Mal de Job
Os dias passados em Milão, em pleno inverno, foram importantes para aproximá-lo um pouco mais de sua mãe. Chiara não conversava muito. Ficara ainda mais calada após a morte da irmã, mas, do seu jeito, recepcionara o filho fazendo a comida que ele mais gostava.
No café da manhã, havia pão embebido no caldo de frango e grandes uvas chamadas Zibbidos. Mais tarde, na hora do almoço, gemas de ovo com duas onças de pão e vinho suave. Nos fins de semana, um pedaço de carne, de preferência uma vitela, batida com o cabo da faca de açougueiro, assada no caldeirão com seus próprios líquidos. Assim ficava muito mais suculenta que a carne no espeto. Gostava especialmente de caranguejos-do-rio. Sua mãe comera muitos deles quando estava grávida.
Assim escrevia em seu livro: Sinto grande prazer com mel, açúcar da cana, uvas secas. Gaudeo dulcibus melle, saccharo, uvis penfilibus. Acima de tudo, óleo de oliva, misturado com sal e azeitonas maduras. Oleo supra modum delector, & sale misto, ac mollibus Olivis. Dos animais, a carne branca é a melhor. In quadrupedibus alba meliora. E o coração é mais duro que o pulmão, que tem a parte de baixo menos nutritiva. Sanguinea duriora cor, pulmo mollior, extrema parum nutriunt.
Cardano só achou estranho quando foi solicitado a ajudar Chiara a enterrar, no chão gelado da casa, uma pesada arca.
— O que tem aqui dentro, mãe? — perguntou, curioso.
— Muita terra da minha cidade — respondeu Chiara. — Quando preciso, aspiro o cheiro e me sinto bem. Com meu filho em Milão, posso enterrar esta arca.
Depois de tantos momentos difíceis passados por Chiara, alguns deles presenciados por Cardano, ninguém se atreveria a discordar das esquisitices demonstradas por ela: os passeios semanais solitários, as arcas cheias de terra da cidade natal, as idas à missa duas vezes ao dia, a obsessão em manter tudo arrumado dentro de casa.
Fazio foi visitar o primo pároco em Gallarate, que estava muito doente, e em breve estaria de volta. Cardano, por sua vez, teve imenso prazer em reencontrar Evangelista, seu tio, que partiria em breve para um convento. Em uma tarde fria de janeiro, foram tomar vinho aquecido na taverna e conversar sobre os novos rumos de suas vidas.
— Como se passaram estes últimos meses em Pavia, Girolamo? Conte-me os detalhes.
— Foram meses de muito trabalho, tio. Estamos nos aprofundando nas obras de Hipócrates e Galeno. As leituras são diárias, com cursos extras à tarde.
— Recordo-me de ter lido sobre um médico que foi preso por aqueles antigos tribunais da Inquisição, signor Pietro d’Abano. Ele dizia, se não me engano, que as três coisas mais importantes para a formação médica eram Lógica, Filosofia Natural e Astrologia. Vocês estudam Astrologia?
— Nem tanto. A astrologia me atrai bastante, até como forma de passar o tempo, mas não tem tido muita acolhida na Universidade. São apenas algumas aulas à tarde, junto com conceitos de astronomia.
— Depois eu vou querer uma carta astrológica minha, combinado? — Cardano acenou com a cabeça, demonstrando que teria imenso prazer. — Tem feito amigos? — perguntou Evangelista.
Cardano pensou um pouco após a pergunta. Sua fama de ser frio e distante, sua habilidade retórica em espezinhar adversários e sua dedicação quase total aos estudos não tinham colaborado para aproximá-lo de outras pessoas da faculdade.
— Prospero foi comigo, e conheci outra pessoa, Ottaviano, que se tornou um grande amigo. Talvez vá para Veneza, infelizmente, pois a família o chama para trabalhar como livreiro e editor. De resto, acho que fiz mais inimigos. Não me importo.
— Cuidado. Os inimigos podem complicar a sua vida, até por causa da inveja.
— Deu-me certa tristeza receber um sinal de que Prospero não irá viver muito.
— Que sinal? Olhe... Não existem esses sinais, exceto em Cristo e seus apóstolos, rapaz. Isso pode ser obra do demônio. Cuidado... — falou o tio. Olhou pela janela, com a sensação agradável de estar em um local protegido do frio, e sorveu mais um pouco do vinho quente. — Pensei uma coisa: depois de fazer meu estudo astrológico, faça o de Jesus; o que acha?
Cardano ficou um pouco assustado com a proposta.
— Talvez... — Preferindo mudar de assunto, perguntou a Evangelista se haveria guerra.
— Provavelmente sim — disse Evangelista, após pensar um pouco. — Mas depende de que guerra se fala. Uma delas deve envolver o rei da França, e, nesse caso, Milão vai sofrer mais uma vez. A outra pode ser resultado da agitação provocada por Martin Lutero. Foi convocada uma Dieta, um encontro canônico, em que o professor Lutero terá que se explicar. É dado como certo que ele baterá o pé. Ele não acha que o papa tenha a ascendência sobre os fiéis de que se autoproclama, nem o direito de manter terras e fazer guerras. Muito menos de vender atestados de salvação.
— Ele tem razão? — Cardano cerrou as sobrancelhas.
— Quem? Lutero? É um assunto delicado, Girolamo. Não se deve misturar questões políticas com a atuação da Igreja. Quem cuida dos fiéis enfermos? Quem enfrenta a peste e vai até a casa dos necessitados? Quem distribui alimentos e defende a alma das pessoas, mesmo as das mais pobres?
— Isso é verdade — concordou Cardano.
— Mas também é verdade — ponderou Evangelista — que, recentemente, Laurenzio Valla demonstrou em um texto detalhado que o papa Estevão, trezentos anos antes, tinha forjado grosseiramente alguns documentos para se fazer herdeiro de Pedro e Constantino e manter as terras da Igreja. Também me incomoda saber que alguns mitos foram resultado de manipulações de textos bíblicos e cópias de histórias do Oriente, como a história pagã da virgem fertilizada por Deus, ou da Santíssima Trindade.
— Como assim? — Cardano arregalou os olhos. — E a presença do corpo de Jesus na eucaristia?
— Veja — Evangelista engoliu em seco e olhou discretamente para os lados —, não podemos falar isso em público, certo, Girolamo? São temas antigos. Não afetam meu trabalho com as pessoas necessitadas e não tiram minha admiração pelo que faço. Podem ser apenas divagações, entendeu?
— Claro, tio. Não está no meu pensamento. Já vi uma pessoa sendo queimada viva. Não tenho interesse em terminar assim.
— A transubstanciação, que você perguntou, trata do verdadeiro corpo de Cristo, do milagre eucarístico em que há a presença real de Jesus na missa. Para outros clérigos e bispos, no entanto, a eucaristia é o corpo místico de Cristo, ou seja, há apenas um sentido figurado, pois ele manifestou no Evangelho que iria se oferecer em sacrifício apenas uma vez, e não todos os dias. Qual o sentido de Jesus realizar um sacrifício diário? Esta é a pergunta. No fundo, são brigas de doutrinas.
Cardano se lembrou do medo que tinha, nas primeiras vezes que comungou, de morder sem querer o pão entregue pelo padre e constatar que o sangue de Cristo escorria por sua boca.
— Mas o professor Lutero acabou atrapalhando outros projetos — continuou Evangelista. — Veja nosso calendário. — Apontou para uma cópia do Calendário do Pastor, na parede da taverna. — É bonito, com triângulos negros para os dias da semana e vermelhos para os domingos, os símbolos do zodíaco e a cruz no dia da Páscoa. Até quem não sabe ler consegue contar os dias. Admito que é uma grande invenção. Mas já se afastou dez dias além da data correta desde a época de César. Daqui a alguns anos, vamos comemorar o Natal em pleno verão. Será o fim do mundo! — Deu uma gargalhada.
— É por isso que o equinócio não está coincidindo? — perguntou Cardano, curioso.
— Claro! Todos sabem que esse calendário é uma vergonha para o mundo cristão. Já tinha visto uma palestra do professor Mikolaj Kopernik em Roma, comentando isso. Você nem era nascido. Depois estudamos juntos direito canônico em Pádua, antes de ele voltar para a Frauenburg. Na época, ele já se apresentava como Nicolaus Copernicus, mas, para mim, ele continua sendo o calmo Mikolaj...
Cardano não piscava, ouvindo com atenção o relato de Evangelista.
— E aí chegamos ao que eu queria falar: ele me escreveu contando que sua proposta para a mudança do calendário não foi aceita, e a comissão comandada pelo bispo holandês Middelburg foi desfeita pelo papa Leão X por causa da agitação provocada pelo professor Lutero. — Levantou as sobrancelhas. — Percebe a bagunça?
— Um padre se queixa das indulgências e nosso calendário continua o mesmo! — Cardano riu.
A questão do Calendário Eclesiástico, de todo modo, não parecia simples. O papa tinha enviado carta pedindo sugestões até para o rei Henrique VIII. O encontro no Palácio de Latrão, em Roma, iria avaliar o resultado da comissão encabeçada por Paul Middelburg, que proporia, em lugar de cortar dias, a mudança da data do equinócio de primavera para o dia 10 de março. A verdade é que muitos acreditavam que as contas do holandês, baseadas em tábuas do século XIII, feitas em Castela, também estavam erradas. O Concílio de Latrão acabou, o tempo passou, o papa desistiu da ideia, e tudo ficou como estava.
Antes de voltar para Pavia, no início do ano, Cardano reencontrou o pai, que estivera acompanhando a doença de dom Giacomo, em Gallarate. O frade estava muito doente. Recebera a visita de um médico de Milão, e suas feridas estavam sendo tratadas por Achilles. Lembrou com carinho das conversas que tivera com o barbeiro-cirurgião, possivelmente uma influência fundamental em sua decisão de seguir o rumo da Medicina.
O inverno ainda castigava Pavia com seu vento gelado e neve por toda parte. Os cursos regulares da manhã e também as palestras particulares da tarde eram suspensas nesse período, para que todos se concentrassem no estudo da anatomia. Diariamente eram revisados os princípios básicos do funcionamento de cada órgão, com relação aos seus aspectos orgânicos.
As necrópsias, no entanto, eram pouco frequentes. Os artistas, principalmente em Florença, tinham acesso a uma grande quantidade de corpos humanos. Dissecavam condenados e mortos sem sinal de doença que não eram procurados por nenhuma família. A causa da discrepância, ou seja, raras autorizações para faculdades de Medicina e maior liberdade para pintores e escultores, era o fato de estes não destruírem os órgãos internos. Como estavam interessados apenas no aspecto exterior — pele e músculos —, gozavam de autorização mais ampla dos cardeais.
Muito se discutiu, naqueles dias, sobre o mal de São Jó, que se espalhou rapidamente pelo mundo, atingindo principalmente aqueles que se deitavam com meretrizes. Fernão de Magalhães não voltou vivo, mas cartas de Antonio Pigafetta, que participou da primeira viagem ao redor do globo e chegou são e salvo, já circulavam com detalhes dos acontecimentos.
Em todas as ilhas, dizia um folheto, vimos o mal de São Jó. In tutte queste ysolle havamo trovato lo mal de Job. Mais que em qualquer outro lugar, più que in altro loco. Nós na Itália o chamamos de mal-francês, mas também pode ser chamado de mal-português. Lo chiamano mal portughese e noi altri in Italia mal francese.
Muitos já não consideravam a doença uma punição divina, mas apenas um influxo astrológico negativo, uma conjunção altamente nociva entre Saturno e Marte. Professores defendiam que deveria existir um hospital para isolamento das vítimas, como fez a cidade de Bolonha, ao construir seu Ospedale di San Job, ou Saint Giobbe. Afinal, os resultados de um contágio eram realmente funestos: manchas pelo corpo, tumorações putrescentes, alteração óssea e lesão no cérebro, levando a convulsões repetidas e perda da capacidade de decisão. O mercúrio, amplamente utilizado na forma de unguento, não parecia ter resultados animadores.
Após o ciclo de aulas de anatomia, os cursos foram retomados e Cardano passou a ser chamado também para auxiliar em aulas no ginásio, ministrando palestras de Geometria. Além disso, substituiu o frade Romolo e o médico Pandolfo em aulas de Dialética e Filosofia. Seus amigos se surpreendiam a cada dia. Ele parecia não se cansar jamais.
Continuava a morar na casa de Giovanni Targio, próximo à Chiesa di Santa Maria Venerea. Em uma manhã, acordou com um estrondo, um golpe forte na parede, que fez balançar tudo em volta. Ouviu mais uma batida, como um enorme martelo, no quarto ao lado, que estava vago.Agora tinha certeza de que não fazia parte de um sonho. Giovanni também acordou. Cardano levantou-se e, como de costume, não teve trabalho para achar a lamparina e acendê-la com a última brasa do fogão.
— Ouviu o barulho, Cardano? — perguntou Giovanni, assustado.
— Ouvi — respondeu, pensativo. — Meu livro até caiu da cômoda. Isso não é bom sinal. Espero que todos estejam bem.
— Pegue a água quente que está na chaleira, e vamos fazer uma infusão. Dificilmente conseguirei dormir agora — disse Giovanni, receoso de voltar a ficar sozinho. — Outro portento como esse, e morrerei com a mão no coração.
Como se nada mais acontecesse na manhã, Cardano retomou suas atividades normais, indo para a Universidade.
À noite, no entanto, com a chegada de Boneto Sganzolo, um conhecido da família que morava em Milão, Cardano tomou conhecimento que Galeazzo Rosso tinha falecido. Quòd hora vesperi obiisse Galeazium de Rubeis, amicum singularem.
Mais impressionante foi saber que tinha sido exatamente no momento das fortes batidas em sua parede. De fato, Galeazzo era um amigo singular. No leito de morte, com 55 anos, em delírio febril, recusou a intervenção de médicos e de sacerdotes. Jogou com violência todos os medicamentos no chão e morreu agonizante, contou Boneto. Em relação a Fazio e Chiara, no entanto, Cardano poderia ficar tranquilo, pois estavam bem.
Naquela noite, sonhou que tinha um filho e que ele estaria sendo preso. Acordou assustado com a possibilidade de estar desenvolvendo algum dom premonitório. Por isso, conversou com Prospero, e decidiram consultar uma quiromante bastante conhecida em Pavia, a madonna Di Filippi.
Foram à casa dela e ficaram impressionados com a riqueza da decoração, ainda que fosse de gosto duvidoso. Panos, joias penduradas, cartas, cabeças empalhadas e velas pelos cantos da sala de entrada. As joias eram imitações, certamente, mas a ambientação sugeria mais uma charlatã que uma quiromante séria.
Uma serva recepcionou-os, recebeu o dinheiro dos dois e levou inicialmente apenas Cardano para a segunda sala, onde a madonna Di Filippi estava sentada em uma pequena mesa redonda. Com 80 anos aproximadamente, cega e com a mão direita tremendo continuamente, a quiromante não causou boa impressão em Cardano.
Meu Deus, pensou, como uma cartomante cega vai ler cartas e ver a mão?
— Sente-se, meu filho — disse a senhora —, e não fique tão desconfiado. Dê-me suas mãos.
— A senhora vai ler minhas mãos? — perguntou Cardano, ainda sem saber como avaliar a situação.
— Não, vou senti-las. Posso enxergar aqui dentro da minha cabeça. — Levantou a mão tremulante a quase tocar a têmpora direita.
A vidente segurou nas mãos de Cardano, e ele teve um frio na espinha, que o percorreu de cima a baixo.
— Como é seu nome?
— Girolamo Cardano, filho de Fazio.
— Que bom, está vivo... O destino achou que sua vida vale o preço.
— Que preço? — perguntou Cardano.
— Por que está preocupado?
Cardano se recompôs, pensou um pouco o que deveria dizer.
— Tenho pressentido algumas coisas estranhas... Tenho sonhado — discorreu ele, sem muita convicção. — Será que terei que conviver com isso?
— É verdade sobre seu amigo — concordou a vidente. — Pode despedir-se dele...
Cardano pôs a mão na cabeça, atordoado.
— Sonhei com um filho.
— Já tem um filho?
Ela não sabe que não tenho um filho?, pensou Cardano. Que raios de vidente é essa?
— Vejo seu filho — começou a madonna Di Filippi. — Não sei em que local está. Pode ser aqui ou fora daqui. Ele já nasceu?
— Não.
— Terá problemas com seu filho. Ele fará uma grande bobagem. Será preso. Mas vai conseguir se livrar e terá o seu perdão. — A voz rouca da vidente era forte e segura.
Cardano engoliu em seco, agora mais fragilizado, pois seu sonho parecia com o relato da vidente. Ao que tudo indicava, no entanto, as coisas correriam bem. Melhor assim.
— Terá que conviver com isso, sim. Nem todos conseguem. Descubra como — disse a senhora, para finalizar.
— Eu tenho um problema... — deixou escapar Cardano.
— Terá filhos — cortou a vidente, para logo após abaixar a cabeça, como se estivesse em um transe.
Cardano aguardou um pouco. Não sabia se devia chamá-la, ou tirar suas mãos, que ainda eram seguras por ela. A serva voltou e reconduziu-o para a primeira sala. Sentou-se no sofá e ficou absorto em seus pensamentos por alguns minutos.
Prospero despertou-o da reflexão, mostrando a moeda nas mãos.
— A velha devolveu o dinheiro, acredita? — disse Prospero, indignado. — Falou que não conseguiu ler o meu destino.
Cardano continuava em silêncio. Preferiu não dizer nada.
— Não sei se fico contente por ter recuperado o dinheiro, ou preocupado por ter o corpo fechado à visão daquela senhora que não me inspirou muita credibilidade... — disse Prospero, com um riso meio sem graça.
— Vamos tomar cerveja, por que não? — propôs Cardano. Assim, caminharam pela cidade mais despreocupadamente, sem se importar com o que tinha acontecido naquela sala cheia de tecidos.