Fidei defensor

As notícias começaram a se suceder de forma rápida naquele ano de 1521. Em maio, o edito de Worms condenou o professor Lutero como herético. Ele se refugiou em um castelo, no sul da Alemanha, e esperava o desenrolar dos acontecimentos.

O impacto da posição de Lutero já era sentido nos quatro cantos da Europa. O atlético e intelectualizado Henrique VIII, por exemplo, tinha escrito uma pequena obra em defesa dos sete sacramentos, Assertio Septem Sacramentorum, com razoável repercussão; tanto que o papa Leão X considerou-o um defensor da fé, concedendo a ele um título honorário: fidei defensor.

Em seu livro, que já circulava na Lombardia, Henrique VIII afirmava que Lutero tinha interpretado a palavra de Cristo seguindo seus próprios interesses. Lutherus interpretatur in suam partem verba Christi, escreveu. Cristo não deu pão aos seus discípulos, mas seu corpo. Non panem communicasse discipulis, sed corpus. Era o mistério de transsunstantiatione.

Entre outros sacramentos, o rei inglês deu especial atenção a um deles: casamento, o primeiro dos sacramentos, celebrado como o primeiro da humanidade, honrado com o primeiro milagre de Nosso Salvador, por tão longo tempo venerado religiosamente.

Estava claro para muitos que Henrique VIII interpretava o casamento à sua própria maneira, já que seu filho bastardo, FitzRoy, era oficialmente recebido na corte, abrindo especulações de que um dia pudesse entrar na linha da sucessão real.

O rei da França, François I, por outro lado, não parecia se importar com a discussão religiosa e declarou guerra ao imperador do imenso Sacro Império Romano Germânico, Carlos V. Uma medida, segundo alguns, muito temerária. Nos meses seguintes, a liga militar comandada por Prospero Colonna chegou próximo a Milão. O papa, mais os suíços, tinham se unido contra a França.

Como a Faculdade de Pavia anunciara que suspenderia as aulas em consequência dos acontecimentos, além da absoluta falta de fundos para continuar as atividades, Cardano tomou a decisão de voltar para a casa dos pais. A última carta que recebera de Fazio mostrava grande apreensão.

Felizmente, a estrada de Pavia a Milão permitia a entrada pela porta sul, onde as tropas estavam esparsas, havendo poucos confrontos. O Convento Sant’Angelo tinha sido tomado por tropas suíças, e todos os frades foram expulsos.

Ao penetrar pelos portões da cidade, com muitos livros nos sacos, deixaram-no passar, pois conseguiu demonstrar que era apenas um estudante de Medicina. As ruas estavam sujas, tochas acesas aqui e ali, alguns gritos e pessoas que pareciam andar a esmo. Muitas lojas do comércio estavam fechadas. Ao chegar próximo de casa, Chiara esperava na porta e veio abraçá-lo, sem dizer uma palavra. Seu pai, Fazio, estava acamado, com muitas dores nas costas.

— Filho — estendeu a mão para dar a bênção —, a cidade acaba de se render. Deus sabe o que nos aguarda...

Cardano puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama de Fazio.

— O que tiver que ser, pai. Não será a última vez, ao que parece. — Lembrou-se então do grande amigo de seu pai. — Sinto muito por Galeazzo.

Os olhos de Fazio encheram-se de lágrimas. A idade parecia dobrar a sua severidade. Enquanto isso, Chiara apressava-se em preparar algo para o filho comer.

— Sabem se Ambrogio está na cidade? — Cardano sentia falta de seu amigo de infância.

— Foi embora — respondeu Chiara. — Foram para a França, não sei onde.

— É uma pena. — Cardano silenciou por um momento. — Tive dois amigos na faculdade: Ottaviano, que foi para Veneza, e Prospero, que vai ficar em Pavia. Parece que tudo se dispersa às vezes...

Fazio fechou os olhos para descansar um pouco. Cardano aproveitou para trocar sua camisa de baixo, pois estava toda cheia de suor dos eventos daquele dia. Sentiu a agradável sensação de estar de volta a casa, mesmo com a balbúrdia da cidade.

— A peste voltou, não é mesmo? — perguntou Cardano. Chiara se arrepiava a cada vez que ouvia a palavra, tanto que, quando precisava falar sobre o tema, referia-se à Doença.

— Que diferença faz? — Fazio deu de ombros. — Estou mais preocupado com a guerra que não termina... a cidade capitulou, mas o castelo continua na mão dos franceses. Por que não vão embora de uma vez por todas? Nem o papa nos salvará deste caos.

— Já que falou no papa, sabe dizer o que aconteceu com o padre Martin Lutero?

— Só sei que foi condenado, filho. Eu avisei que esse assunto teria um encerramento, e o herege seria esmagado, não avisei? — Gemeu um pouco. Suas dores nas costas às vezes davam uma trégua, mas nos últimos meses as crises estavam mais frequentes. Praticamente não andava de mula.

Ouviram um grande grupo de pessoas se aproximar, gritando agressivamente. Passaram em frente da casa com tochas na mão, de forma amedrontadora.

— Vê isso? — comentou Fazio. — Espero que não venham saquear nossa casa. Por enquanto, eles têm preferido as lojas.

Giovanni de’Medici, o papa Leão X, acabou morrendo depois das comemorações da tomada de Milão. Tinha alçado Roma ao patamar de um grande centro cultural, inclusive com a intensificação das obras da Basílica de São Pedro, mas os gastos foram tão grandes que obrigaram a Igreja a aumentar a venda de indulgências. Alguns consideravam que, mesmo com o Concílio de Latrão, Leão X não tinha conseguido avaliar corretamente o risco revolucionário que germinava no Sacro Império. A situação poderia ser mais crítica do que parecia.

Ao contrário do que muitos previam, o ano de 1522 começou com um papa não italiano escolhido para o lugar de Leão X: Adriano VI, de Utrecht. Quinhentos anos antes, o papa ainda era escolhido em votação pelo clero e pelo povo romano. Nicolau II, naquela época, acabou com a ingerência do poder político civil, determinando que somente os cardeais poderiam decidir quem seria o novo descendente de Pedro.

Alguns anos após acertou-se que eram necessários dois terços dos votos. A propalada inspiração divina, portanto, que determinaria quem seria eleito o chefe da Igreja, influenciaria pelo menos dois em cada três cardeais.

Em Milão, os anos que se seguiram foram de apreensão constante. Um novo Sforza foi empossado — Francesco, segundo filho de Ludovico il Moro —, e os franceses finalmente foram expulsos da cidade. Os milaneses aprovaram a mudança, mas sabiam que não seria fácil, pois os esforços de guerra não terminavam.

A correspondência estava muito irregular. O correio semanal de Pavia falhava frequentemente. Nem sempre havia resposta às cartas que escrevia ao amigo Prospero, até que um dia recebeu um pacote com um livro de Galeno, Le facoltà dell’anima; nem se lembrava mais para quem havia emprestado. A família o encontrara entre os pertences de Prospero. Como estava assinado com o nome Hieronymus Cardanus, decidiram enviá-lo para Milão, junto com um bilhete, avisando da doença febril à qual ele tinha sucumbido.

Prospero visitou-o naquele noite, durante o sonho, dando a entender que o faria mais vezes. Cardano ficou triste, mas não sofreu tanto quanto imaginava. Não tinha a sensação de ter perdido o amigo por completo.

Agora, nessa fase da juventude, já tinha total consciência de quanto a vida era frágil. Seus próprios dados astrológicos davam como certo uma vida que não passaria dos 40, ou 45 anos. Confirmara recentemente com outro astrólogo a impressão que ele mesmo tivera ao ver seus planetas com as efemérides mais importantes, uma a uma. Mesmo assim, não desistiria dos estudos.

Avaliou com seu pai o que faria dali em diante, e consideraram mais adequado continuar a faculdade em Pádua, por causa das dificuldades por que estava passando a Universidade de Pavia.

Esse período em Milão parecia ser apenas uma fase. Era tempo de estudo e de jogo. Alguma disciplina permitiu que Cardano não exagerasse nas cartas, no xadrez e nos dados. Às vezes ganhava algum dinheiro, às vezes perdia. Enquanto isso, conhecia pessoas.

— Boa noite — cumprimentou Cardano, acenando com a cabeça, como sempre fazia.

Ao penetrar no salão, a sensação agradável de estar entrando no paraíso se repetia. Velas por toda parte, iluminando com eficiência o ambiente, afrescos no teto maravilhosamente pintados e música da mais alta qualidade, tocada por um seleto grupo de instrumentistas.

O doce som produzido pelo alaúde, pela flauta e pelo violino competia discretamente com o burburinho dos frequentadores da corte. Era incrível como a imagem da guerra e da carestia pudesse estar tão longe daquela realidade. Ainda assim, não se registravam os excessos da gestão do último Sforza, por exemplo.

Ao redor de pequenas mesas redondas viam-se grupos envolvidos na discussão de um tema pertinente ao ducado, jogando cartas ou simplesmente deliciando-se com um bom vinho. Cardano percorreu com os olhos até encontrar os amigos de jogo que procurava.

— Magno, Carlo, excelentíssimo Francesco... — disse Cardano, curvando o corpo em direção ao duque de Milão.

— Sente-se, Cardano — disse o duque, sem tirar os olhos das cartas. — E então, vamos jogar?

Cardano lembrou-se de que tinha escrito em seu diário sobre sua imoderada tendência ao jogo, mesmo sendo jovem. Deditus fui etiam immodicè, ab ipsa adolescencia ludo. Foi dessa forma que conheceu Francesco Sforza, príncipe de Milão, e fez amizade com outros nobres. Quo etiam Francisco Sfortiae Mediolani Principi innotui, & nobilium amicitiam multorum mibi comparavi.

— Caros, sentirei muitíssimo a falta de vocês. Vim me despedir, pois vou para Pádua. Em breve partirei para fazer a Universitas Artistarum di Padova — anunciou Cardano.

— Para quê? Para ser um artista? — perguntou Magno, sem tirar os olhos das cartas.

— Não, amigo — sorriu Cardano —, é a Universidade das várias artes: Teologia, Filosofia e Física. Ou seja, é separada da Universidade dos juristas.

— Perdoe a falta de conhecimento do nosso amigo... — brincou Carlo, sorrindo para Cardano.

— Então explique, Carlo, já que é tão inteligente — retrucou Magno. — Ele vai fazer Física, Filosofia ou Medicina?

O duque Francesco Sforza não tirava os olhos de suas cartas, absorto em suas possibilidades de jogo.

— Um pouco de tudo, acredito. Não é mesmo, caro Cardano?

Cardano sorriu. De fato, muitos não compreendiam exatamente como se dividiam as artes intelectualizadas. Ele tentou, em poucas palavras, explicar a origem dos termos Física, Filosofia e Medicina, que frequentemente se confundiam.

— A Física, ou Medicina, é um dos ramos da filosofia natural. O propósito da Física é estudar a preservação da saúde e o prolongamento da vida. Para isso é preciso dominar os princípios naturais — esclareceu Cardano.

— Claro — concordou Magno, aparentando ter compreendido.

Jogou mais uma carta na mesa. Carlo levantou a cabeça, esforçando-se para assimilar os conceitos.

— A natureza, para os gregos, a physis, deu origem ao termo “físico”, que também significa médico — completou Cardano. — Nós fazemos parte da natureza, certo? Por isso é que Avicenna falava dos princípios filosóficos naturais da vida humana.

— Se continuar a falar, Cardano, voltarei a não entender... — disse Carlo, e todos riram.

Nesse momento, Francesco Sforza levantou a cabeça e dirigiu-se a Cardano.

— Caro jovem, em lugar de mostrar suas habilidades mentais, não vai se sentar e jogar?

— Vou jogar só um pouco. Como disse, vou partir amanhã bem cedo — respondeu Cardano, com uma ponta de melancolia. — Estive pensando, caro duque. Seria bom ter uma figura importante da pintura, ou escultura, para atrair outros artesãos a Milão, não acha? Como na época de seu pai.

— Sim, é um bom pensamento — respondeu o duque, prestando atenção parcialmente às cartas. — Mas não se acha um mestre Da Vinci em cada porta da cidade. Aliás, nesta semana — abaixou as cartas, para contar a novidade —, vi alguns quadros que estavam na casa do signor Caprotti, aquele que o mestre chamava de Salai. Foram herança de Da Vinci para ele.

— Herança para o namoradinho. — Carlo sorriu maliciosamente.

— Tinha um San Giovanni Batista, outro era La Gioconda, que chamam de Madonna Lisa, e mais três quadros, cujos nomes não me recordo. Havia junto uma cópia da Madonna Lisa, igualzinha, feita por algum discípulo. Quadros razoáveis — disse Francesco —, mas nenhum da categoria do retrato de Beatrice d’Este, a maior obra de todos os tempos! — falou, orgulhoso, sobre a pintura da mãe feita pelo mestre Leonardo, mesmo sabendo que todos consideravam La dama con l’ermellino, o retrato da amante do il Moro, Cecilia Gallerani, segurando um arminho, como uma obra muito mais importante.

— Morreu de tiro de espingarda, o pobre coitado — falou Magno.

— Salai era um desmiolado, de fato — completou Carlo.

— Melzi, o outro amiguinho de Da Vinci, está morando perto de Milão, em Vaprio d’Adda — lembrou Magno, referindo-se a uma pequena comunidade, atravessada pelo naviglio della Martesana.

Vàver d’Adda — corrigiu Carlo, preferindo o dialeto milanês.

— Eu conheci messer Melzi — falou Cardano, surpreendendo a todos.

— Está falando sério? — perguntou Magno.

Francesco Sforza também levantou os olhos, para prestar atenção à conversa.

— Meu pai era consultor de mestre Leonardo di Ser Piero, como ele o chamava. Uma vez Melzi foi lá em casa, acompanhando Da Vinci. Conversamos um pouco, mas eu era apenas uma criança.

— Melzi herdou os livros e os escritos — falou o duque. — Talvez seja de mais valor que aqueles quadros.

Voltaram todos ao jogo, e Cardano entrou naquela rodada. O último ano tinha sido interessante para ele. Muitos dados e cartas por um lado, muitos livros por outro. Estudara matemática a fundo e escrevera um pequeno tratado, que enviara ao amigo Ottaviano Scotto, agora editor em Veneza. Aguardava ansiosamente a resposta sobre uma possível publicação.

Fazio tinha tido um papel fundamental na decisão de sair de Milão. Mesmo adoentado, estimulou o filho a continuar os estudos e, mais importante, em uma Universidade que estivesse passando por um bom momento. As cartas trocadas com a reitoria da Universitas Artistarum de Pádua, por longos três meses, resultaram na aceitação do estudante ainda em período de formação.

É verdade que Milão estava começando a ter um ressurgimento econômico com a nova administração do duque Francesco, subordinado ao imperador do Sacro Império. Houve reforma do Senado, que se tornou um tribunal supremo. Alguns membros honorários eram da família Visconti, uma das mais expoentes.

O rei François I parecia ter desistido, pelo menos, da cidade. Os últimos sobreviventes franceses refugiados no castelo se renderam no início do ano anterior, mas ainda havia tropas dentro da Lombardia.

Tinham sido anos tumultuados politicamente. Agora as coisas pareciam estar se acertando. Alguns artesãos e livreiros voltavam à cidade. Moinhos eram reabertos. O medo se dissipava.

O sol ainda não aparecera. Era mais um dia de inverno. Para Cardano, no entanto, não era um dia qualquer. Ele acabara de se preparar para a partida. Empreenderia sua primeira viagem para fora da Lombardia. Um frio na barriga assaltou-o ao se despedir de seus pais. E se não voltasse mais a vê-los?, pensou. Recordou-se então de Telêmaco e refletiu se estaria preparado para a viagem de descobrimento de si próprio.

Lembrou-se do conselho de Francesco Sforza, que o advertiu a não ser tão afoito em colocar suas ideias. Seus desafios oficiais e as aulas que dera em Pavia foram comentados nas rodas de nobres e entre os médicos do Colegiado de Milão, mas Cardano também ampliou sua lista de desafetos, pois alguns o consideravam excessivamente arrogante.

Perguntou-se se conseguiria agir diferente. Talvez não. Sou o que sou, concluiu. Estava seguro de que poderia determinar seu grau de popularidade, uma vez que, desde Pavia, percebera que o ronco que aparecia no ouvido direito acontecia quando falavam bem dele e, diferentemente, ao falarem de forma negativa, um desagradável barulho era sentido no ouvido esquerdo.

Um servo de Fazio iria de mula acompanhando Cardano até Pádua e todo mês voltaria a Milão com cartas e novidades do estudante. Assim seus pais ficariam mais tranquilos, e Cardano teria um canal seguro de comunicação.

Iniciaram os passos quando os primeiros raios de sol atravessaram os limites da planície. Apesar do frio, não havia lama, nem neve. Cardano inspirou fundo o ar fresco da manhã. Não sentiu a falta de ar que às vezes o acometia nesses momentos. Seria difícil descrever a agradável leveza que o invadia. Mais difícil ainda seria sentir um prazer maior, mais completo, do que aquele que estava sentindo. Despedira-se dos pais afetuosamente. Abraçara sua mãe como há muito não fazia. Só faltava se despedir de sua terra.

Ciao, Milano — falou Cardano, para os muros da cidade, antes de se afastarem lentamente.