pobre da minha mãezinha. Pobre da minha velhinha. E meu irmão. Não quero pensar. Não quero!

– Percebe? – diz Aguilar a Célica Bustos. – Agora há pouco, eu estava bancando o cínico, e agora sinto um nó na garganta.

– Tudo arrasado – murmura Reinach –, tudo, também minha loja. Minha loja riscada do mapa. Não pode ser. Vocês conhecem meu negócio? Não era lindo? Mês passado eu tinha trocado o letreiro luminoso. E tinha uma porta giratória. E dois caminhões de entrega. Que horror. E tudo que andei dizendo aqui... Vocês me ouviram? Você pelo menos me ouviu, Gabriela. Que não produzimos nada. E não é certo. É um lindo país, Gabriela. Pode-se trabalhar sem medo. Meu pai é judeu, eu sou judeu. Nasci em Montevidéu, mas sou judeu. Tenho um tio que escapou da Alemanha, porque lá a catástrofe foi espantosa. Não foi um maremoto, mas foi igualmente espantosa e minha família ficou sem nada. No Uruguai ninguém nos incomodou. É um lindo país. Pode-se trabalhar. E riscado do mapa. Não é verdade que a empresa privada é minha pátria. Não é verdade. É um lindo país. E agora está riscado do mapa. É um lindo país.

– Assim na terra como no céu – reza Mirta Ventura. – O pão nosso de cada dia nos dai hoje.

– Cale-se – diz Berrutti, com os olhos esbugalhados.

– Quê? – pergunta ela, de estupor em estupor.

– Cale-se! Não vê que não existe? Não vê que não há Deus?

– Mas não dizia há um momento?

– Bobagens. Não pode haver um Deus que destrua tudo, à toa. Não percebe? Como pode rezar assim, tão tranquila? Não tem ninguém lá? Ninguém além das freiras?

– Sim – explode Mirta soltando definitivamente a língua –, tenho meu papai, pobrezinho papai, pobrezinho paizinho.

– Vê se Deus devolve seu pobrezinho paizinho.

– Não seja mau.

– Eu tenho dois filhos, entende? Dois filhos, um rapaz e uma menina. Se Deus os mata, quer dizer, se o maremoto os mata, juro por essa cruz que renego tudo.

– É como ela diz – soluça Sofía com os dentes apertados. – É um castigo. É um castigo porque nunca trabalhei.

– Não seja infantil – diz seriamente Larralde.

– É um castigo porque sempre desprezei os pobres, sempre os chamo de A Ralé.

– Deixe de ser boba – diz Larralde, que está começando a perder a paciência e sacode-a pelos ombros. – Se fosse um castigo dedicado a você, somente a você, o destino não teria se preocupado de colocá-la previamente a salvo; ao contrário, a teria colocado no próprio centro da catástrofe.

– Mas não compreende que isso é muito pior? Não entende que esta sensação de não poder fazer nada, nem ajudar, nem ver o desastre com os próprios olhos... Não entende que isto é o mais espantoso? Além disso, vou dizer agora. Tenho a obrigação de confessar. Tudo o que disse antes era uma pose, uma mentira. Gosto daquilo. É um país pequenininho, insignificante, mas gosto dele. Não poderia viver aqui, entre tipos mecanizados, sórdidos, ingênuos até a bobeira.

Angélica Franco está tirando dólares de sua carteira. Junta de três em três e rasga-os em pedacinhos.

– Nada. Não me importam nada.

Ocampo lhe passa um braço sobre os ombros e a imobiliza.

– Não seja histérica. Vai se arrepender depois. Rasgar uma nota de cem dólares! Ficou louca? Pode-se saber o que vai conseguir com isso?

– É um castigo, claro. Pelo que estive dizendo. Porque estive me oferecendo. Não me importam os dólares, entende?

– Mas mulher, não se preocupe, em nenhum momento levei isso a sério!

– E não é verdade que lá seja tímida. Nunca sou tímida.

– Já sei.

– Aqui e lá sou sempre como me viu hoje. Uma puta. Nada além de uma puta.

Ballesteros deixou cair os braços atrás da cadeira. Com olhos chorosos e uma careta que parece uma caramunha frustrada, seu corpo enorme e desigual tem agora o aspecto de um aleijado.

– Veja – explica a Larralde, mas sem olhá-lo de frente. – Não se pode dizer desta água não beberei. Até há pouquinho eu jurava que não voltaria. E agora gostaria de estar lá. Daria dez anos de vida para estar lá. Parece mentira que uma pessoa necessite destes golpes terríveis para saber a que lugar pertence... Quer que lhe diga uma coisa? Penso em Paso Molino, penso que tudo lá está agora uma desolação, uma destruição total e veja, eu, um chato de sessenta anos, começo a chorar como um menino. Conhece Paso Molino? Lembra-se daquelas barreiras grandonas? Eu gostava, veja você, e já não era um garoto certamente, de ficar lá um momento ao entardecer, vendo como passavam os trens. Às vezes passavam três seguidos e então se juntavam como dois quarteirões de carros, ônibus e bondes. Era uma estupidez, mas eu me divertia vendo, quando enfim as barreiras se abriam, a maneira como arrancava de repente aquele corso improvisado.

– Certamente César estava em Salto – diz lentamente Marcela.

– Que faz lá? – pergunta Ramón.

– Meu sogro tem uma estância, mas é César o responsável, o que mais trabalha.

– Como é seu marido?

– Fisicamente?

– Sim.

– Alto, magro, cabelo escuro, olhos verdes, nariz fino, ombros largos.

Marcela passa um lenço pelas têmporas.

– Não se alarme ainda – diz Ramón.

Marcela sorri precariamente e faz um gesto indeciso de desculpas.

– Você me consolando, me dando forças e eu, tão idiota, sem lembrar que sua gente está lá também.

– Todos temos nossa gente lá.

– Seu filho, seu pai, sua mulher.

– Sim, meu filho, minha mulher, todos.

– Que horrível.

Então ela se solta, perde de repente toda a serenidade, toda aparência de serenidade, começa a chorar com os olhos abertos e diz sem arrependimento, sem orgulho nem vergonha, com a menor ênfase possível, como se o estivesse descobrindo nesse instante:

– Eu gosto dele. Preciso dele. É insuportável. Não pode ser.

Budiño olha para ela, acende um cigarro que dá à mulher. Depois acende outro para si.

– Gustavo, Dolly – pensa em voz alta.

Desta vez o telefone faz com que todos fiquem paralisados, como no jogo infantil das estátuas. José entra de novo e não precisa dizer nada a Ballesteros. Só olha para ele. Ballesteros se levanta e desta vez não cambaleia. Quase correndo, vai para a porta. Na realidade, todos deixam a mesa e vão até a porta.

– Que há? – diz Ballesteros ao pegar o fone.

Os olhos dos outros estão cravados nele. A abertura da porta é um montão de olhos. De repente, o gordo afrouxa, amolece. José é o primeiro a segurá-lo. Budiño segura o fone, que ficou pendurado.

– Sou um amigo de Ballesteros. Desmaiou. Que aconteceu?

Escuta um momento. Depois suspira. Um suspiro em que Budiño parece estar esvaziando inteiramente os pulmões.

– Obrigado – os outros o escutam dizer. – Não sabe como lhe agradecemos, senhor. Sim. Ballesteros já está bem. Depois o chamará, sem dúvida.

Ballesteros, que já abriu os olhos, ordena atabalhoadamente a Budiño que diga tudo aos outros.

– Era um exagero – diz Budiño. – O amigo de Ballesteros ouviu outros noticiários e parece que a verdade é muito diferente. Houve uma grande inundação sim, e alguns povoados do interior estão debaixo d’água. Mas nada de maremoto, nem de mortes. Simplesmente uma inundação mais importante que a de outros anos.

Produz-se um grande silêncio. Logo, da boca de Reinach sai uma espécie de ronco, algo como uma alegria gutural, algo assim como a palavra loja. Ocampo se inclina, recolhe vários pedaços de dólares e entrega a Angélica Franco.

– Cole-os e troque depois em algum banco.

– Obrigada – diz ela, e senta, desconcertada. Uma mecha se soltou do penteado impecável e ficou grudada na bochecha, pegajosa de lágrimas e suor.

Agustín e Ruth, num canto, beijam-se na boca. Berrutti tenta aproximar-se de Mirta Ventura, mas ela o detém com um olhar congelante e um murmúrio entre dentes:

– Não me toque, entende?

Célica Bustos enfrenta Aguilar, que está encostado na parede.

– Bom, aqui não aconteceu nada. Cada um volta a seu lugar, não? A água outra vez para o rio; você outra vez para a OEA. Até que a morte os separe.

Sofía Melogno olha-se num espelhinho.

– Estou horrível. Parece que fui eu que tive o maremoto.

– E? – pergunta Larralde, a seu lado.

– Olhe, todos dissemos muitas bobagens esta noite, não acha?

José aproveita para correr para dentro e dizer ao garçom do dedo mindinho nasal:

– Vamos, agora sim the check.

Quando o garçom entrega a conta a Ballesteros, no primeiro momento ele acredita que se trata de uma nova emoção. Mas logo compreende que não é para tanto.

– Ah, a conta.

Berrutti e Reinach se aproximam para ajudá-lo a fazer a divisão e definir a contribuição per capita.

– Por oito. As mulheres não pagam – diz Berrutti.

Os outros dois concordam em silêncio.

Budiño segura o sobretudo de Marcela, até que ela consegue ajeitá-lo nos ombros.

– Então? O susto serviu para alguma coisa?

– Sim – diz ela – e para você?

Ele vacila um pouco antes de responder.

– Também, mas não muito.

Alguma coisa no tom de sua voz faz com que Marcela o olhe com preocupação.

– Há pouco você disse: Gustavo, Dolly. Dolly é o nome de sua mulher?

Apanhado, ele não pôde deixar de sorrir.

– Não, não é o nome da minha mulher.

José recolhe a gorjeta e resmunga:

– Nem os dez por cento.

Lentamente vão saindo. Agora, no salão que dá para a Broadway, todas as mesas estão ocupadas. Alguns dos fregueses ficam um pouco desconcertados quando Gabriela Dupetit abre os braços e exclama com estentórea compunção:

– Convençam-se. Somos uma porcaria. As poucas vezes em que há um alarme, sempre termina em alarme falso. Vocês viram. Nunca seremos capazes de ter uma catástrofe de primeira classe.