Ottaviano Scotto vem a Milão
O ano de 1543 traria mais uma criança para o seio da família Cardano. No ano anterior, os pais de GianBattista e Clara tiveram outra noite de amor como marido e mulher, algo naturalmente menos comum quando pais e filhos dormem embaixo do mesmo cobertor. O resultado fora uma gravidez que transcorria tranquila e tinha atravessado as festas da natividade de Jesus Cristo sem sobressaltos.
Uma mensagem de Ottaviano Scotto, editor de Veneza, trouxe particular alegria e quebrou a monotonia daquele fim de inverno. Havia muito que Cardano não encontrava o grande amigo de faculdade e ficou particularmente emocionado quando recebeu sua visita.
Era um início de tarde tranquilo, com uma temperatura amena para a época. O frio era agradável; poderia ser espantado com um esfregar de mãos. Lucia descansava com a mãe, Taddea, que viera ajudá-la nos momentos finais da gravidez. Na porta da casa, um pastor passava conduzindo seus carneiros para comercializar no mercado.
— Também estava com saudade, caro amigo — disse Ottaviano, ao sentarem-se à beira do fogo —, mas fico contente que esteja bem instalado, com uma casa grande e confortável.
— Não posso dizer que não esteja aproveitando deste conforto — disse Cardano —, mas meu dinheiro vem todo para cá. São dois pupilos que moram conosco, mais dois servos, a irmã de Lucia, uma ama e, agora, a signora Taddea; sem contar, claro, GianBattista, com 9 anos — apontou para o garoto que estava brincando no chão, próximo deles —, e Clara, que está dormindo com a mãe, beirando os 6 anos. Conte ainda os gatos, cães, mulas e pássaros, além de músicos que estão sempre aqui nos alegrando, mas nos cobram até a última coroa. Lucia era de uma família de muitas posses, meu caro. Ela passou comigo momentos difíceis, sem nunca reclamar. Cheguei a vender suas joias antes de irmos para um abrigo em Gallarate. Merece ter o conforto de volta.
— Bem, vejo que, de qualquer maneira, as aulas e a Medicina estão rendendo bons frutos. — Ottaviano sorriu.
— Nem tanto — ponderou Cardano. — Sei que ainda será mais. As aulas e palestras dão uma paga razoável. Os clientes, que têm aumentado, também. Tenho ainda o patronato de Filippo Archinto, um homem sábio que me entende bem. Mas a verdade é que tenho frequentado a casa de um nobre que tem muito prazer com a minha presença. De fato, jogamos bastante. Chego a ganhar duas ou três coroas por dia!
— Tome cuidado — falou Ottaviano, incomodado com o relato do relacionamento do amigo com o nobre Antonio Vimercati. — As pessoas podem comentar, caro Cardano. É estranho dois homens passarem tardes e mais tardes juntos, principalmente se um deles é quem sempre ganha.
— Não me importo — respondeu o médico, dando de ombros. — Ele tem muitas posses. Pode desperdiçar em jogo sem que eu fique me sentindo culpado. Lembra que sou perito em dados e primero, não é mesmo? — Cardano sorriu ao propor um brinde.
— É verdade. Sinto saudades de nossas rodadas na taverna do moinho cervejeiro — falou Ottaviano em tom melancólico. — Mas naquele tempo ainda não conhecíamos isto. — Abriu um saco, colocando na mesa algumas bolas ovaladas cobertas de terra. — Vamos comer?
— Comer bolas de terra? — Cardano surpreendeu-se.
— Não, meu caro. Devemos lavar e ver as cores avermelhadas e amareladas aparecerem. Depois é só colocar no fogo. Ficará cada vez mais mole. É delicioso. Tenho um amigo que ganhou isso de um navegante espanhol. Ninguém conhece em Veneza, posso assegurar.
Cardano pediu que o servo as lavasse.
— Os portugueses também têm negociado muito com os venezianos — continuou Ottaviano. — Nem imagina quanto! Eles preferem o lucro conosco a levar as riquezas para o rei. Estamos novamente no topo do comércio de especiarias, de onde nunca deveríamos ter saído. Lembre-se de que vindo de Tashkent, atravessando Bagdá, ou Mascate, e passando por Alexandria, a porta de entrada na Europa é Veneza! As gazzetta vão cair do céu!
— Gazzetta? — Cardano arregalou os olhos.
— La gazzetta, amigo, La gazzetta! O novo símbolo da Sereníssima! — e tirou do bolso algumas moedas de prata chamadas de gazzetta; equivaliam a due soldi e tinham sido cunhadas recentemente, com a subida de Pietro Lando, o novo duque de Veneza.
— Certo, meu caro, não precisa se empolgar... Esta fruta aqui, ou coisa parecida — perguntou Cardano, olhando mais de perto a novidade —, é uma espécie de maçã que nasce dentro da terra?
— É do Novo Mundo — respondeu Ottaviano, concordando com a cabeça. — Um dia será um sucesso por toda a Itália, escreva isso.
— Será uma Itália de um rei apenas. Um rei milanês, já pensou nisso? — perguntou o médico, cutucando o editor.
— Quem defendeu a ideia de único rei foi Niccolò dei Machiavelli, o florentino... — falou Ottaviano, sem dar muita atenção à piada de Cardano. — Quando o livro saiu, há alguns anos, ele já estava morto. Um livro sensacional: De Principatibus. Todos já chamam de Il Principe. Afinal, não foi escrito em latim mesmo... Mas nada mudou em nossa Europa. Continua terrível, essa é verdade. Bem pior que o mundo novo, de onde vêm essas iguarias — apontou para as batatas que já estavam no fogo.
— Tenho minhas desconfianças em relação ao Novo Mundo...
— Não me diga! Ainda está impressionado com aquelas cartas de Américo Vespúcio? — questionou Ottaviano. — Sossegue. Nenhuma serpente envenenada vai sair de lá.
— Sim — concordou Cardano. — Eu sei que nossa Europa está mais assustadora. — Recordou a história dos anabatistas, na Germânia, que cantavam, gritavam e tiravam a roupa em nome de Jesus. — Lembre-se de que os luteranos de Münster tinham várias mulheres e subiam em cima de cadáveres dos adeptos da Igreja de Roma...
— Não pense que as coisas estão mais fáceis aqui na Itália, Cardano. Depois que Paulo III criou a Inquisizione del Santo Offizio, no ano passado, o aperto aumentou. Acabam de instaurar em Veneza um grupo de esecutori contro la bestemmia.
— Contra que blasfêmia, Ottaviano?
— Tudo o que parecer herege, meu caro. As editoras estão sendo vasculhadas. A nossa já foi visitada mais de uma vez. O medo está aumentando.
— Mas nunca teremos uma Inquisição como na Espanha, tenho certeza disso — falou Cardano de forma convicta. — Eu não poderia escrever um horóscopo de Cristo se estivesse na terra de Castela e Aragão.
— Acredito que deva prestar mais atenção.
— Está bem, Ottaviano. O que sair da minha pena, a partir de agora, levará em consideração seu conselho. A menos que eu escreva para o mundo luterano...
Cardano pensou um pouco mais antes de tocar em um tema delicado.
— Diga-me, houve mágoa por causa do meu contrato com Osiander e Petreius, de Nuremberg?
— Em nenhum momento, Cardano. Fique à vontade para explorar o mercado europeu. Eu não conseguiria espalhar seu livro como eles fazem. Há o seu merecimento, com certeza. Agradeço sua confiança em nos enviar De Consolatione no ano passado, um livro bonito, mas talvez um pouco profundo demais.
— Entendo o que quer dizer — falou Cardano com certa decepção. — É por isso que não dediquei a ninguém um livro que esmiúça o sofrimento.
— As pessoas querem assuntos mais leves. Pena que não possamos publicar novamente o De malo medendi.
Cardano levantou as sobrancelhas:
— Agora que estou mais conhecido e continuo a desfrutar do patronato de Francesco Sfondrato, fui escolhido reitor do Colégio dos Médicos de Milão, seria desastroso fazer uma nova edição daquele livro.
— Eu sei. Sua carta foi clara. De qualquer forma, parabéns pela reitoria. Foi uma grande honra, não? Principalmente porque recebeu o próprio imperador. Amigo, está ficando poderoso...
— Finalmente! — Cardano deu uma risada. — Confesso que ser uma das autoridades que receberam Carlos V em Milão foi inesquecível. Não imagina a beleza do baldacchino que os servos portavam sobre ele. Uma longa peça de pano retangular, toda trabalhada e colorida, com seis hastes nas laterais.
— Não estava em carruagem? — perguntou Ottaviano.
— Eu também me surpreendi. Tinha preparado o projeto de um sistema de amortecimento, pois nossas ruas em Milão não estão em bom estado, e ele nem usufruiu. Tomei como base o método de suspender um compasso que inventei para o livro De Rerum Varietate. Para que o eixo transmitisse a energia giratória, usei uma espécie de moeda central e deu certo. Veja.
Cardano rascunhou em um papel sua ideia para que Ottaviano visualizasse melhor.
— Aqui já pode notar que meu talento não está direcionado à arte do desenho. — Sorriu. — O segredo está nesta rodela central, que vira em dois eixos diferentes.
Lembrava-se de que messer Leonardo da Vinci tinha concebido algo parecido, mas o servo enviado à casa de Melzi não encontrou mais ninguém morando lá. Então teve que se virar sozinho.
— A verdade é que o imperador, no fim das contas, percorreu a cidade a cavalo — continuou Cardano. — Fez contraste com o baldacchino, e todos da nobreza em volta, vestindo uma modesta, mas elegante, roupa negra e um chapéu de feltro na cabeça. Alojou-se na corte depois de ir à catedral, seguido por uma multidão embevecida.
— E o que está escrevendo agora? — perguntou Ottaviano curioso.
— Neste momento estou escrevendo uma espécie de obra enciclopédica, que inclui, por exemplo, essa luminária que pode ver pendurada na parede. Preste atenção neste esboço que fiz para o De Subtilitate.
— O óleo da lâmpada dá uma luz mais constante — falou Cardano, mostrando o bico da lamparina especialmente desenhada para a sala de entrada da casa.
— E que óleo utiliza?
— De olivas — respondeu Cardano. — Já experimentei também o de sementes de colza e de um derivado da terebintina. São muito bons, contanto que não explodam. Neste caso, vão subtrair sua casa do horizonte, em meio a chamas incontroláveis — ironizou.
— Bem, eu continuo a preferir as velas. As de cera, naturalmente. As velas de sebo podem ser baratas, mas deixam uma fedentina insuportável.
— Concordo em relação às velas para a leitura. Gosto de escrever à noite. Neste caso, a iluminação é fundamental — explicou Cardano. — Ferrari fez as contas: tenho escrito um pequeno livro por semana no último ano. Metoposcopia, que é a arte de ler as feições, Vida de Galeno, Convivium, sobre o amor e muitos outros. Livros a serem impressos e outros para serem devorados pelo lixo.Também estou, neste momento, revisando meus manuscritos de álgebra.
— Será dedicado a quem? — perguntou Ottaviano, curioso.
— Não sei ainda. De todo modo, está prometida ao imperador. Acabo de chegar de Bolonha, aonde fui com Ferrari para analisar os papéis de Del Ferro. Ele descobriu uma regra para a equação do cubus. Esta aqui — escreveu rapidamente, para que Ottaviano soubesse do que se tratava.
x3 + px = q
— Não tenho a menor ideia do que é isso, rapaz! — Ottaviano sorriu.
— Bem, será uma obra para iniciados, como poucas. Aliás, falando nisso — Cardano franziu a testa —, Osiander me disse que lançaria um livro de Nicolaus Copernicus que eu iria gostar, pois tinha muita matemática, em grau aprofundado.
— Mikolaj Kopernik? Conheço os escritos dele. É um religioso e astrônomo do norte, que morava em uma torre ao lado do mar e vivia com uma linda mulher mais jovem...
— Meu Deus! — exclamou Cardano. — O histórico completo!
— Lembre-se de que eu tenho uma tipografia; quem escreve livros está na minha mira. Sei também que Copérnico agora está paralisado, na cama, prestes a morrer. Dizem que ele tem mostrado cálculos em que a Terra deixaria de ser o centro. Em lugar dela estaria o Sol.
— Também ouvi algo nessa linha. Qualquer um tem o direito de ter seus delírios, às vezes. Se ele estivesse na Itália, com esta nova Inquisição, certamente seria chamado para dar esclarecimentos. Mas diga-me uma coisa: ele é padre e tinha uma concubina?
— Quem não tem? — Ottaviano gargalhou. — Não seja ingênuo. Só o doutor Cardano não pega doença, não é mesmo?
— Não brinque com isso, meu caro amigo. Sua carta falava justamente que sua viagem até aqui tinha o objetivo de tratar de uma peste que o afetava no canal da urina, estou errado?
O semblante de Ottaviano mudou. A doença estava provocando grande incômodo e sofrimento. Em alguns dias estava bem; em outros, a doença da queimação, a nefandum infirmitatum, ou perversa doença, tornava quase impossível verter a urina, geralmente acompanhada de pus. Era considerada uma forma de sífilis, nome em voga depois da publicação de um poema do médico Fracastorius, de Verona.
Portanto, dessa vez, o amigo de Cardano não fizera uma longa viagem apenas para reforçar a amizade ou conversar com um escritor. Viera a Milão atrás da solução de seu padecimento com um médico cujo nome já tinha ultrapassado os limites do ducado.
Ottaviano contou todas as peripécias por que passou na tentativa de eliminar o mal, após consultar videntes e cartomantes. Emplastros de sapo dissecado e o mergulho das partes íntimas em vísceras de mula nem foram as piores medidas. A gota d’água foi ter que encontrar um mendigo que estivesse disposto, por boa gratificação, a chupar a secreção no momento da descarga urinária.
Após uma profunda expressão de asco, Cardano perguntou mais detalhes dos sintomas e concluiu que a doença da queimação não seria uma variante da sífilis, mas uma doença completamente diferente.
— Essa afecção das partes íntimas é considerada por muitos como o prenúncio da sífilis, o que o médico Gaspare Torella chama de Pudendagrum sen Morbum Gallicum.
— O mal-francês das pudendas?
— Exatamente — disse Cardano. — Mas eu penso diferente. Para mim, é outra doença e pode ser curada. Não é a mesma que mortificou as partes de César Bórgia, ou que grassa nos ambientes imundos.
Ottaviano, em poucos dias, já estava seguindo à risca o tratamento do emplastro sarraceno, usado pelos cruzados, que incluía louro, carvão vegetal, óleo de escorpiões e mercúrio. Partiu e combinou que depois escreveria de Veneza, ou, em alguma oportunidade, voltaria a Milão.
Com o passar das semanas, a expectativa voltou-se para o novo filho. Quando no dia 25 de maio Aldo Urbano nasceu, o terceiro do casal Cardano, ninguém teve uma boa impressão. Os olhos distantes um do outro, as sobrancelhas pontiagudas e o cabelo preto davam uma feição diabólica ao menino. Houve dúvida se ele tinha uma deformidade.
Lucia ficou bastante afetada, com uma melancolia profunda. Já estava assim mesmo antes do nascimento, na verdade, como se prenunciasse o desgaste pelo qual iria passar a cada mamada. Teve ajuda de uma nova ama na tarefa de cuidar do bebê, mas não parecia suficiente. GianBattista, bem mais velho, observava apenas com desconfiança, mas Clara tornou-se muito agressiva, dando petelecos na cabeça do menino sempre que podia.
Cardano praticamente ignorou o acontecimento. Não pressentiu nada, nem recebeu avisos de qualquer sorte, para o bem ou para o mal. Ficou até tranquilo, pois o horóscopo de Aldo mostrava-se bastante favorável.Talvez o garoto nem precisasse de ajuda. Um brilhante futuro viria pela frente. É apenas mais um filho, pensou. Já tenho o mais velho para me ocupar. E assim decidiu tomar as rédeas da tutoria de GianBattista. A partir dali, o próprio pai seria responsável pelo aprendizado do filho mais velho, repetindo os passos de Fazio.
Enquanto escrevia um diálogo na própria língua em que discutia as diferenças entre grego, latim, italiano de Petrarca e língua espanhola, salientava as qualidades de cada uma para o filho e traduzia os trechos principais. Em relação à língua de Castela e Aragão havia pouca dificuldade. O espanhol fazia parte do dia a dia da Lombardia; as tropas vindas de lá eram presença marcante nas últimas décadas.
Paralelamente, o furor incansável de Cardano permitia a produção de novos livros, além da revisão dos anteriores. De Sapientia Libri V, ou Os Cinco Livros da Sabedoria, por exemplo, foram enviados a Petreius junto com a correção do livro De Consolatione. Suas publicações aumentavam consideravelmente uma reputação que ascendia ano após ano.
O convite para dar aulas na Faculdade de Milão permitiu que mais temas surgissem à sua mente, assim que preparava as matérias que fariam parte de suas exposições. Foi um arranjo que emergiu após a transferência da Faculdade de Pavia para a capital do ducado por causa da bancarrota que se abateu sobre a ancestral instituição, agravada pelo medo de uma nova invasão pela França.
A rotina se estabelecia na espaçosa casa da região de San Michelle alla Chiusa com impressionante regularidade. Na parte inicial do dia, acordava depois que todos estavam de pé, na segunda hora da manhã, tomava um café com uvas, pão e água. Na sua sala de trabalho, cães, gatos, cabras e pássaros disputavam espaço.
Apesar de suas contínuas congestões no nariz e no peito, ele lia e escrevia com os pés descalços. Dessa forma se movimentava continuadas vezes ao redor da mesa enquanto pensava sobre um assunto que estivesse demandando maior reflexão. Era interrompido pelas brincadeiras de GianBattista e Clara, que corriam pela casa. Um ou dois estudantes estariam também na sala para ajudar na pesquisa de algum tema específico. Consequentemente, uma parte razoável do orçamento era direcionada à caríssima tinta preta.
Nesse meio-tempo, pacientes chegavam e solicitavam consultas, palestras eram preparadas e encontros eram agendados com filósofos, matemáticos e outros médicos.
No horário do almoço, uma gema de ovo misturada ao vinho e uma fatia de pão eram suficientes, sem que o trabalho fosse interrompido. Músicos chegavam à sua casa e tocavam quase diariamente. Alguns eram contratados e outros eram amigos que vinham para se divertir. No fim do dia, caso a temperatura estivesse agradável, Cardano reservava uma hora para pescar. GianBattista e mais um ou dois pupilos acompanhavam-no e tomavam nota de tudo que viesse à mente do médico-escritor.
A última refeição do dia incluía mariscos, arenque, peixe gobião, ou uma carpa, ao lado de cebolas apimentadas com ervas da floresta. Em seguida, frutas e queijo. Após todos irem dormir, Cardano sentava-se em sua escrivaninha para escrever um pouco mais sobre os assuntos do seu amplo espectro de interesses, com especial atenção para suas curas e descobertas.
Em seu livro-diário De Vita Propria, abriu um capítulo, Felicitas in Curando, em que começou a descrever os sucessos na prática médica, alguns dos quais já tinha publicado. Relatou a cura de Martha Motta, uma mulher na faixa dos 30 que estivera presa à cadeira de rodas por 13 longos anos. Martham Mottam, quae per annos XIII in cathedra sedebat. Apesar de ainda estar curvada, per totam vitam inclinata, já conseguia dar seus passos de forma independente.
Também descreveu a cura da consumpção, a phthisi, de Giulio Gati, e o empiema de Adriano, o belga. Ex Empyemate Adrianum Belgam, que ficou de todos os modos grato, mirum in modum mihi gratus, atque amicus. A noite já ia alta quando Cardano repousava a pena e decidia dormir.
Mas nem sempre as curas aconteciam como ele esperava. Ficou bastante decepcionado quando foi chamado para o enterro de Donato Lanza. Não estava a par da última piora do estado de saúde do amigo cuja consumpção pulmonar tinha tratado. Dera a cura como definitiva. No primeiro dia do verão, com chuva fina e a sensação de que ainda estavam no fim do outono, doutor Luca Della Croce, que tinha acompanhado o desenrolar do quadro do boticário, contou a Cardano os detalhes do ocorrido.
— Ao que parece, as autoridades foram atrás de Donato por alguma ofensa que fez a alguém. Ele pulou em um tanque e saiu encharcado.
— Pulou em um tanque? — perguntou, surpreso, Cardano.
— Pulou, ou caiu, não sei — disse Della Croce. — O fato é que demorou a trocar de roupa e teve, como consequência, a volta da doença, com grande intensidade. Não se passaram nem duas semanas, e o resultado foi este. — Apontou para o corpo que descia para a vala, ao lado da Basílica de Sant’Eustorgio, bastante antiga, da época dos primeiros cristãos.
Essa igreja ao lado da qual Donato Lanza estava sendo enterrado tinha um belo púlpito de madeira esculpida. Sofrera graves danos após o encontro de soldados franceses e espanhóis. Muitos mártires jaziam lá. Apesar disso, ninguém acreditava que um dia o belo prédio fosse restaurado. Seria um trabalho demasiadamente caro.
Cardano observava as pás de terra serem jogadas sobre o amigo e constatava que suas conclusões sobre a cura da doença da opressão respiratória poderiam estar equivocadas. O problema era que já tinha publicado seu caso, uma iniciativa que se mostrara precipitada. Della Croce estava ciente disso e lembrou Cardano sobre o que já tinham discutido uma vez.
— Veja, caro colega, a phthisi pode ser traiçoeira. Eu disse anteriormente... não tem mesmo cura.
— O que escrevi foi com boa-fé. Infelizmente, fui decepcionado pela esperança — respondeu Cardano, contrariado, lembrando de outro caso recente que preferiu não comentar.
Tibbold, que já tinha recebido os cuidados de Cardano meses antes, depois de retornar da missa em um dia chuvoso, não trocou as roupas molhadas e passou a noite inteira jogando dados. Sua queixa de tosse com sangue voltou com violência, e ele não resistiu. A viúva informou a Cardano que a tosse e a falta de ar, na verdade, nunca desapareceram por completo, ao contrário do que o médico tinha pensado.
Após rezarem à alma de Donato Lanza, Della Croce e Cardano tomaram o rumo da praça da Matriz. O livro de um médico da Universidade de Pádua, Andreas Vesalius, chamado De Humani Corporis Fabrica, era o tema do momento.
— Vesalius me escreveu recentemente, caro Luca.
— De onde ele é mesmo? — perguntou Della Croce.
— Acredito que tenha vindo de Bruxelas — respondeu Cardano. — Ele realizou, na verdade, sua primeira dissecação pública como professor convidado no inverno de 1540, em Bolonha. Desde então fez outras, gerando o livro. Dizem que é um grande mestre, mesmo que se tenha algumas ressalvas em relação ao Corporis Fabrica.
— Algumas ressalvas? — falou, surpreso, Della Croce. — O livro é um total disparate! Por que insistir em abrir a carne humana? Nosso corpo merece esse aviltamento?
— Ao que parece, eles faziam as dissecações à luz de velas, na Igreja de San Francesco, de duzentas a trezentas pessoas, na maior parte estudantes.
— Isso é curiosidade da juventude. É possível compreender esse sucesso. Não trocaria uma aula de Matthaeus Curtius por dez aulas de Vesalius.
— Concordo que o mestre Curtius seja excepcional...
— E a explicação que ele tem sobre o amarelado da pele e a formação de pedras junto ao fígado? O que acha? — completou Della Croce.
— Só me resta fazer minhas as suas palavras — concordou Cardano. — No entanto, há algo de muito interessante nessa obra de Vesalius impressa em Basileia. Por vezes a anatomia que ele apresenta faz muito sentido.
— Caro reitor de nosso colegiado, o que faz sentido é que ele tenha dedicado o livro a Carlos V, chamando-o de maior e mais invencível. Maximum, Invictissimum que Imperatore! — falou de forma irônica Della Croce, passando em seguida para uma pergunta desafiadora. — Então me diga: quem é ele para falar mal de Galeno?
— Devo dizer que eu mesmo já fiz uma dissecação... — confessou Cardano, um pouco constrangido. — E vi com meus próprios olhos que não havia a passagem que Galeno descrevia no septo do coração...
— Está falando sério? Hoje poderíamos ter problemas até com a Igreja... sabe disso, não?
— Claro, messer Luca, fique tranquilo. Mas ouça esta história: escrevi a Vesalius perguntando por que um coração que vimos em uma aula tinha um furo denotando comunicação. — Levantou as sobrancelhas. — Ele perguntou se a criança vivia com a cor arroxeada; nesse caso, seria uma doença, e não um coração normal.
— A criança era arroxeada? — perguntou, um pouco assustado, Della Croce.
— Sim. Vesalius acertou. Galeno estava errado...
Della Croce não soube mais o que dizer. A explicação de que o corpo humano tinha se alterado desde a Antiguidade e por isso estavam encontrando aspectos anatômicos não demonstrados antes não era muito convincente. Ele sabia disso. Ficou pensativo e preferiu continuar a conversa outro dia.
O fato de Vesalius ter pegado o escalpelo em mãos e subvertido o ritual acadêmico desencadeara uma excitação nunca antes vista nas aulas de anatomia. A regra ainda adotada pela maioria das Universidades dizia que antes de se iniciar a dissecação deveria ser lido um texto de Galeno. O cirurgião, logo depois, empreenderia a tarefa com a ajuda de um demonstrador. Com Vesalius, algo de fundamental estava se alterando no ensino da anatomia.
Ao chegar em casa, Cardano pegou com cuidado o fólio com mais de seiscentas páginas e centenas de ilustrações, segundo diziam, feitas pelo mestre Tiziano Vecelli, ou talvez por seu discípulo, o pintor flamengo Stefan von Kalkar e releu com atenção o prefácio de Andreas Vesalius: Os doutores da Itália, depois de tantos anos, imitando os antigos romanos, romanorum imitationem manus operam, orientavam seus servos a realizarem as operações manuais necessárias nos pacientes; prostituíram-se sob o nome de medici, relegando o resto da medicina, como a cirurgia, aos barbeiros.
Abriu então na parte que falava da circulação: Dos órgãos criados para manter o calor e reacender nossos espíritos, o coração é o mais importante. Tem os ventrículos separados por um grosso septo adaptado para distender e contrair.
Não é à toa que tantos estão indignados com esse livro de Vesalius, pensou Cardano, para em seguida escrever em seu diário: Nunca o vi, embora não possa ter amigo mais íntimo. Nunquam vidi, ut neque Vesalium quamquam intimum mihi amicum.
Cardano repousou a pena e voltou a ler com admiração o que tinha escrito o ousado anatomista belga. Os médicos têm negligenciado a fábrica de ossos, músculos, nervos, veias e artérias como se esse ensinamento não lhes pertencesse. Mas devemos, ao contrário, chegar ao ponto de não termos vergonha de comparar nossos métodos de dissecação com os dos antigos. Essa ambição não teria acontecido se, ao estudar em Paris, eu não tivesse colocado minhas próprias mãos no interior do corpo humano e tido o prazer de apresentar esse trabalho em público.
— Que livro bonito — falou GianBattista, chegando de mansinho e com cuidado para não enervar o pai.
— Sim, meu filho. Aproveite o privilégio de ver um maravilhoso livro. Eles nos ensinam, nos fazem aguentar os momentos difíceis, nos consolam.
— Clara não gosta de livros...
— Mas, se o meu filho gosta, estou contente.
— E o Aldo? Vai gostar de livros? — perguntou o filho, sabendo que a saúde do irmão menor, de um ano e meio, era bastante frágil.
— Nem sei se ele vai sobreviver. Teve convulsões, agora não anda nem fala — falou com desapego o pai. — Parece que não vai se desenvolver nunca, mesmo com a genitura bastante favorável que ele tem.
— Por que alguns têm tantos problemas? — perguntou Gian, com a expressão de quem estava bastante preocupado com as diferenças do mundo.
— Porque assim está escrito. Eu nasci com o destino de ser grande. Sou reitor do Colégio de Médicos, meus livros estão por toda a Europa, os pacientes me procuram. Ainda haverá mais. E você descobrirá seu caminho. Mediocridade ou excelência... Escrevi algo sobre isso hoje. Ouça. — Pegou uma folha em um maço diferente, onde esboçava um diálogo que teria com Fazio, o seu próprio pai, ipsius patris. — Ouça e veja se compreende: Et qual iniqua sum conditione inter mortales!
— Como são as condições entre os homens... — arriscou GianBattista.
— Quão injustas são as condições! — corrigiu o pai. — Estude muito e poderá ser alguém. Do contrário, não será nada. Morrerá e desaparecerá... — E gritou com força, a ponto de deixar GianBattista assustado. — Agora saia daqui. Vá! Leia o texto que mandei!