De ludo aleae
No início do ano de 1524, Cardano se instalou com seu servo em uma pequena casa alugada e começou a frequentar aquele que era considerado o melhor centro de ensino da Europa, a Università degli Studi di Padova.
Trezentos anos antes, um grande afluxo de estudantes e professores tinha vindo de Bolonha para dar início à história da instituição. Havia cem anos tinha sido inaugurada a Universitas Iuristarum, onde se estudava Teologia e os Direitos Canônico e Civil. Com os anos, houve a divisão das matérias, e outro prédio recebeu a Universitas Artistarum, que compreendia os estudos de Astronomia, Dialética, Filosofia, Gramática, Medicina e Retórica. Cada universitas, dali em diante, escolheria seu próprio reitor.
A cerimônia de abertura do ano, no Studio Patavino, causou impressão em Cardano, com uma pompa maior do que tinha previsto. O reitor, um dos alunos escolhidos pelo Senado de Veneza, apresentou a grade curricular, bem mais rica e estruturada que em Pavia, e convidou a todos a seguirem-no à Duomo, ou, em latim, à Domus Dei, para assistir à missa que seria ministrada pelo bispo.
A rigor, todas as igrejas poderiam ser consideradas a Casa de Deus, mas, por ser o endereço da diocese local, somente a Duomo di Santa Maria Assunta poderia ostentar o título. Não era tão grande e famosa quanto a Basilica di Sant’Antonio, mas era uma bela catedral, em estilo românico. Como disse o bispo, era dedicata all’assunzione della beata vergine Maria.
Após a missa, seguiram para o batistério, o prédio colado à igreja, somente os alunos da Universidade de Artes. No caminho, sob um dos pórticos que se multiplicavam pela cidade, Cardano trocou algumas palavras com o estudante, que se apresentou como Gianangelo Corio.
— E eu sou Cardano di Milano, muito prazer — fez um aceno de cabeça Gianangelo. — Notei que o reitor é bastante jovem... Surpreendente, não?
— É verdade. Como de praxe, ele é um aluno da Universidade das Artes. Antes eram os próprios alunos que escolhiam, mas os conflitos aumentaram muito. Agora a decisão cabe a Veneza.
Os alunos acomodaram-se na salão principal do batistério para os discursos principais. Apesar de ser católica, a Universidade de Pádua recebia estudantes de todos os países e crenças, tanto que muitos luteranos faziam o curso sem ser incomodados.
Após o reitor, que falou brevemente, o notário leu o ròtulo, um rolo de papel manuscrito onde se registravam os nomes dos professores, o programa e os horários de aulas. Theoricam Ordinariam Medicina, a matéria de Medicina Teórica Ordinária, seria ministrada pela manhã, na primeira hora, por dois professores, que conduziriam os estudos de Avicenna, no primeiro ano, Hipócrates, no segundo, e Galeno, no último ano. Na terceira hora da manhã, cirurgia.
As palestras extraordinárias, após o almoço, eram pagas, como em Pavia, mas aconteciam simultaneamente, em número de duas ou três. Assim, havia a competição para ver que professor de aula particular cativava maior audiência.
Em seguida, o jovem Gianbattista da Monte iniciou seu discurso, lembrando que seu professor, Niccolò Leoniceno, já bem velhinho e com dificuldades de discernimento, não pôde vir à cerimônia.
— Caros, pelo prazer e desejo do Supremo Deus, presidindo o governo da Igreja, Universalis Ecclesiæ Regimini Præsidentes, nos comprometemos a defender a fé religiosa e nossa vocação letrada — iniciou Gianbattista com firmeza. — O manual Articellæ traz o aforismo número um de Hipócrates, que nos lembra o fato de a vida ser breve, a arte longa, a ocasião fugidia e a experiência enganosa. Por fim, meus senhores, Hipócrates afirma o quanto é difícil o julgamento e como o médico terá que conseguir a cooperação do paciente e dos acompanhantes.
“Ainda assim — continuou o jovem reitor —, estaremos continuamente expostos ao julgamento de outrem, seremos desafiados a não perder a ocasião que se nos apresenta e seremos forçados a lançar mão de nossa experiência, muitas vezes acima de nosso conhecimento teórico. Os olhos estarão sobre nós, assim como os do afresco deste teto — e apontou a pintura com centenas de pequenas figuras religiosas, uma ao lado da outra, circundando o santo ao centro, com olhos que pareciam tudo perscrutar.”
— É de Giusto de Menabuoi — sussurrou Gianangelo.
— Já ouvi falar dele. Meu primo é clérigo e disse que perto de Milão tem uma igreja, em Viboldone, onde há trabalhos desse pintor.
Enquanto Gianbattista continuava o discurso, Cardano olhou maravilhado para o afresco e se surpreendeu com a representação do Apocalipse. Todos os episódios estavam minuciosamente documentados. Correu os olhos até se deter em um detalhe estranho do desenho: a besta que emergia do mar tinha sete cabeças, cada uma vestindo um chapéu de papa.
— Então eu pergunto a todos os presentes — continuou o orador, de forma provocante. — Por que não irmos para o lado do leito do paciente juntos, alunos e professores? — Os ouvintes entreolharam-se com surpresa.
A proposta soava estapafúrdia para alguns, mas muito atraente para outros. Com a interrupção das atividades da faculdade, anos antes, houve grande troca de professores. Os mais antigos, defensores do esquema rígido que tradicionalmente tinha sido adotado nos últimos dois séculos, cederam lugar a outros mais novos, alguns dos quais bastante identificados com o pensamento humanista. Aproximar-se do paciente era uma sugestão que encontrava cada vez mais eco entre os professores da faculdade.
— Gianangelo, viu aquelas cabeças que saem do mar? — perguntou Cardano.
— Vi — sussurrou —, e se quer falar sobre a tiara papal que está em cada uma, melhor não dizer nada, certo?
— Certo... — Cardano calou-se.
Pensou então que talvez alguém, um dia, pudesse esclarecer o que Menabuoi estaria pensando quando pintou aquilo, à vista de todos. Na República de Veneza isso era possível. Em Milão, talvez não. Tinha intimidade o suficiente para questionar o primo Evangelista, ou, quem sabe, Kenneth di Gallarate, se o encontrasse. Evangelista dissera que Kenneth tinha ido para Roma e fora chamado para trabalhar junto ao papa.
Ao saírem da cerimônia, Cardano e Gianangelo dirigiram-se juntos para o prédio da Universidade, onde seria servido vinho e algo para comer. Os alunos, sozinhos, ou em grupos, vinham dispersos pela mesma rua, observados por um paciente pastor que detivera suas ovelhas a tempo e esperava a passagem dos jovens vestidos como nobres.
— Onde adquiriu tantas informações sobre a Universidade, Gianangelo? — perguntou Cardano, caminhando ao lado do recém-conhecido.
— Meu pai estudou aqui. Antes, por exemplo, o cargo de reitor tinha até mais força simbólica do que hoje. É verdade que quase todo o trabalho é feito pelo pró-reitor, mas o jovem reitor era recebido de forma solene pelo bispo e pelos magistrados. Depois ia a cavalo para a catedral, escoltado por duzentos homens e cinquenta tocadores de flauta.
— Tinha uma roupa especial, ou um manto, algo assim?
— Claro! — respondeu Gianangelo. — Era um manto de seda vermelha no verão e roxo no inverno, com um grande broche, coberto de ouro e pedras preciosas.
A ideia de estar em tamanha evidência atraiu Cardano, mesmo sabendo que nesses tempos de pós-guerra a pompa do cargo tinha diminuído bastante.
— E o que é preciso fazer para ser um reitor? — arriscou Cardano.
— Ter dinheiro, vir de uma família nobre, cativar os colegas com sua vivacidade e astúcia, ser reconhecido como um aluno brilhante...
Continuaram andando lado a lado. Cardano refletia sobre a impossibilidade de preencher os pré-requisitos para ser um reitor. Talvez o último item fosse acessível. Dependeria exclusivamente dele. Reservaria alguns momentos de prazer para os dados e as cartas, mas, para atingir seu objetivo, deveria se aplicar intensamente nos estudos, como fizera em Pavia.
Em Pádua, as aulas aconteciam de forma bastante organizada, sem falhas, e isto trouxe especial admiração para o aluno que estava pouco interessado em festas e encontros sociais. Naquele ano, ele recordou seus conceitos sobre a teoria das febres de Avicenna, um tema fundamental que seria recorrente, acreditava, em sua prática clínica como médico.
— Veremos oportunamente as doenças particulares da cabeça ao coração e em seguida as doenças particulares abaixo do coração — falou de forma grave o professor Pietro. — Hoje, vamos continuar com a discussão sobre o Liber nonus ad Almansorem, de Rhazes, o livro IX dedicado ao rei Almansor. Amanhã, veremos a obra sobre febre, De Febribus, o quarto livro do cânon de Avicenna.
Os alunos, em total silêncio, miravam o professor com reverência, aguardando a continuidade da exposição.
— Como já sabem todos, Rhazes nasceu na Pérsia, em plena época de ouro do conhecimento oriental, quinhentos anos atrás. Ele nos deixou o ensinamento de humildade no tratamento de pobres e ricos e da importância em diferenciar as crianças e os adultos, pois as doenças e a forma de aparecimento podem depender da idade. Para isso, veremos hoje Practica Puerorum, o tratado da prática em crianças. — Pietro Pomponazzi entregou o livro para o primeiro aluno da primeira fileira. — Gianmarco, por favor, leia De magnitudine capitis puerorum. Se quiser, pode transformar em nosso latim vulgar.
— Sobre o... alargamento da cabeça em crianças — começou Gianmarco, titubeando um pouco. — Acontece, às vezes, de a criança nascer com a cabeça grande e ela aumentar até a morte, como eu já vi... isso é resultado da ventosidade gerada dentro dos ossos da cabeça, ou de água que não encontra o caminho de saída... Pegue quantidades iguais de bile de águia, de lontra e de... carpa e misture com açafrão e açúcar, amassando e formando uma pílula do tamanho de uma...
— Lentilha — completou o professor.
Alguns discretos risos contidos foram ouvidos pela sala.
— Lentilha... — continuou Gianmarco. — Deve-se aplicar nas narinas três vezes ao dia e medir a circunferência da cabeça com uma pequena corda por quinze dias... dessa forma, verá a cabeça retornar ao tamanho normal.
— Obrigado, messer Gianmarco. — Dirigindo-se à turma, salientou os aspectos do texto a serem lembrados. — Vejam, senhores... a cabeça deve ser medida regularmente para que se tenha a noção exata de como acontece a modificação da circunferência. Além disso, a substância aplicada nas narinas, que provavelmente se dissolve para cima, permite que água em excesso escorra e a cabeça volte a ser o que era, sob pena de termos uma criança que não consegue mais erguê-la, tão grande o seu tamanho.
Pomponazzi lembrou então, no fim, que as explicações médicas não deveriam recorrer aos espíritos.
— Devemos explicar esses fenômenos com causas naturais, sem perguntar aos demônios — falou Pomponazzi, terminando a aula em italiano. — É ridículo abandonar as evidências e procurar o que não é crível, quello che non è né evidente né credibile.
Cardano gostava das explanações do professor Pietro. Além disso, sentia-se bastante identificado com Muhammad ibn Ràzi, chamado de Rhazes, por ele ser um polímata, um estudioso em várias áreas do conhecimento humano, inclusive na matemática.
Isso o fez recordar da resposta que esperava de Veneza, sobre o manuscrito que escrevera. Coincidentemente, ao entrar em casa e interromper suas divagações sobre o médico persa, observou que chegara uma carta de Ottaviano Scotto. Abriu, ansioso, esperando a resposta sobre seu livro de matemática:
A messer Hieronymus Cardanus.
Magnifico e Honorato amico.
Io ho tanto penato a scrivervi...
Ottaviano tinha penado a escrever, pois era obrigado a dar uma má notícia: o servo tintureiro da editora havia perdido todo o material. Provavelmente confundiu-o com papéis a serem descartados e tudo se foi. Tentara achá-los, mas, depois de muita procura, desistiu. Propunha então publicar o próximo trabalho que Cardano escrevesse, independentemente do tema que escolhesse. Esse era o trato.
Não deixava de ser uma boa notícia ter uma possibilidade certa e clara de publicação, mas poderia achar que alguma força superior estaria impedindo seu caminho de escritor rumo à fama. Pela segunda vez seus escritos desapareciam! Talvez meus escritos ainda não estivessem à altura de minhas ambições, pensou. Quem sabe agora, com mais experiência?
A segunda carta era de um servo de Fazio. Reconheceu a letra canhestra, mas compreensível. Por que escrevera e não tinha esperado o servo de Pádua fazer a visita mensal? Ao abri-la, percebeu que tinha sido ditada por Chiara.
Meu filho, seu pai está muito doente.
Não sai da cama.
Temo pelo futuro.
Seria bom se pudesse vê-lo.
Com apreço,
Sua mãe.
Os meses em Pádua tinham passado como um raio. Alguns desafios entre colegas da turma, sem maiores consequências, muitas aulas sobre Avicenna, um curso extraordinário sobre Filosofia e algumas tardes em que saía para jogar dados. Não estava disposto a perder tempo com conversas em mesas de taverna, ou visitas a moças de reputação duvidosa.
Sua energia estava toda concentrada em estudar e adquirir a maior quantidade de conhecimentos possível. Não fizera nenhuma amizade, com exceção de Gianangelo. Ainda assim, encontrava-o basicamente na Universidade. Por isso se surpreendeu quando o amigo propôs acompanhá-lo na visita ao pai.
Saíram bem cedo, no dia seguinte. Era início de agosto. Com clima suave, afortunadamente, a marcha foi tranquila e rápida. Dormiram em uma estalagem próxima a Brescia e, no dia seguinte, bem tarde da noite, com os cavalos completamente exaustos, chegaram a Milão.
Os sinos batiam constantemente, avisando das mortes pela peste. A doença recrudescera naquele mês e dizimara milhares de milaneses, ao contrário das expectativas. Com o Lazzaretto excedendo sua capacidade e sem coveiros suficientes para enterrar os mortos antes de exalarem um odor insuportável, muitos foram colocados em valas múltiplas, fora dos muros da cidade.
Cinquantamila i morti ne’ soli domini del ducato milanese, dizia-se, pelas esquinas. Cinquenta mil, só no ducado, era um exagero evidente, mas, ainda assim, não se podia negar a gravidade da situação.
Os pais de Cardano agora moravam em uma casa que ficava no Mulino dei Bossi, alugada do primo Alessandro Cardano. Chiara chorou ao ver o filho, mostrando que estava já bastante desgastada com a doença de Fazio, que não saía mais da cama. Fizeram o diagnóstico de peripneumonia epidêmica. Nos últimos dias ele estava um pouco melhor, voltando à lucidez e à rabugice cotidiana.
— Estou feliz que tenha vindo... — falou Fazio, com dificuldade —, mas deve voltar para não perder o ano de estudo...
— Fique tranquilo, pai, nesta semana as atividades são mais leves. Gianangelo, meu amigo, me convidou a voltar a Veneza e rezar na natividade da Virgem Maria, em setembro.
— Já foi lá, filho? Me conte... é bonito?
— É uma cidade linda, pai. Os barcos pequenos e rasos se deslocam para todas as casas. Por exemplo, fomos a uma recepção e voltamos somente pela água. Não há nada igual. Pode-se caminhar pelos becos e pontes e perder-se no emaranhado de vielas. Mulheres colocando roupas para secar, crianças brincando, quase a cair no canal, mercadores bem-vestidos que passam, de repente, ao seu lado. É verdade que os canais, às vezes, cheiram mal... Nada é perfeito.
— E o Senado, filho?
— Maravilhoso! Há mais de dois mil nobres em Veneza, pai. O doge, a signoria e o chanceler recepcionam-nos no Grande Conselho, um lindo salão onde se sentam todos, de frente e de costas, em longos bancos de couro. Votam periodicamente os sessenta escolhidos que farão parte do Senado. Aí sim, no Senado é que são tomadas as decisões de guerra, paz, taxas e leis. O Grande Conselho, por ser enorme, não permitiria discussões sobre tantos temas. Quando estivemos lá, muito se falava sobre a invasão dos turcos em Rhodes. Os Cavaleiros Hospitalários de São João acabaram sendo expulsos. Eles não estão mais no mar Egeu.
— Para onde eles vão? — perguntou Gianangelo, interessando-se pela conversa.
— Não sei — respondeu Cardano. — Ninguém sabe. Eles são muito bem considerados. Certamente arranjarão algum lugar.
— Veneza deve ajudar... — falou Fazio. — É o maior império de todos...
— Acho que esses tempos já passaram, pai — Cardano fez cara de dúvida. — Os venezianos ficaram muito bravos com o comentário de um político de Florença, Niccolò dei Machiavelli, que zombou deles por não terem um exército de pessoas da própria cidade, por não fazerem uma convocação aos moldes daquelas que levam as pessoas ao mar. Ademais, agora o mar Egeu é muito mais dos turcos, e o resto do mundo é dos portugueses e dos espanhóis.
— E a Universidade, filho? — perguntou Fazio, suspirando e fechando um pouco os olhos, para recobrar energia.
— Muito boa, pai — respondeu Cardano, apreensivo pelo estado em que se encontrava Fazio. Ainda assim, considerava que aquela conversa seria um grande prazer para ele, já impossibilitado de se deslocar pela cidade. — Temos aula com grandes professores, como Fracastoro e Pietro Pomponazzi. Estudamos Oribasius, Ætius, Paulus Ægineta, Avicenna, Rhazes, Averróis...
— Não estudam matemática?
Gianangelo sorriu com o comentário.
— Não, pai, vou ser médico, lembra-se? Estudo filosofia, não matemática.
— Claro, filho, claro... — corrigiu-se Fazio, falando lentamente. — Então vocês abrem pessoas, fazem estudos em corpos?
— Muito pouco. Discute-se bastante se é válido, moralmente aceito, ou se o médico deve se rebaixar ao nível de um cirurgião, que coloca a mão em cadáveres... Eu, particularmente, não tenho muita atração. É muito mórbido. Não quero ver a morte dessa forma. Já fiz minhas experiências, basta — falou Cardano, já querendo mudar de assunto. — Mas, em relação à matemática, não quer dizer que eu próprio não esteja estudando do meu jeito. Quando escrever um livro que chamarei a Arte Maior, a Ars Magna, um nome que já está na minha cabeça, todos verão um Cardano alçar o maior voo da história das letras e números! — completou, empolgado.
— Seu filho não tem limites para os pensamentos, messer Fazio — disse Gianangelo, sorrindo. — Ele não tem amarras... Ele critica Galeno e ainda assim prende a atenção das pessoas em um debate. Correu a notícia que até o professor Camuzio, de Pavia, disse que Cardano era o único a fazer contraponto ao mestre de Roma. Ele disse que debateu até em Veneza, diante da Academia?
Fazio ouvia, orgulhoso, não querendo perder um único detalhe do sucesso do filho.
— O pretor veneziano, Sebastiano Giustiniani, falou que ele era ainda jovem e, se continuasse a estudar, superaria outro grande professor — continuou, empolgado, Gianangelo, imitando a voz grossa do pretor: — Studia giovinotto, tu superarai lo stesso Curzio!
Cardano sorriu e voltou a falar dos detalhes da posse do reitor:
— É o Senado de Veneza que escolhe o reitor da Universidade de Pádua. Presenciamos uma linda festa para o reitor atual.
Gianangelo observava o diálogo dos dois. Chiara, por outro lado, sentia uma ponta de ciúme por não ter longas conversas com o filho, mas estava segura de que seu afeto aparecia de outras formas. Preparava com carinho as comidas preferidas de Cardano, evitava que Fazio tomasse medidas muito prejudiciais às finanças da família e regularmente enviava ao filho uma pequena, mas fundamental, ajuda em dinheiro.
Após dois dias em Milão, Fazio foi taxativo: não queria que Cardano permanecesse mais na cidade. A peste estava ceifando vidas, e, em Pádua, o curso de Medicina chegava ao fim do ano letivo.
Antes de partir, ficou sabendo da morte do mestre Achilles, o barbeiro-cirurgião que permanecia vivo em sua memória.
— Frade Giacomo veio à nossa casa no mês passado e nos deu a notícia — disse Chiara.
— Nossa... Frade Giacomo esteve aqui? — disse Cardano, surpreso. — Ele disse que nunca mais sairia de Gallarate...
Então, por Fazio não ter tido a coragem de contar, ele ouviu dos lábios de Chiara uma notícia que o deixou muito emocionado.
— Ele veio nos casar, filho. Fez a cerimônia. Eu e seu pai, agora, somos marido e mulher perante Deus Todo-Poderoso — disse Chiara, com os olhos cheios de lágrimas.
Poderiam até considerá-lo um filho ilegítimo, como de fato continuaria sendo para muitos; apesar disso, no íntimo, nunca mais olharia no espelho como uma pessoa cujo pai recusara a união sob a bênção da Igreja de Roma.
Ao retomar o caminho para Pádua, viajou de cabeça erguida, orgulhoso de sua condição atual, alegre por ser um honrado e legalmente aceito filho de Fazio Cardano. Triste, por outro lado, pois sabia que seu pai não viveria muito.
Em setembro, pouco depois de voltar a Pádua, Cardano recebeu uma carta que contava a agonia dos últimos momentos de seu pai. Foram nove dias de jejum até que, no dia 28 de agosto, próximo dos 80 anos, com a mente fresca e o ânimo sereno, Fazio expirou.
Cardano ajoelhou-se e dirigiu-se a Deus, pedindo paz à alma do pai. Depois solicitou, para si próprio, por meio da bondade divina, Domine Deus, infinita tua bonitate, dai-me vida longa, dona mihi vitam longam, além de sabedoria e saúde, na mente e no corpo, et sapientiam sanitatem que mentis e corporis. Fez o sinal da cruz e deitou-se para um longo sono. Nele, sabia que seria visitado por Fazio.
Cardano escreveria em seu livro, no dia seguinte:
Minha alma, nua, estava no Paraíso da Lua, liberada de meu corpo. Anima mea esset in Cœlo Lunæ, nuda à corpore, & solitaria. Apreensivo, ouvi a voz de meu pai. Ele me falou que todos os espaços eram preenchidos por espíritos e que não poderia vê-los. Eu permaneceria nesse céu por mil anos, millibus annis, in singulis orbibus, e o mesmo número de estrela em estrela até a oitava, quando então chegaria ao reino de Deus, usque ad octavum, post pervenies ad Dei regnum.
A interpretação do sonho pareceu fácil para Cardano. A Lua significava a gramática; Mercúrio, a geometria e a aritmética; Vênus estava relacionada à música e à poesia; Marte representava medicina e Saturno, a agricultura. A oitava órbita era a colheita de todo entendimento e, após todo esse caminho, a paz ao lado do Senhor.
Cardano estava preenchido por uma sensação de total serenidade e assim se sentiu inspirado para escrever as palavras que seriam gravadas na lápide de seu pai. Morte foi para ele ter vivido, pensou. A morte mesma lhe deu a vida. A mente continua eterna.
Facio Cardano
Juris Consultus
Mors fuit id quor vixit
Vitam mors dedit ipsa
Mens æterna Manet
Gloria tuta
O ano letivo estava próximo do fim. As matérias se sucediam com aulas sem muitos intervalos. O título de bacharelado em Artes já estava garantido, mas faltaria conseguir, até o fim de 1525, ou início de 1526, o título de doutor em Medicina, que lhe permitiria ser aceito em um Colegiado. Assim, poderia atuar como professor e atender pacientes, uma maneira de ter um retorno financeiro garantido.
Por ora, conseguia se manter com algum dinheiro que a mãe lhe enviava e com ganhos irregulares na mesa de jogo. Na maior parte das vezes, as rodadas aconteciam na casa do professor Francesco Buonafede. No fim de uma dessas tardes, restaram Cardano e o professor, o que permitiu uma conversa íntima sobre um assunto que interessava bastante ao aluno.
— Professor Buonafede, já é hora — falou Cardano, levantando-se com reverência. — Todos se foram.
— Não, Cardanus, meu caro, temos algo a conversar — disse Buonafede, servindo-lhe mais uma taça de vinho. — Um terço de água?
— De bom grado...
— Quero que tenha conhecimento — começou o professor — que, graças à sua exímia habilidade acadêmica, seu nome entrará em votação para a reitoria da faculdade. Sabe que é um cargo simbólico, entende?
Cardano não deixou transparecer a sensação de alegria e acenou levemente com a cabeça.
— Bem, não há mais festas, nem comemorações na posse desse cargo — explicou Buonafede. — Como de praxe, o novo reitor deverá oferecer aos professores um jantar especial, em um local compatível. O que será de comer, e de beber, primará pela boa qualidade. Além disso, deverá ajudar o pró-reitor no que for preciso. Em contrapartida, a honraria poderá pesar em decisões de colegiados de outras cidades, caso queira trabalhar em regiões diferentes de nossa Itália.
Cardano refletiu um pouco sobre o convite, pois passava por um difícil momento, por causa da perda do pai.
— Aceito e me sinto honrado, professor Buonafede. É verdade que tenho muitas coisas a resolver, pois meu pai deixou muitas dívidas. Terei de voltar a Milão algumas vezes no próximo ano. Não diria isso para ninguém mais além do senhor — disse Cardano, deixando claro que era uma informação que não desejaria partilhar com outros da faculdade.
— Tem minha confiança, Cardano. — Francesco Buonafede colocou a mão no peito em sinal de pacto de honra. Depois, voltou aos temas corriqueiros: — Pretende morar novamente em Milão?
— Não, professor. Não é que eu queira fugir das obrigações de enfrentar as disputas judiciais que estão começando a ocorrer contra minha mãe, em nome de meu pai. Os Castiglioni e os Barbiani, por exemplo, insistem em receber uma quantia que não lhes pertence. Estão brigando em cima do túmulo de uma pessoa honrada.
— Mas e a cidade, como está? — perguntou Buonafede. — Ouvi dizer que o problema agora são os espanhóis.
— É verdade — respondeu Cardano. — Milão não está passando por um bom momento. Os espanhóis estão aviltando as casas dos moradores de forma vergonhosa, e a peste ainda não desapareceu completamente. Madri enviou, a serviço do imperador, il duca di Borbone, um governador fraco e sem personalidade. Os franceses, novamente, pediram três mil ducados para não atacarem, e o duque aceitou. Quem pagou? Como sempre, os milaneses.
— Sua mãe, como está?
— Passa bem — disse Cardano. — Na última carta, disse que estava se adaptando à situação. Não sei como ela consegue. Mas a vida dela é aquilo, sem grandes aspirações.
— Se ganhar, Cardano, deve ir a Veneza. Seu nome será referendado pelo Senado. Está de acordo? — perguntou Buonafede.
— De acordo. — Cardano fez uma demorada reverência ao professor e tomou o caminho de casa.
O início de noite estava bastante agradável. A possibilidade de ser escolhido reitor deixou-o radiante, mas a sensação de querer continuar a jogar levou-o a refletir sobre o que empurrariam as pessoas para aquele hábito, para a necessidade de manter-se continuamente em uma mesa rolando dados, ou trocando cartas, sabendo que a vida pode proporcionar outros prazeres.
Sentou-se em sua escrivaninha, tomou um maço de folhas em branco e alinhou as primeiras palavras de uma série que estava em sua cabeça, esperando para ser colocada no papel: Liber de Ludo Aleae, O Livro dos Jogos de Azar. Logo abaixo, seu nome em latim: Hieronymus Cardanus.
Ao longo de vários dias, escreveu sem parar, às vezes em italiano, às vezes na língua latina, sem atentar como ficariam alinhavadas as palavras. Só estava preocupado em deixar fluir aquilo que precisava ser transcrito. Qual era a vantagem do jogo? Quais eram seus perigos? Somente o destino decidia quem iria ganhar, ou uma série de mandamentos seriam obedecidos pelo rolar dos dados, fazendo com que umas pessoas ganhassem mais do que outras?
De ludorum conditionibus. Sobre as condições de jogar. Quando há ansiedade e sofrimento, escreveu, o jogo pode ser considerado não apenas autorizado, mas até benéfico.
Aos homens que estão na prisão, aos condenados à morte, aos doentes, o jogo pode ser de grande ajuda. Da mesma forma, a lei o permite nos casos de dor. No entanto, deve haver moderação na quantidade de dinheiro envolvida. Impositus est tamen modus, circa pecuniæ quantitatem.
Para a desculpa de alguns de que o jogo alivia o tédio, de leniendo tædio temporis, diria que seria melhor ocupar-se com uma leitura agradável, com a narração de contos e histórias, ou com uma bela arte. Pictura, musica, legendo audiendove fabulas. Digo isto por três razões.
Prima, porque uma mudança causada por algo sério resulta em maior prazer que o jogo, seja porque algo é produzido, como é o caso da pintura, ou pela sua natureza, como na música.
Secunda, toma-nos mais tempo que deveria. E o tempo, disse Sêneca a Lucílio, é a mais preciosa de todas as coisas.
Tertia, o emprego do tempo de lazer com artes nobres é mais respeitável e não se apresenta como um mau exemplo para as crianças e os servos. Non mali exempli & maximè apud filios & domesticos.
— O segredo está em determinar o circuito, para então estudar as chances de uma aposta — confidenciou ao amigo.
— Explique-se melhor, Cardano — rebateu Gianangelo. — O que é o circuito?
— São todas as opções de jogo — explicou Cardano, com paciência, tirando dois dados de seis lados e jogando-os na mesa da taverna. — Veja, fica fácil se analisar primeiro apenas um dado. O circuito compreende de um a seis. Se escolher os números quatro e cinco, terá um terço de chances de ganhar, certo?
— Certo — concordou o amigo. — O que há de novo, então?
— Calma, Gianangelo. O assunto complica-se quando usamos mais dados. Diga-me uma coisa: se eu jogar os dois dados, e você escolher como resultado da soma o número dois e eu escolher o três, quem tem mais chance de ganhar?
— É igual! — sorriu Gianangelo. — No meu caso, tem que cair o número um nos dois dados, e, para você, teria que ser um dado com o número um e o outro com o número dois.
— Errado, meu caro. — Cardano levantou as sobrancelhas, com indisfarçado prazer. — O resultado equivalente ao três tem um circuito de duas opções: um-dois e dois-um. Ou seja, quando se escolhe o resultado de número dois, só há uma opção para cada dado, o lado de número um. Com a soma totalizando três, eu teria o dobro de chances de ganhar. Se escolhesse um resultado que somasse seis, mais chances ainda: um-cinco, dois-quatro, três-três, quatro-dois etc.
— Puxa, não tinha pensado nisso... — Gianangelo surpreendeu-se.
— A chance de uma aposta ocorrer depende das possibilidades de ele poder acontecer. Há a necessidade de analisar com detalhes o circuito.
— Por que a palavra circuito?
— Não sei. Tinha que escolher alguma. Por exemplo, escrevi o seguinte: in decem octo circuitus ad aequalitatem dissimilium, ou seja, ocorrem em pares de dezoito resultados de equidade quando se jogam com faces desiguais. A equidade para esta jogada consiste em nove opções.
— Já não estou acompanhando, caro amigo Cardano. Prefiro acreditar que esteja correto. Só não entendi o seguinte: como vai continuar ganhando dinheiro no jogo se contar o segredo?
— Esse é o conflito entre um lado da pessoa que produz e outro que joga... — Cardano refletiu, coçando a cabeça. — Acho que é mais forte para mim escrever e contar a todos o que sei, o que descobri. Guardar segredo pode ser um trunfo em debates, ou no jogo, mas quero ter o prazer de disseminar a verdade.
— Agora está falando como um messias... — zombou Gianangelo.
— Além disso — continuou Cardano, sem se importar com o scherzo do amigo —, Aristóteles condenou o jogo. Seria mais nobre escrever um livro que jogar. Chamei esse capítulo de Quòd alea damnata sit ab Aristotele.
— O que ele falou? — Gianangelo ficou curioso ao ouvir a citação ao grande mestre.
— No livro Ética, Aristóteles disse que jogadores e ladrões são sórdidos por fazerem de tudo para ganhar. Ladrões enfrentam maiores riscos, enquanto apostadores ganham dos amigos, pessoas a quem deveriam, ao contrário, doar. Aleatores autem ab amicis, quibus dare oportet, lucrantur.
— Sórdido é uma palavra muito forte. — Gianangelo cerrou as sobrancelhas. — Os cristãos toleram o jogo.
— Essa é uma boa ideia: falar dos cristãos, em contraste com os antigos.
— Não sei se é muito adequado falar dos cristãos... — Gianangelo arregalou os olhos.
— Talvez não — concordou Cardano, avaliando a delicadeza do tema. — Vou pensar nisso. Ainda há muito o que escrever. Quando tiver algo pronto, mostrarei para um amigo de Veneza. Recebi uma carta dele. Vou visitá-lo na semana que vem.
— Quem é, Cardano?
— Ottaviano Scotto.
— Da família de editores? Incrível!
— Sim, são eles — completou Cardano, orgulhoso. — Sendo escolhido como reitor, ou não, já me decidi: voltarei à cidade que é a capital do mundo!
— Fico contente que esteja animado, caro amigo. Veneza ainda é maravilhosa, com certeza, mas o rei François I tem feito um trabalho impressionante — ponderou Gianangelo. — Paris e o vale do rio Loire estão se tornando um centro de humanistas, talvez o centro da Europa. O professor Buonafede disse que os franceses Budé e Lefèvre têm o apoio do rei. Eles falam em unidade essencial do conhecimento. Um deles até usou uma palavra nova, “enciclopédia”.
— Boa, essa palavra, bem inteligente. Acredito que venha do grego. Eu traduziria como no círculo da educação, en-kyklos-paidèia.
— É mais ou menos isso — concordou Gianangelo. — Algo que abrange toda informação, todo o conhecimento.
— Quer ir a Veneza? — perguntou Cardano.
— Nesses dias não poderei, amigo. Divirta-se. — Tomou o último gole da cerveja.
Naquela semana, transcorreu uma votação para a nova reitoria, mas houve razoável rejeição ao nome de Girolamo Cardano. Ele decidiu então ir a Veneza mesmo assim, aceitando o convite do amigo Ottaviano.
Buonafede disse a ele que o resultado não fora totalmente ruim. Se por um lado havia alguma rejeição, por outro evidenciou que muitos votaram nele. Isso abriria a possibilidade de uma nova votação posteriormente. Bastava conversar com os que se opuseram e talvez alguns pudessem mudar de ideia.
Mas não era a hora de se preocupar com isso, pensou Cardano. O que importava era aproveitar esses momentos preciosos do recesso escolar.