9

É cedo: duas e vinte. Ainda não quero ir para o escritório. Certamente haverá uma multidão me esperando. Bom, que esperem. Quero sentar-me um pouco no bar e ler os jornais. Esta manhã só tive tempo de dar uma olhada nas manchetes. Ainda não me amargurei com o jornal do Velho. Sobre que escreverá hoje? Contra os negros? A favor de Isaac Rojas? Contra os feriados? Defenderá a regulamentação sindical? Afinal de contas, qualquer tema é legítimo. Mas por que será que o Velho transforma seus artigos em obras-primas de abjeção?

– Walter, como vai?

– Vi você entrar. Eu estava na mesinha perto da janela. Uma tarde dessas eu ia telefonar para você. Depois não me atrevi.

– Desde quando essa timidez?

– Era um assunto delicado. Primeiro resolvi que não era possível tratar dele por telefone. Depois deixei passar e acabei não falando nada.

– Era tão incômodo?

– Bastante. Trata-se de seu pai.

– Ah.

– Você sabe que na repartição estou como secretário do diretor Molina. Outro dia fiquei sabendo, sem querer, de um assunto bastante sujo.

– Não me diga que o Velho está metido.

– Precisamente.

– Bom, não me surpreende.

– É um negócio importante, relacionado com a fábrica. Pode dar um meio milhão para o seu pai.

– Caramba! E para o Molina?

– Outro tanto.

– E o que você pensa fazer?

– Nada. Mas se não faço nada, quero deixar claro que não é pelo seu velho, nem por Molina, nem por ninguém, nem mesmo por dinheiro. Além disso, ninguém sabe que eu sei. Não faço nada, porque já conheço o desenrolar destas coisas. Se os denuncio, fazem-me um inquérito, Molina me transfere para alguma repartição tipo arquivo, onde ficarei enterrado até o fim dos meus dias, e seu pai publica algum boato em seu jornal, com a versão de que na repartição xis o empregado fulano é criptocomunista e no entanto ocupa um posto de notória responsabilidade e tem acesso a informações que podem ser vitais para a segurança nacional e isso não pode ser tolerado pelos autênticos democratas deste país de liberdade. Já estou vendo.

– E para que queria falar comigo?

– Para deixá-lo de sobreaviso. Sei que você não anda nessas porcarias e esta, no entanto, pode prejudicá-lo. A você, à sua agência, até mesmo a seu filho. Há um jornalista que tomou conhecimento, sabe, e está esperando que o assunto se concretize para jogar a bomba. Pensei que você podia falar com seu pai, convencê-lo de que o assunto vai ser aberto, enfim, convencê-lo de que vai sair perdendo.

– Quem é o jornalista?

– Larralde.

– Alejandro Larralde? O de La Razón?

– Sim.

– Com certeza vai armar o maior escândalo.

– Imagine. Não é para menos.

– Agradeço, Walter.

– Que vai fazer?

– Ainda não sei. Para mim é tão difícil falar com o Velho. Não nos damos bem, sabe? Mas isto não pode ser, não pode ser.

– Boa tarde, senhor Budiño. Tem sete chamadas e quatro pessoas esperando.

– Que aconteceu? Abella não atende hoje?

– O senhor Abella recebeu umas vinte pessoas, mas essas quatro pedem para falar pessoalmente com o senhor.

– Está bem, dê-me a lista de telefonemas.

– Senhor, além disso queria pedir-lhe um favor.

– Diga, senhorita.

– Hoje é meu aniversário e queria sair um pouquinho mais cedo.

– Caramba, justamente hoje que tinha pensado liquidar toda essa correspondência com os Estados Unidos.

– Nesse caso, senhor...

– Também podemos deixar para amanhã. Em homenagem a seu aniversário.

– Obrigada, senhor.

– Você deve ser muito jovem.

– Faço vinte e um, senhor.

– Provavelmente será uma agradável sensação fazer vinte e um anos, ter um bom emprego e essa linda aparência.

– É isso mesmo que diz o meu noivo, senhor.

– Parabéns. Vejo que é um homem sensato e de bom gosto.

– Obrigada pela permissão, senhor. Vou dizer ao senhor Ríos que entre.

– Espere um pouco, senhorita. Quero ler esse relatório antes.

Esteve bem a secretária carnuda. Só lhe disse linda e imediatamente me atirou com o noivo. Uma espécie de exorcismo. Já conheço o sujeito. Outro dia os vi como um nó na última fila do Califórnia. Com certeza, hoje vai beijá-la em grande forma. Happy birthday to you. Que faça bom proveito. E agora, como conto ao Velho? Negócios sujos, sempre temi. Afinal de contas, que me importa? Mas e Gustavo? Não quero que chegue a ter vergonha de seu nome. Que frase, parece de Alexandre Dumas. A piada é que não há outra forma de dizer que não quero que chegue a ter vergonha de seu nome. Que é também o meu. Mas a mim não me machuca tanto. Oito seis quatro cinco três.

– Javier? Fala Ramón. Como vai o reumatismo de sua esposa? Fico contente, fico contente. Diga-me, meu pai está? Às cinco? Bem, Javier, a essa hora estarei aí.

E agora: que a secretária carnuda traga o senhor Ríos.

– Senhor Budiño?

– Sim, muito prazer.

– Peço-lhe que me desculpe por ter insistido em falar com o senhor pessoalmente. Sei que é um homem ocupado.

– Não se preocupe, senhor Ríos. Estamos aqui para isso.

– Acontece que meu problema se relaciona com uma viagem. Claro, por isso recorro a uma agência.

– Naturalmente.

– Tudo isso é comum e eu poderia tê-lo conversado com o senhor Abella, que por outro lado conheço e sei que é uma pessoa muito competente. Mas meu caso tem algo de particular e eu quero sobretudo reserva.

– Reserva de passagens, ou reserva como sinônimo de discrição?

– As duas coisas. Senhor Budiño, tenho setenta e três anos, sou viúvo, tenho dois filhos, duas filhas e só uma neta. Estou com o propósito de viajar para a Europa.

– Por quanto tempo, senhor Ríos?

– Três meses no máximo.

– E quando partiria?

– O mais cedo possível.

– Só?

– Não, com a minha neta. Isso é fundamental.

– Navio ou avião?

– Navio.

– Classe?

– Primeira.

– E o senhor quer que eu lhe organize o itinerário, reserve os hotéis e outros detalhes?

– Naturalmente, mas também quero outra coisa. Algo que não se costuma solicitar às agências de viagem. Confesso que o faço com o senhor porque me deram excelentes informações sobre sua pessoa. Seu amigo Rômulo Soria.

– O senhor é amigo de Rômulo?

– É meu médico. Única pessoa, além disso, que está informado do que lhe vou confiar. Foi difícil para o doutor Soria dizer-me, e agora confesso que também me é difícil dizer para o senhor. Na realidade, Soria só me contou quando eu adivinhei. Praticamente o obriguei. Mas o senhor não tem como adivinhar.

– Francamente, não.

– Afinal de contas, é bastante simples. Tenho câncer.

– Senhor Ríos, não sei o que lhe dizer.

– Ficou pálido.

– Pode ser, mas continuo sem saber o que lhe dizer.

– Não me diga nada. Eu entendo.

– Nessas condições, convém viajar?

– Na verdade, não há nada que me convenha. Mas justamente devido a essas condições, como o senhor disse com toda a discrição, tenho direito a dar-me uma última satisfação. O doutor Soria me garante cinco meses de vida, mas acrescenta que só no quarto mês começarão os incômodos, que logo se transformarão em algo mais sério e me impedirão todo movimento. De maneira que meus projetos de vida normal não podem passar dos três meses. Claro, o senhor quer saber por que estou dizendo tudo isso.

– Sim.

– Olhe, eu quero fazer a viagem com minha neta. Este é o último presente que me dou. Mas minha neta tem apenas quinze anos, e se meu filho e minha nora souberem que sobre mim pende uma ameaça tão certa e com prazo fixo, não só não a deixariam vir comigo como de algum modo me impediriam de fazer a viagem. No melhor dos casos, viria comigo toda a família para cuidar-me durante o percurso.

– E não acha, senhor Ríos, que isso seria bastante sensato?

– O mesmo me disse seu amigo o doutor Soria, mas depois entendeu. Também confio em que o senhor entenda. A possibilidade de viajar durante três meses com todo um destacamento familiar de filhos, filhas, noras e genros, que passariam todo o dia fazendo anedotas para me animar, olhando-me com compaixão e olhos umedecidos, logo que eu virasse as costas, confesso que não me atrai em absoluto. Quero uma viagem normal, com minha neta, que é o que mais amo no mundo. E com minha neta contente, ignorando tudo, aproveitando tudo, e apoiando-se em mim, apesar de que na realidade serei eu quem estarei me apoiando nela. Seu amigo me jurou que não dirá nem uma palavra a meus familiares sobre minha doença. O senhor me jurará o mesmo.

– Claro, mas ainda ...

– Já sei, ainda não compreende tudo. O que eu quero é que o senhor, além de reservar-nos as passagens e os hotéis, além de organizar-nos excursões e dar-nos alguns conselhos com relação a lugares a visitar, melhores museus etc, o que eu quero é que, além de toda essa função mais ou menos de rotina, o senhor vá dando instruções a todos os hotéis de nosso itinerário para que, no caso de acontecer alguma coisa, porque também pode ser que seu amigo Soria tenha calculado mal, para que no caso de que me aconteça alguma coisa, minha neta não deva se preocupar com nada e seja enviada a Montevidéu imediatamente e de avião. Claro que eu pagaria a sua agência uma importância extra por toda essa atenção especial.

– Isso que o senhor me pede pode ser feito, sem nenhuma dúvida. Mas, se o senhor me permite, eu me atreveria a dizer que assim que os hoteleiros souberem que o senhor viaja nessas condições, vão dedicar-lhe a mesma compaixão de soslaio que quer evitar por parte de seus familiares.

– Sim, naturalmente. Também pensei nisso. Mas olhe que não é a mesma coisa a compaixão acidental e provisória, quase diria profissional, de um hoteleiro, de um maître ou de um camareiro, que a compaixão provavelmente sincera, aflita, de um filho ou uma filha. O senhor tem todo o direito de atribuir-me um coração de pedra, mas confesso que nesse caso me incomodaria precisamente a sinceridade. Se fossem hipócritas não me afetaria, porque então poderia desprezá-los, mas gosto muito de meus filhos e filhas e eles também gostam de mim, pelos menos creio isso. Além disso, o senhor, que certamente já viajou, sabe sem dúvida que os olhares compassivos dos europeus não incomodam tanto como os de nossos compatriotas. É, como direi, uma piedade menos compulsiva, menos violenta. É a piedade de quem passou por bombardeios, campos de concentração, torturas, fome, amputações.

– Eu pensava que o senhor nunca tinha ido à Europa.

– Nunca fui. Mas olhei os olhos dos europeus que chegaram aqui depois da última guerra.

– O senhor está fazendo com que eu me sinta horrivelmente frívolo.

– Não há outro remédio que ser um pouco frívolo. Confesso-lhe que eu fui mais frívolo que qualquer outro. Deve ter ouvido falar que os cegos desenvolvem exageradamente os outros sentidos. Bom, desde que me surgiu concretamente a ideia, quase diria a data da morte, desenvolveu-se em mim exageradamente certa capacidade para captar a vida, como se alguém, uma espécie de Deus humorista, houvesse julgado que minha velha antena já não servia e me houvesse proporcionado uma nova, com um alcance excepcional.

– Por sorte o senhor não perde o humor.

– Olhe, a perspectiva da viagem com minha neta no meio de tudo isso é um estímulo, se não para viver, pelo menos para terminar de viver.

– Está bem. Creio que entendi perfeitamente o que o senhor quer de nossa agência.

– Não precisamente da agência, mas do senhor, como um favor pessoal.

– Então venha amanhã aqui, às três, com passaportes, certificados de vacina, quero dizer, os seus e os de sua neta, e um pequeno memorandum com o itinerário que o senhor imaginou. Com muito prazer disporei de uma hora para o senhor e concretizaremos todos os detalhes. Se encontrar o Rômulo, dê-lhe minhas lembranças.

É pior que ver um morto, muito pior.

– Senhorita, por favor, hoje não recebo mais ninguém.

– Mas, senhor, há três pessoas que sabem que o senhor está aqui. Além disso, viram que recebeu o senhor Ríos.

– Não me sinto muito bem. Diga-lhes por favor que voltem amanhã. É isso: diga-lhes que não me senti bem e tive que ir embora e recomende que venham de manhã, porque de tarde não poderei atendê-los.

– De verdade se sente mal?

– Um pouco de enxaqueca, nada mais.

– Precisa de alguma coisa?

– Não, obrigado. Livre-me dessa gente e vá festejar seu aniversário.

– Obrigada, senhor, e que melhore.

Como continuar atendendo gente? Este homem. E aparentemente tão tranquilo. Me impressionou mais do que quando vi aquele morto na Rambla. É pior que ver um morto. Muito pior. Porque Ríos está decretadamente morto, mas ao mesmo tempo suficientemente vivo para perceber que está condenado. Não entendo como pode olhar o futuro, seu escassíssimo futuro, com tanta tranquilidade. E além disso tenho a impressão de que não tem religião. Zombou levemente de Deus. Não consigo entendê-lo. Deve haver alguma coisa não totalmente limpa nesse sossego um pouco absurdo, nessa ternura com a neta, nessa conformidade tão lúcida, nessa aceitação do diagnóstico de Rômulo, nesse desapego frente à provável compaixão de seus filhos. Entretanto, tem uma boa cara, olhos sem rancor. Todos temos que morrer, mas o horrível é saber quando a coisa vai acabar. Mesmo que a data de meu fim estivesse já definida para dentro de quarenta anos, não gostaria de conhecê-la. Deve ser espantosa essa sensação de se estar gastando minutos, de estar se aproximando irremediavelmente de uma data fixa, determinada. O que se sentirá quando se tem a absoluta certeza da condenação? Talvez se tenha a sensação de que o tempo começa a passar com uma velocidade vertiginosa, de que a pessoa fechando os olhos por um instante, ao abri-los já se passou meio dia. Deve ser algo assim como descer uma ladeira num carro sem freios. Tive uma vez a sensação imediata, urgente, de minha morte. Certamente muito mais urgente que esta prorrogação de cinco meses que Rômulo garante a Ríos. Ao cruzar a estrada de ferro, entre Colón e Sayago, numa noite de 1938, talvez 39. Vinha da casa da húngara. Como sempre, me dava preguiça ir até a passagem. Saltava a cerca e cruzava aqui, ali, em qualquer lugar. Não havia, não há lua. Venho pensando ainda na húngara. Não sei como se chama embora já me tenham dito o nome. Erzsi ou coisa parecida. Mas no cursinho vestibular todos a chamamos de a húngara, ou melhor, Húngara apenas. Que mulher. Mistura sexo com folclore e com pátria. Deitar-se com ela é também se deitar com as hordas de Arpad, com São Ladislau, com a Dieta de Debrecen e a batalha de Temesvar. Sabe beijar como uma rainha, mas entre beijo e beijo, nessa mesma noite, entre abraço e abraço, que são além disso uns abraços de polvo, frenéticos, múltiplos e rápidos; entre carícia e carícia, que de tão contundentes me deixam a pele vermelha, como que com urticária; entre lençol e lençol, porque nunca usa cobertores nem mesmo em pleno julho e eu perigava congelar, se não fosse porque ela transmite um formidável calor animal, muito mais eficiente que qualquer moringa ou bolsa de água quente; entre gesto de amor e gesto de amor, ela me põe ao corrente das pretensões de Juan Zopalya, das relações desse senhor com os turcos e também, logicamente, da paz de Nagyvárad. Só como exceção me falava de seus irmãos György e Zsigmond, ambos violinistas, um da Wiener Symphoniker e outro da orquestra da Rádio Leipzig, que só lhe escrevem no Natal colocando-a ao corrente das intrigas políticas da Europa Central e também de suas próprias pândegas. Como meu vigor sexual termina muito antes que a história da Hungria, ela diz Adeus e eu digo Tchau Húngara. Depois de haver estado com semelhante pessoa, é fácil caminhar distraído numa noite sem lua; eu pessoalmente me distraio porque vou recordando seus impulsos e explosões, seus intermináveis inventários de nomes e datas, e então passo a primeira cerca, e depois a segunda e atravesso, melhor dizendo, tento atravessar a ferrovia em qualquer lugar, mas não me dou conta de que estou na altura do desvio, e ponho meu pé direito nos trilhos no preciso instante em que da Estação Colón fazem a mudança, porque agora vai passar o trem da uma e sete, e fico preso, estupidamente preso, e a dor não me importa, o que me importa é a absoluta certeza de que dentro de quatro minutos, no mais tardar cinco, passará o trem da uma e sete, e eu não poderei escapar porque esta barra de ferro me apanhou quase na altura do tornozelo e o pé fica lá embaixo e sem escapatória e do pé me sobe um horror que não é só medo da morte mas consciência de minha estupidez, maldição mais maldição por ter caído tão absurdamente numa armadilha que ninguém preparou para mim, consciência de que tivesse dado meu passo dez centímetros mais para lá ou mais para cá, nem sequer me teria dado conta do perigo corrido, ou no máximo, ao sentir o crac dos trilhos, teria pensado que estava por passar o trem da uma e sete, faz frio e venta e entretanto eu suo e me agito e digo repetidas vezes Peste de Húngara, como se a pobre Erzsi, que faz tão bem o amor e sabe tanto de história, tivesse a culpa dessa estupidez minha, e prometo que se me salvo passarei sempre pela cancela, mas sei que se trata de uma promessa completamente inútil porque ninguém pode safar-se desses ferros, e faço força, e sinto o primeiro barulho do trem, e uma torrente de imagens, isoladas ou sobrepostas, passam pela minha cabeça e chego a pensar, como os afogados, as coisas mais deslocadas e fragmentadas, minha mãe entregando-me uma empada de carne, e por que não de espinafre ou de frango, nada disso, minha mãe entregando-me uma empada de carne, as tranças de Julia, uma delas meio solta, o sapato do Velho apertando o pedal da embreagem, só o sapato, por quê?, um terraço com uma única camiseta estendida que agita as mangas como braços, outra vez mamãe mas agora lavando-me os pés numa bacia celeste com uma bordazinha azul escura, nunca conheci essa bacia, quando pôde Mamãe ter me lavado os pés?, meus pequenos e rosados pés numa bacia celeste com uma bordazinha azul escura, e também a Via Láctea, mas isto não é imagem na minha cabeça mas está acima neste céu que vejo, e o barulho do trem de ferro é cada vez mais audível, mais imponente, mais próximo, e meu forcejar é já totalmente enlouquecido, uma espécie de pressão circular que me machuca horrivelmente o tornozelo, e o trem, quero rezar mas misturo as orações aprendidas há tantos anos, pai nosso que está nos céus és cheia de graça, não sei, não sei nada, além disso para Deus que importância tenho eu, o trem, meu pé, o pé de meu pai, agora sem sapato, apertando o pedal da embreagem, e o trem, e a luz que começa a iluminar-me, e a pele de Rosario, e a pele de Rosario, a pele de Rosario, Rosario, Mamãe, e o trem monstruoso, enorme, com seu espantoso olho de luz, pai nosso, já está, já está, grandíssimo, não, a mim não, aaaai, escapei e passou, em vez de passou e escapei, meu pé está aqui, entre minhas mãos, sem sapato, e o trem passou, meu pé está comigo, eu sou meu pé, como pude?, como?, o barulho se afasta, se perde, meu pé querido, machucado, sangrando, feliz, meu pé feliz e meu, que linda esta dor quando me levanto, meu pé, eu o tenho, graças a quem, eu não soube o pai nosso, Húngara boa, não quero ver como ficou o sapato embora agora se abriram os trilhos, como suo e que frio, que dor, mas tenho meu pé. Naturalmente o de Ríos é outra coisa, primeiro porque tem setenta e poucos e eu tinha vinte ou vinte e um, e além disso pode ir se preparando aos poucos, enquanto que eu tinha apenas cinco minutos para acostumar-me com a ideia de que o trem vinha para cima de mim e não podia deixar de transformar-me em mingau. Tive qualquer coisa menos serenidade, porque ainda hoje penso nisso, e tenho um calafrio, e aquele horrível olho luminoso, aquela espécie de cíclope que se aproximava de mim, apareceu durante anos em meus pesadelos. Todas as minhas comidas pesadas, homenagens, despedidas de solteiro, perus de Natal terminam para mim num trem de ferro que se aproxima olhando-me, como se gozasse de antemão meu esmagamento, e curiosamente em meus sonhos nunca me salvo, nunca consigo tirar o pé nesse último puxão desesperado. Pobre Ríos. Seu trem de ferro vem mais devagar, mas aqui não há último puxão que valha. Seus preparativos, sua pacífica previsão, seus cuidados com a neta me parecem o equivalente a que eu, com o pé preso, me pusesse a cuidar do vinco de minha calça, ou a pentear-me, ou a assobiar um tango, ou tirar cutículas das unhas, ou a surpreender-me cientificamente porque minhas glândulas sublinguais produziam mais saliva do que de costume. Não entendo como é possível analisar o próprio pânico, não a prudente distância, como eu posso fazer agora, mas no próprio centro do terror, como o faz Ríos.

– Que tal, Javier? Chegou meu pai? Ainda bem, me atrasei um pouco e temi que... Boa tarde, papai.

– Me encontrou por acaso. Ia sair.

– Não tem dez minutos?

– Dez minutos, sim. Não mais.

– Insisto porque é grave.

– Você é sempre grave. Não pode afrouxar um pouco essa tensão inútil em que vive sempre?

– Garanto, Papai, que o senhor não contribui para que minha tensão diminua.

– Claro, a culpa é minha.

– Vou ser concreto: conhece Molina?

– Sabe que o conheço.

– Tem estado em contato ultimamente com ele?

– Parece um interrogatório policial.

– Talvez seja uma antecipação de interrogatório policial.

– Não me diga.

– Papai, sei concretamente que o senhor está em negócios não muito limpos com Molina.

– Não me diga.

– Negócios relacionados com a fábrica.

– Não me diga.

– Não banque o cínico.

– Que mais?

– Há um jornalista que está esperando que o assunto se defina. Está esperando, só para iniciar sua ofensiva.

– Até agora, esta é a primeira coisa importante que diz. Mas certamente não será para tanto. Quem é o jornalista?

– Isso não importa.

– Claro que importa.

– Tem que se contentar em saber que é de um jornal de oposição.

– Imagino.

– E o mais provável é que o jornal esteja disposto a apresentar o assunto com bumbos e fanfarras. Destapar uma lata sempre é jornalístico. E se a lata é de Edmundo Budiño, mais ainda.

– Lógico. Eu faria o mesmo.

– É pedir muito que por uma vez não pense exclusivamente em seu interesse?

– Você se preocupa com a mancha que essa revelação possa lançar sobre você, sobre Hugo?

– Sobre Gustavo, fundamentalmente. Hugo não me preocupa. Tenho a impressão de que tem tão poucos escrúpulos quanto o senhor. Quanto a mim, naturalmente, preferiria que nosso nome não ficasse sujo para sempre. Mas confesso que não é a revelação o que me preocupa, mas que o senhor ande nessas coisas. Saberei engolir a revelação, creio que sou bastante forte para isso. Mas Gustavo é um menino.

– Fique tranquilo.

– Acha que posso ficar tranquilo?

– Olhe, só há três jornalistas que podem ter farejado este assunto: Suárez, Friedmann e Larralde. Só me preocuparia se fosse Suárez. É ele?

– Não.

– Suárez me preocuparia porque é, como dizer, um fanático. Quando mete uma coisa na cabeça não há nada que o faça mudar de rumo.

– E os outros dois?

– Aos outros dois sim, há coisas que podem fazê-los mudar de rumo. A Friedmann, por exemplo. Mas não é Friedmann, tenho a certeza.

– Não, é Larralde.

– Desde o começo tive essa suspeita. Então, pode dormir tranquilo.

– Deixará tudo sem efeito?

– Quem? Larralde ou eu?

– Refiro-me ao senhor.

– Ramón, você não pretende ditar normas para mim, não é?

– Se pudesse.

– Eu estou muito velho para que me fale nesse tom. Certamente você se crê muito ético.

– Nisso não existe muito. Você é ou não é.

– Não banque o pilantra, Ramón. Você sabe muito bem que esta negociata, como diz, não é a primeira. Não é verdade que sabe?

– Infelizmente, tenho indícios para imaginá-lo.

– Ah. Ou seja, de acordo com esses indícios, e já que tem a imaginação tão acesa, talvez possa também imaginar que meu capital não foi formado com procedimentos demasiado angelicais. Convença-se de uma vez por todas que, ao menos neste país, e com a única exceção dos que ganham na loteria, todo indivíduo que em poucos anos fica rico, verdadeiramente rico, não é um santo. Eu fiquei rico dessa maneira. E além disso não ganhei na loteria. Ergo: não sou um santo. Viu como é simples?

– Demasiado.

– Mas acontece que minha, digamos, falta de escrúpulos, para dar-lhe um nome, arrasta a todos nós. Inclusive você.

– A mim?

– Naturalmente. Ou pensa por acaso que toda a minha fortuna foi obtida sujamente, com a única exceção dos oitenta mil pesos que proporcionei a você para instalar a agência?

– Ah, é onde eu queria chegar.

– Essa grana é tão limpa, ou tão suja, segundo os pontos de vista, todos muito respeitáveis, é tão limpa ou tão suja como o resto do meu dinheiro. Meus procedimentos sempre foram os mesmos, claro que com variações de acordo com os tempos. Mas não houve mudanças fundamentais. Para seu governo direi que a única grana verdadeiramente limpa que ganhei é a pouca que ganhei no cassino. Mas não creio que tenha destinado desse lucro nem um só peso para sua honestíssima agência.

– Que está querendo me dizer com tudo isso?

– Vamos, quem sou eu para meter-me na sua vida? Esclareço isso porque, como acontece que você tem tantos escrúpulos, talvez convenha pensar nisso.

– Bem sabe que em mais dois anos pago tudo que me emprestou.

– É provável. Mas isso não altera a colocação do problema. Que você me pague até o último centavo, me parece correto, e não serei eu quem vai pedir mais. Mas, se eu estivesse na sua posição, talvez pensasse que todo esse processo da agência tem um vício de origem. Porque fui eu, com minha grana sujamente ganha, quem deu a você a oportunidade que outros não têm. Não importa que você me devolva o dinheiro. O fato continua sendo o mesmo. Você, sua mulher, e Gustavo desfrutam de uma posição econômica e social que, a bem da verdade, não se pode considerar estrita. Mas essa linda posição se deve pura e exclusivamente a que eu, o Velho cretino e desonesto, dei-lhe oitenta mil pesos sujamente ganhos. Dentro de dois anos, talvez antes, você me terá devolvido todo o dinheiro, mas com isso não terá apagado nem eliminado esse começo excepcional que lhe proporcionou meu empréstimo. Porque você deve concordar que, se somos escrupulosos, não podemos ser pela metade. Se somos honestos, não vamos nos permitir pequenas trapaças. Se somos decididamente a favor da higiene, não vamos lavar só o que está à vista. Se somos rígidos, não nos deixemos dobrar.

– Tem razão.

– Não me diga. Já sei que tenho razão.

– Nunca devia ter aceitado essa grana. Essa foi sua jogada, seu investimento de longo prazo. Hoje está lhe rendendo o primeiro dividendo, não é?

– Não havia pensado nisso, mas no fundo é certo.

– Então, que saída me deixa?

– Que saída deixo?

– Claro. Se, embora devolva a grana em sua totalidade, sempre fica vigente o fato de que o senhor me deu a oportunidade graças a esse dinheiro; se além disso, embora eu feche o negócio, o senhor sempre terá o argumento de que minha posição atual tem sua origem em seu empréstimo, qual pode ser minha escapatória?

– Você não tem escapatória. Porque tudo, desde sua posição social até sua conta bancária, desde sua cultura mediana até seus lindos escrúpulos, tudo isso você deve ao caminho que eu tornei possível. Eu posso ser independente, porque seu avô não me deu nada, nem educação, nem grana, nem relações públicas. E construí tudo sozinho. Mas você, e Hugo, e Susana, e Dolly, e Gustavo, todos vocês vêm de mim. Direta ou indiretamente, eu os trouxe à prosperidade, ao temor dos outros, a essa útil senha que é levar o nome Budiño no cartão que vocês dão nas antessalas. Porque não sei se você percebeu qual é a grande contradição nesta clarinada de dignidade ferida que veio declamar em meu escritório. Está tão preocupado pela provável mácula de seu nome Budiño que se esqueceu que, se esse nome significa algo neste país, isto se deve ao que eu, somente eu, consegui, que quando as pessoas, todas as pessoas, ricas e pobres, as que se creem importantes e as que se sabem insignificantes, o escutam, elas saibam a que ater-se, saibam que Budiño simboliza dinheiro e poder e comando e realizações, e com toda certeza essas pessoas não colocam tantos problemas de consciência quando têm que vir pedir-me um favor, ou um emprego na fábrica, ou o início de uma campanha no jornal; portanto, no pior dos casos, já que eu, somente eu, sou o construtor da ressonância do nome Budiño, também tenho direito a ser eu, somente eu, que decida transformá-lo em merda. Mas não se preocupe, ainda não decidi. E não vai acontecer nada. E você e Hugo e Gustavo poderão continuar entregando seu cartãozinho de visita com o nome Budiño sem que as faces hipersensíveis fiquem coradas e os olhos tenham que olhar envergonhadamente para o chão. Já sei como arrumar as coisas com o Larralde.

– Larralde? Não me parece.

– Mas quem você pensa que é esse atrevido? Tem o seu rabo de fora como qualquer filho de vizinho.

– Que fez?

– Ele? Nada que eu saiba.

– E então?

– Então, vá anotando. Tem um irmão mais velho, Horacio Larralde, se lembra? Que nas últimas eleições figurou como décimo sétimo candidato a deputado na lista do PC. Tem um tio materno, Jacinto Franco – o nome diz-lhe algo? – que em 1948 era caixa de uma prestigiosa instituição bancária e num fim de semana tomou um avião, com destino a Paris, com cinquenta mil dólares costurados no forro do casaco, mas depois a Interpol se encarregou de descosturá-los. E, por último o mais importante, deixei para sobremesa, sua irmãzinha, Norma Larralde, se lembra? Norminha para os íntimos, é nada menos que a querida número um do distinto senador Estévez, casado, com quatro filhos, partidário de Battle eppur católico, embora possa parecer uma contradição. Que lhe parece?

– Já sei que o senhor é capaz de empregar todo esse arsenal, mas nenhum desses dados representa uma acusação contra o próprio Larralde.

– E para que preciso de acusações contra o próprio Larralde, se tenho esses três dados esplêndidos, fidedignos, publicáveis? Para que necessito investigar seu itinerário pessoal, se posso começar uma campanha para que seu irmão seja destituído de seu cargo no Conselho da Criança sob o pretexto de que, graças a sua disfarçada prédica marxista-leninista, transforma os pobres e desvalidos menores em ameaças à sociedade e às práticas democráticas? Para que, se somente recordando a façanha do tio caixa em 1948, automaticamente retiro peso e validade à sua provável denúncia sobre o que sua ingênua intrepidez talvez denomine minhas sujas negociatas? Para que, se posso enviar uma carta anônima à influente senhora Estévez, informando-lhe a rua e o número do apartamento que o senador montou para Norminha, e além disso passar os dados para La Escoba, porque não pretenderás que nosso jornal, sério, veraz e objetivo, vá fazer eco de semelhantes notícias, provavelmente caluniosas?

– Seria capaz?

– Of course, meu filho. Não se esqueça de que tenho Javier, e Javier põe constantemente em dia meu eruditíssimo fichário de personalidades pátrias, algo que ele e eu chamamos de Registro de Culpas Não Famosas de Pessoas Famosas. Não sabe como é útil, principalmente para casos como o que trouxe você aqui. Tenho a vantagem, também, de ser neste país o único indivíduo suficientemente previdente para ocupar-se de tais vulnerabilidades, de modo que até agora ninguém pôde fazer o mesmo em relação à minha pessoa. Por outro lado, embora houvesse alguém capaz de fazê-lo, não se esqueça de que minha norma foi sempre não deixar nenhum rastro, nem assinar o mais insignificante papel, nem acertar nada na presença de testemunhas, quando se trata de negócios não totalmente imaculados. Os rastros, as assinaturas e os testemunhos, deixo-os para o legal, para o escrito, para o estatutário. Em tudo aquilo que tenha a mais leve cor clandestina, prefiro o verbal. Verba non res, para que veja que não esqueci meu latim. Por exemplo, tudo isto que estou lhe falando, jamais o assinaria, nem o diria perante testemunhas, mesmo que fosse esse monstro de lealdade que se chama Javier. Se num minuto de alienação você quisesse usar contra mim isto que lhe disse, atente que não teria nenhuma testemunha. E quem vai acreditar em você, que sem mim não é nada, nada menos que contra a palavra do doutor Edmundo Budiño, que, segundo o artigo inteligente e envenenadinho que o Time consagrou no mês passado à nossa pequena democracia representativa, êmula da Suíça, figura entre as cinco personalidades mais relevantes do panorama político uruguaio? Francamente, o fato de que tenham incluído os outros quatro só se deve a que as revistas norte-americanas são geralmente mal-informadas. Já sei que você não vai fazer nada, não é tão maluco para isso. Dou como exemplo, simplesmente. Amanhã mesmo Larralde receberá um telefonema anônimo, de Javier, claro, que lhe dará os antecedentes de seus antecedentes, isto é, o informará sinteticamente dos informes que possuo sobre seu clã.

– E se apesar de tudo ele se negar a ficar quieto?

– Você não conhece as pessoas, Ramón. Por isso anda sempre tão nervoso. Larralde é um jornalista inteligente, experiente, empreendedor, com faro, mas no fundo é um sujeito que quer viver tranquilo e sabe, melhor que ninguém, que se eu conheço essas manchinhas de sua família, e apesar de tudo se lançar contra mim, então já não vai poder viver tranquilo, não só porque eu adotaria todas as represálias que já anunciei, mas por algo mais: embora meu jornal esteja bastante próximo do governo e ele escreva num jornal de oposição, em última instância cada um dos dois grandes partidos sabe que precisa do outro, de modo que não seria difícil que em poucas semanas Larralde ficasse sem emprego. Quer me dizer o que poderá fazer Larralde depois que dois grandes jornais tenham decretado sua morte jornalística? Não é um idiota, repito. Rapidamente compreenderá. Exatamente como você compreendeu, há pouco, quando pintei, em duas pinceladas, as origens morais de sua famosa agência. Você entendeu de imediato que não podia se lançar contra mim. Primeiro, porque afinal de contas é meu filho, e o sangue é o sangue. E segundo, porque se você apanha o sarampo da dignidade e rompe comigo, e deixa a agência, e joga tudo pela janela e decide ficar sem nada do que, de um modo ou de outro, teve origem na minha grana podre, sabe muito bem que isso seria para você algo mais que a ruína econômica. Seria também a ruína familiar, porque, francamente, não vejo Susana começando de baixo, cozinhando, lavando, arrumando um emprego, e tampouco vejo Gustavo, apesar de seus espirros progressistas, abandonando a carreira para ir trabalhar. Você entendeu rápido, e isso fala a seu favor, que um grande gesto de renúncia seria para você ficar ipso facto sem agência, sem Mulher, sem Filho. E também sem Querida, se é que você tem alguma, já que, apesar de tudo, estas são as menos sentimentais. Não sei se você tem, mas não pense que se trate de uma deficiência de Javier. Não, acontece simplesmente que você não é tão importante para figurar em meu arquivo. E agora vou deixá-lo, porque seus dez minutos se transformaram em meia hora, e há uns quinze estão me esperando na Casa do Partido. Carinhos para Gustavo e Susana. Se puder, amanhã dou uma passadinha em sua casa.

É estranho. Entretanto, essas coisas terríveis que me diz, não diz a mais ninguém. E isso talvez demonstre simultaneamente duas coisas. Primeiro, que não odeia a ninguém tanto quanto a mim. Mas também que com ninguém tem tanta confiança para dizê-las. Porque isto é ele. Este brutal autorretrato que me dá sempre que pode e ao qual acrescenta sempre alguma nova pincelada. Ele é isto e não seus editoriais inflamados, venenosos, implacáveis, tão desonestos como insensíveis. Ele é isto e não as palmadinhas no ombro, não os finais de discursos com os braços abertos e olhares ao céu, de ímpia devoção, não o tom de segurança com que grita suas poucas incertezas, não o correto desprezo com que fala de mim a seus amigões, não suas falsas angústias frente às catástrofes nem seus olhos cruéis e umedecidos frente às arvorezinhas de Natal. Ele é isto, não suas fotografias com sorriso oficial, sua biblioteca de cinco mil volumes, boa parte não desfolhada pela espátula, nem o gesto compungido quando fala de Mamãe, ou a generosidade com que envia, mas não leva, toneladas de flores a sua sepultura em cada aniversário de sua morte. Sobre a agência falou sem riscos. Tinha certeza de que eu não ia fazer nada. Mas, verdadeiramente, não poderei fazer nada? É fantástica essa intuição que tem para traçar coordenadas psicológicas, para saber que se ele impulsiona os acontecimentos num determinado sentido e esses acontecimentos chegam a cruzar-se com um temperamento também determinado, a reação será a que ele anuncia. O horrível, o paralisante, é que geralmente tem razão. Sabe que se ele impulsiona os fatos, que se ele empurra minha história pessoal até que eu jogue tudo pela janela, quando essa decisão minha se cruzar com o temperamento de Susana, ela me deixará, irá quem sabe para onde, provavelmente para a casa dos pais, ou se divorciará, qualquer coisa menos ficar comigo. Talvez só se equivoque com Gustavo, ou talvez não. Mas Gustavo está demasiado longe em anos, e por isso escapa um pouco ao seu controle. O Velho leva em conta o que ele pensava e acreditava, quando tinha a idade de Gustavo, mas isso não é suficiente. Porque o mundo mudou, e os dezessete anos de Gustavo não são os meus longínquos dezessete anos e muito menos os mais longínquos ainda dezessete anos do Velho. Esse talvez seja o único cálculo errôneo em todas as previsões do Velho. Sim, Gustavo talvez não me deixasse, mas não estou certo. Não estou seguro de nada. Susana sim, me deixaria. E, bem, me importa tanto que Susana me deixe ou não? A paixão terminou, terminou de tal forma que agora não sei se alguma vez existiu, mas minha memória, não o meu corpo, minha memória diz que existiu. Pode ser. Quanto ao amor, o amor sem paixão, digamos, é um conceito tão abstrato e geral que talvez siga existindo, mas sem importar muito. Estou acostumado a ela, à ordem que impõe na casa, a seu modo frio de dialogar, a seu estilo um pouco histérico de enfrentar as preocupações, à cara dormida de seus sonhos, ao seu riso metálico, aos seus cremes, à sua pele, aos seus murmúrios, suas depressões, suas impertinências, sua bunda. Mas costume não é necessidade. Antes necessitei dela, agora não. O que acontece então entre ela e eu? Paixão já não, talvez amor relaxado; necessidade já não, talvez costume. Que palavra pode resumir tudo isso? Carinho? Estima? Apreço? Simpatia? Indiferença? Tédio? Aborrecimento? Raiva? Na realidade, eu me deixo viver. Não investiguemos demais. Nem mesmo em mim. Até um míope poderia perceber que isto não é a felicidade. Palavras maiores. A felicidade pôde ser aquela tarde em Portezuelo, com Rosario novinha e alegre, mas não me iludo pensando que teria podido durar muito. Essa tarde está lá bem longe. Eu também investi meu primeiro capitalzinho vital e ainda continua me rendendo dividendos. A felicidade poderia ser, talvez, viver com Dolly. Mas se não estivesse casada com meu irmão. E se eu não me apagasse animicamente com tanta facilidade. E se ela me quisesse verdadeiramente, coisa de que nunca poderei estar certo. Sei que me tem carinho, certo, está bem que os cunhados se tenham carinho, a Lei de Lemas autoriza. Mas eu tenho raiva de ser seu cunhado. Vejamos, se Dolly fosse minha mulher e eu jogasse tudo pela janela, ela me deixaria? Dolly não me deixaria. Dolly é uma mulherzinha boa, compreensiva, que não teria inconveniente em começar de baixo, trabalhando como uma mula, abandonando para sempre cabeleireiros e manicures, vendendo seu abrigo de lontra selvagem e comprando um casaco xadrez, não se dando por vencida mesmo que o destino e eu a crivássemos de infortúnios. Dolly não me deixaria, se fosse minha mulher. Mas não é. Oh, revelação. Além disso, não é tão certo que Susana me deixe. Não é tão certo, em primeiro lugar, porque não é tão certo que eu jogue tudo pela janela. Concretizando: continuo com a agência, depois da sutil martelada, depois da sangrenta alusão que o Velho acaba de me fazer? Continuo com a agência e com as quatro patas de seu ativo apoiadas nos oitenta mil pesos facilitados, há anos, pelo doutor Edmundo Budiño? Continuo com a agência embora esses oitenta mil pesos constituam uma espécie de almôndega, cujo ingrediente principal foi desonesto? Mas o Velho já o disse com todas as letras: mesmo que eu feche a agência, mesmo que lhe devolva integralmente o dinheiro, tudo que sou hoje, econômica, social e familiarmente, deverei pura e exclusivamente às possibilidades que ele criou para mim. Então, se não adianta fechar a agência, não fecho. Não há solução. A única solução seria, talvez, matar o Velho, mas isso não acontece em nosso pequeno país, este Swiss-like Uruguai, segundo diagnóstico do Time. Para isso, teria que ser um inovador, um pioneiro, isto é, Outro. Como bem o disse o Velho, apesar de tudo sou seu filho. E em geral, os filhos não assassinam seus pais. Aqui só se pratica o parricídio humorístico. Ao inquieto crítico cinematográfico Juan Diego Benítez fizeram na televisão uma linda pergunta: Se fosse filho do doutor Edmundo Budiño, o que gostaria de ser? – Órfão – disse Benítez. Bravo rapaz, linda tacada, algo para contar no botequim. Até o Velho riu. Podiam ter perguntado a Benítez, claro: Se tem tanta vocação destrutiva, por que não o mata de qualquer maneira? Epa, epa. Assim não vale, verdade?

– Já vou, Javier, já vou.

Que horas são? Hoje não poderei caminhar pela praia.

– Você nunca vai caminhar pela praia, Javier? Se visse como é bom para o reumatismo. Ah, perdão, quem tem reumatismo é sua esposa. Adeus.

Onde deixei o carro? Esta semana, é a segunda vez que me esqueço do lugar onde o estacionei. Vejamos, eu vinha por Colonia, dobrei pela Julio Herrera, não encontrei lugar, continuei, continuei, a coisa é saber até onde continuei. A única solução é refazer a pé o mesmo caminho. Que curioso: por um lado o Velho me sacode brutalmente falando-me da agência e, por outro, sinto uma espécie de tranquilidade, porque sempre soube, obscuramente. Tentei ocultá-lo de mim mesmo, mas sempre imaginei que o Velho tinha andado em porcarias, assim que agora, quando me disse, foi só uma confirmação, mas essa confirmação tem a vantagem de que agora não posso me enganar, não posso apoiar-me na palavra ‘suspeita’. Agora sei, agora tenho certeza, ele mesmo disse; portanto, devo resolver. E se, como é quase certo, tudo vai continuar igual, estarei consciente de minha própria corrosão, desta espécie de abulia doentia que me ataca antes de toda decisão importante. Além disso, e a esta altura, quem não tem culpa? Quem pode viver neste país, neste mundo, neste tempo, de acordo com seus princípios, suas normas, sua moral, quando na realidade são outros que ditam os princípios, a moral e as normas? Além disso, esses outros não consultam ninguém. Todos estamos misturados com todos. Ninguém é quimicamente puro. O marxista trabalha, por exemplo, num banco. O católico fornica sem pensar na sagrada reprodução da espécie, ou fazendo o possível para evitá-la. O vegetariano convicto come resignadamente seu churrasco. O anarquista recebe um salário do Estado. Quem pode viver as vinte e quatro horas do dia num acordo total com seu Deus, sua consciência, seu fanatismo ou credo? Nobody. Descartada, portanto, a pureza. Ou seja, posso continuar com a agência. Não estou em negócios sujos, nunca estarei. Quando ele me emprestou o dinheiro, eu não tinha sequer suspeitas. Ele diz que, do ponto de vista de meus escrúpulos, a agência teria que ser um negócio viciado de origem. Talvez. Algo assim como o Pecado Original, que a todos ensombrece. Segundo dizia o padre de Punta Carretas, a partir de Adão todos estamos viciados de origem, todos somos pecadores embora não pequemos, porque o velhinho Adão teve uma queda tão estrepitosa e pecou com tanta vontade que desde então todos os seus filhos, netos, bisnetos, tataranetos etcéteras, não fazemos outra coisa senão pagar aquela enorme dívida em facilitadas prestações mensais. Talvez não tenha dito exatamente assim. E lhe perguntei: – Padre, que culpa temos nós do pecado de Adão? E ele me olhou sem nenhuma paciência cristã e respondeu frenético: – O que você tem, meu filho, é soberba e mais soberba, uma horrível soberba que acrescenta ao pecado original. Vejamos, estarei também juntando soberba ao pecado original da agência? Só agora percebo que esqueci completamente o assunto Larralde. Que fará o homem? Certamente vai afrouxar. O Velho conhece as Pessoas.

Finalmente o carro. Então, foi aqui, entre San José e Soriano. E deram-lhe uma batida. Soberba que acrescenta ao pecado original, sim. Esse padre me salvou. Obrigado, Padre. Era tão bruto, tão violento, tão antipático que nunca mais entrei numa igreja. Quer dizer, entrei como turista, por exemplo na St. Patrick’s Cathedral, de Nova York, e na Missão Dolores, de São Francisco, que tem o cemitério mais lindo do mundo. De tarde, com o sol filtrando-se entre as árvores (nunca vi um sol tão amarelo) e aquelas alegres rosas trepadeiras de Santa Rita sobre o muro, e as cruzes antigas, carinhosas, deliciosamente assimétricas, entre canteiros, trilhas e portõezinhos. Que vontade de estar num outro entardecer na Missão Dolores. Aquela vez, fiquei umas duas horas. No fim, já parecia um parquezinho de minha propriedade. A morte não me aterrorizaria tanto se soubesse que me iam enterrar ali.

– Por que não olha? Não sabe que Canelones é preferencial?

Tem cada louco solto na rua! Ainda bem que regulei os freios. Vejamos, vejamos. E que faria eu se não tivesse a agência? Até agora minha especialidade foi conversar, e isso combina muito bem com a programação de excursões, com a venda de passagens. Viajar Com Alegria. Como me ocorreu um slogan tão brilhante? Ontem, vi pelo Canal 4 e eu mesmo fiquei impressionado. Temos que reconhecer que isso aprendemos com os ianques. Convencer as pessoas de que, se comprarem o que estamos oferecendo, se sentirão incomensuravelmente felizes. Só na política internacional abandonaram essa regra de ouro, e talvez seja por isso que ninguém os pode engolir. Em vez de oferecer a democracia com o mesmo sistema que empregam, por exemplo, para vender um Impala, ou seja, bombardear-nos com um estribilho que poderia ser: Se quer viver em estado de graça, filie-se hoje mesmo à democracia; em vez de convencer-nos de como seríamos felizes se fôssemos todos democratas, escolhem outro sistema muito menos eficaz: o sistema do terror. Terror às greves, terror ao comunismo, terror à reforma agrária. O comunismo como Bicho-Papão. Não me estranharia se, no próximo número, Seleções começasse uma campanha de terror contra João XXIII, ou consagrasse a Hitler sua seção Meu Tipo Inesquecível. Em matéria de suspeitas, não há limites. Não me estranharia que Mao considerasse Nikita como o mais astuto de todos os católicos. Uma pergunta que me faz cócegas: que forças se enfrentarão na próxima guerra fria, morna ou quente? Estados Unidos–Rússia versus China–Japão? Talvez. Mas pode haver outras combinações. A única aliança que me parece segura é a de Estados Unidos e Rússia, mas no outro extremo podem estar China e França, ou China e Inglaterra. Também poderia ser Estados Unidos–Rússia, versus Alemanha–Japão. Afinal de contas, não é tão descabelado. Já aconteceu uma vez, claro. Com razão me soava como coisa conhecida. Eu digo então: se uma nação inteira, uma grande e tremenda nação, acha dificuldades insuperáveis para ser coerente consigo mesma, para obedecer à sua própria história, para seguir a linha que ela própria se traçou, como posso pretender eu, insignificante rato de uma ratoeira de undécima categoria, como posso pretender ser coerente comigo mesmo, obedecer à minha própria história, seguir a linha que eu próprio me tracei? E isso, no caso de que me tenha traçado alguma linha, coisa de que ainda não estou muito certo. Porque dizer, por exemplo, não vou meter-me em negócios sujos, ou não vou roubar, ou não vou matar, ou não vou comer carne, isso não significa traçar-se uma linha, mas, simplesmente, evitar uma conduta. Uma freira, por exemplo, ou um gângster, essas são pessoas que se traçam uma linha, gente que escolhe um destino. Deus é a metralhadora da freira. A metralhadora é o deus do gângster. Mas não deve haver muitos casos mais. O jornalista, por exemplo, é fustigado pelas notícias, fustigado pelo diretor, fustigado pelos interesses alheios. Como vai ter tempo de traçar-se uma linha? O funcionário público, por exemplo, é entorpecido pela rotina, entorpecido pelas piadas pornográficas, entorpecido pela loteria; para traçar-se uma linha, teria que estar acordado, grave inconveniente. Ao operário, por exemplo, a insegurança econômica o mantém tenso, as greves o fazem vociferar, os patrões lhe dão asco; para traçar-se uma linha teria que se manter lúcido e sereno, algo impossível. Ao capitalista, por exemplo, o hipnotizam as cifras, a flutuação da moeda lhe provoca úlceras, a maré social o aterroriza; para traçar-se uma linha não poderia agarrar-se a seu dinheiro com unhas e dentes, outro impossível. A mim, por exemplo, me apaga e me entorpece a falta de plenitude no amor, me tortura essa inevitável dependência do Velho, me fisga a febre uterina de mrs. Ransom e me faz funcionar como um robô; para traçar-me uma linha teria que possuir certo impulso heroico, do qual careço. Será verdade que os heróis têm medo? Nesse caso, talvez eu pudesse ser herói; porque medo eu tenho. Qual terá sido o mais antigo de meus medos? A escuridão, naturalmente, com suas moscas como monstros. Depois, aquela tarde em que ia com tia Olga pela rua Lanús, ou talvez Lezica, com um pulôver vermelho e alguém gritou: A vaca, cuidado com a vaca. Tia Olga e eu, eu com meus oito anos, olhamos para trás, e era uma vaca enorme, que parecia vir a galope, mugindo e abanando a cabeça para um lado e para o outro, e me lembro de que as patas dianteiras me pareceram anormalmente magras, sobretudo comparando-as com a cabeça enorme e aquela boca aberta e um pouco babejante, que mugia uns “mus” quase gagos. A vaca, cuidado com a vaca, gritava lá atrás um sujeito de boina, agitando os braços. Tire o garoto, dona, olhe que é muito brava. Então tia Olga pareceu acordar e demonstrou uma inesperada agilidade. Olhou firmemente uma cerca. Primeiro passou sua bolsa, depois passou uma perna, depois o tronco, depois a outra perna, e em seguida me pegou nos braços e me levantou enquanto dizia por Deus e eu via passar a vaca debaixo de meus pés, que tinham uns sapatinhos brancos, com presilha e botão, aos quais eu tinha particular aversão, porque me pareciam totalmente inadequados aos meus respeitáveis oito anos. Depois que passou o susto, tia Olga quase desmaiou e teve que entrar numa casa e ali lhe deram alguma coisa forte, enquanto eu abria uns olhos deste tamanho, e contava a todos o ataque daquele pobre monstro, evidentemente mais tangível e concreto e verdadeiro que as moscas que eu havia imaginado gigantescas na escuridão de meu quarto. A partir desse sobressalto, perdi o medo das moscas. E houve outros medos, também. Na esquina das ruas Cuareim e Paysandú, convalescente de tifo, exatamente no meu segundo dia de ar livre, atravessei vacilante a rua e virei a cabeça e ali mesmo, a dez centímetros de meus olhos, estava o ônibus que acelerava para iniciar a ladeira, e pude jogar-me um pouco para trás, mas não sei que parte do ônibus me pegou na parte exterior da coxa e saí pelo ar, voei sobre o meio-fio e fui estatelar-me contra a parede. Durou menos o medo, três segundos apenas, enquanto via como o ônibus avançava sobre mim. Uma desgraça com sorte, diziam todos, entre eles o pobre motorista que tirava o gorro para transpirar melhor e repetir sempre a mesma coisa: como pôde, como pôde? Não sei como pude, disse também ao polícia, mas ninguém perguntou sobre meu medo, um tema sobre o qual eu teria podido ser loquaz. E houve aquele outro no voo 202 de Pan American, quando se começou a ouvir aquele barulhinho e...

– Então, veio pela Rambla ou por Canelones?

– Por Canelones, mas havia um trânsito infernal. Um imbecil cruzou na altura de Magallanes tão distraído como se estivesse em Paso de los Toros.

– É que você tem a mania de vir por Canelones. Pela Rambla é mais descansado e mais seguro.

– É o que faço sempre. Mas hoje havia bastante vento e um cliente me avisou que na Rambla as ondas salpicavam muito. E acabei de lavar o carro.

– Você viu Hugo?

– Não.

– Ligou hoje cedo e disse que se tivesse tempo passaria pela agência.

– Talvez tenha estado, mas eu saí às cinco porque tinha que falar com o Velho.

– Como está seu pai?

– Bem. Talvez apareça amanhã. Mandou lembranças para você.

– Não discutiram, verdade?

– Não, quase nada.

– Será possível que você não possa falar com seu pai sem brigar com ele?

– Mas hoje quase não discutimos. Sempre há algum atrito. Você sabe que somos muito diferentes.

– O que acontece é que você fica muito rígido, não relaxa.

– E ele?

– Mas ele é uma pessoa de idade. Não vai pedir, na sua idade, que mude sua maneira de ser.

– Susana.

– Sim?

– Diga-me: o que pensaria se fosse eu que mudasse?

– Em quê?

– Em tudo.

– Com relação a seu pai?

– Não, em tudo.

– Não entendo, Ramón.

– É fácil de entender. Por exemplo: se eu fechasse a agência, devolvesse ao Velho tudo que me emprestou e algo mais, se começasse absolutamente de novo e desde baixo, sem ajuda, claro.

– Olha, Ramón, desculpe-me. Hoje estou sem ânimo para piadas. Há dois dias estou sem empregada e todo o serviço em cima de mim. Confesso que ando bastante cansada. Desculpe-me que não entre na brincadeira.

– Não é brincadeira.

– Estou cansada, Ramón. Até me dói um pouco a cabeça.

– Não se preocupe. Era uma piada, sabe?

– Não ia pensar que eu levaria a sério uma coisa assim.

– Sim, me deu vontade de fazer essa brincadeira. Não vou fechar a agência. Continuarei devolvendo ao Velho o dinheiro no mesmo ritmo de até agora. Tudo vai continuar como sempre.

– Mas Ramón, não sei o que você tem. Fala tudo isso, que é o mais lógico, com o tom de quem está falando um disparate.

– E talvez seja um disparate.

– O que vai fazer agora?

– Vou tomar uma ducha. Lerei um pouco. Tomarei um uísque.

– Quando o jantar estiver pronto, dou um grito.

– Ótimo.

Sim, é quase certo que a cordura fácil, este continuar como até agora, é quase certo que isso seja o disparate. Não sou herói nem nada que se pareça. Bastou que Susana não acreditasse que eu falava a sério para que eu próprio achasse que era brincadeira. Não estou para piadas, disse, e foi suficiente para que minhas palavras me soassem ocas. A verdade é que sei que não vou mudar, que não vou tomar nenhuma decisão taxativa, dramática. Enquanto se tratar apenas de pensamentos, de um simples jogo mental, então me sinto com ânimo, tenho a impressão de que vou decidir-me, que vou dar o salto, mas quando chega o momento de criar os fatos e enfrentar sua responsabilidade, então fico com um medo irracional, um pânico similar ao que me assaltava de pequeno, as moscas que eu transformava em monstros, ou a vaca brava, ou aos vinte, quando o trem com seu olho de ciclope, ou aos vinte e cinco, quando o ônibus me fez voar. Não sei exatamente se é medo da miséria, da insegurança ou do desprezo dos outros. Talvez seja menos digno que tudo isso. Talvez seja simplesmente medo da incomodidade, da falta de conforto. Porque quando penso que minha vida é cinzenta, tediosa e rotineira, não me escapa que a rotina inclui uma série de coisas insignificantes, mas agradáveis. Se eu fosse um homem genial, ou poderoso, ou simplesmente apaixonado, tais coisas não teriam importância, porque o importante seria minha obra de arte, ou o exercício de meu poder, ou a plenitude de meu amor, mas como esse não é meu caso as coisas insignificantes mas agradáveis passam a ser estímulos de primeiro grau. A saber: o carro, meu estúdio aqui em Punta Gorda, com boa biblioteca e vista para o mar; esse banheiro, verde e preto, com canalização poderosa e uma grande torneira misturadora e a banheira opulenta de curvas cheias e femininas, uma banheira que poderia ter sido pintada por Matisse; minhas camisas impecáveis, meus ternos bem passados, minhas gravatas de seda natural; os quadros do estúdio e do living, Spósito, Lima, Gamarra, Frasconi, Barcala, Espínola; os dois uisquezinhos antes do jantar; a varanda do fundo, com essa paz incrível de uma ou outra noite de verão; meu aparelho estereofônico, com bons tangos, bons blues e bom Mozart; a Rolleiflex e sua linda maleta com filtros e acessórios que nunca uso; os livros artísticos de Skira; o jogo de talheres sueco. Gosto de estar rodeado de coisas bonitas. É tão grave o crime? Nunca iria querer o dinheiro para mantê-lo guardado no banco, ou para transformar-me em latifundiário, ou para especular com valores. Não me importa o dinheiro como tal, mas me importam alguns dos objetos que podem ser adquiridos com ele. Não me importa o dinheiro em si, mas me importa como intermediário obrigatório para a aquisição da beleza material, desses sintomas de meu gosto que adornam os melhores momentos do descanso. Quando se fala de justiça social, se pensa, primeiro, como é lógico, na erradicação da fome, em casas dignas e limpas, em eliminar o analfabetismo. Mas, depois desses três objetivos urgentes, haveria que acrescentar o direito do ser humano a criar um ambiente de acordo com seu próprio gosto. Não se trata de algo tão urgente como o pão e o teto, claro, mas tampouco de algo infinitamente adiável.

Que descanso, esta ducha morna. Fiz bem em aumentar os buracos do chuveiro, assim sai uma chuva cheia, calmante. É um aceitável prazer isto de ficar firme, com a cabeça para cima e receber durante cinco minutos, já sem a preocupação de ensaboar-me, essas férias líquidas que parecem lavar uma pessoa de problemas vários, falsos escrúpulos, reais inibições. Por que me lembrei agora de Rômulo? Ah, já sei. A união de duas imagens: Ríos e umbigo. Por um lado, o relato do pobre Ríos, com o prognóstico formulado por Rômulo, e, por outro, a água que faz uma cataratazinha no meu umbigo. Uma vez Rômulo me transmitiu uma surpreendente comprovação de seu ofício de cirurgião. Você sabe que, antes de operar, lavamos conscienciosamente o paciente; além disso presume-se que, por pudor ou pelo que seja, as pessoas se preocupem em vir particularmente limpas a uma experiência semelhante. Entretanto, os enfermeiros devem sempre exagerar a higiene num ponto determinado. Refiro-me ao umbigo. Creio que as pessoas se esquecem amiúde de seu umbigo. Se um psicanalista pesca isto, deduzirá provavelmente que o homem quer esquecer-se de sua origem. Nesse sentido, eu não me esqueci de minha origem. Admito isso e o ensaboo. Admito e o enxaguo. E agora, a água fria. O estímulo depois do calmante. Puxa, como está fria. Demasiado estímulo. Acabou-se. Esse short está ficando pequeno para mim. Nunca tinha tido uma barriguinha tão proeminente. Me sentia mais cômodo quando estava decididamente magro.

Agradável este uísque. Seco, é assim que eu gosto. On the rocks. À sua saúde, querida e sardenta mrs. Ransom. Nesse momento, me sinto à vontade. Fisicamente bem. Convém tomar nota, porque às vezes me dou conta de que estive à vontade somente no momento em que começo a sentir-me incômodo. Como naquele jantar do Tequila: só perceberam que gostavam do paisinho quando alguém mentiu dizendo que havia sido arrasado. Com exceção de Marcela e de Larralde, que turma de imbecis. Por que será que nós uruguaios, quando pisamos terra estranha, nos tornamos tão mesquinhos, tão excepcionalmente mal-educados? Aqui também somos mesquinhos e mal-educados, mas não tanto. Fisicamente bem. Bem e com certa modorra. Dormir um pouco seria uma boa. Mas, se a sesta do burro é antes do almoço, como se chamará a sesta antes do jantar? A sesta do fauno. Eu não sabia que era um fauno. Mas não, agora percebo, sou um centauro. Patas dianteiras magras e instáveis, como as da vaca brava. Olho as vitrinas. Aqui um centauro-manequim, com camisa wash & wear. Ali o semáforo verde e outros cinco centauros que cruzam a Dezoito. Dois deles com mulheres na garupa, como nas motocicletas. Desde que sou centauro, procuro uma mulher para levar na garupa. Mrs. Ransom? Não, tem muitas sardas e além disso é ela que toma a iniciativa. Não gosto. Rosario? Está longe, e além disso vai com o centauro Ulises Azócar. Susana? Susana está na outra vitrina, Susana-manequim tirando a secretária carnuda de uma geladeira General Eletric, aproveite nosso plano de inverno. Mas faz calor e eu suo. Desodorante para centauros. Onde estará a farmácia? A farmácia fica numa confeitaria e na porta está sorrindo a esposa de Javier, prazerosamente nua, com uma barriga espetacular e sem umbigo, dissertando sobre reumatismo. Como está Javier, senhora? Javier tem uma lanterna, senhor Ramonzinho, para poder completar o fichário do crápula do seu papai. Não sou senhor Ramonzinho, senhora, sou um centauro. Mas com a cara de senhor Ramonzinho e além disso tão igual ao Doutor. Nunca, nunca, nunca. O senhor não será o Doutor? Não, o Doutor anda metido em negócios sujos. O senhor também tem as ferraduras sujas, senhor Ramonzinho. Não pode ser. Sim, tem as ferraduras sujas e os olhos limpos. É de chorar. Senhor Ramonzinho, vai me levar com o senhor? Gosto da sua garupa. Perdoe-me, senhora, mas é espantosa, e eu gosto de estar cercado de coisas lindas, vou fazer uma revolução com esse objetivo. Então, por que não leva Dolly? É a mulher de meu irmão, por isso não a levo. Eu também sou a mulher de seu irmão. Perdão, Dolly, não havia percebido, tinha pensado que era a mulher de Javier. Que loucura, ela tem barriga e reumatismo, e além disso nunca está nua, nunca tira a camisola. Você está nua, Dolly, e como é linda. Você é o melhor centauro da Latino-américa. A gente diz América Latina, Dolly, o outro é um anglicismo. Você é o melhor centauro do mundo e seus arredores. Além disso vai ter um filho com patinhas magras, tão magras como as da vaca brava. Quando? Quan?

– Mooooón. Ramoooón. Você dormiu, Ramón. O jantar está pronto.