I suicidi sono omicidi timidi.
Cesare Pavese
Bobo, bobíssimo. Você me teria convencido, claro. Só uma vez disse Ramón dentro de sua boca, debaixo de sua língua. Afogada, feliz. Bobo. Pobrezinho. Ali, em você, estava o menino, a criança. E seus olhos escuros, que susto, que estupor. Com esta mão passei por eles, fechei-os quando estava certa de que era um jogo, de que em seguida você ia abri-los. Depois não. Alguém os terá fechado. Eu não vi você. Quer dizer, não vi Isso que diziam ser você. Os olhos, Seus Olhos. É toda a lembrança, ou quase tudo. Você me olhava ansioso. Foi assim que começou a me convencer. Ramón bobo. Velhinho. Certamente sou culpada. Quem não é? Se houvesse dito Sim. Mas não podia dizê-lo. Agora sim, posso e de que serve? Agora já vi a odiosa cara de Hugo quando me trouxe a notícia. Mas quando você me perguntou, eu não a havia visto, não sabia que existia. Hugo não é bom, nunca foi. Mas eu não sabia. Agora será impossível amá-lo e além disso será difícil ter piedade dele. Como vê, tudo é uma armadilha, uma sacanagem. O Velho venceu. Mas quem sabe. Bobo, bobíssimo, que nos importa o Velho? Nem sequer tive tempo de contar nada para você. Todas essas coisas que Hugo ignora; que não saberá jamais. Minha verdadeira, insignificante vida que nunca disse a ninguém. Quando no quarteirão havia uma só casa, e era a nossa, a de meus pais. Quando eu ia correndo até os rochedos e deixava penduradas minhas pernas magras, e a água começava a subir e me molhava até os tornozelos, e um frio agradável, cúmplice, me subia pelas costas e se instalava na nuca, e eu começava a tremer, mas sem tremor, numa levíssima comoção que era como um gozo, o primeiro talvez. Não houve maneira de contar nada a você. Quando nos tempos da primeira menstruação, eu fechava violentamente os olhos e cruzava mais violentamente ainda os braços sobre o peito e inventava assim uma noite inexpugnável mas percorrida por crepitações, e então começava a voar sem asas, como um bólido rígido, e sentindo uma forte pressão nas têmporas. E quando a avó galega me passava a mão, débil mas segura, pela fronte, e eu ia movendo lentamente a cabeça para que a palma imóvel percorresse obrigatoriamente meus olhos, meu nariz, minha boca, minhas orelhas, meu pescoço. E quando pela primeira vez vi um homem nu, um pobre sujeito que vestia as calças entre os arbustos, e vomitei ao descobrir essa insolente e assombrosa versão do sexo. E quando me recomendaram que não olhasse o sol durante o eclipse e eu mesmo assim olhei, embora com um olho só, e nunca mais voltei a ver como antes. E quando e quando e quando. Nada disso pude contar a você. Querido. Claro que posso imaginá-lo, mas não serve. Você já não pode me tocar, e no entanto minha pele está à espera. Não pode me tocar porque não posso convencer a minha pele, e é horrível. Posso imaginá-lo, claro, naquela única vez. Você parecia tão desesperadamente feliz. Houve um instante de silêncio, com uma confusa crispação de vozes lá embaixo na praia, mas de qualquer maneira era silêncio. Houve um momento em que estivemos imóveis, sem nos tocarmos. E esse é o momento que melhor posso agora instalar aqui, no vazio, porque o silêncio concreto, a imagem concreta, são sucedâneos de algo seu, mas em troca não há nada que substitua suas mãos. E se passo minhas próprias mãos pelas coxas, por minhas cadeiras, por meu ventre, por meus peitos, se me percorro com minhas mãos, fechando os olhos e tratando de convencer-me de que são as suas, sei que terminarei numa grande vergonha, numas pobres sacudidelas de angústia, numa solidão miserável e grotesca. Tenho que matá-lo, você disse quando eu dormia. E sua voz se introduziu no meu sono, nesse sonho onde estava desmoronando-se uma divisória e detrás dele havia um céu deslumbrante e atroz, e eu não podia olhar-me sem comiseração. Tenho que matá-lo, você disse uma e outra vez, e a frase começou a sair pelos alto-falantes, e eu tapava os ouvidos mas não adiantava, via como os alto-falantes moviam os lábios e estava certa de que sempre repetiam a mesma coisa. Tenho que matá-lo, você disse pela última vez, mas então eu estava acordada e no entanto fiz como se estivesse dormindo e simplesmente perguntei: o quê? e você me respondeu: Mas eu não falei nada... Claro que a minha não foi uma boa pergunta. Tampouco a sua foi uma boa resposta. Eu estava aparvalhada e você não tinha nem me tinha confiança. Éramos dois seres débeis e feridos. Se pudesse recolher as poucas lembranças espalhadas. Mas, além disso, para que servem? Não sou uma mórbida, sou um ser normal. Até os doze anos dormi abraçada à minha boneca, minha pobre boneca vesga e coxa. Foi o cachorro que rompeu uma perna e comeu o olho, mas eu não quis que mamãe a mandasse para o conserto. Dormi abraçada a ela até os doze anos e muito depois veio Hugo, que de algum modo era, é, um boneco e também um inválido. Mas só uma noite dormi abraçando-o, e ele apenas disse: Faz calor demais, demais. Sou um ser normal que quer agarrar-se em algo. Não me importa que depois venham o desencanto e a morte, só pretendo um consolo temporário, um consolo da pele. Por que será a pele tão importante? Por que minha palma se curva, só e impotente, quando penso em seus ombros caídos, em suas pernas fortes e peludas, em sua nuca indefesa, de menininho? Havia duas pintas, volumosas como cicatrizes. E lá embaixo o pelo era suave e enredado. Podia-se passar os dedos como um pente, pressionando levemente para desfazer os poucos nós, e continuar. Oh, continuar. Ramón, Ramón, Ramón. E agora? Que fazer com esse desespero, com essa sensação de vazio? O Velho, no enterro, como um irrisório monumento, como um prócer tóxico, dosando seus estremecimentos para que o público, trepado sobre os canteiros ou apoiado nas lápides, tomasse bem nota de sua dor de pai comovidamente famoso. E Hugo sem pranto, com o ódio imóvel sobre os pômulos. E o Velho pondo-lhe uma mão depreciativa sobre o ombro covarde. O Velho. Por que você não o matou? Claro que se o tivesse feito eu agora estaria perguntando com a mesma ansiedade: Por que o matou? Pelo menos não seria uma pergunta no vazio. Isso costuma acontecer quando alguém se põe a comparar a desgraça maior com a desgraça menor, e esta parece então ser uma sorte feroz, só porque não foi, só porque o acontecido foi a desgraça maior. Ramón bobo, bobíssimo, claro que preferia sabê-lo assassino, parricida, antes que sabê-lo isto. Ia pensar Cadáver. Mas quem sabe o que você é. Espírito, alma penada. Ou nada, estritamente nada. Seria tão cômodo crer em Deus e saber que de algum modo você reside em seu seio, em sua imensa vontade, em sua velha teia. Seria tão cômodo imaginar que agora você respira com outro alento, desprendido desta sujeira, sem angústia nem felicidade, como um simples poro ou como uma grande ocasião flutuante, provido de séculos antes e de séculos depois, com um passado que é amarga experiência necessária e um futuro que é eternidade sem sobressaltos. Seria tão cômodo, mas não posso. E é uma lástima, porque é horrivelmente desconfortável pensar que, em vez disso, você é nada, nada, nada. Acabou-se o sangue-frio. Quem sabe, talvez eu possa enlouquecer. Talvez, se me olhar no espelho fixamente, abrindo bem os olhos e apertando os lábios até conseguir uma perplexidade desproporcional às minhas orelhas, a minha boca, a meu nariz, a minhas sobrancelhas, talvez possa assim inundar-me de um zumbido interior que me impeça de escutar a ladainha dos pêsames, as maldições de Hugo, aquele rádio que aturde, essa sirene dos patrulheiros; talvez possa assim evadir-me para uma região que não tenha memória, que não tenha Ramón, que não tenha minha pele acariciada por Ramón. Mas nem isso. Nunca poderei enlouquecer. Nem mesmo me matar. Tenho a espessa, desgraçada sorte de ser normal. E mesmo dentro deste desespero, mesmo assim, com a cabeça afogada pelo travesseiro, sou capaz de pensar que dentro de uma semana, ou de um mês, ou ainda mais tarde, abrirei o guarda-roupa e olharei todos os meus vestidos, e escolherei um, claro que não poderá ser aquele que Ramón foi tirando, e escolherei depois o colar e os brincos que combinem bem com o vestido, e passarei o batom pelos lábios que ele, oh que ele, e verei se estão na bolsa o chaveiro, a identidade e os cigarros, e inspecionarei outra vez o cabelo antes de dar-me o visto final, e descerei ao estúdio de Hugo e roçarei apenas sua face e ele me dirá: Me alegro que esteja mais animada. E lhe perguntarei se posso levar o carro, e ele dirá que sim, e a empregada sorrirá de longe e correrá a abrir a garagem e eu darei volta à chave e escutarei o ronco familiar do motor, e engatarei a primeira, e apertarei suavemente o acelerador, e sairei à luz, que será uma luz estranha e metálica, com as grades estriadas como numa água-forte, e as árvores quietas, com suas copas em triângulo, secas. E irei pela Rambla e descerei o vidro, e o ar me golpeará o rosto, e por debaixo da maquilagem sentirei que tenho rugas e terríveis olheiras, e até vários projetos de caretas, mas estarei tranquila e apesar de tudo sorrirei, embora se trate de um sorriso opaco, sem convicção, porque naturalmente há que viver e há que guardar debaixo de sete chaves o furor, por legítimo que seja, e junto com o furor há que guardar o espanto. E no entanto não poderei evitar a lembrança de outra viagem pela Rambla. Guardar o espanto. Porque sou uma fêmea destruída. Sou aqui na cama, com a cara chorosa escondida no travesseiro, e serei esse dia, com a pele maquilada e sem poros. Guardar o espanto, mas com urgência. Porque sou uma fêmea destruída e solitária. E a nostalgia chegará à minha cabeça como chega agora, de baixo. O ar golpeará minha cara e minhas rugas existirão, não há dúvida. Não só as que já tenho, mas as que só estão desenhando suas dobras. E talvez tudo vá mais ou menos bem até que me aproxime de La Goleta. Porque você me levou ali. Você me levou. Bobíssimo. Ali você disse: É uma barbaridade, claro, mas gosto de você. Guardar o espanto. Ou talvez seja impossível. Porque ao chegar a La Goleta é quase certo que não poderei suportar e explodirei ou me porei a chorar tão convulsivamente como agora, ou perderei os sentidos e minha cabeça cairá sobre o volante, e a buzina começará a soar, e talvez soe um longo tempo, como um pobre alarme no deserto.