Nostredame

O ano de 1539 começou com boas notícias do editor germânico. O livro sobre as genituras astrológicas estava vendendo muito bem, assim como um novo tratado que discutia diagnósticos e tratamentos. O dilema atual em sua vida era como conciliar a carreira de escritor e homem de ciência, como começava a ser conhecido em várias partes da Europa, com a de praticante de Medicina na cidade de Milão.

Um passo importante tinha sido dado na segunda frente: Francesco della Croce, seu jurisconsulto, junto com o senador Archinto, negociaram no Colegiado de Médicos sua aprovação definitiva. Cardano já tinha tido destaque em diagnósticos que eram comentados na elite milanesa, e seus livros davam uma visibilidade que os seus concorrentes de profissão não poderiam mais esconder. Por outro lado, ele se comprometeu a não autorizar mais uma reimpressão de seu livro De malo medendi e a apoiar a causa da sociedade à qual passaria a pertencer. Desta forma, foi feito um adendo no estatuto, permitindo a inclusão de médicos que fossem legitimados com o casamento posterior dos pais.

Continuava a ter seus ferrenhos desafetos, sim, pois ainda houve resistência razoável à sua aprovação, mas agora, ao fazer 38 anos, com dois filhos, GianBattista, de 5, e Clara, de 2, poderia finalmente exercer a profissão de médico abertamente, sem subterfúgios, receber pelas consultas sem receio de represálias e aceitar uma cadeira como professor de Universidade.

Era um bonito domingo de verão. Encomendou na taverna, para depois da missa, comida para oito pessoas. A casa incluía agora, além do médico, sua esposa e filhos, dois servos e dois pupilos. Comemoraram, brindando e saboreando um delicioso vinho suave, o anúncio de mais um médico pertencente ao Colégio de Milão, quod legitimati per subsequens matrimonium, admitti debeant Hieronymus Cardanus di Ser Facio.

Depois Cardano leu a carta que tinha recebido do amigo Kenneth, que morava na Britannia. Ele contava que o rei inglês, Henrique VIII, tinha tido finalmente um filho homem, de nome Eduardo. Todos acreditavam que, no futuro, este seria o novo monarca. A mãe de Eduardo, no entanto, morrera logo após o parto, causando profunda tristeza no rei.

Mas, se a vida real já tinha suas dificuldades, para os súditos católicos era pior ainda.

— Ouçam o que meu amigo Kenneth conta aqui. Prestem atenção, pois lerei o trecho para vocês: Conventos e mosteiros foram fechados, e as propriedades transferidas à Coroa. Muitos acreditam que o som de correntes arrastadas pelo chão e as vozes que saem dos sótãos são espíritos de monges que sofreram a humilhação e a tortura antes de partirem deste mundo. O clima geral está péssimo, mas minha luta continua. Alguns crentes na fé de Roma e até protestantes que não professaram sua obediência ao rei foram açoitados e queimados. Que seja feita a vontade de Deus, messer Girò. Demorarei a escrever, pois as cartas têm sido abertas. Com apreço, Kenneth di Gallarate. Londres, 2 de fevereiro de 1539.

— Quem é Kenneth, pai? — perguntou GianBattista.

— Isto é assunto dos adultos — respondeu secamente Cardano. — Coma sua comida.

GianBattista obedeceu e calou-se ao comando do pai. O mesmo não aconteceu com Clara, que se jogou no chão e continuou a chorar de forma estridente, mesmo recebendo o açoite nas pernas. Que gênio indomável, pensou Cardano. Terá de encontrar um marido que a faça calar.

O almoço especial também comemorava o sucesso, mesmo que as dez coroas que tinha recebido pela publicação fossem ainda um pagamento irrisório, do livro Practica Arithmeticae, um manual cuidadosamente elaborado, dedicado ao priore Francesco Gaddi. Fora editado por Bernardo Caluscho, em Milão, pois a distância de Veneza impedia uma revisão mais próxima do próprio autor, mesmo que os irmãos Scotto estivessem solicitando mais material. O Practica já entrara inclusive na França, com boa acolhida.

No livro, que poderia ser usado por estudantes em formação, pois apresentava regras simples de álgebra, eram discutidas as operações astronômicas, a multiplicação usando a memória, o valor do dinheiro e os mistérios do calendário eclesiástico; progressão, raiz quadrada, agregação, fórmulas com números inteiros e frações; regra dos três e regra dos seis, de regula sex. Também discorria sobre as estranhas respostas de certos números em determinados contextos, lugares da Lua, festas dominicais e parcerias na agricultura. O capítulo final passava a discutir o sobrenatural e as místicas propriedades dos números, De Proprietatibus Numer, para finalizar com um teste de aquisição de conhecimento para os estudantes. Um manual como nunca tinha sido visto antes.

Cardano abriu então nos capítulos De subtractione Denominatorum e Omnibus Imperfectis para constatar, com prazer, o trabalho tipográfico, com cada número e cada símbolo em seu devido lugar.

Igualmente, as figuras do capítulo 67, De Geometricis Questionibus, se mostravam impecáveis.

De forma ainda mais surpreendente, listava em seu apêndice nada menos que 34 livros que estavam prontos para a publicação, esperando apenas o interesse de um editor.

— Caro mestre — falou Ferrari —, nunca soube de um escritor que tivesse anunciado seus livros. — E completou, perguntando com bastante polidez: — De fato, todos eles já estão prontos para a publicação?

— Claro, Ferrari! — respondeu o médico, com um bom humor pouco usual. — Muitos deles estão aqui. — Apontou para a têmpora. — Outros já estão parcialmente escritos, e alguns merecem últimos retoques. O interesse do editor acelera o processo de finalização de um livro, não é mesmo?

— Isto só funcionaria com um mestre da sua capacidade, professor! — falou o pupilo.

— Parece que o signor Ferrari está se derretendo em elogios... — falou Lucia, em tom de brincadeira. Todos riram.

Donna Lucia, não é lisonja falsa — falou Ferrari, sério. — Não há gênio em Milão que se compare ao mestre.

— Caros, agradeço o elogio merecido — falou Cardano, arrancando um naco de carne e levando-o à boca. — A lista que criei deu certo, afinal — mastigou mais um pouco —, pois impressionou o editor germânico Petreius e seu colaborador, Andreas Osiander, este um humanista eminente, bastante conhecido pelos luteranos, apesar de não ser tão fervoroso. Osiander é erudito a ponto de ensinar grego e hebraico entre os monges agostinianos. Já me enviou uma mensagem em que se coloca à disposição para publicar os tratados De Consolatione, De sapientia e Ars Magna. O que acham? — perguntou Cardano, com indisfarçado orgulho.

Lucia mirou o marido com olhos de suave reprimenda, como se dissesse que ele não deveria acreditar tanto em elogios.

— Sei o que pensa, Lucia. Não me censure. Também não esquecerei um amigo. Enviarei pelo menos um dos livros para Ottaviano Scotto. Nunca esquecerei a oportunidade que ele me deu, mas vou escolher um livro em que não haja a possibilidade de erros de impressão, como o que aconteceu com De malo medendi. Talvez De Consolatione.

O almoço terminou em um tom agradável, como há muito tempo não acontecia. Os pupilos continuaram a conversar com Cardano enquanto Lucia e um dos servos levavam os pratos para a bacia de limpeza.

— Falta pouco para terminar Ars Magna, não é, mestre? — perguntou Ferrari.

— É verdade. Muitos me perguntam se eu teria a solução para a equação cúbica. Não há nada nesse campo que desperte tanto a atenção das pessoas, Ferrari. Este é o momento. Não podemos perdê-lo.

— E o que dizia a última carta do mestre de Veneza, Niccolò Tartaglia? — perguntou o pupilo Bigioggero.

— Uma exposição de rudezas — respondeu o médico, contrariado. — Vamos deixá-lo onde está e fazer o que temos que fazer. Ele não é mais o único e nem sabe que existem outros segredos que descobrimos. Preferiu a desonra. Poderia ser nosso sócio nesta empreitada. Mas não. Quando perceber, será tarde demais. Felicidade e paz não se encontram no mundo externo, meus caros, mas dentro da mente. Este contentamento só é possível com a virtude. Isto eu escrevi no livro De Consolatione e me servirá de lema.

— Uma frase de muita riqueza, mestre — falou, admirado, Ambrogio Bigioggero.

— Pedirei inclusive para Ottaviano colocá-la na capa: Fiat pax in virtute tua, deixe a paz vir com sua virtude.

Como se não fosse suficiente a torrente de ideias e informações que ocupavam sua mente com a finalização simultânea de um texto sobre a vida de Cristo, teve mais um sonho cheio de cenas carregadas de mensagens: subia pelos ares um livro pintado em três cores — vermelho, verde e dourado —, com impressionante beleza.

De suas páginas fluíam as imagens daquilo que vivenciávamos no cotidiano e tínhamos vontade de saber mais explicações, relembrou Cardano. Arco-íris, relâmpago, terremoto, inundações, assim como a variedade das coisas que nos cercavam. Sim, Variedade das Coisas. De Rerum Varietate. É um bom título, pensou consigo mesmo. Depois poderia se dedicar a escrever sobre a imortalidade da alma.

Outro assunto que urgia sair de sua pena era a cura da consumpção, ou da opressão respiratória. Um dos pacientes atendidos com sucesso tinha sido Jerome Tibbold, um comerciante que o procurara porque tossia e cuspia sangue. Cardano controlou sua consumpção enviando-o aos ares mais limpos de Gallarate, com orientação estrita de uma alimentação frugal e atividades que liberassem a mente das preocupações de Milão. Ele melhorou tanto que seu peso até se tornou excessivo.

Cardano voltou a procurar, entre seus preciosos livros, o Tractatus de Asmate, do rabino Maimônides, um magnífico manuscrito com ricas iluminuras. Folheando-o com carinho e cuidado, desejava conferir o que dizia o sábio hebreu sobre a doença que retornava de tempos em tempos como crises de falta de ar.

A cópia de um texto original, vislumbrada uma vez com curiosidade por Cardano em um livreiro de Milão, tinha caracteres em uma língua escrita dificílima de entender. Felizmente poderia se dar o privilégio de manipular o Tratado de asma na versão em latim, uma tradução vertida diretamente do árabe pouco mais de duzentos anos antes.

Deve-se ter muito cuidado para se evitar defluxos de frio e calor no caso de pessoas doentes. Ar frio e úmido é muito nocivo, escreveu Maimônides. Aer frigidus et humidus nocet multum. Quando a alma de uma pessoa, assim como suas funções física, vital e natural, estão muito fracas, perde-se o apetite. Impediatur appetitus. Por exemplo, isso acontece quando há tristeza, preocupação e angústia. Tristitie, anxietate, timoris et suspirii. Cardano fechou o livro e refletiu sobre as palavras do mestre, lembrando-se da melhora que teve o paciente Tibbold após ficar um período em Gallarate.

Na saída da missa, em um belo domingo de sol, distanciou-se um pouco dos filhos, de Lucia e de seus servos para trocar algumas palavras com Della Croce. A fonte da praça fazia jorrar pequenas gotículas no ar, deixando surpresas as crianças que tentavam segurar os pequenos arcos-íris que se formavam, um após o outro. Os dois médicos se cumprimentaram com reverência.

— Digo-lhe que não deve ser consumpção, meu caro — argumentou o doutor Luca Della Croce, após o breve relato de Cardano. — Se assim fosse, ele não teria se recuperado da forma como relata.

— Pois atendi um paciente de nome Tibbold. Reafirmo que ele se curou — disse Cardano. — Assim atesto com boa-fé.

— Não pode dizer que cura uma doença ao atender apenas um paciente...

— Também Donato Lanza, que o senhor conhece bem! — disse Cardano, já um pouco exaltado. — Sua opressão impedia-o de correr. Às vezes seu corpo tremia, e sua respiração forçada assemelhava-se a um saco com gatos que grunhiam desesperadamente. Nada mais resta dessa agonia.

— Está bem, meu caro — disse Della Croce. — Mas lembre-se de que o que se escreve fica no papel. Depois poderão criticá-lo por dizer que pode curar a opressão e a consumpção e terá que provar o que disse.

— Lembrarei — contemporizou Cardano. Estava seguro, no entanto, de que, se não publicasse logo seu relato, outros o fariam antes dele.

— Virá na próxima reunião? — perguntou Della Croce, mudando de assunto.

— Do que se trata? — disse Cardano.

— Será a exposição de um médico francês de nome Michel — respondeu Della Croce. — Não me lembro seu nome de família. Ele tem muita experiência no tratamento da peste negra e é um mestre da Alquimia e da Astrologia, segundo dizem. Além disso, trabalhou com Julius Cesar Scaliger.

Scaliger era um italiano que lutara no exército do imperador Massimiliano e depois fizera fama na França, tornando-se médico pessoal do bispo de Agen. Fez ataque fortíssimo a Erasmo de Roterdã e defendeu a pureza da literatura de Cícero. Muitos estavam lendo seu livro em Milão.

— Certamente será interessante ver um médico que trabalhou com doutor Scaliger — analisou Cardano.

— Talvez mais ainda — completou Della Croce —, pois parece ter havido um forte desentendimento entre os dois, esse doutor Michel e o doutor Scaliger. Dizem que o francês está fugindo, e não apenas viajando para conhecer outros países.

— Fugindo? — Cardano fez cara de surpreso. — Fugindo de quê?

— Não sei — disse Della Croce, ponderando que talvez fosse apenas um boato. — Imagino que seja em virtude de suas ideias religiosas.

— E a história de que ele encontrou um frade e disse que será papa?

— Essa é boa — disse Della Croce. — O sujeito chega à Itália, visita um convento franciscano, olha para um jovem e atesta que será papa. Depois vai embora, muitos anos antes que possamos verificar se a profecia realmente se concretizará.

— Veremos o que ele diz — falou Cardano, antes de voltar para casa.

Poucos dias depois, enviou para impressão um novo texto em que registrou a cura da opressão torácica, assim como dos sintomas desagradáveis de falta de ar e chiado no peito. A experiência própria que tivera na juventude com uma queixa parecida fazia com que ele se identificasse ainda mais com os pacientes que sofriam daquele mal.

Compareceu então, no terceiro dia da semana, à reunião regular do Colegiado de Milão, bastante curioso em relação ao médico francês.

Michel de Nostredame, ou Nostradamus, como pediu para ser chamado, em latim, relatou como aprendeu técnicas especiais para a interpretação de prognósticos em Astrologia com seu pai e seu avô. Além disso, contou que tivera uma vivência recente muito forte com a peste. Sua própria família fora morta pela doença. Mulher e filhos. Uma tragédia que acontecera justamente com ele, um médico que tinha tratado e curado tantos que sofriam.

— Caros excelentíssimos médicos da cidade de Milão, digo que não é interessante fazer o paciente vestir uma roupa encharcada de alho. Nem mesmo o âmbar amarelo tem qualquer poder de prevenção. As pessoas atacadas por essa doença negra perdem a esperança de salvação. Pode ser que achem estranho o que vou dizer — continuou Nostradamus, com certo receio —, mas oriento a sanidade da casa e dos que estão nela. Limpeza rigorosa, banhos frequentes e alimentação leve, com produtos pouco gordurosos. Nada de extração de sangue.

— Viemos aqui para ouvir isso? — reclamou um colega ao lado de Cardano. — Um médico que receita banho ao paciente?

— Lembrem-se de que Galeno falou taxativamente da importância de manter as passagens do fígado livres. De presenvantia e securitates est quod sin transitus nutrimentis, vie epatis, aperte et fortes. Se o humor se putrefaz, sobrevêm as febres malignas — e completou, com impecável latim: — Putrefactis generantur febres fraudulente.

— E sobre o remédio para curar a peste, caro mestre? — perguntou um dos presentes à reunião.

— Desenvolvi a pílula rosada — continuou Nostradamus — com os frutos da rosa-mosqueta. Mas a verdade é que nosso trabalho não terá resultado satisfatório se não houver uma boa conjunção dos astros no horóscopo do paciente em questão.

— O excelentíssimo colega quer dizer que devemos abandonar o paciente que não apresentar uma genitura favorável em sua carta? — perguntou outro médico do colegiado.

— Abandonar nunca! — respondeu, enfático, Nostradamus. — O capitão não pode ser o primeiro a fugir de um navio que naufraga.

A palestra, que aconteceu na curta estadia de Nostradamus em Milão, deixara impressões variadas entre os profissionais da cidade. Para alguns, ele era um charlatão; para outros, um conhecedor admirável da arte da cura. Cardano não se deixou impressionar nem por um extremo, nem por outro. Identificou-se, na verdade, com o apreço que o médico francês demonstrara por Cícero e ficou intrigado com os boatos de que estaria sendo perseguido pela Inquisição. Mas não foi só isso. Esmerar-se em compreender o ponto de vista de um paciente que sofre fora um grande lembrete, uma grande lição. Algo que Cardano prometeu a si próprio não mais esquecer.