Equação cúbica
– Lucia, tenho boas notícias — falou Cardano com olhar de satisfação ao entrar em casa.
— Sim, marido, vejo que está contente. — Dirigiu-se a GianBattista: — A bênção de seu pai, vamos! — Clara dormia no berço encostado à parede.
— Conheci o marquês dom Alphonso d’Avalos! Lembre-se de que, agora que morreu o governador Caraccioli, o marquês passou a ser o homem mais poderoso de Milão.
— Muito bem, é uma pessoa com bastante prestígio. Mas o que conversaram?
— Ele me disse — respondeu Cardano, empolgado — que apoiará de forma generosa meus projetos. Consegui um patronato, Lucia! Sfondrato falou bastante de mim a ele. — E lembrou-lhe do caso da criança febril que tinha tratado, filho do cardeal.
— Sfondrato, o patrono do Colégio de Médicos? — falou Lucia, desconfiada.
— Já entendi aonde quer chegar. Quer me dizer que mesmo tendo bons contatos fui recusado no colegiado novamente, é isso? — falou Cardano, irritado.
— Apenas lembro-lhe que essas pessoas são volúveis. Faça atenção, marido.
— Dom Avalos pode ser um pouco invejoso em relação à riqueza dos outros nobres, é verdade, mas é polido em suas maneiras e estudioso das finas artes; ou seja, um homem de mente elevada. Vai me dar um estipêndio mensal, Lucia. Poderei escrever mais. Não precisarei ir mais ao convento.
— Tem certeza de que vai diminuir seu trabalho como médico? É isso que quer? — perguntou Lucia.
— Assim será — respondeu Cardano, resignado. — Enquanto não for aceito pelo colegiado, minha atuação como médico estará bloqueada. Escrevendo, conseguirei meu lugar.
— Que Deus ouça suas palavras, mas pergunto-me se precisamos além do que temos.
— Sim, precisamos! — respondeu Cardano com raiva, em parte, pois sabia que Lucia poderia estar com a razão. Por outro lado, tinha dois filhos. Em breve surgiriam outros gastos, com tutores, roupas e livros.
— Ferrari, vamos sair! Prepare a mula. — Pegou dois livros e trocou a capa que estava vestindo.
Cardano tinha um encontro no albergue onde estava hospedado um editor da Germânia luterana. Ele tivera contato com alguns escritos astrológicos de Cardano e recentemente ficara bastante impressionado com o livro De malo medendi.
Com Ferrari a pé, ao seu lado, Cardano percorreu as ruas de Milão por meia hora, com um sol fraco às suas costas. Chegou exatamente no horário combinado.
— Signor Johann Petreius, de Nuremberg, prazer em conhecê-lo. Sou tutor deste rapaz, Ludovico Ferrari.
— Excelentíssimo doutor Hieronymus Cardanus, signor Ferrari — falou Petreius, com um latim impecável, fazendo uma breve reverência aos dois.
Em seguida se sentaram à mesa da taverna do lado de fora. A tarde apresentava uma agradável temperatura.
— Recebi informações do editor de Veneza — Petreius entrou diretamente no assunto, como era comum entre os germânicos — de que o doutor tem outros materiais escritos. Temos um grande público luterano que está consumindo cada vez mais livros. Acho que poderíamos trabalhar juntos.
— Mas que assuntos são publicados em sua gráfica? — perguntou, receoso, Cardano, sabendo que deveria ter atenção ao fazer algum contrato com os que protestavam contra a Igreja de Roma.
— De tudo, doutor. Teologia, Ciência, Direitos, Clássicos e até Música. Paul Hofhaimer, Ludwig Sent e Nicolaus Copernicus, por exemplo.
— E astrologia? — perguntou Cardano, começando a ficar empolgado com a ideia de poder publicar seus escritos.
— Certamente! — respondeu o luterano. — Penso até em dar-lhe um adicional de pagamento caso o livro seja de grande venda. Publicaremos seus horóscopos.
A possibilidade de ganhar um pouco mais com o sucesso de um livro fez os olhos de Cardano brilharem.
— Tenho vários livros prontos para ir ao prelo e outros em fase final de preparação, signor Petreius. O principal deles é sobre matemática. Tenho descoberto, com Ferrari, algumas soluções fundamentais nesse campo. Falta pouco para terminarmos esse projeto.
— Poderíamos receber um privilégio imperial para eles — disse o editor, explicando os detalhes do apoio oficial que existia na região. — Temos o mesmo imperador, afinal. — Petreius sorriu.
O patrocínio impulsionava as editoras e impedia, por dez anos, que o material fosse produzido em outra gráfica.
— Acabo de escrever um livro sobre a consolação aos que sofrem. De consolatione, este foi o nome que escolhi, mas tenho dúvidas se seria do interesse de muitas pessoas.
— O doutor também bebeu na fonte do filósofo Sêneca?
— Em parte, sim — respondeu Cardano —, mas trago muitas ideias minhas.
— A reflexão é sempre bem-vinda, mas, muitas vezes, devo concordar, não produz resultados editoriais surpreendentes. Isso me lembra um livro de um francês que mora na Suíça, Johannes Calvino. Agora ele tem sido muito comentado por seus ataques à eucaristia católica e está revisando uma Bíblia para o francês, mas quase foi à ruína quando publicou, há quatro ou cinco anos, De Clementia, um livro sobre Sêneca que tive oportunidade de ver. Uma obra impressionante para quem tinha um pouco mais de vinte anos. Infelizmente, poucos quiseram ler.
— Mas Calvino foi perseguido na França, não é mesmo? Ouvi dizer que ele veio para a península da Itália... — comentou Ferrari, curioso sobre o destino daquele que consideravam um Lutero francês.
— Sim, signor Ferrari. Calvino fugiu e veio para Bolonha, ou Ferrara, mas ficou pouco — explicou Petreius. — A Itália é da Igreja de Roma, todos sabemos. Então ele foi para a Suíça. Genebra acolheu-o, e lá ele está bem. O fato é que os franceses estão queimando pessoas, chamando-os de hereges, só porque têm seguido a mensagem de Lutero.
— Tive a ideia de fazer o horóscopo dele, agora que terminei a carta astrológica de Jesus. — Cardano se sentia mais confiante em relação ao editor e começou a expor projetos que poderiam incomodar algumas pessoas na Itália. — Poderia me passar a data mais correta do nascimento de Lutero, por favor?
— Certamente! — respondeu Petreius animado. — Só peço que considere, ao escrever, a grande massa de leitores que serão adeptos dessas correntes religiosas.
Cardano refletiu um pouco. Continuava a achar que o pensamento protestante tinha muitas divisões, sendo, por isso mesmo, uma causa equivocada; mas, ao mesmo tempo, poderia conquistar um grande número de leitores ávidos por conhecer suas ideias. Sim, a empreitada o seduzia, definitivamente. Sorriu e aquiesceu com a cabeça, fechando o contrato com o editor germânico com um forte aperto de mão.
Poucos dias depois, Cardano escreveu uma carta introdutória para que fosse feita uma reimpressão dos horóscopos, agora ampliados em 67. Qualquer um que falhar em entender o futuro utilizando este breve livro, escreveu, não fará melhor consultando outras obras, pois, como a arte é infinita, pode ser ensinada apenas por julgamentos, não por um sistema.
No prefácio já era possível ter uma ideia do amplo apelo que o livro teria.
Aqui estão expressos todos os tipos de morte: veneno, raio, água, condenação pública, ferro, doença. Veneni, fulguris, aquæ, publicæ animadversionis, ferri, morborum. Também várias formas de nascimento que tenham resultado em gêmeos, monstros, bastardos e morte da mãe. Varie nascendi formae geminorum, monstruosorum, spuriorum et puerperio mater extincta est, assim como todas as variações de caráter: tímido, ousado, estúpido, herético, pederasta, ladrão, adúltero e sodômico. Acompanhei os diferentes incidentes da vida, explicando que tipos de homens matam suas mulheres, mudam de religião, tornam-se pobres, ou saem da pobreza para a fama.
Cardano não perdeu tempo em comentar com Filippo Archinto sobre sua nova empreitada.
— Agradeço a dedicatória — falou o senador Achinto, satisfeito. — Vejo que este manuscrito renderá um livro de muito sucesso.
— A honraria foi merecida, senador — disse Cardano, expressando em seguida sua preocupação —, mas temo que interpretem como sendo um livro que apenas lida com fatos passados. A Astrologia, como Ptolomeu advertiu, tem tantos inimigos quanto existem homens ignorantes. Contornei isto comentando o caso do garoto ilustre em que previ problemas com seu olho e uma marca de ferro quente em sua bochecha. Os médicos foram testemunhas de que, no quinto ano de sua genitura, os eventos aconteceram, como foram previstos, nos mínimos detalhes.
— Esta já é uma prova inequívoca — concordou o senador.
— Também falei de uma mulher chamada Veronica, cujo sobrenome não revelei para preservar a família, que foi morta pelo marido por ser uma pervertida anunciada por Vênus, em estreita conjunção com a cauda do dragão em Capricórnio — explicou Cardano. — Outras genituras foram-me oferecidas por Georg Rheticus, um professor de Wittenberg com quem estou me correspondendo. Ele me disse que vai trabalhar com Nicolaus Copernicus, um excelente astrólogo e astrônomo.
— Não se preocupe com críticas, Cardano. Quem fica em evidência faz mais inimigos, é natural. Por outro lado, tem muitos admiradores. — Em seguida o senador solicitou ao servo que trouxesse a bebida feita com uma nova especiaria do Oriente. — Prove isto, doutor, e ficará mais calmo. É uma infusão de ervas que os chineses chamam de tchà. Eu, particularmente, gosto de adicionar o açúcar espanhol.
Cardano provou a bebida, uma água escura e amarga, que se tornava agradável com a adição do açúcar.
— É interessante — comentou o médico, ainda sem saber ao certo se tinha gostado. — Onde conseguiu isto?
— Tenho um amigo genovês, meu caro. — O senador Archinto sorriu, com o prazer de quem sabe ter os amigos comerciantes certos. — São poucos os que conhecem a bebida. Posso dizer com certeza que, em Milão, só na minha casa sorverá esta iguaria.
O senador explicou então como as folhas eram colhidas, secas e trituradas para finalmente serem colocadas em um pequeno saco, que seria imerso na água quente. Sorveu mais um pouco da preciosidade e lembrou-se de um contato no qual Cardano tinha falado da última vez que se encontraram.
— E o professor Tartaglia? Teve resposta da carta que enviou?
— A história está complicada, senador. Despachei um livreiro para convencê-lo a nos fornecer a fórmula para a resolução da equação cúbica, dizendo que iria colocar seu nome em meu livro, mas ele foi rude na resposta.
— Ele também vai escrever um livro sobre o assunto?
— Provavelmente não. Ele não sabe nada da língua latina, a única forma possível de ser reconhecido no campo da matemática. Ao que parece, ele só domina o dialeto italiano de Brescia.
— Mas o doutor ofereceu algo mais em troca? — perguntou o senador. — Para todos existe um oferta irrecusável...
— Na verdade, eu acabei sendo mal-educado em uma resposta que escrevi a ele, até perceber que o caminho deveria ser outro. Então disse que o marquês D’Avalos estava interessado em conhecê-lo por causa do livro sobre artilharia que ele publicou. Agora ele não tem como recusar. Se não vier a Milão, será uma desfeita ao marquês.
— Muito bem! — O senador gargalhou. — Está dominando a arte da negociação!
— Assim espero — respondeu Cardano. — Em breve, ele estará na cidade. Tenho que conseguir a fórmula. Da próxima vez que nos encontrarmos, terei novidades.
Tartaglia era um apelido que significava tartamudo, ou gago. A gagueira, segundo diziam, era resultado de um golpe de espada em sua boca desferido por um soldado francês, dentro de uma igreja que tinha sido cercada e invadida. Ele ainda era uma criança de 7 anos quando houve o terrível saque da cidade de Brescia. O matemático autodidata consolidou sua fama na cidade de Veneza ao vencer um debate público contra Antonio Maria Fiore, e o apelido virou definitivamente seu nome.
Basicamente, discutia-se qual seria a solução para a equação cúbica x3 + px = q, ou seja, cubus e res, igual ao numerus. Fiore, o pupilo de um grande matemático, formulou as trinta questões na contenda pública, certo de que arrasaria o oponente. Tartaglia não só solucionou todas, como apresentou outras ainda mais difíceis, como x3 + px2 = q, calando Fiore e selando a vitória.
Um mês após a conversa com o senador, no começo de março de 1539, um servo mensageiro avisou Cardano que o professor Tartaglia chegaria à cidade em poucas horas.
— Diga que o estou esperando — respondeu o médico.
Antes do anoitecer, chegou à sua casa Niccolò Tartaglia da Brescia, montado a cavalo e ladeado por seu servo.
— Messer Hieronymus Cardanus, eu suponho.
— Sou eu mesmo — respondeu o médico. — É um prazer recebê-lo em minha casa. Pode deixar os cavalos com meu servo, e entremos para tomar um bom vinho.
Lucia preparou a casa com esmero para receber o matemático. Sabia que seria um encontro crucial para o marido. Flores estavam espalhadas, dispersando o aroma de um campo de primavera, carne da melhor caça estava salgada, à espera de uma refeição especial e vinhos Claretes tinham sido encomendados. O pupilo Bigioggero e um dos ajudantes dormiriam no vizinho naqueles dias, deixando espaço suficiente para a estadia do hóspede.
Os pertences de Tartaglia foram acomodados em um dos cantos da sala, onde ele dormiria com o servo ao seu lado.
— Messer Niccolò Tartaglia, nossa cidade já viveu épocas mais difíceis. Nosso papa, Paulo III, está ajudando a selar uma trégua com os franceses que vai permitir a volta dos dias de glória.
— É verdade, messer Cardanus, não suportamos mais a guerra. Eu já sofri na carne a dor da ignorância dos bárbaros. Quero ardentemente a paz, mesmo ciente de que ela não será duradoura.
— Então faremos um brinde ao nosso encontro. Tenho que comunicar um fato inesperado, no entanto — falou Cardano, fazendo expressão de pesar. — O marquês D’Avalos teve que se ausentar da cidade. Lamentou e tentará retornar o mais breve possível.
Visivelmente consternado com a notícia, Tartaglia levantou a taça e de má vontade fez o brinde.
— Não se preocupe, signore, teremos tempo — disse Cardano, pensando consigo mesmo que não poderia ter planejado um situação mais propícia. O matemático teria que continuar em sua casa, e assim haveria mais tempo de conversarem sobre o assunto que o trouxera até ali.
Após a missa, no dia seguinte, Tartaglia e Cardano reuniram-se de novo, dessa vez para conversar seriamente sobre as soluções matemáticas. Lucia tinha saído com um servo para comprar artigos domésticos em uma feira mambembe e levara também GianBattista. A casa estava excepcionalmente tranquila. Nada mais convidativo.
— Messer Tartaglia, sua exímia habilidade no trato da matemática foi muito comentada em Milão — começou Cardano, bajulando o convidado —, por isso lhe perguntei sobre a solução daquelas questões.
— Desculpe, doutor — respondeu Tartaglia, desconfiado —, mas as oito questões algébricas que seu emissário Juan Antonio me mandou foram seguramente criadas por Giovanni Colla, um matemático de muitas limitações que as trouxe pessoalmente para mim há dois anos.
— Não mandaria questões que eu mesmo não tivesse feito, ou solucionado, meu caro — falou Cardano de forma pouco convincente.
— Pois digo que o doutor certamente não as compreende — retrucou Tartaglia de forma dura, temendo que sua viagem tivesse sido um engodo, já que a principal razão de estar ali seria oferecer seus préstimos ao marquês, e não revelar seus trunfos nas soluções algébricas.
— Então por que não discutimos apenas as perguntas colocadas por seu desafiante, Antonio Maria Fiore? — Cardano tentou tergiversar, temendo que Tartaglia o colocasse em uma situação de xeque.
Tartaglia pensou que não poderia negar ao anfitrião pelo menos algumas informações. Seria por demais indelicado. Colocou então no papel, de má vontade, algumas das operações realizadas naquela famosa contenda. Cardano acompanhava sua escrita com atenção, tentando descobrir o raciocínio do convidado.
— Aí está — apresentou Tartaglia.
— Sua habilidade é notável, signore, mas sei que pode fazer muito mais — provocou Cardano. — Concordamos que Giovanni Colla é um perfeito tolo, não é mesmo? — ao que Tartaglia aquiesceu, com um gesto de cabeça. — E pode ver do que sou capaz ao folhear este manuscrito. — Colocou, em cima da mesa, um calhamaço de folhas do Practica Arithmeticæ, que em breve estaria nas livrarias.
O médico quis impressionar, sabendo que o convidado não dominava o latim.
Tartaglia folheou um pouco e conseguiu compreender do que se tratava em alguns trechos, pois visualizava as equações, mas seria muito constrangedor solicitar que alguma parte do livro fosse traduzida. Perguntou então, de forma incisiva, o que o médico realmente desejava.
— A solução da equação cúbica. Cubus e res, risultato pari al numerus — falou taxativamente Cardano.
Completou dizendo que certamente não comentaria com o marquês D’Avalos, um homem de ciência, mas também um soldado, que seu excelente tratado sobre artilharia continha alguns erros sérios nas conclusões sobre gravitação. Aproveitou então a pausa para dar o tempo necessário de reflexão ao matemático de Brescia.
— Veja, meu caro — continuou Cardano —, farei um livro como nunca se fez desde os tempos de Euclides. Será uma obra máxima, escrita na língua latina. Seu nome estará lá, gravado para que todos saibam. Direi que Niccolò Tartaglia foi o único a ter a solução do problema e que, de forma magnificente, proporcionou, a todos os leitores, a informação que faltava à ciência dos números. Lembre-se de que Luca Paciolus, nosso grande antecessor, disse que seria impossível uma regra geral. É motivo de um capítulo, De erroribus’ Fratis Luca neste meu livro Practica. Direi que messer Tartaglia mostrou ser possível a solução.
— O que ganho com isso, excelência? — respondeu Tartaglia de forma raivosa, levantando-se com o ímpeto de quem teme ser enganado. — Sou vitorioso em debates que me dão fama e dinheiro. Agora me pede que deixe meu segredo convosco? Nunca! Minha descortesia em direção a sua excelência é porque me afirma que escreverá um livro igual ao meu e se propõe a publicar minhas invenções. Confesso que esse não é meu gosto. Publicarei as descobertas que fiz usando minhas palavras, não as palavras de outros! — Foi até a janela, pensando em como faria para se desvencilhar da situação. Voltaria imediatamente para casa, ou aguardaria mais um pouco, tendo que suportar a impertinência do anfitrião?
— Pois então desisto — falou Cardano, dando uma guinada repentina à sua argumentação. A face de Tartaglia mostrou o alívio da tensão provocada até aquele ponto. — Concordo em não publicar a solução, considerando que a sua resposta é a única possível e conhecida. Apelo então ao prazer que nos une, à centelha de conhecimento divino que, transportada para o papel, nos enche os olhos de contentamento. Que minha mente conceba sua solução como única e não mágica, a solução que é fruto de uma mente brilhante. Assim mirarei este papel, até os fim dos meus dias, até que os vermes comam meus olhos e minha língua. Nunca, ninguém mais, em lugar algum, terá conhecimento do que eu vi.
— Seu juramento me comove, doutor Cardano — respondeu Tartaglia, ainda desconfiado. — É verdade que o prazer que esse conhecimento proporciona é indescritível. Seria excessivamente rude se não atendesse a um compromisso como esse. Como cristão, sinto-me inclinado a aceitar o seu pedido. Considerando nosso trato, se eu não for ao encontro do marquês, apelo à sua integridade para que lhe transmita as descrições dos instrumentos que concebi, com um quadrado perfeito que regula os disparos dos canhões, assim como a forma de determinar as elevações necessárias na análise da distância em terrenos planos.
A informação de que o marquês iria se demorar mais na campanha, próximo ao vilarejo de Vigevano, tinha chegado naquela manhã e pressionara o encontro dos dois matemáticos naquela direção. Sentindo que Tartaglia dava mostras de poder revelar seu segredo, Cardano reafirmou seu compromisso.
— Colocarei sua fórmula em cifras, de tal forma que ninguém compreenda quando eu me for desta vida. Assim juro pelo sagrado Evangelho e por minha condição de cristão e cavalheiro.
Tartaglia debruçou-se sobre a escrivaninha para transcrever os versos que tinha na memória, em rimas, uma maneira que inventara para não esquecer nenhum passo da equação.
Quando chel cubo con le cose apresso, se agualia à qualche numero discreto, trovan dui altri differenti em esso..., escrevia Tartaglia, cantando mentalmente cada um dos 25 versos, necessários passos para que fosse solucionada a equação. Et terzo poi de questi conti, che per natura son quasi congionti...
Após três dias, Niccolò Tartaglia, sem nenhuma explicação, pareceu ter perdido a paciência e, com uma breve despedida, beirando a grosseria, partiu diretamente para Veneza. Desistiu de visitar o marquês, mesmo tendo em mãos uma carta de apresentação redigida por Cardano, deixando a impressão de que estava muito arrependido por ter revelado seu segredo.
— Que pessoa difícil, aquele sujeito, Ferrari!
— É verdade, mestre — concordou o pupilo. — Quando ouvi o tom alto de voz que vinha da sala, pensei que haveria uma disputa corporal.
— Fiz um juramento de não revelar a fórmula que ele me apresentou, por ele reivindicar ser o isolado inventor — disse Cardano. — Mas o fato de Giovanni Colla ter dito que Scipio Ferreo já tinha descoberto uma das soluções muda tudo. Sabemos agora que Tartaglia não é o único; esse, portanto, não é mais um segredo de uma invenção exclusiva.
— O mestre vai publicar a solução, então?
— Talvez sim, mas darei o devido crédito a ele, com certeza. Vamos ver o que descobrimos. Neste momento de minha vida, não terei atenção para mais nada. Vamos trabalhar duro para aquele que talvez seja o maior de todos os livros.
Nos meses seguintes, Cardano exercitou ao máximo sua paciência, como nunca tinha conseguido antes, escrevendo cartas amistosas a Tartaglia, sem resposta. Finalmente, chegou à sua casa uma correspondência de Veneza em que o matemático de Brescia suspeitava que seu segredo já estaria exposto em algum lugar.
— Mas eu já enviei o livro Practica Arithmeticae para ele, Ferrari. Sabe o que ele diz nesta carta? Que meu trabalho completo é ridículo e inacurado, em um desempenho que faz tremer meu bom nome. Ele adverte que não faltará à fé conosco somente se não faltarmos à fé com ele...
— Quer dizer, se não descumprirmos a promessa? — perguntou Ferrari.
— Sim. E ainda por cima faz ameaças. Ele é uma daquelas pessoas que não gostam de um livro sem nunca tê-lo lido. Isto é uma cegueira resultante da petulância, meu caro. Diz que errei a extração da raiz, algo que se ensina a um aluno iniciante.
Cardano rasgou com raiva a carta maledicente e completou:
— O livro ainda não está pronto, Ferrari. Continuaremos o trabalho. Quando o mundo vir o resultado, Niccolò Fontana, esse malfadado Tartaglia, será apenas uma sombra.
E se debruçaram novamente sobre a pilha de papéis que se acumulava cada vez mais.