Melzi
Cardano pagou por três meses o aluguel de sua morada em Sacco, juntou suas coisas, fechou a casa e resolveu tentar a sorte no Colegiado Médico de Milão. Assim conseguiria exercer a arte para a qual tanto tinha estudado. Os anos de jogo na casa de Gianmaria tinham sido agradáveis, mas vazios. Ainda não se sentia um profissional pleno.
Com exceção de algumas investidas de lobos, a viagem transcorreu sem sobressaltos, como previra Antonio.
A travessia do portal da cidade trouxe a agradável sensação de volta ao lar, mas as ruas da cidade transpareciam uma chocante decadência. O impacto foi ainda maior, pois chegou no fim da tarde em que transcorria uma grande procissão composta por velhos e crianças, todos descalços, cantando de forma sincopada, em catarse, cada um com uma corda no pescoço. Na frente do grupo, uma urna era sustentada nos ombros por quatro sacerdotes com amplas vestes brancas, ornadas com fios de ouro nas mangas. No peito, uma cruz vermelha que lembrava o antigo símbolo das cruzadas.
Cardano parou com o cavalo e a mula no canto da rua e foi perguntar do que se tratava a uma das mulheres que assistiam ao cortejo. O servo também desmontou e segurou os animais.
— É a Arca da Aliança — respondeu a mulher.
— De Jerusalém? — perguntou Cardano com descrédito.
— Não, é a quarantore. Quarenta horas de cortejo atrás da hóstia consagrada.
Cardano demorou a entender que se tratava da Oratio quadraginta horarum. A procissão era uma prática antiga que lembrava as quarenta horas em que Jesus ficou no sepulcro. Tinha sido retomada naquele ano pelo dominicano espanhol Tommaso Nieto. O símbolo era uma cópia da Arca da Aliança, que o povo de Israel tinha levado junto às muralhas de Jericó.
O pranto e os gritos com a passagem da procissão impressionaram Cardano. Parecia que todos pediam aos céus o perdão dos pecados, entendendo que os males pelos quais passavam tinham explicação na conduta reprovável dos cidadãos da cidade.
Após a passagem do cortejo, chegou à humilde casa de sua mãe, o único imóvel que restara dos despojos de Fazio Cardano. Ainda assim, ela permanecera nas mãos de Chiara após uma longa e desgastante batalha judicial contra os Castiglioni.
Após o tímido abraço, em que Chiara não conseguiu disfarçar as lágrimas, Cardano externou sua preocupação com o que tinha visto.
— Mãe, com tudo o que aconteceu, é um milagre que esteja viva.
Como se um furacão tivesse passado dentro dela, despertou de sua letargia melancólica para destilar mais uma vez sua acidez, um sinal de que ainda tinha energia suficiente para continuar enfrentando o dia a dia.
— Milagre de quê? De trabalhar de sol a sol, lavando roupa e cozinhando para os outros? Milagre é a sua presença na minha casa! — respondeu mal-humorada, voltando-se para as frutas que tinha na tigela. — Quer comer alguma coisa? Veja isto...
— Que fruta é essa, mãe? Tem certeza de que vamos comer essa coisa?
— É isso que dá viver no mato; nem conhece as novidades — falou Chiara enquanto lavava na tigela o produto de sua compra da manhã. — Paguei caro por isso, pois sabia que viria... Os espanhóis trouxeram isso para Nápoles. Era planta de jardim, mas a verdade é que é muito bom.
Cardano pegou o sabugo das mãos de Chiara e deu uma dentada nos grãos, fazendo imediatamente cara de reprovação. Ela deu uma gargalhada como há muito não fazia.
— Tem que cozinhar, meu garoto... — Colocou alguns sabugos na água, que já esquentava em cima da chapa de ferro. — É milho da América.
— Que enorme! Nem vi que era um milho, Santo Deus...
— Conheceu uma mulher correta? — perguntou a mãe, indo direto ao ponto.
— Não, ainda não.
— Tem atendido muitos pacientes?
— Mais ou menos. As pessoas da cidade pequena preferem ir ao barbeiro-cirurgião — respondeu Cardano, acomodando-se no velho sofá. — Vou tentar a aprovação no Colégio de Médicos daqui. Milão é a minha cidade, afinal.
Chiara virou-se para Cardano em leve tom de repreensão.
— Está bem, mas já é hora de tomar um rumo em sua vida. Tornou-se um homem, meu filho...
Cardano fechou a expressão e ficou em silêncio.
— Ontem passou por aqui o padre Kenneth — disse Chiara, ignorando o mau humor do filho. — Quer falar com você. Ele está na cidade por alguns dias. Poderá achá-lo na igreja de San Francesco di Paola.
— Lembro-me bem dele... — respondeu Cardano, deixando de lado a censura que recebera da mãe. — Encontrei-o quando estava entrando na ordem. — Cardano franziu a testa, com leve inveja. — Quer dizer que ele virou mesmo padre? Puxa, quanta coisa aconteceu na minha ausência... Mãe, e a música?
— Raramente...
— Deve tocar mais. Sabe que o alaúde cura muitas dores, não?
— Sei mais do que imagina, filho.
— Pois bem, então toque um pouco para mim — pediu Cardano.
— Daqui a pouco. Deixe eu terminar o jantar — disse Chiara, contente com a possibilidade de recordar os tempos em que tocava para o pequenino Girolamo.
Retornei à minha cidade natal em 1529, escreveu Cardano na noite em que chegou, após o tumulto da guerra diminuir um pouco. Anno M.D.XXIX. redij in patriam bellicis infortuniis paululum remittentibus. Vou utilizar as amizades de meu pai e os papéis do casamento para pleitear uma vaga no Collegio dei Fisici di Milano.
A cidade está em um momento difícil, mas o entorno também. Lobos tentaram nos atacar no caminho. Eles se proliferaram com a fuga da gente do campo. Imagino o que tem acontecido quando avançam sobre doentes, velhos e crianças. Francesco Sforza está para voltar. Esperemos que tudo melhore. Quanta coisa mudou...
— Quanta coisa? — falou, surpreso, Kenneth, na entrada da igreja, uma semana após a chegada de Cardano a Milão. — O mundo virou de cabeça para baixo em poucos anos; você é que não viu. — O padre sorriu. — Gênova se rebelou contra os franceses; Roma foi saqueada, os Medici foram expulsos de Florença.
— Mas voltaram... — Cardano sorriu.
— Sim, os Medici voltaram, como sempre — admitiu Kenneth. — E veja só esta: tudo leva a crer que o imperador Carlos V será aclamado como sacro imperador da Germânia e da Itália.
— Da Itália? — Cardano arregalou os olhos. — Qual Itália?
— Toda a Itália. Lombardia, Florença, Veneza, além dos pequenos estados, claro. Sei disso porque vivo em Roma. A coroação deve acontecer no começo do ano que vem.
— E o que faz aqui em Milão? — perguntou Cardano.
— Estou a caminho de Londres. Uma comissão papal estuda o pedido do rei Henrique VIII para a anulação do casamento. Vou junto para discutir o caso. Não tenho problema com a língua deles. Isso ajuda bastante.
— Por que a anulação? O que houve?
— O rei alega o fato de a rainha Catarina ter consumado anteriormente o casamento com o falecido irmão dele, mas ao que parece ele está se esfregando com uma mulher chamada Ana.
— Mas ele sempre foi tão religioso, não?
— Dizem que ele é muito culto — ponderou Kenneth —, mas também muito impulsivo. Se ele se apaixonou mesmo por aquela moça, temos um problema sério. Depois do rompimento desencadeado por Martin Lutero, tudo é possível.
— Muita coisa está ainda mudando... — Cardano colocou a mão no queixo.
— Ah, tem uma notícia triste para nós todos da península italiana — falou Kenneth, sorrindo maliciosamente, pois a pessoa que perdera o título de descobridor não era da Lombardia, mas de Florença. — Não foi Vespucci que descobriu o Novo Mundo.
Cardano arregalou os olhos.
— Foi Colón, como chamam os espanhóis — continuou Kenneth. — Foi Cristòforo Colombo, de Gênova.
— E o Novo Mundo continua a chamar-se América? — perguntou Cardano. — Isso seria um contrassenso! O curioso é que um amigo do meu pai, um editor de Veneza, tinha me alertado para essa possibilidade. Na época, parecia absurda.
— Agora já é tarde — Kenneth lamentou discretamente —, não muda mais.
Kenneth levantou-se e convidou Cardano para andar ao redor do jardim interno do mosteiro.
— E o que tem feito? Aguardo ansioso a possibilidade de assistir a palestras suas — falou Kenneth animado.
— Tenho escrito... atendido alguns pacientes...
— Tem atendido fora de Milão? Sua mãe me falou que morava em Pádua.
— Sacco, na verdade — corrigiu Cardano. — Uma pequena cidade perto de Pádua que agora está sendo atingida pela peste.
— Conversei bastante com sua mãe um dia que fui visitá-la, antes de você chegar. Tive a impressão de que ela estava muito melancólica.
— É natural. Perdeu o marido, amigos, parentes... — analisou Cardano. — Está sozinha. Ela me pareceu normal, na verdade, com o mau humor de sempre. Talvez porque eu tenha voltado a Milão.
— Certamente! O filho que retorna.
— Quero fazer Medicina aqui mesmo. Para isso, estou pleiteando uma cadeira no Colégio dos Médicos, por intermédio do senador Filippo Archinto — explicou Cardano. — O primeiro pedido foi recusado, o que não é uma novidade, mas conversei com o jurisconsulto Francesco Croce, um conhecido de meu pai. Ele me disse que agora, com o recurso, tenho grande chance de conseguir, pois estou com os papéis do casamento dos meus pais em ordem.
— Que estranho recusarem um médico por ser filho ilegítimo... Isso é coisa do passado. — Kenneth franziu a testa. — Acho bom considerar a hipótese de existir algum desafeto lá dentro, alguém com poder de decisão.
— Não, acho que não. É só uma questão burocrática. O problema é que isso custa dinheiro. Os médicos do colegiado se reúnem periodicamente na igreja do Santo Sepulcro, uma vez por semana. Espero que em breve tenham a resposta para que eu possa iniciar meu trabalho.
— Boa sorte, messer Girò! Dê-me um abraço.
— Boa viagem, padre Kenneth di Gallarate!
Ao passar pela porta, Cardano ainda se virou com o chamado do amigo.
— Vem me visitar na Britannia?
— Nunca sairei desta península! Pode gravar em água-forte o que estou dizendo — falou Cardano convicto.
— Então escreverei — gritou Kenneth. — Tenho o endereço anotado. Adeus!
Foram mais trinta dias e bastante dinheiro em custas do processo para que saísse o resultado final da requisição de exercício profissional no ducado. Cardano chegou ansioso à casa do jurisconsulto Francesco Croce. O professor de direito civil recebeu Cardano e indicou gentilmente que entrasse. Ele era tão sério que não dava nenhum sinal de qual poderia ser o veredicto encerrado no envelope timbrado do Senado de Milão.
— Doutor — falou gravemente Francesco, o jurisconsulto —, não tenho boas notícias. Vou ler o comunicado, está bem?
Cardano sentiu um gelo na barriga, mas aguentou firme o que o advogado tinha a dizer.
— “O Colegiado dos Médicos de Milão, referendado pelo Senado, determinou, como está escrito nesta carta, que Hieronymus Cardanus di Pavia não foi aprovado para o exercício da profissão de médico no Ducado de Milão após votação realizada nesta casa. Desta forma, o referido postulante não tem direito de consultar, examinar, indicar remédios ou fazer formulações relativas a pessoas doentes nos limites da jurisdição, em virtude de sua condição de filho ilegítimo ao nascimento, conforme as normas deste grupo profissional. Se burlar estas determinações expressas, estará sujeito às sanções aplicáveis pelo condestável, ou pelo chefe da Casa do Senado.” Como pode atestar — Francesco franziu a testa — a carta, assinada pelo doutor Branda Porro, chefe do colegiado, tem a data de hoje.
— Branda Porro? — Cardano não queria acreditar no que tinha ouvido. Pegou a carta em mãos, para conferir a assinatura. — Branda Porro... — repetiu, olhando para o nada.
— O doutor o conhece? — perguntou Francesco.
— Sim... Eu o venci em um debate — falou Cardano, visivelmente chateado. — Fui o primeiro aluno que derrotou um professor. Ele ficou tão humilhado que saiu da faculdade de Pavia duas semanas depois. Outro professor do colegiado estava presente, se não me engano, e confirmou tudo.
— Isso pode explicar o fato de a decisão ter sido tão rigorosa. — O jurisconsulto levantou as sobrancelhas. — Será necessário um trabalho político antes de se tentar uma nova autorização.
— Não tentarei mais nada, professor — disse Cardano de forma determinada. — Este lugar não é mais para mim. Voltarei à cidade de Sacco, de onde não deveria ter me afastado.
— E sua mãe?
— Minha mãe sempre soube ganhar a própria vida. Não precisa de mim — respondeu Cardano, já decidido a partir imediatamente.
Quando voltou para casa, em parte decepcionado, em parte surpreso por não ter avaliado corretamente como seria o processo decisório do colegiado, encontrou um emissário, que já estava de saída.
— É o signor figlio di Fazio Cardano? Só posso entregar esta carta nas mãos corretas.
— Sim, sou eu. De quem se apresenta como enviado?
— Venho da parte do conde Francesco Melzi, de Vàver d’Adda. Ele o espera.
Intrigado, Cardano agradeceu a mensagem e logo abriu a carta. Melzi encontrara algumas anotações que poderiam ser de interesse dele, dizia o bilhete. Tinham saído do punho do mestre Leonardo.
— Mãe, lamento, mas voltarei para Sacco amanhã cedo — falou Cardano, logo após entrar em casa.
Chiara não se manifestou. Continuou a mexer o caldo que preparava.
— Não vai dizer nada? — insistiu Cardano.
Após mais algum tempo de silêncio, ela esbravejou, de sua maneira peculiar:
— Então vá bem cedo pela manhã, na primeira hora, entendeu?
— Sim, entendi — respondeu Cardano. — Espero que a senhora fique bem.
Chiara não falou outra vez.
Os primeiros raios de sol ainda não tinham chegado à casa de Chiara quando Cardano se levantou e acabou de arrumar suas coisas. Entre elas achou um embrulho com peixe seco e pão de centeio, além de um pequeno saco, do tamanho de um punho, com a corda fazendo o fecho. Dentro havia três moedas. Mais do que suficiente para visitar Melzi, depois atravessar a Lombardia, dormir em Brescia e chegar tranquilo a Sacco, onde tentaria mais uma vez sua vida como médico.
Agora estava determinado a se afastar do jogo. Não visitaria mais a casa de Gianmaria. Não bastasse alguns casos iniciais em que não teve sorte no diagnóstico, sua fama como amante das cartas era definitivamente negativa para a vida profissional que almejava.
Rumou com seu servo para a pequenina cidade de Vaprio, às margens do rio Adda.
Sua estadia em Milão tinha sido mais que decepcionante. A cidade estava decadente. Muitos tinham se evadido. Não conseguira ter notícias de seu amigo de infância, Ambrogio Varadei. A casa dele, bem próximo de onde morara, na Via del Maino, estava abandonada. A praça em frente do castelo, que antes abrigava uma animada feira, não dava nem sinais daqueles tempos áureos, em que tinha visto o próprio rei francês entrar triunfante em seu cavalo branco.
Sua mãe, após um sopro de vida inicial, graças à chegada do filho, percebeu que as coisas não estavam indo bem para ele e voltou a ficar desanimada, sem energia nem para brigar. Sentiu que ele não iria ficar. Praticamente não saía mais. Apenas quando estritamente necessário. Mesmo as idas à igreja, que eram diárias alguns anos antes, restringiram-se a duas ou três por semana.
Após algumas horas de marcha, Cardano margeou o rio Adda e chegou fácil à casa do conde Melzi, duas após a do ferreiro, próxima à praça. Ele já estava um pouco envelhecido, apesar de ainda beirar os 40 anos, e recebeu Cardano de forma muito amável.
— Caro signor Cardano, figliuolo de Fazio! Que prazer em recebê-lo. Por favor, entre em minha humilde casa. — Apontou para o alpendre de tijolo e pedra, por onde se chegava à porta.
Cardano cumprimentou-o e seguiu para dentro da sala. Espantou-se com a quantidade de papéis amontoados por todos os cantos: em cima de cadeiras, nas estantes e até no chão. No centro da sala, havia uma grande mesa ladeada por candelabros de muitas velas, onde algumas pilhas de papéis estavam postadas de cada lado.
— Antes que comece a me inquirir sobre o que significa tudo isto, pergunto: como devo me dirigir ao signore?
— Cardano, ou Girolamo, como preferir. Lembro-me bem quando foi à minha casa. Eu era um menino, talvez com 10 ou 11 anos. Mestre Leonardo estava presente.
— Também me recordo — concordou Melzi. — Contou-me que estava escrevendo um livro.
— É mesmo? Lembra-se desse detalhe? — Cardano surpreendeu-se com a memória de Melzi.
— Caro signore, ficará mesmo impressionado quando analisar estas pilhas de papéis. São milhares deles. Mais de cinco mil. Todos escritos por mestre Leonardo da Vinci.
— Tudo isso? — Cardano arregalou os olhos.
— E há mais, no meu quarto. Ainda não tenho a menor ideia de como catalogá-los. São escritos pessoais, misturados a descrições de cadáveres, máquinas de guerra e outros engenhos dos quais nem sei qual seria a utilidade. Muitas linhas de palavras se entrecruzam com desenhos, apinhados de letras e símbolos inventados por Da Vinci. Já contratei dois homens de letras para ajudar a decifrar o que for possível, mas o trabalho avança de forma muito lenta. Temo que não esteja apto a publicar algo antes de morrer. Ficaria triste, pois prometi ao mestre que faria isso.
— Agradeço por ter me chamado, caro Melzi, mas o que deseja de mim?
— Sim, boa pergunta! — Sorriu Melzi. — Chamei-o aqui pois já achei duas inscrições em que o mestre Leonardo cita o nome de seu pai. Pensei que poderia ser interessante conferir com seus próprios olhos.
Cardano ficou eletrizado com as palavras de Melzi e sentou-se na mesa central para analisar os papéis. Foi orientado a colocar o espelho nos trechos de escrita invertida, o que facilitaria sobremaneira o trabalho.
— Aqui está, ele pede que algo seja mostrado ao meu pai — disse Cardano, com a excitação de um menino — fa veder a messer Facio Cardano —, e pegou mais uma folha fornecida por Melzi, onde havia outro comentário do mestre, citando o nome de Fazio. Encheu-se de orgulho. — Posso ver um pouco mais esses escritos?
— Claro! — respondeu Melzi. — Tenho que fazer muita coisa na cidade. Meus ajudantes também não virão até aqui. Portanto, hoje não me debruçarei sobre isso. Fique à vontade e não tenha pressa.
Cardano começou a ler as folhas traduzidas e pareá-las com os originais, mas o que impressionava mesmo eram os desenhos. Muitos esboços mostravam a parte interna dos órgãos de uma pessoa, com músculos, olhos e intestinos minuciosamente detalhados. Certamente um trabalho realizado com cadáveres reais. O coração também estava lá, sem nenhum furo desenhado entre as câmaras. Será que Da Vinci tinha errado?, perguntou-se Cardano, bastante desconfiado. Então lembrou-se de como ele mesmo não tinha visto nenhuma comunicação interna quando se aventurara a abrir o tórax de um corpo sem dono.
Depois analisou uma junta de dois eixos rígidos para moinho, máquinas para um homem voar e andar debaixo da água, canhões múltiplos com artefatos que só poderiam ter saído da mente fértil daquele homem singular.
Por horas e horas Cardano destrinchou os escritos, até o anoitecer. Melzi convidou-o a tomar uma sopa e a pernoitar em um dos cantos da sala. Pela manhã, tomou o caminho de Sacco, com a cabeça apinhada de informações. Por vezes ele fechava os olhos para tentar ver com mais nitidez o que estava gravado ainda de forma tênue em sua memória.
O grande impacto que Cardano não esperava ter era a volta da lembrança de seu pai. Os anos que tinha passado em Pádua e Sacco pareciam ter colocado o sofrimento da perda em algum lugar escondido, fora de seu alcance. Agora que voltara a Milão, encontrara pessoas do tempo do Piattine e se deparara com as citações de Fazio em escritos de Leonardo di Ser Piero, como ele o chamava, um sentimento avassalador retornava à superfície, sufocando-o de forma tremendamente incômoda. Definitivamente, não estava preparado para lidar com aquilo.
Deitou-se em sua cama, tendo início um ciclo de insônia e febre. A tosse voltou a atacá-lo impiedosamente, e sua bronquite purulenta tornou-se fétida. Adicionalmente, seu suor emanava um cheiro sulfuroso e sua pele coçava de forma extremamente incômoda, un odore acompagnato da prurito molesto. Entre seus momentos de delírio, pediu ao servo que chamasse o notário Sormani para registrar seu testamento. Afinal, a análise astrológica já tinha definido que não viveria muito e morreria cercado de cheiros pútridos, un certo odore di zolfo, incenso ed altre cose.
Louvou ao Senhor, o Creatore ed alla Corte celeste e relatou ao notário que a maior parte do que tinha deveria ser dada à domina Chiara de Micheriis, mater honorandissima, um pouco aos parentes Giacomo e Francesco Cardano, e o restante ao Ospedale Maggiore di Milano.
Mas Cardano sobreviveu. A doença que definiu como praticamente mortal, ac febre maligna lethalis, deixou apenas um aroma ocre em suas axilas, junto com uma coceira moderada pelo corpo. Como consequência, o prurido passou a acompanhá-lo na nova fase de vida na cidade de Sacco. Parou de jogar e começou a receber alguns pedidos de consulta médica. Voltou a se exercitar com armas, a nadar e aventurou-se a participar da pretoria da pequena cidade. Afinal, médicos eram autoridades em pequenas vilas.
Recebia ajuda de sua mãe com menos frequência e, mesmo assim, estava conseguindo se manter. Era o mínimo que se esperaria de um profissional próximo de seus 30 anos, em uma fase estável da vida.
Parecia que não haveria mais novidades naquele ano, mas em uma noite Cardano sonhou com uma jovem e linda garota, toda vestida de branco. Ela parecia dizer algo, aproximava-se e depois se distanciava; então sua imagem esvanecia-se.
As feições lembravam muito a garota com quem conversava na soleira de sua casa, em Milão, muitos anos antes. O sonho repetiu-se na noite seguinte, deixando Cardano ainda mais impressionado. Sonhos não acontecem à toa; ele sabia disso. Difícil é sua interpretação. As imagens dos sonhos são o que parecem ser, ou representam outras ideias?
Foram necessários apenas poucos dias para que ele tivesse a confirmação do real significado. Na frente da casa de um novo morador, seu vizinho próximo, Cardano teve a visão que esperava: uma maravilhosa fanciulla dalla veste bianca, uma cena que captava seu olhar e o embevecia. A garota da veste branca de seus sonhos estava lá, cuidando do jardim, movendo-se com a beleza que só os anjos poderiam ter, morando a poucos passos de sua casa.
Ao perceber a presença de um homem que a observava, ela parou de regar as plantas, olhou para Cardano e abriu um sorriso que o deixou sem ação. Como uma garota tão jovem poderia estar consciente de sua capacidade de atração? Ou será que ela estava apenas sorrindo? Estas foram perguntas que vieram rápido à sua cabeça. Como convinha a uma moça honesta, ela fez uma breve reverência e se retirou para dentro da casa.
Cardano não perdeu tempo e foi se informar com o farmacista Paolo Lirici.
— Ele é o signor Altobello Bandarini, um comandante de milícias da região de Veneza — disse Paolo. — Lembra-se de que estivemos a ajudar em um incêndio que ocorreu há duas semanas?
— A casa era dele? — Cardano arregalou os olhos.
— Sim, ele é poderosíssimo, meu caro. Veneza o autoriza a arregimentar pessoas em toda a região com o objetivo de montar uma infantaria de defesa. Após o incêndio, o Senado autorizou imediatamente mais fundos para cobrir o prejuízo.
— Observei a filha dele no jardim — falou Cardano, para logo recompor-se e tentar esconder seus sentimentos. — Respeitosamente, claro. Observei-a, quero dizer, com o respeito de... na verdade, não imaginei que ela estaria sozinha no jardim...
Paolo Lirici parou o que estava fazendo e, segurando o riso, percebeu o que estava se passando com o médico.
— Imagino que queira saber detalhes da filha mais velha do signor Bandarini.
— Mais velha? — questionou Cardano, enrugando a testa.
— Sim, são sete filhos, entre meninos e meninas.
— E como ela se chama?
— Acho que o nome dela é Lucia, não tenho certeza. — Paolo fez cara de indiferença.
— Lucia? — Cardano sentiu um gelo no estômago.
O boticário surpreendeu-se com a insistência do médico.
— Doutor, tenho a impressão de que está nascendo um interesse especial pela moça, não é verdade?
— Verdade do quê? — Cardano indignou-se. — Tenho um paciente para atender. Até mais tarde.
Ainda houve tempo para Paolo gritar atrás do balcão, com uma boa e sonora risada:
— Boa consulta, doutor!
Na semana seguinte, Cardano apresentou-se à família e conseguiu autorização para conversar com a moça, sempre na presença de um dos irmãos. Apesar de não ter nenhum dinheiro, sua posição de médico permitiu que os encontros começassem a acontecer. Quando estava com Lucia, ele se vangloriava de ter sido reitor em Pádua, dos debates que tinha participado, da visita à tipografia em Veneza.
Ela falava pouco, mas mantinha-se atenta a cada detalhe do que ouvia. Sorria de tempos em tempos, como que autorizando Cardano a continuar a listar seus feitos, em uma demonstração de como seria, na verdade, um excelente partido para o matrimônio.
— Mas existe um coisa que me intriga bastante, signorina Lucia. Tenho a nítida impressão de que já a conhecia antes. Creio que sua imagem visitava minhas alucinações infantis — disse Cardano, arrependendo-se logo depois de ter manifestado algo tão íntimo.
— É como o doutor mesmo disse... impressão — respondeu ela, como de hábito usando poucas palavras, sempre muito bem colocadas.
— Sabe, perguntarei ao seu pai se podemos nos casar. O que pensa?
— O que eu penso? — sorriu Lucia, com uma mistura de olhar de menina e convite de mulher, da maneira que só ela sabia fazer. — Penso que deve perguntar ao meu pai.
Nos dias seguintes, não conseguia parar de pensar naquele sorriso, nos gestos, nos olhares. Esse só poderia ser um tormento giocondo, uma follia sui generis, escreveu Cardano. Como pode nossa mente ser tomada de assalto pela visão de uma pessoa como se mais nada existisse? Como nos sentimos atraídos pela necessidade do encontro da mesma forma como somos atirados ao jogo de cartas? Agora ele compreendia por que o poeta Giacopo Sanazzaro tinha pensado em suicídio ao se ver completamente envolvido pelo pensamento da bela Carmosina.
— Mas ele se matou? — perguntou Paolo Lirici.
— Não, ele não teve coragem de se matar — respondeu Cardano, com um certo desprezo pela atitude covarde do poeta.
— Pelo que posso constatar — o boticário franziu a testa —, o doutor também decidiu não se matar.
— Agradeço o scherzo, messer Paolo... Não, não decidi me matar. Pelo contrário, fui falar com o capitão.
— Capitão? — perguntou Paolo Lirici.
— Altobello Bandarini, capitão das milícias padovanas, pai de Lucia.
— Nossa senhora! Teremos casamento?
— Parece que sim. Um pouco a contragosto, ele admitiu minha explicação de que agora não disponho de meios para fazer um casamento à altura do que ele merece, pois acabo de sair de dívidas na Justiça pelos processos deixados pelo meu pai.
— Falou dos jogos de cartas e dados?
— Não houve necessidade. Sei que ele tem informações tanto de meu tempo de jogador como de minha nova fase, longe desse hábito. Nós já nos conhecíamos de vista por termos frequentado a pretoria. Ele parece ser uma pessoa correta. Só me assusta o poder que ele tem, sua influência em Veneza.
À noite, escreveu um pouco mais sobre esse momento de mudança. Até conhecer Lucia, Cardano considerava que o casamento lhe seria negado e sua sina significaria viver para sempre em solidão. Mas a dúvida ainda o assaltava:
O que farei em relação a ela? Se a esposar, a opressão de muitos irmãos e irmãs me levará à ruína! Se la sposo, andrò incontro a sicura rovina. Se a levar embora, seu pai, com espiões a seu serviço, nos encontrará onde estivermos.
Niccolò Cardano, o garoto que tinha morrido cedo em Milão, anos atrás, visitou-o no sonho para dizer apenas duas palavras: É ela! Mesmo estando dentro da visão onírica, Cardano não se conteve e chamou Niccolò pelo nome. Ele desapareceu imediatamente.
Pela manhã, recebeu a mensagem de Altobello Bandarini, solicitando que comparecesse para tratar de detalhes do casamento. Isso significava que não haveria mais impedimento à cerimônia. Agora não poderia mais voltar atrás, sob pena de causar injúria à família e, principalmente, à moça.
Chamou seu servo e ditou-lhe a mensagem que deveria dizer à mãe: Cardano, seu filho, conheceu a mulher mais meiga e bonita de todo o norte d’Itália. Lucia é seu nome. Casarão em breve. Por enquanto, viverão em Sacco.
Venceu os passos que separavam sua casa da do vizinho e anunciou sua chegada.
— Signor Bandarini. — Cardano curvou-se ao cumprimentá-lo.
— Doutor Cardano, vamos entrar.
Sentaram-se na sala. Estavam sós na casa, pois todos os filhos tinham isso à missa. A signora Taddea Bandarini, sempre muito simpática, veio dar as boas-vindas a Cardano, para logo em seguida se retirar. Era um assunto a ser tratado apenas por homens, mas o médico tinha ciência de como tinha sido fundamental para a anuência de Altobello a interferência da mãe de Lucia.
— Sabe que não era o meu desejo inicial, mas faremos uma cerimônia sem banquete. Conversei com o vigário-geral em Pádua e o padre da paróquia da Capela da Arena com o objetivo de lá realizarmos a sagração do casamento.
Cardano ouvia com atenção e sabia que deveria apenas concordar com o que estava sendo planejado.
— Não sabia que a capela poderia ser usada para esse fim. — Cardano ficou surpreso. — Mas, obviamente, eu me sentiria honrado se pudesse acontecer lá. Os afrescos de mestre Giotto são maravilhosos.
— Tenho minhas influências. — sorriu Altobello. — Mas gostaria de saber um pouco mais sobre seus planos após o casamento.
— Atualmente estou me dedicando mais à profissão, com possibilidade de atuar também em Pádua, ou, quem sabe, Veneza.
— Neste caso meus contatos poderiam ajudar; sabe disso, não é mesmo?
— Claro, signore. — Cardano fingiu estar contente com a proposta, mas preferia não lançar mão da ajuda de um capitão militar. Tinha dúvidas de como essa abordagem poderia ser interpretada no Colegiado Médico. — Também estou analisando a opção de dar aulas na Universidade, o que seria vantajoso financeiramente, além de repercutir de forma positiva entre os colegas.
— Bem, pode não ter dinheiro nenhum, signor Cardano, mas é um homem de letras, algo que é cada vez mais valorizado. Só espero que não se afunde em seus livros, sem ter tempo de sustentar a família.
O recado estava dado, de forma clara e direta. Restava a Cardano honrar seu compromisso. O fato de Lucia parecer contente com o desenrolar dos acontecimentos o deixava cheio de energia para enfrentar um oceano, se fosse preciso.
Quando ela teve permissão para visitar a casa de Cardano, acompanhada da mãe, ficou surpresa com a quantidade de livros amontoados por toda parte. Ao ser perguntada sobre as mudanças que faria, se ali fosse morar, Lucia respondeu sorrindo, de forma meiga.
— O que eu mudaria? Tudo...
Passadas três semanas, o casal teve o privilégio de se postar no altar de uma diminuta capela incrivelmente pintada por Giotto, o escolhido para ornamentar as paredes com temas da vida de Cristo e da Virgem Maria dois séculos antes.
O pequeno oratório, ao qual compareceram a família e poucos convidados, chamava-se Arena, graças a um anfiteatro romano, que ficava próximo. O retábulo da entrada, uma grande peça de madeira que se dobrava em três, pintada sobre folhas de ouro, mostrava o momento da descida da cruz.
Dentro da capela, os olhos se perdiam em incríveis imagens com emoções vivas, ainda que a perspectiva não se apresentasse da forma evoluída como no traço de Da Vinci. Maria seguia em sua mula com Jesus no colo e José à sua frente. Cenas seguintes mostravam a infância, Cristo com os apóstolos, a Paixão. Nem sempre as histórias eram baseadas exatamente na Bíblia, mas compunham uma ambientação didática e cativante sobre a fé católica.
Nesse contexto de beleza religiosa, o casal firmou seus votos de fidelidade eterna. Dessa vez, Lucia não voltou mais para a casa dos pais.
À noite, em seu quarto, Cardano retirou a túnica e mirou com admiração a bela jovem que se dirigia à sua cama, coberta apenas com um leve e branco vestido de baixo. Essa era a imagem dos seus sonhos.
Deitou-se por cima dela e, com sua virilidade presente ao máximo, sentiu-a por inteiro. Lucia, como convinha a uma moça honesta e de família, não se mexeu, nem soltou nenhum som. Virou-se para o lado, absorveu sua dor inicial e entregou-se ao seu marido, de forma completa. Somente depois de consumado o ato é que Cardano se deu conta de que a impotência não o assombraria mais.
Aninhou então sua cabeça na barriga de Lucia e chorou. Chorou como nunca tinha feito antes. Ela acariciou seus cabelos e não falou nada, demonstrando que conhecia, como poucos, a arte de dizer o que era importante utilizando apenas o silêncio. Assim adormeceram na primeira noite em que se tornaram verdadeiramente marido e mulher.
No fim de meu trigésimo primeiro ano de vida, escreveu Cardano, casei-me com Lucia Bandarini di Sacco e fui liberado de minha doença por voto da Abençoada Virgem Maria. Tum eo morbo solutus, voto B. Virginis.