– Tenho que matá-lo.
Não há outra saída para mim. Mas penso nisso e de imediato sinto uma comoção, um choque que não é só meu, individual, mas é também uma reprovação em coro. Serei o mais desprezado, o mais insultado, o mais destruído. O país não tolera gestos trágicos. O país só tolera gestos insossos e servis; participar da Grande Caridade televisiva ou abrir inabilmente as novas mãos de mendigo novo. Dólares, pelo amor de Deus. E sobretudo, não complicar nossa vida. Matá-lo é, para mim, uma complicação da vida. E que complicação. Por isso resisto, por isso me debato frente à decisão obrigatória e tento encontrar outro caminho. Mas não há outro. Além disso, como será isso de matar? Só uma vez achei que tinha matado alguém. O primo Víctor brincava comigo no terreno baldio entre Ganaderos e Garsón. Não o vi mais, mas não me preocupei muito e continuei brincando sozinho. Com pedrinhas e caracóis, com uma prancha de pregos enferrujados. Pensei que ele tinha voltado para sua casa. De repente, vi a ferradura. Tia Olga aconselhava a jogar as ferraduras para trás, sem olhar; isso trazia sorte. Então eu peguei a ferradura, para maior garantia tapei os olhos e joguei-a por cima de meu ombro. Em dois segundos ouvi um grito agudo, e depois nada. Sim, eu tinha acertado Víctor na cabeça. E ele tinha desmaiado. Você o matou, dizia tia Olga quando chegou correndo, matou o meu bebê, o seu priminho, menino assassino. O corpo de Víctor estava mole e seu rosto tinha uma impressionante palidez quando tio Esteban o carregava nos braços e eu corria atrás, chorando e pedindo a gritos: Que abra os olhos, diga-lhe que abra os olhos. Mas o bracinho continua pendurado nas costas de tio Esteban, como se a mão quisesse entrar no bolso do paletó sport. Colocaram-no num sofá da sala e eu chorava, tentando explicar que não sabia que ele tinha se escondido. Diga-lhe que abra os olhos; diga-lhe, tio. Acreditei sinceramente que o tinha matado e a ideia era insuportável. Tia Olga punha compressas frias na sua testa e tio Esteban fazia-o cheirar amoníaco. Quando, em poucos minutos, Víctor abriu primeiro um olho, depois o outro, e disse queixoso: Ai, como dói, quem foi?; quando vi que estava vivo, estourei numa gargalhada elétrica e comecei a dizer para a tia Olga: Viu, tia, eu não o matei, ele tinha se escondido, eu joguei a ferradura para trás, sem olhar, como a senhora me ensinou, mas não trouxe sorte para Víctor. E ela riu, ainda chorando mas já sem rancor, e me abraçou: Ai meu filhinho, graças a Deus que não aconteceu nada, sabe como seria horrível se você tivesse matado seu priminho? No entanto, meses depois, quando Víctor realmente morreu de não sei que doença vertiginosa, e eu fui o primeiro a vê-lo morto, não me lembrei nada daquela vez que o havia visto mole, vencido, com o braço pendurado e as pontas dos dedos a dois centímetros do bolso de tio Esteban.
– Tenho que matá-lo, Dolores.
Ela também está inerte, a meu lado. Mas vive, gloriosamente vive. Só que está adormecida. Agora sim, me parece indefesa. Encolheu as pernas como uma menininha e, quem o imaginaria?, respira com a boca aberta. Por que será que me comove tanto? Sua nudez não é esplêndida, mas esses seios pequenos, de adolescente, me dão vertigem. E todas essas manchinhas, abundantes mas não tão nutridas como sardas, que tem na cintura, e o sexo quase louro, e os joelhos infantis e ombros tão puros. Ainda não posso acreditá-lo. Porque te tenho e não. No entanto, continua sendo correto. Não a tenho, claro. Pertenço-lhe, mas ela não. Depois da tarde da Goleta, não falei mais sobre ela e sobre mim. Foi ela que falou. Encontrei-a ontem, só ontem, feliz ontem. San José com Yaguarón. Trouxe-a até sua casa, como sempre pela Rambla. Eu estive pensando naquilo, disse ela, noites e noites. Eu não disse nada, não queria me iludir. Sei que você está sofrendo, acrescentou. Também não respondi. Ramón, disse. De repente pensei que ia acontecer algo inesperado, uma dessas estupendas notícias que infrutiferamente me anunciam há anos todos os horóscopos, e não pude evitar de ter ilusões. Ramón, repetiu, vou para a cama com você. Antes ainda de admitir que o céu estava se abrindo, agradeci mentalmente que não tivesse dito: Vamos fazer amor, e sim: Vou para a cama com você. Tive que diminuir a marcha do carro e, antes de Larrañaga, encostei o carro no meio-fio. Minhas mãos tremiam. Notei que havia esquecido como engolir a saliva. Decidi esta manhã, continuou ela; é muito estranho o que sinto por você; não sei se é desejo; é tão diferente do que sinto por Hugo; é algo muito mais sereno, mais tranquilo, também mais agradável; talvez seja a segurança de que você me compreende, de que você é bom; não estou propondo que sejamos amantes de forma mais ou menos permanente; não posso enganar Hugo assim; proponho simplesmente ir para a cama só uma vez; eu sei que é importante para você e garanto que está sendo importante para mim; você está apaixonado e sofre; eu não estou apaixonada, pelo menos ainda não, mas também sofro; não quero ver você infeliz, Ramón; quero que tenha uma lembrança criada por mim, algo a que possa se agarrar; é insuportável para mim que você tenha perdido sua mãe, que odeie seu pai, que se sinta longe de Gustavo, que não possa comunicar-se com Susana e que de vez em quando sonhe comigo; creio que você tem direito a sentir-se, pelo menos uma vez, em dia com suas emoções, com sua vida; creio que você tem o direito de sentir-se pleno; confesso que para mim foi uma grande crise; mas de repente vi claro, vi que a morte está se vingando sempre de nossas vacilações; nossa vida se compõe de três etapas: vacilar, vacilar e morrer; a morte, ao contrário, não vacila diante de nós; nos mata e se acabou; o grande espião, a formidável quinta coluna que a morte instalou em nós, se chama escrúpulo; já sei, eu tenho escrúpulos; você também, entenda que não estou contra o escrúpulo; mas é a quinta coluna da morte; porque graças ao escrúpulo, vacilamos, e nos passa o tempo de gozar, de gozar esse minuto feliz que, como graça especial, foi incluído em nosso programa; passamos toda a vida sonhando com desejos não satisfeitos, recordando cicatrizes, construindo artificial e mentirosamente o que poderíamos ter sido; constantemente nos estamos freando, contendo-nos, constantemente estamos enganando e enganando-nos; cada vez somos menos verdadeiros, mais hipócritas; cada vez temos mais vergonha de nossa verdade; por que então não posso fazer possível o seu minuto feliz?; além disso, tenho curiosidade, reconheço, em saber se não poderá ser também meu próprio minuto feliz; talvez seja o de ambos; quero dizer que não temos que dar vantagens à morte, porque ela não nos faz a mínima concessão; depois que você estiver morto e eu morta, já não haverá retrocesso possível, não será possível voltar a este instante em que você me deseja desesperadamente e eu sou ainda dona de minha decisão; esta manhã, quando cheguei a essa ideia, tive que rir; como podemos ser tão desajeitados que até agora tenhamos estado oferecendo à morte esta vantagem gratuita do escrúpulo? Você não acha que é mais ou menos como se o condenado à cadeira elétrica se encarregasse pessoalmente de comprovar a perfeição dos contatos, a boa qualidade dos fios?
– Tenho que matá-lo, Dolores.
Então ela perguntou: Você está disposto? – e eu sorri tristemente. Primeiro porque pensei na ordem pacífica em que ela enumerava suas verdades e depois porque eu também não estava demasiado certo de que o Minuto Feliz, assim sozinho, sem estar seguido de muitas horas felizes, de toda uma vida feliz, fosse melhorar em algo meu destino. Tal como ela o colocava, ia ser um minuto feliz e condenado. E essa lembrança, esse algo a que aferrar-se, talvez amargurasse para sempre todas as minhas noites, todas as minhas insônias. A história da morte era rigorosamente certa, mas. Por algo vacilamos. Talvez seja porque não nos resignamos ao minuto único e feliz. Preferimos perdê-lo, deixá-lo transcorrer sem fazer sequer o razoável gesto de agarrá-lo. Preferimos perder tudo, antes de admitir que se trata da única possibilidade e de que essa possibilidade é um só minuto e não uma longa, impecável existência. Claro que sim, Dolores, falei. E ela adivinhou o que eu estava pensando. Naturalmente, disse, pode acontecer também que depois você fique mais desgraçado e eu fique então com o remorso de tê-lo ferido; mas isso não poderemos saber antes; e creio que vale a pena correr o risco. E eu perguntei quando, e ela disse amanhã.
– Tenho que matá-lo, Dolores.
Amanhã é hoje. Hoje, nesta cama deste apartamento, Dolores ocupa o mesmo lugar que tantas mulheres de Jorge, Juan e Jacinto, a sociedade sexual dos Três Jotas, como chamam a si mesmos, a sociedade que hoje me cedeu a chave. Onde se deitaram e abriram as pernas tantas secretárias, atrizes, modelos, caixas, grã-finas, viuvinhas, manicures, locutoras, bacharéis, aeromoças, ninfetas, turistas, professoras de primeiro grau, paroquianas, nadadoras, poetisas, escrivãs, taquígrafas, bailarinas, professoras de corte e costura, morfinômanas, ex-suicidas, ascensoristas, donas de butiques, presidentes de comitês, esposas de deputados, vendedoras de calcinhas, leitoras de Henry Miller, postulantes a Miss Uruguai, teenagers do Crandon, jeunes filles da Aliança, aqui onde tantas, com estas ou outras palavras, disseram tenho medo de que depois disso você me despreze e a seguir gozaram como Deus manda, aqui onde estiveram as boas, as más e as regulares, está agora Dolores, única, introcável, sorridente até em sonhos; Dolores recolhida por mim, trazida em silêncio por mim, sempre pela Rambla e, depois de ter deixado o carro numa ruazinha discreta, sob árvores ainda mais discretas, acompanhada por mim num elevador que compartilhamos com um velho de boina e um cachorro salsicha, conduzida por mim até esta penthouse do nono andar, levada por mim até o espetáculo do mar com cinco velas desafiadoras e eretas e uma só nuvem fina, apoiada no topo do horizonte; acariciada por mim, beijada por mim quase sem palavras, contemplada por mim enquanto em seus olhos brilhava, cada vez com menos frequência, é certo, a lembrança inoportuna de Hugo; despojada por mim de seu colar, de seus brincos, de seu reloginho, de seus sapatos, de seu vestido que se prendeu na metade do caminho e quase quebrou o fecho, despojada disto e deste outro que ficou no pé da cama, isto é, despojada por mim de tudo menos da intermitente lembrança de Hugo; abarcada por mim enquanto eu me arrancava a lentíssima roupa, abraçada por mim com suavidade, com plena consciência de que o Minuto Feliz devia ser esticado ao máximo, de que o Minuto Feliz tinha começado a transcorrer inexorável, irreversível, sem pré-história nem similares em minha própria existência, porque este abraço era um abraço total, que incluía e melhorava todos meus abraços anteriores, de Rosario a Susana, um abraço em que eu sabia que minha vida ia embora, e minha atitude perante o mundo e o mais profundo de meu ser; respirada por mim, absorvida por mim através de minhas mãos, meu nariz, meus ouvidos, através de cada milímetro da minha pele que tocava sua pele; possuída finalmente por mim enquanto sentia meus olhos obstinadamente abertos e enquanto ouvia a mim mesmo pronunciar pletóricas, repletas, angustiadas palavras que vinham de um fundo escuro mas exclusivamente meu, um fundo que pela primeira vez se revelava à minha consciência e me enriquecia e aniquilava; gemida por mim no instante final, com uma queixa indefesamente animal que vinha de muito longe, talvez da minha infância, quando me sentia desvalido perante os monstros da noite, embora nesta nova escuridão estivesse me sentindo mais desvalido ainda perante o terrível monstro chamado morte, rondante testemunha da pequena derrota que aqui lhe infligíamos e disposta a vingar-se amanhã, depois de amanhã, qualquer dia destes, com uma só ceifada displicente; admirada, querida, renovada por mim, enquanto a abandonava para ficar a seu lado e consolá-la, infinitamente agradecido, com meu braço direito debaixo de seu pescoço fino e o lóbulo de sua orelha entre meu indicador e meu polegar, como retardada e última comunicação de nossos pobres corpos, relaxados, satisfeitos, condenados, destruídos. Só então tive consciência de qual tinha sido minha atitude e sua atitude durante o último quarto de hora. E vi a mim mesmo como um reflexo do mais antigo de meus desesperos, como um detector do assombro egoísta que chegava em borbotões desde minhas próprias raízes, como uma inesperada irrupção de toda a minha vida neste único instante. E a vi, pelo contrário, muito menos ensimesmada. Via Dolores voltada para mim numa silenciosa piedade, numa entrega sem reprovação e sem barreiras, com todos os seus sentidos generosamente dispostos à fusão mais completa, preocupada com meus olhos, minhas mãos, meu gemido, como se em mim ela estivesse concentrando não um ímpeto, não uma paixão que evidentemente não era tal, mas um estilo pessoal de amor ao próximo, conseguindo assim o milagre de que seus murmúrios, seus abandonos, suas carícias, sem chegar a ser, se considerados separadamente, sinais verdadeiramente amorosos, formassem no entanto um só e sincero ato de amor, ao integrarem-se e complementarem-se. Então, ao me ver tão concentradamente egoísta, e ela tão generosa, tão aberta, tão disposta a lançar-se em meu vazio, tive um pouco de vergonha e creio que até me ruborizei. Mas ela não podia perceber, porque meu braço sentiu como sua cabeça se abandonava para um lado e sua orelha caía sobre minha palma, e sua respiração de sono tranquilo, de plácida consciência, se transformava no único, quase imperceptível som deste limpo, asséptico ambiente com pinturas abstratas, porquinhos de Quinchamalí, cartazes off-Broadway, janelões com céu.
– Tenho que matá-lo, Dolores.
Agora mais do que nunca. Sei que vou ter forças; sei que não correrei o risco da comiseração. Sinto-me livre de uma hostilidade frívola, armada de birras, rancores, pobres estouros. Tenho que matá-lo para recuperar a mim mesmo, para fazer de uma vez por todas algo generoso, algo desprovido de falso orgulho, de cálculo mesquinho. Tenho que matá-lo para o bem de todos, inclusive para o seu bem. Serena, desapiedada, conscientemente, devo preparar essa invasão de minha tranquila justiça sobre seu crime imperfeito. Para que o país tenha um descanso; para que eu tenha um descanso. Fechar, batendo a porta, a última ignomínia. E que tudo vá pelos ares: os papéis e os papelões, as condecorações e os prestígios, as maiúsculas e a oratória. Com tantas folhas caídas não sabemos de que cor é o solo, onde estão os poços, onde o formigueiro, onde o trevo de quatro folhas, onde a areia movediça. Terra firme, por favor. Tenho que matá-lo. Ele é o assassino; não eu. Ele é o assassino que arma minha mão, que não me deixa escapatória, que me obriga a salvar-me, a não ser corrompido. Mais exatamente, ele é o suicida. E eu tenho que salvar Gustavo, este filho que vem atrás de mim, tragando terra com os olhos nublados, inseguro em sua ira, mansamente obstinado, pobrezinho. Se pudesse falar com ele, convencê-lo. Mas isto não posso falar com ninguém, nem mesmo com ela, Dolores. Se falo, todos se sentirão no dever de convencer-me de que não o faça. E provavelmente me convençam. Estou certo de que pelo menos Dolores me convenceria. Então, não digo nada a ela. Porque devo fazê-lo. Neste transe que acabo de passar, ela me deu o poder, ela permitiu que eu me visse. E assim eu me compreendi, senti, interpretei. E tenho que matá-lo. Cada vez está mais claro. Vejo-o vivamente, sem escandalizar-me, com minha palma já úmida pelo suor de sua face adormecida, assim, só, sem aliados, só com inimigos, sem perturbar-me, disposto esta vez a obedecer-me, embora ainda não tenha me acostumado ao meu próprio estupor.
– Tenho que matá-lo, Dolores.
– Quê?
– Eu não disse nada.
– É que eu estava dormindo. Que horas são?
– Seis e dez.
– Ramón.
– Quê?
– Sabe de uma coisa? Creio que gosto de você bastante mais do que achava.
– E isso modifica seus planos?
– Não. Simplesmente os faz mais difíceis.
– Primeira e última vez, então?
– Sim, senhor. Primeira e última.