Venezia

Saiu cedo pela Porta Romana que mirava a nordeste. A estrada, monótona em seu início, margeava plantações de cereais e de vegetais. Após duas horas, ele e seu servo passaram por uma densa floresta e cruzaram com uma caravana de hebreus. Decidiu descansar um pouco e observar o jeito estranho que eles tinham de rezar, balançando a cabeça com força, entoando em uma língua bem diferente. Um dos hebreus, vestindo uma roupa preta dos pés à cabeça, com um pequeno chapéu de aba curta, aproximou-se de Cardano e apresentou-se em latim.

Ave. Somos de paz e chegamos da Germânia.

Ave — respondeu Cardano, desconfiado, com a mão repousada em sua arma. — Por que saíram da Germânia?

— As terras estão sendo arrasadas, camponeses lutam com mestres e entre si. O sacerdote Lutero prega contra os judeus, mas nós não queremos mal a ninguém.

— Os camponeses estão em guerra? — perguntou Cardano, surpreso.

— Pode-se dizer que sim. Chamo-me Alef, e o senhor?

— Cardanus di Milano. — Estendeu a mão. Dirigindo-se a um estrangeiro, era mais fácil falar de sua cidade de criação do que a de nascimento. Geraria menos perguntas. — Aceita vinho, signor Alef?

— Agradeço a gentileza, caro Cardanus. Hoje é dia de jejuar e de rezar em nossa comunidade. Desejo que espalhe a todos que chegamos em paz.

— Se é a paz que trazem, muito me alegra.

— Corre o mundo a máxima de que Veneza acolhe a diferença e preza a liberdade de pensamento — completou o hebreu.

— Assim é a verdade — concordou Cardano. — Que sejam bem-vindos. — Com um aceno de cabeça, fechando os olhos em sinal de reverência, despediu-se e continuou caminho, seguido de seu servo.

Após duas horas e meia a cavalo, em passo lento, começaram a perceber cada vez mais grupos de pessoas, pequenos comércios de frutas e de cereais, dois moinhos, uma taverna, até chegarem a uma grande feira.

As tendas grudavam-se umas às outras e assim o calor do sol não penetrava. Sentia-se o cheiro do mar. Desceram do cavalo e caminharam, trombando com as pessoas, que andavam apressadas. Cardano nunca tinha visto algo parecido.

Parou em frente de um rapaz oriental que tinha belos pães brancos em seu tabuleiro. Notou que ele acabava de vender um bolo, mas tinha conversado em uma língua de um país distante. Talvez fosse de algum lugar dos Bálcãs, do outro lado do mar Adriático. Tirou do bolso uma pequenina moeda de cobre e, sem dizer uma palavra, ofereceu pelo pão maior.

O oriental gesticulou, argumentou de forma veemente e demonstrou em sua língua que a oferta era inferior ao valor do produto.

Cardano ouviu atentamente, refletiu por alguns segundos, levantou as sobrancelhas e tirou do bolso uma moeda maior, ao que o comerciante fez cara de que tinha concordado e iria dar o devido troco. Embrulhou o pão com cuidado e devolveu duas pequenas moedas.

Cardano saiu então do miolo da feira para poder sentar-se com calma na parte de fora e aproveitar com prazer grandes nacos do pão de trigo.

— Que pão delicioso — disse o servo de Cardano. — Mestre, responda-me, por favor, como entendeu o que disse aquele rapaz de pele escura? Ele explicou longamente sobre alguma coisa do pão. Nunca ouvi aquela língua.

— Como entendi? — sorriu Cardano. — Apenas fiz cara de que estava entendendo. Quando recebi o troco é que fiquei sabendo quanto era... Fingir demonstrar conhecimento quando, na verdade, não se tem, é uma arte. Pode-se ter erudição, ou apenas a aparência dela: eruditio, vel representatio.

— Mestre, o senhor domina mais artes que qualquer outro homem que já vi. Música, Astrologia, Medicina...

— Isso pode ser um problema — respondeu Cardano, pensativo. — Muitos acham que não é possível conhecer mais de uma arte, e isso pode diminuir a reputação na principal a que vou me dedicar: Medicina. De fato, pluribus intentus minor est ad singula sensus, ou seja, ter muitos intentos é menos eficiente à concentração que ter apenas um.

Veneza, a cidade de Giorgione, o pintor que tinha morrido cedo mas deixara cobiçadas obras-primas, não tinha os muros que outras cidades ostentavam. Contava, na verdade, com uma rede inextricável de canais. Esse era o trunfo. De fato, a maior preocupação, em caso de invasão, era o ataque pelo mar. Quando mestre Da Vinci trabalhou ali como engenheiro militar, a cidade estava ameaçada pelos turcos pela via marítima.

Entrar em Veneza produzia uma sensação única. Chegar ao Canal Grande, o Canalazzo, um rio que cruzava a cidade construída sobre ilhas de variados tamanhos, e ver grandes barcos, ou pequenas embarcações achatadas, em um tráfego frenético, deixava maravilhado o viajante mais experiente.

Dessa vez Cardano se surpreendeu ao ver uma gôndola vermelha que cruzava o Canalazzo com quatro ocupantes, todos em pé, imóveis, de pastas e sacolas na mão, esperando chegar à outra margem para continuar caminho.

La Ca’ D’Oro, La Ca’ da Mosto, Il Flangini e Il Giovanelli, recheados de pinturas magníficas, eram apenas alguns dos palácios construídos às suas margens.

A passagem de um lado ao outro já tivera uma grande ponte de madeira, danificada e destruída recentemente. Por isso, as autoridades chegaram à conclusão que era necessário construir definitivamente uma ponte de pedra, uma nova ponte do rio Alto.

A ideia não era nova, mas colocá-la em prática era um desafio colossal. Veneza estava à altura do desafio, pensou Cardano. Lamentou que o editor Aldo Manuzio não estivesse vivo. As conversas que tiveram estavam guardadas vividamente em sua memória. Lembrava-se de quando ouviram juntos a leitura da carta de Américo Vespúcio em uma taverna de Milão.

O porto fervilhava com cargas de vidro, madeira, lã e ferro. Carregadores saíam dos barcos com engradados de vinhos, cânhamo, azeite e condimentos dos mais variados cheiros e sabores, além de um produto bastante rentável, os escravos vindos de Azov: tártaros e russos, em sua maior parte. O viajante nem pensaria que sinais de crise já eram sentidos pelos comerciantes.

Após guardar os cavalos na margem oeste do Canal Grande, Cardano e seu servo contrataram um barco de fundo chato extravagantemente colorido, com um cavalo de bronze no flanco, equipado com cabine baixa, e se dirigiram ao endereço que forneceram ao gondoleiro, um senhor baixo, vestido com uma túnica de cores vivas, que habilmente manipulava o remo sobre a forquilha de ferro.

Desceram ao lado de uma pequena praça, vencida com poucos passos.Ao parar em frente da tipografia, Cardano admirou a placa de madeira bem grossa e entalhada, com o brasão e uma descrição logo abaixo: Scotti di Monza a VeneziaEditori, e, em seguida, perguntou por Ottaviano Scotto ao encarregado. O corretor chefe apresentou-se ao saber que o estudante de artes de Pádua estava lá.

— Lamento, signor Cardano, ele foi obrigado a viajar para Siena, mas deixou instruções expressas de tratá-lo como a um rei. Logo acima da tipografia há um quarto para hóspedes. Terá total liberdade de sair e chegar.

— Muito amável — agradeceu Cardano. — Gostaria então de subir com minha arca e meu servo para acomodar os pertences.

— Perfeito — respondeu o corretor. — Quando voltar, apresentarei a tipografia.

Após subir com dificuldade a estreita escada em caracol, Cardano considerou o quarto deveras singelo para ser chamado de real. De qualquer maneira, ter uma porta e uma escada que se abriam para a rua era um ponto fortemente positivo. Lavou o rosto e desceu para a tipografia, deixando seu servo acomodar a roupa e os livros na pesada estante de madeira.

No centro do salão se destacava a prensa, com seu enorme parafuso central de metal. A tinta era passada sobre o bloco escrito, que seria pressionado sobre o papel.

Os olhos de Cardano brilharam quando foi apresentado aos tipos móveis usados na impressão dos livros. Com mãos ágeis, o tipógrafo lia o texto manuscrito colocado à altura da visão e, sem olhar, retirava de cada caixinha a letra correspondente, ajustando-a na mão esquerda, de trás para a frente. Os tipos repousavam em pequenos casulos, como se pertencessem a uma colmeia de finos lingotes de ferro.

Ao lado, um artesão entalhava em madeira o frontispício de um livro. A xilogravura permitia até dez mil cópias. Com retoque, renderia ainda mais. Na mesa, logo atrás, o corretor apresentou outro artesão. Este ranhurava uma placa de metal para uma impressão diferenciada de gravura. O material era bastante valorizado no comércio. Cardano interrompeu-o brevemente.

Signor, desculpe a intromissão, sou Cardanus di Milano. — Estendeu a mão, sendo cumprimentado pelo gravurista. — Estou curioso sobre a sua arte.

— Veja. — O artesão levantou a placa em que desenhava um palácio e colocou-a próxima aos olhos de Cardano. — Esta parte de cima, enegrecida, tem uma fina camada de cera, que é retirada com a ponta de metal. Se eu utilizasse a placa lisa, sem cera, a força teria que ser maior, pois o buril arranharia a seco.

— Depois de tirar a cera, recebe a tinta?

— Não — respondeu calmamente o artesão. — Tenho que preparar a água-forte, ou seja, o ácido mordente, e ajustar o tempo de exposição da placa para que o metal seja corroído exatamente onde fiz o entalhe. Depois um solvente limpa a cera, e a matriz está pronta para a impressão, pois a tinta entrará nos sulcos.

— Então esta é a arte da aqua fortis? — Cardano levantou as sobrancelhas.

— Exatamente — respondeu o corretor, permitindo que o artesão voltasse ao trabalho. — Note como os traços podem ser de uma suavidade incrível. — Retirou uma folha já impressa de cima da mesa e mostrou o resultado da técnica. — Por melhor que fosse o entalhador, ele nunca conseguiria isto em uma matriz de madeira.

Ao ver um livro com o nome de Manuzio em cima de uma mesa, pediu permissão e folheou-o, vendo as frases curtas, com explicações justapostas.

— Conheci Aldo Manuzio em Milão. Um grande homem.

— De fato. Talvez façamos também uma edição desse livro como ele fez há alguns anos. Conhece?

Cardano voltou à capa e viu o nome do autor.

— Erasmo da Rotterdam? Aldo me falou dele, mas não sei muita coisa.

— Esse livro é sensacional — falou o corretor, mostrando sua admiração. — Erasmo coletou frases na língua latina que agora todos comentam. Um grande sucesso de impressão de 1500, ou 1501.

— Foi quando eu nasci — interrompeu Cardano.

— O interessante é que o livro tem aumentado — continuou o corretor. — Cada vez o escritor coloca mais adágios.

Cardano folheou-o e começou a encontrar ditados que soavam familiares.

— Lágrimas de crocodilo. — Sorriu Cardano. — Essa é uma boa frase! — E continuou, avançando para outras páginas. — Dos males, eleja o menor... A paz mais desvantajosa...

— ... é melhor que a guerra mais justa — completou o corretor. — Uma frase verdadeiramente humanista.

— Melhor prevenir que curar... Gostei dessa! — Cardano sorriu mais uma vez, divertindo-se com o que lia. — Um crime o tornará um maldito; milhares, um herói... — Então se deparou com outra que o fez pensar. — O talento escondido não produz reputação... — É verdade — refletiu. — Se está escondido...

Cardano depositou o livro com carinho sobre a mesa e continuou a percorrer a tipografia. Aprendeu um pouco mais sobre o trabalho do compositor, do impressor e do próprio corretor. Para quem era apaixonado pelo mundo dos livros, a visita tinha sido um êxtase completo.

Agradeceu imensamente, despediu-se do corretor-chefe e saiu sozinho para encontrar o patrizio veneto Tommazo Lezum, um amante do jogo, indicado por um parceiro de cartas de Pádua. Atravessou a praça principal, a Piazza di San Marco, que tinha em um dos lados a basílica em obra de reforma.

Andou por um labirinto de pontes e canais, até finalmente receber uma indicação precisa da casa do veneziano.

Após ser recebido por um dos servos, entrou no salão, revestido de tecido. Cardano maravilhou-se com um relógio que ficava encostado na parede oposta à porta de entrada. Todo dourado, quase da altura de uma pessoa e com parte do sistema à mostra, o engenho conseguia manter a pontualidade em relação ao relógio solar com incrível precisão. Foi informado de que era necessário apenas dar corda diariamente e fazer um ajuste semanal do horário.

— Esta é a cidade dos relógios mais fantásticos do mundo — falou Tommazo Lezum, ao observar o interesse de Cardano, cumprimentando-o em seguida. Já tinha recebido o recado que o estudante de Pádua chegaria em breve. — Fez atenção ao Orologio della Torre? — perguntou o anfitrião. — Os magos saem por uma porta e entram por outra. Então, como em um passe de mágica, a campana de mais de um metro de diâmetro recebe as estocadas de dois mouros. De metal, claro. O som do sino sai da Piazza di San Marco e percorre a cidade; é ouvido até por quem está chegando ao porto.

— Magnífico — respondeu Cardano. — Não estava presente no bater das horas. Retornarei à torre expressamente para isso.

— A torre foi construída especialmente para a colocação do relógio —explicou animadamente Tommazo —, inaugurado há vinte e cinco anos pelo doge Agostino Barbarigo.

— E quem cuida do mecanismo?

— No início, era o próprio construtor, Giancarlo Rainieri. Ele foi contratado como o primeiro temperatore a morar lá dentro com sua família e responder pela manutenção. Visitei-o algumas vezes. Fizemos grandes rodadas de cartas.

— Já morreu? — questionou Cardano.

— Há alguns anos. Agora a signoria contratou um novo temperatore. Não tão capacitado, ao que me consta.

— Notei que os ponteiros circulam por vinte e quatro horas, a última gravada como XXIIII — detalhou Cardano. — No ponto mais alto, vê-se o número XVIII e, no mais baixo, o número VI.

— No círculo interno foram colocadas as doze casas do zodíaco.

— De fato. Como astrólogo, não poderia deixar de notar — Cardano sorriu.

— Então sabe predizer o futuro? Diria que hoje vai ganhar dinheiro, ou perder?

— Não é possível predizer a sorte no jogo. — O estudante de Medicina cerrou os lábios. — Creia em mim.

Se pudesse fazer alguma previsão, Cardano certamente não permaneceria naquela sala. Rodadas após rodadas de primero depauperaram quase todas as economias que tinha trazido. Foram horas de jogo em que ganhou algumas vezes, mas o saldo tornou-se mais negativo. Dois ducados de ouro, quatro de prata, algumas moedas de bronze.

O anfitrião Tommazo, senador da República, continuava a contar histórias da cidade, de forma inusualmente animada. Falou sobre a quase invasão dos turcos, o comércio de escravos e os naufrágios. Descreveu histórias de moradores e do doge. Era um tipo de jogador que não parava de falar, ao contrário de Cardano, que tentava se concentrar.

No início da noite, no entanto, quase sem dinheiro, Cardano percebeu que algumas cartas estavam manipuladas com sabão. Sunt etiam inungant chartas sapo, pensou. Com a textura modificada, escorregavam mais facilmente. Além disso, uma minúscula marcação facilitava o reconhecimento de algumas, previamente escolhidas.

Cardano, certificando-se de que estava sendo trapaceado, deu um grito de raiva:

Periculosissima fraude! — Levantou-se rapidamente, sacou a adaga e feriu o rosto de Tommazo com um golpe certeiro.

O anfitrião, assustado, caiu para trás, com cadeira e tudo, levantando-se logo em seguida, com a mão no rosto que sangrava. O servo próximo à porta trancou-a imediatamente. Com a mão direita, Cardano desembainhou a espada, apontando-a para o pescoço do segundo servo, que tinha se aproximado da mesa, a ponto de quase tocá-lo.

— Mexa-se, e eu furo sua traqueia! — gritou Cardano, virando-se então para Tommaso. — Quero todo o meu dinheiro de volta! Agora!

— Não precisamos de barulho aqui, signore — falou Tommazo, percebendo que o ferimento vertia pouco sangue, por ter sido superficial.

O dono da casa preferiu contemporizar, pois ficou bastante preocupado com o vazamento de alguma notícia para jogadores habituais. Além disso, apesar de a milícia permitir o jogo, era muito dura com quem usasse de subterfúgios desonestos.

— Não queremos que haja nenhum mal-entendido, certo, estudante Cardano?

— Então afastem-se! Vou pegar o meu dinheiro e irei embora! — gritou mais uma vez Cardano, puxando as moedas para o saco.

— Que assim seja. — Tommaso virou-se para o servo e fez um sinal com a cabeça, autorizando a abertura da porta.

Cardano tomou o caminho da rua, embainhou a espada e cobriu-a com a capa, rapidamente perdendo de vista a casa onde tinha passado todo o dia. Andou a esmo, cruzando pequenas praças, subindo e descendo pontes, admirando a beleza rústica das paredes carcomidas pelo tempo.

Em alguns becos, sentia-se bastante à vontade, mesmo na total escuridão da noite sem lua. Deixou-se perder no labirinto da cidade e sentiu prazer com a experiência.

Descuidou-se, no entanto, ao ver um pequeno barco. Aproximou-se demais da beira de um canal mais largo, escorregou e caiu profundamente na água fresca. As roupas encharcaram rapidamente, tornando-o muito mais pesado, principalmente porque portava suas armas e o saco de moedas, firmemente presos à cinta.

Com dificuldade se manteve com o rosto acima da superfície, debatendo-se para não submergir, mas as margens altas de pedra não facilitavam sua saída do canal. Felizmente, os dois servos que conduziam o barco perceberam o ocorrido, ajudando Cardano a subir. Sentou-se exausto no banco lateral da embarcação, agradecendo a fortuna de ter sido salvo.

Ao levantar os olhos e mirar com mais atenção o senhor dos escravos, viu que ele tinha uma bandagem na face, do lado esquerdo. Mesmo na luz tênue das lamparinas, reconheceu a figura de Tommazo Lezum.

Os servos se entreolharam e esperaram o sinal do mestre para investirem em cima do recém-chegado. Cardano ameaçou se levantar, mas Tommazo tranquilizou-o e deu sinal para os serviçais abaixarem a guarda.

— Foi um bravo na contenda, caro Cardano. Permita-me levá-lo com segurança.

Mais calmo, Cardano aquiesceu com um elegante aceno e descreveu a tipografia onde se alojara. Agradeceu aos céus por ter conseguido se safar do imbroglio. Chegou ao quarto tremendo um pouco de frio, sendo recepcionado pelo servo.

Signore, que aconteceu?

— Uma distração, apenas isso. — Cardano deu de ombros. — Pelo menos a água não estava gelada...

Naquela noite ele preferiu não sair mais. Sentou-se na escrivaninha de madeira e bronze e juntou mais anotações ao Ludo Aleae.

Considerando o número de pessoas que jogam, escreveu, isso parece ser um vício interno do ser humano. Por esta razão, deve ser discutido com um médico como uma das doenças incuráveis. Insanabilibus morbis à Medico tratandum fuit. Além disso, tem sido o costume dos filósofos lidar com os vícios de tal forma que alguma vantagem possa ser extraída, como a de aprender a lidar com a raiva. Mos fuit Philosophorum etiam de vitiis agere, velut de ira.

A volta a Pádua ocorreu sem surpresas, assim como os meses seguintes. Aplicou-se como nunca para fazer jus à honra da reitoria, pois haveria nova votação para o cargo, que estava vago.

No fim do verão, seu amigo Gianangelo Corio trouxe notícias de Milão.

— Gianangelo, por favor, entre e fique à vontade — disse Cardano, ordenando ao servo que fizesse uma infusão de ervas com bergamota para que bebessem bem quente. — Agradeço a gentileza de visitar minha mãe. Acabei não indo vê-la nos últimos meses.

— O prazer foi da minha parte, meu caro — disse Gianangelo. — Sua mãe está bem, fique tranquilo. Mandou-lhe algumas moedas — entregou o saco de couro a Cardano.

— Agradeço, amigo. Não sei como minha mãe consegue me mandar dinheiro com toda a crise que passamos.

— Ela disse que vocês ganharam o processo dos Castiglioni, o que resultará em um razoável ressarcimento.

— Verdade? — Cardano não se conteve. — Como é bom saber que ele terá de ouvir a sentença do juiz...

Gianangelo fez cara de preocupação.

— Mas, em relação a Milão, más notícias: a cidade está em frangalhos, Cardano.

— Por quê, Gian, o que aconteceu?

— Não tem ouvido os comentários? — Arregalou as sobrancelhas. — Os espanhóis dominam a cidade e estão assediando Francesco Sforza, que foi acusado de traição ao imperador. O duque está refugiado no castelo. Nesse meio-tempo, espocam motins de descontentes.

— Minha nossa... — lamentou Cardano. — Pensei que não iria ficar pior do que estava...

— Houve barricadas e derramamento de sangue — continuou Gianangelo. — O governo de Madri mandou como governador il duca de Borbone, com reforços espanhóis.

— Isso eu já sabia. É sempre a mesma história... Muitos devem estar vivendo mal — lamentou Cardano.

— Nem imagina! A peste ainda não foi embora, meu caro. Além disso — continuou Gianangelo —, existem os feridos de guerra. Lembra-se de que no início do ano se tinha falado na faculdade sobre a batalha de Pavia?

— A batalha em que os franceses foram derrotados?

— Isso mesmo! — concordou enfaticamente Gianangelo. — O próprio rei francês, o François I, foi preso e teve que assinar um tratado de paz. Aquilo foi uma carnificina.

— Não há mais elegância em uma batalha — retrucou Cardano, sorvendo lentamente a infusão de ervas.

— Não há, de fato — concordou o amigo. — Por culpa deles mesmos, malditos gauleses. Eles subverteram todas as regras de boa conduta. Para que lutar de verdade se há uma eficiente combinação política?

— Sabe o que eu vi no porto de Veneza? — perguntou Cardano, para logo em seguida responder ele mesmo. — Um enorme armazém turco.

— Turco? Eles não são inimigos da Sereníssima?

— Sim. E aí vem a surpresa. Eu perguntei a um calafete, que estava vedando um barco, se eles conviviam sem problemas — explicou Cardano. — A resposta foi simples e direta: não misturam negócios com questões militares. Há muitos venezianos na corte otomana, por exemplo. Assim, trocam informações.

— Na Lombardia não acontece dessa maneira...

— Mas, afinal, os franceses desistiram da Itália? — questionou Cardano.

— Acho que sim. A derrota em Pavia foi um golpe muito duro para eles. Pelo menos temos uma notícia boa.

— Vão-se os franceses e chegam os espanhóis... — Cardano enrugou a testa. — Não sei o quanto é boa essa notícia... Sabe de uma coisa, Gian? — Cardano olhou no vazio e tomou uma decisão. — Não voltarei a Milão. O professor Buonafede me sugeriu que, quando conseguir o título de doutor, eu me aloje em uma cidade próxima daqui, onde não há médicos. Nem precisarei passar pelo risco de ser reprovado por um colegiado.

— Mas por que não seria aprovado, Cardano?

— Tenho razões para achar que isso pode acontecer — respondeu Cardano, sem querer partilhar suas conjecturas.

Beberam mais um pouco da infusão e depois cada um mergulhou um pedaço de pão na bebida.

— E o debate com Matteo Curzio? — perguntou Gianangelo.

— Ótimo. Ele foi muito amável em me permitir a oportunidade de debatermos filosofia. Não houve vencedor.

— Já imaginava. É seu admirador. — Gianangelo sorriu.

— Pelo menos alguém que me olha como se eu fosse uma pessoa normal.

— Mas você não é uma pessoa normal! — Gianangelo gargalhou.

Cardano demonstrou-se levemente consternado mas, no fundo, admitiu como puro o comentário do amigo.

No fim do outono, após nova insistência, Cardano conseguiu finalmente ser eleito. Ao término do meu vigésimo quarto ano de vida, escreveu, fui escolhido reitor da faculdade. Sub anni XXIV, finem factus sum rector ejus Academiæ. Uma eleição que teve que ser repetida e terminou com a vitória de um voto. Uno suffragio bis repetita suffragratione victor.

A fama da posição, no entanto, tinha se esvaído, e ele teve que arcar com alguns gastos razoáveis para manter a honraria. O dinheiro que chegou de Milão como resultado do processo ganho sobre o médico Castiglione foi bem-vindo, mas não durou muito. Cardano cumpriu um ano de reitoria sem conseguir aproveitar as vantagens que imaginou ter com o cargo.

O terceiro ano de estudo na Universidade envolvia uma minuciosa revisão da obra Tegni, de Galeno, completando a formação teórica iniciada por Hipócrates e Avicenna. A obra reunia o essencial da formação médica, com um olhar especialmente voltado para a prática clínica e para os três estados em que uma pessoa poderia se apresentar: neutro, saudável e doente.

A saúde do corpo, para Galeno, constituía o equilíbrio das substâncias simples, dos elementos e das qualidades e dos órgãos que compunham a proporção ideal necessária ao funcionamento das partes do ser humano.

Em contrapartida, a indisposição mórbida, ou doença, só poderia ser resultado do desbalanço destas forças. A interpretação dos sinais apresentados pelo paciente produziria o diagnóstico, tendo em vista que os nervos obedeciam ao cérebro, assim como a espinha dorsal ao coração, e as artérias serviam ao fígado. Mais abaixo, os testículos tinham como servo o duto espermático.

Para Cardano, Galeno tinha explicado de forma magistral as causas das doenças, que envolviam a teoria dos seis, sempre em dupla: movimento e repouso, sono e vigília, ar e ambiente, alimentos e bebidas, evacuação e completude e, muito importante, sentimentos e emoções, ou seja, tudo aquilo que acontecia com a alma do indivíduo.

Muitas das noções estudadas em Galeno eram repetições dos textos clássicos de Avicenna, por sua vez baseados em Hipócrates. Para Galeno, no entanto, o melhor médico era também um filósofo. Medicus sit quoque philosophus.

Vários professores salientavam que a função da filosofia era eliminar a ignorância do ser humano na arte de viver melhor, na contemplação da verdade e no entendimento das necessidades materiais. Esta última parte envolveria as artes fundamentais à vida do ser humano e ao seu prazer, aspectos diretamente ligados à Medicina.

Nesse sentido, Aristóteles enxergava a conexão fundamental entre Filosofia e Medicina, pois considerava saúde e doença como propriedades da vida. Filósofos estudariam Medicina, e médicos utilizariam os princípios básicos científicos para nortear suas teorias.

Pertencentes ao último ano de estudo, noções das doenças mais comuns foram reforçadas, com ênfase para peripneumonia, catarro epidêmico, erisipela maligna, doença petequial, peste, lepra e tarantismo.

Em relação a esse último diagnóstico, as interpretações variavam entre os professores. Matteo Curzio explicou a Cardano que a picada da tarântula, em camponesas, poderia desencadear um mal-estar geral, além de prostração e depressão. Malesseri fisici e muscolari, uniti a un senso di prostrazione e depressione. O tratamento aceito pela maioria incluía a dança em ritmo frenético, chamada em algumas cidades de tammorra, em outras de tarantella.

Na metamorfose ocorrida em função da picada, principalmente nos pacientes originados da região sul da península, a mulher se transformaria em aranha. La donna si fa ragno, diziam. Um fato único e completamente diferente de tudo o que se conhecia até então.

Marra di Padova já tinha escrito, cento e cinquenta anos antes: o tratamento exige alguma manifestação de alegria por causa da música emitida pela picada da aranha. Poiché la tarantola emette una musica nel momento in cui morde. A verdade é que o tarantismo deixou muitos estudiosos da Universidade desconcertados por não saberem onde inserir o fenômeno dentro dos ensinamentos antigos.

Lógica, matemática, cirurgia, anatomia e as demais disciplinas de leituras teóricas dos textos clássicos se completaram na formação do estudante Cardano.

Ao terminar seu curso de Medicina e Filosofia, com 25 anos, aguardava apenas a votação para o título de doutor. Sub anni XXV, factus Medicinæ Doctor. Não foi fácil. Após duas rodadas com resultados negativos, a terceira e última votação resultou em aprovação, dessa vez com apenas nove votos contrários. Suffragis contra me latis, nec esset ultra tertium experimentum locus, superior evasi IX. O acontecido expôs de forma clara o fato de ele possuir muitos desafetos entre os colegas de profissão.

Em seu diário, Cardano registrou: após a morte de meu pai, no início do meu vigésimo sexto ano, ergo mortuo patre, sub initio XXVI anni, instalei-me na cidade de Sacco, dez milhas de Pádua. In Saccense oppidum, ab est id à Patavio M.P. X. Isto após conselho e sugestão de Francisco Buonafede, médico de Pádua. Auxilioque Francisci Bonæfidei Medici Patavini.

Com essa decisão, Cardano poderia se afastar de um meio que não tinha aprendido a conquistar suficientemente. Mesmo porque, também em Pádua, não tinha conseguido consumar um ato sexual com uma mulher. Mais uma tentativa frustrada adicionara um capítulo extra de constrangimento à sua história; um assunto que parecia pertencer ao subterrâneo de sua mente intelectualmente desenvolvida.

Meus infortúnios, escreveu, são minha impotência no encontro com as mulheres, infelicitates sunt impotentia ad congressum mulierum, uma pobreza sem fim e muitas doenças, paupertas perpetua & morbi.

Depois de devolver a casa onde morava, parou em frente do Palazzo del Bo, uma incrível construção de três andares, perto da praça central. Comentava-se que havia negociações para que uma parte do Gymnasium Patavinum fosse instalada lá. Mas não será no meu tempo, pensou Cardano. Além disso, esta não é minha terra; aqui não volto mais...