Ferrari e Tartaglia

No dia 10 de agosto de 1548, em uma noite de gala, estavam presentes no jardim da igreja dos frades Zoccolanti di Sant’Angelo, quase na estrada de Santa Tereza, vários nobres, altos oficiais e cidadãos de destaque da sociedade milanesa. Mesmo sendo um fim de tarde, o sol ainda estava alto.

O árbitro supremo da disputa era ninguém menos que o governador, dom Ferrante di Gonzaga, o mantovano que fez parte do saque de Roma e desfilava de nariz empinado por todos os ambientes com sua barba cerrada, avançada calvície e uma barriga que não conseguia mais disfarçar.

As questões que serviriam de ponto de partida para o debate já tinham sido combinadas entre os oponentes. O matemático de Brescia aceitara vir até Milão e estava convicto de que impingiria uma derrota humilhante ao jovem pupilo do seu maior desafeto, Girolamo Cardano. Ao tomar o lugar do médico na correspondência, Ferrari trocou com seu oponente, por mais de uma ano, cartas duras, recheadas de termos rudes.

Tartaglia trazia um grande séquito, entre os quais seu preferido pupilo, o inglês Mr. Wentworth. Não conseguiu que o próprio autor de Ars Magna aceitasse o debate, mas tanto melhor, pensou, poderei arrasar a fama do milanês surrando seu pupilo.

O tablado, especialmente erguido para o encontro, ficava no centro do átrio do convento, cercado por todos os lados por arcadas cobertas, onde se aglomeravam, nos dois andares, os espectadores.

Após ter a palavra, Tartaglia, com a luz do sol em sua face, às 18 horas de um dia de pleno verão, deu início à sua exposição, afirmando que seus oponentes não dominavam o tratado de introdução à geografia de Ptolomeu e tinham cometido repetidamente erros muito graves.

— Lembrem-se, senhores — falava de forma pomposa Tartaglia de que foi esse tratado que influenciou jovens e ousados viajadores a descobrirem o Novo Mundo.

Depois, contando em detalhes sua versão da visita a Milão, quando pessoalmente conheceu o médico agora aclamado por ter criado a regra para a equação cúbica, o matemático de Brescia contou como fora obrigado a ceder a solução do problema, mediante juramento solene.

Para desgosto de Tartaglia, a disputa fora chamada de “Desafio sobre a Regra de Cardano”, título impresso nos cartazes distribuídos pela cidade.

A grande audiência era exatamente o que desejava o jovem Ferrari, lembrando-se de cada detalhe dos conselhos dados por seu mestre: “Deixe que ele se afunde no próprio veneno da vingança.”

— Não quero fatigar os nobres ouvintes com assuntos paralelos, mas saibam que o honorandissimo mestre desse jovem pupilo aqui presente foi detestável — continuou Tartaglia no mesmo tom descortês — por descumprir um juramento feito à luz do Senhor. Não há prova mais cabal de sua afronta.

Avançando repetidamente sobre o limite de tempo anunciado pelos juízes, Tartaglia testava ao máximo a paciência de todos. A audiência tinha comparecido para presenciar um desafio de questões de matemática, e não impropérios contra um catedrático que não estava presente.

Ferrari, ao ter a palavra, não se conteve. Considerou que precisaria responder pelo menos uma vez aos ataques de Tartaglia.

Signor Niccolò Fontana, tem a infâmia de dizer que o mestre Hieronymus Cardanus é inculto, simplório e ignorante em matemática, mas esse linguajar grosseiro denota sua baixa posição social. Como o assunto diz respeito a mim pessoalmente, pois sou criatura dele, incumbi-me de tornar publicamente conhecida sua trapaça...

Para evitar que a querela se tornasse tediosa, Ferrari retomava rapidamente a discussão matemática, mostrando, com didática exemplar, como a resposta de cada equação poderia ser atingida.

Tartaglia, por outro lado, queria aproveitar o primeiro dia de debate para expor todos os pontos que considerava críticos no relacionamento com Cardano e as divergências teóricas importantes de Ferrari. Lembrou que teria sido a primeira pessoa a usar a raiz quadrada de números negativos. Afirmou que escrevia um livro, o mais revolucionário no campo da matemática desde Euclides.

Quesiti et Inventioni Diverse é o nome que já escolhi para a obra máxima que está a caminho — continuou Tartaglia. — Será dedicada ao honorável e magnânimo rei Henrique VIII, que morreu no ano passado.

A dedicatória ao falecido rei causou certo incômodo, pois, apesar de ele não ter abraçado o luteranismo, tinha sido um flagrante opositor da Igreja de Roma, excomungado pelo papa. Arrasara conventos e mosteiros, criando uma própria religião independente.

Agora a coroa real inglesa estava na cabeça de uma criança de 9 anos, Eduardo VI, filho do terceiro casamento do monarca. As filhas mais velhas poderiam herdar o trono, pois o Ato de Sucessão de 1543, aprovado pelo Parlamento, restaurou a linha sucessória que incluía as irmãs Mary e Elizabeth, mas a prioridade cabia ao herdeiro masculino. Muitos concluíram que Tartaglia fizera a honra a um rei de um país distante como resultado da influência do pupilo e amigo inglês Richard Wentworth.

Ferrari, por sua vez, tocou em um ponto delicado: a solução do quarto problema do arquiteto romano Vitruvius. O matemático de Brescia notou a própria falha, pois não tinha a resposta para a questão apresentada. Percebeu que tinha sido traído por sua autoconfiança. Divagou sobre outros temas, como tinha feito até então, ganhando tempo. O público, impaciente, já se manifestava a favor do pupilo de Cardano.

— Para esses senhores, Ludovico Ferrari e Girolamo Cardano — gritou Tartaglia, com gestos exagerados, evidenciando que perdia o controle de seus nervos —, parece que uma promessa é, na verdade, uma não promessa, a menos que seja executada com documentos legais, pelas mãos de um notário! Senhores! — gritou mais uma vez, tentando vencer o burburinho da plateia. — Sêneca disse que um homem que perde sua honra não tem nada mais a perder!

A sessão foi interrompida a tempo de os ânimos não se exaltarem excessivamente. Ademais, já era tarde. Ficou acordado que a disputa continuaria no dia 11, bem cedo, pela manhã. Para muitos não havia dúvida: Ferrari seria o vencedor.

No dia seguinte, no entanto, a notícia de que Tartaglia tinha deixado Milão antes do amanhecer percorreu a cidade como um raio. Foi comentada nas igrejas e repartições do governador, nos moinhos e nas tavernas, no Piattine e nas prisões.

Não demorou a Ferrari receber convites para dar palestras em Roma, Veneza e Brescia. O próprio imperador solicitou-o como tutor do filho.

O médico orientador de Ferrari circulava pela cidade orgulhoso. Mesmo não tendo comparecido ao desafio, seu nome estava presente. Muitos já se referiam à fórmula de Cardano. Ele não negava nem retificava. Já tinha dado o devido crédito em seu livro àqueles que inventaram as fórmulas, mas, se quisessem usar seu nome como referência, por que não?

Um dia, voltando para casa após atender uma paciente com ataque desencadeado pelo movimento do sangue no útero, a hystèra, passava perto da Igreja Santa Maria Maggiore, quando um senhor alto e forte, bastante queimado pelo sol, tocou nas costas de Cardano.

Messer Girolamo?

— Sim? — O médico matemático interrompeu a marcha, virando-se, curioso, para o homem com um brinco na orelha que o fitava sorrindo.

— Não me reconhece?

— Deveria? — perguntou Cardano, surpreso.

— Sou Ambrogio Varadei, seu amigo de infância! — falou de forma amistosa. — Brincávamos de gritadores oficiais, lembra-se? Fomos juntos, com o signor Aldo Manuzio, à leitura das cartas de Américo Vespúcio...

— Claro que me lembro, Ambrogio! — respondeu Cardano com um sorriso nos lábios. — Apenas estava estupefato por ver um homem bronzeado, com músculos saltando da camisa e um brinco que não se usa em Milão. Por onde andou?

— Depois daquela tarde em que ouvimos o relato sobre as cartas do Novo Mundo, fiquei com a ideia fixa de conhecer outros lugares. Tudo aconteceu muito rápido. Fomos para Paris, e de lá meus pais foram enviados a Castela e, em seguida, Sevilha. Essa era a minha chance. Acabei indo, por acaso, para o lugar certo.

— Então — perguntou Cardano, brincando —, atravessou o Mar Oceano?

— Atravessei... — respondeu Ambrogio. — Fiquei dez anos em Hispaniola.

Cardano ficou paralisado, pasmo. Estava falando com um amigo que conhecia terras onde poucos europeus tinham pisado. O Novo Mundo.

— Precisamos nos sentar para conversar — propôs Cardano. — Estou muito curioso sobre o que tem a me dizer. Vamos?

— Sim, certamente — respondeu prontamente Ambrogio, feliz de reencontrar um amigo. — Mas, antes de falarmos de viagens, preciso saber sobre esta minha terra. Há muito não venho aqui.

Os dois sentaram-se calmamente na taverna próxima à pousada onde Ambrogio se hospedava para beber vinho branco suave e comer ambrosia.

— Ambrosia? — perguntou o amigo de Cardano, surpreso.

— Sim — respondeu o médico. — A mesma receita usada por Platão — e citou a passagem do filósofo: O cocheiro interrompe a marcha dos cavalos e oferece ambrosia e néctar...

— É muito bom — falou Ambrogio, impressionado, ao experimentar um pouco. — Do que é feito?

— Não sei — respondeu Cardano, sorrindo. — Mas eu, pessoalmente, julgo fruto da ação dos deuses. O segredo contém ovos, vinho doce, açúcar branco... Por mais que eu tenha perguntado a receita, o taberneiro GianMarco tergiversou.

— Vamos então brindar com este néctar — Ambrogio levantou a taça — e comer o manjar divino. — Pegou mais um punhado do doce com a mão e levou-o à boca.

Cardano, surpreso com os modos um pouco rudes do amigo, relatou as notícias que chegavam a Milão.

— François I, o rei da França, desde que tinha subido ao trono, só pensava em guerra, querendo expandir suas posses à custa de terras da Itália — começou Cardano. — O sacro imperador também tinha seus desejos, fazendo com que a Europa fosse pequena para os dois monarcas. Foram necessárias duas mulheres para interromper o que parecia uma briga infantil. A mãe de François I e a tia de Carlos V negociaram a paz. Não é à toa que o recente acordo estava sendo chamado de Paz das Damas. Portanto, finalmente, Milão respira um pouco, sem o perigo de guerra iminente.

— Vamos ver agora o que fará o sucessor de François, Henrique II — disse Ambrogio.

— Concordo. É sempre uma incógnita a morte de um rei. As coisas podem até piorar — disse Cardano, retomando o relato. — Do outro lado, os turcos abandonaram a Áustria, uma notícia auspiciosa.

— E como está a agitação causada por Martin Lutero? — perguntou Ambrogio.

— Para quem segue a Igreja de Roma, o cerco está mais fechado. Muitos abandonaram a Suíça. A Suécia também aderiu. Por aqui, nas terras italianas, Paulo III aprovou finalmente a existência da Companhia de Jesus — continuou Cardano. — É uma entidade que responde diretamente ao papa. Os irmãos jesuítas farão missões em terras distantes e educarão os jovens, mas não poderão aceitar cargos de grande poder. É espírito do que eles chamam de Soldados da Igreja.

— É bom que a Igreja tenha muitos soldados mesmo, pois os espanhóis e os portugueses estão indo para toda parte — disse Ambrogio, levantando as sobrancelhas. — Parece que os portugueses chegaram à China, a partir de Sião, e aguardam autorização dos mandarins para instalar um entreposto na região de Macau, na entrada do rio Cantão.

— Na China? — perguntou Cardano, surpreso. — Eles vão dominar o mundo...

— Pode ser que sim. Por isso é que o meu próximo passo será ir para terras de portugueses. Talvez a Terra de Santa Cruz, que chamam de Brasil. Conheci um almirante francês, que lutou em Argel. Ele me convidou a fazer parte do grupo. Fala muito bem a língua da Toscana, pois morou em Roma e lutou por aqui.

— Como se chama? — perguntou Cardano.

— Nicolas de Villegagnon. Estava na Itália até recentemente, em missão diplomática.

— Cuidado ao pronunciar o nome desse oficial. Muitos o odeiam, pois ele venceu as tropas de Milão — falou Cardano, abaixando a voz, como se alguém estivesse escutando. — Mas sou um homem de letras e de Medicina. Não me interesso por batalhas...

— E os seus livros? — perguntou Ambrogio. — Disseram-me que o doutor Cardano é um grande escritor...

— Tenho trabalhado para isso — respondeu Cardano sem modéstia. — Acabo de escrever o livro sobre metoposcopia, que é a ciência de conhecer as pessoas por suas marcas faciais, mas De Subtilitate está superando todas as expectativas. Já houve edições em Paris, Lyon e na Basileia. Estou caminhando para ser o autor mais lido de nosso tempo.

— Também em outras línguas? — Ambrogio surpreendeu-se. — Que ótimo! Muita gente não sabe latim...

— Em francês não demorará a sair — falou Cardano, sorrindo com orgulho. — Pelo menos comecei a ganhar dinheiro com isso. Outro livro que teve impacto foi Ars Magna, Grande Arte, que permitiu uma vitória incrível em um debate que meu pupilo Ferrari fez, aqui mesmo, em Milão. Agora ele tem um bom emprego. Sinto-me responsável pelo sucesso que ele teve, após tanto estudo em Pavia.

— Mas agora o doutor mora aqui.

— Desisti da Universidade de Pavia, pois não pagavam mais o que tínhamos combinado. Por isso voltei para Milão. Reconstruí minha casa na Via Chiusa e aqui estou. Retomei minha clientela, apesar de perder um emprego que gostava junto aos frati regolari di Sant’Ambrogio. Se tivesse interesse em ir a outras terras, como você, já teria aceitado ofertas incríveis. Até o rei da Dinamarca queria meus préstimos.

— Para mim é o contrário. Se eu não viajasse, eu morreria. Está no meu sangue. — Sorriu Ambrogio.

— Então agora conte-me das suas aventuras. Como é viajar para longe?

— Não existe nada mais bonito que a imensidão do mar. — Os olhos de Ambrogio brilhavam. — E o fim do dia é o mais lindo que um ser humano pode conceber. O cheiro da água salgada, a expectativa de chegar a um lugar desconhecido, o barulho do vento batendo nas velas. Não há nada igual. — Suspirou. — O problema é que, para viver isso, terá que enfrentar a rotina dentro de uma nau, que é um barco maior que a caravela portuguesa. Nem sempre o dia a dia é empolgante.

— Não há nada para fazer? — perguntou Cardano.

— Sempre há algo a fazer. Quando digo rotina, refiro-me às condições difíceis do interior do barco. — Ambrogio contraiu os lábios para conseguir descrever o que tinha passado. — Quando os intestinos soltam, e a doença se alastra, o cheiro se torna insuportável. Alguns vomitam, evacuam e morrem ao seu lado sem conseguir subir ao convés. Escorrega-se em uma espécie de água suja e fedorenta que se espalha pelo chão. A água de beber, por outro lado, fica estragada e a carne cheia de vermes.

— Vermes? — Cardano fez uma expressão de repulsa.

— Se as larvas são cinzentas e roliças, tudo bem. Mas se estão pálidas e finas, você vai vomitar. — Ambrogio gargalhou, para em seguida voltar aos detalhes mórbidos da viagem. — Alguns comem no escuro para não ter que se preocupar com o que colocam na boca. Afinal — deu de ombros —, vermes também alimentam. Os barris de peixe salgado, queijos e biscoitos são carregados logo antes do navio zarpar. Diria que a comida é até agradável nos primeiros dias de viagem. Com duas semanas, está podre.

— Mas é só pescar! Vocês estão no mar... — sugeriu Cardano.

— Ah, assim seria fácil... — Ambrogio sorriu. — Os peixes fogem dos barcos grandes, Girolamo! Às vezes conseguimos pegar pássaros, mas só comemos ratos em último caso.

O estômago de Cardano estava embrulhado. Apesar de a ambrosia parecer deliciosa, boa parte permanecia sobre a mesa.

— Há algo ainda pior — reiniciou Ambrogio, com um prazer quase mórbido. — É a doença das gengivas. Elas incham tanto que, às vezes, é preciso cortá-las. Os dentes caem, um após o outro. Sangra-se por todos os lados. Já vi um amigo colocar sangue pelos olhos e pelo ânus. Até quatro em cada cinco homens do mar contraem essa praga. Espalha-se como uma peste. Os portugueses acham que se pega nas viagens para a África. Por isso a chamam de mal de Angola.

— Você nunca teve? — perguntou Cardano, com os olhos esbugalhados.

— Nunca, pois tenho a fé em Santo Ambrogio. Minha mãe ensinou que se deve rezar a cada quatro dias, chupar um limão da Ásia e logo depois jogá-lo por cima do ombro esquerdo nas águas do mar.

— Já riram de você por causa disso?

— Sempre, mas não me importo. Levo minha sacola em cada viagem. Ninguém mexe. — O marinheiro sorriu. — E sua família? Tem filhos?

— Minha esposa morreu há cinco anos, mais ou menos — falou Cardano com pesar. — De filhos, sobraram três. O menor é inútil. Minha filha, de nome Clara, tem 14. O maior, esse sim, tenho bastante orgulho. Em breve começará Medicina. É estudioso e capaz. Um rapaz brilhante.

— Não vai se casar de novo? — perguntou Ambrogio.

— Só iria atrapalhar. Já tenho minha sogra que me ajuda. Estou casado com meus livros.

— As mulheres daqui não me atraem. Gosto de índias. Elas não têm pelos, sabia?

— Está falando sério? — perguntou, surpreso, Cardano.

— Não aprecio fios de cabelo nas pudendas... Girolamo, vou contar-lhe um segredo. — Baixou a voz. — É por isso que quero voltar à América!

— Parece ser uma boa razão! — concordou Cardano, rindo junto com o amigo. — Lá também não deve existir a doença da queimação, como temos aqui. Um grande amigo de Veneza sofreu muito com o pus que jorrava toda vez que ia urinar. Recebi uma carta dele nesta semana. Tratei-o e felizmente já está curado.

Ambrogio contou, então, como chegara em Hispaniola, com os navios que iriam prender Hernán Cortez, o espanhol que se achava o dono do Novo Mundo. Conseguiu escapar de morrer. Foi por pouco.

Depois se integrou às tropas que tomaram a capital, uma incrível cidade de ruas limpas, que não conhecia cavalos nem pólvora. Em contrapartida, tinham muito ouro. Curiosamente, jogavam uma disputa religiosa com bolas que pulavam muito mais que as europeias, pois eram confeccionadas com a seiva de uma árvore.

Para beber, os chefes indígenas tinham um líquido apimentado e escuro feito da semente de uma fruta, cacauat. Apesar de estimulante, era uma bebida muito amarga.

O relato de Ambrogio ficou dramático quando contou a devastação que a doença das bexigas fazia nos índios. Carbúnculos pequenos, ou variolas, brotavam por todo o corpo e na boca, não deixando nenhum espaço de pele normal. Quase todos morriam. Quando exploravam o interior, deparavam-se com cidades fantasmas, pois a doença tinha chegado antes.

Cardano, boquiaberto, se embevecia com o relato. Seu amigo partiria em breve para a França, depois de resolver os papéis da morte dos pais e vender a velha casa que tinham em Milão. Tentaria juntar-se às tropas de Villegagnon.

A conversa tinha estimulado a curiosidade de Cardano. Nunca viajara para mais longe do que Roma. Como seriam outros países? A perspectiva do deslocamento, o trabalho de arrumar todo o material, os riscos, sua saúde frágil, com recorrentes sintomas de gota, tudo isso deixava o médico em dúvida sobre uma empreitada para fora dos limites do que já conhecia.

Quando parecia já convencido de que nunca sairia das terras da Itália, recebeu uma carta instigante, datada de 28 de setembro de 1551, assinada pelo médico William Cassanate. Não poderia ter chegado em melhor momento.

Health to you, saudava a carta, para em seguida se desenrolar em um sofisticado latim: Como é sempre importante em toda nova conjuntura de eventos, caro homem de letras, compreender como eles surgem, e pela recomendação que nos chega de estrangeiros, penso que é correto dizer por que razão escrevo esta carta, eu que sou desconhecido do meu destinatário, mas que o conheço muito bem por intermédio do trabalho que tenho diligentemente estudado.

A missiva, que demorou um mês para chegar ao destino, vinha de um país distante, a Escócia, com o convite para que Cardano fosse até Paris tratar um importante paciente com sintomas de asma, phthisi e consumpção. Afinal, o médico de Milão tinha deixado claro em seus escritos que descobrira como livrar completamente as pessoas daquelas aflições.

Doutor Cassanate, filho de espanhóis estabelecidos na Burgundia, tinha sido anteriormente médico da corte real francesa. Depois fora contratado para acompanhar a saúde do arcebispo John Hamilton, irmão do regenteconde de Arran, o político mais poderoso das terras altas escocesas.

Em um longo e prolixo texto, Cassanate contava como se transformara de médico a amigo do religioso, apesar de não ter conseguido tratar de maneira eficiente sua recalcitrante asma. Pelo menos mantivera o arcebispo vivo até aquele momento.

Profissionais da corte de Carlos V foram chamados em seguida, como convinha à sequência protocolar. Da mesma forma, todas as orientações e remédios tinham sido infrutíferos. A doença piorava a cada semana, com crises que duravam mais de 24 horas e estavam consumindo a energia do paciente. Temia-se por sua vida.

A carta dava detalhes do ambiente político que estavam vivendo. De forma conturbada, o irmão de Hamilton, conde de Arran, fora designado temporariamente o regente da Escócia, após a morte de James V, em 1542, tornando-se católico por conveniência.

Mary Stuart estava na linha sucessória, mas tinha apenas uma semana de vida quando o pai James morreu. Foi coroada logo depois, antes de falar as primeiras palavras. Agora, beirando os 9 anos, ainda era mantida na França em virtude das ameaças inglesas.

Logo antes de falecer, Henrique VIII prometera raptá-la para guardá-la como futura rainha. Na cabeça do rei inglês, Mary deveria ser esposa de Eduardo, seu filho. Assim, em uma jogada matrimonial, o norte da ilha passaria a pertencer à coroa anglo-saxã. Os escoceses, que veneravam a Igreja de Roma, sentiam-se mais próximos da fé proferida na França. Por isso Mary tinha ido para lá. Além disso, escoceses e ingleses estavam longe de serem amigos.

Cardano releu com atenção aquele trecho da carta, pois ficara um pouco confuso com os detalhes de uma política distante, que não estava acostumado a acompanhar. Não percebeu exatamente que relação teria o contexto administrativo do conde de Arran com a doença do irmão Hamilton, seu futuro paciente.

Penso, como Cícero, continuava a carta, que a melhor base para a amizade é a fé no caráter, porque é propriedade da virtude conciliar as mentes dos homens e uni-las em seu serviço e na amizade entre as pessoas.

Tive imenso prazer em tomar contato com sua obra De Libris Propriis, os livros da Sabedoria, o livro De consolatione, assim como aquele sobre as sutilezas, De Subtilitate. O último foi-me dado por um amigo neste ano de 1551, na Escócia, onde agora estou exercendo a Medicina.

Cardano deixou por um momento a carta para ler um trecho do livro Lélio, ou a Amizade. Abriu em uma página que marcara havia muito tempo. Ficou emocionado. Na amizade, dissera Cícero, nada é fingido, nada é dissimulado. Isso tenderia a provar que a amizade se origina da natureza, que ela é uma inclinação da alma associada a um certo sentimento de amor. Respirou fundo e retomou o que escrevera o médico da Escócia.

O que seguramente me deleitou, a carta relatava mais adiante, foi a leitura de seu quinto livro sobre a Sabedoria, em que há a citação da sua experiência, doutor Cardano. Aqui reproduzo suas próprias palavras. Podemos fazer muitas tentativas para descobrir algo de novo em nossa arte. Eu, por exemplo, Girolamo Cardano, curei a phthisi, ou phthoe, e tratei muitos que sobreviveram. A razão deve guiar a invenção. Na experimentação, se há perigo, é melhor seguir lentamente, passo a passo.

Cardano interrompeu a leitura e pensou em como tinha se equivocado naquelas observações. Não achava mais que tinha o poder da cura sobre a phthisi, a consumpção e a asma. Paciência, pensou. O que está escrito está escrito. Voltou então os olhos para a carta.

Após algumas laudas em que contava a trajetória de sua própria vida, Cassanate descreveu os sintomas de seu paciente e entrou em detalhes que deixavam mais claro o contrato que propunha ao médico milanês:

O mais ilustre arcebispo de Saint Andrews tem sofrido de periódica asma há uma década, a partir dos seus 30 anos. Está claro que há uma destilação do cérebro em direção aos pulmões. Algo foi aliviado com nosso tratamento, mas a má temperatura restou dentro de sua cabeça. O cérebro permanece muito frio e úmido. Ou seja, sempre que o corpo é preenchido por uma matéria de vapor, invadindo o cérebro, há um fluxo do mesmo humor que desce para os pulmões. Se fosse acre ou salgado, os pulmões ulcerariam, da forma como os gregos chamam de phthoe.

A crise começa com uma violenta tosse. O catarro fica grosso e só é expelido com os mais intensos esforços. A consequência é a dispneia, ou falta de ar, com muitos estertores. O ar parece tirado à força, por causa da estreiteza do caminho que restou para ele.

Um envelope com duzentas coroas de ouro francesas foi entregue a Cardano apenas como parte das despesas iniciais. Os pontos de controle seriam avisados, assim como as cortes das grandes cidades em seu caminho. Uma carruagem com escolta estava pronta para buscá-lo assim que ele decidisse o dia exato da partida.

O mais ilustre lorde arcebispo recomendou-me para fixar o mês de janeiro para nos encontrarmos, finalizava a carta. Aqui me despeço.

Farewell, most excellent man. Edindburgh, the 28th of September, 1551. William Cassanate, Physician.

Em seu livro De Vita Propria, Cardano abriu um novo capítulo, sobre viagens. Peregrinationes. Começou descrevendo o convite que tinha recebido de uma terra longínqua e estrangeira.

Era John Hamilton, correu a pena sobre o papel, arcebispo de St. Andrews, chefe de estado na Escócia, irmão do regente. Erat Amulthon Archiepiscopus beati Andrea in Scotia civitatis principalis. Meu nome chegou aos seus ouvidos, escreveu —, e ele enviou, por seu médico, duzentas coroas.

Tratou então de confirmar a ida para a França, mas deixou claro que não viajaria além de Lyon. Lá aguardaria a chegada do médico e de seu paciente escocês. Partiria de casa assim que deixasse tudo organizado em Milão.

Minha jornada será, respondeu em carta Cardano para o médico Cassanate, por Domodossola, Sion, Genebra e monte Simplon. Me itineri transiens Dondosola, Sione, Geneva, per Montem Sempronium. Deixarei o lago de Genebra para trás para chegar a Lyon. Lacu Lemano et Lugduni.

Após a resposta da nova carta, por um mês se preparou, deixando estritas orientações a todos. Estava tranquilo, pois a sogra Taddea se mostrara confiável e competente na administração da casa.

Em 23 de fevereiro, bem cedo pela manhã, reuniu os três filhos antes da partida.

— GianBattista, sendo o mais velho, sua responsabilidade é maior. Já fará 18 anos. Não viajará comigo porque está em um momento crítico de estudos, bem entendido? Irá para Pavia, como combinado.

— Serei médico. — O filho sorriu com orgulho. Aproximou-se do pai e recebeu um beijo na testa.

— Clara — Cardano olhou com ternura para a filha três anos mais nova que Gian —, deve obedecer a sua avó. Quando voltar, trataremos de seu casamento.

Ela se aproximou, abaixou-se. Cardano beijou sua cabeça.

Aldo, com 8 anos, era o mais arredio dos três. Ficava horas metido no mato, brincando sozinho. Só saía para comer. Com modos rudes, era quase inexistente seu contato com o pai, que, de certa forma, desistira do garoto, por causa da sua dificuldade em aprender e da tendência para um temperamento forte e agressivo. Naquela manhã, no entanto, Aldo atendeu ao chamado do pai e se aproximou em silêncio.

— Aldo Urbano, meu filho, siga também as instruções de sua avó, da mesma forma como Clara. Entendeu?

O filho mais novo, de cabeça baixa, afastou-se sem dizer uma palavra.

Cardano subiu em um cavalo da municipalidade de Milão e dobrou cuidadosamente seu passe de viagem.

Portando um laissez-passer, poderia hospedar-se como agente do estado, utilizar os pontos de parada oficiais e trocar os cavalos conforme sua conveniência. Poderia também solicitar um mensageiro e avisar sua chegada com antecedência. Havia recusado a oferta da carruagem. Preferia viajar mais livre e mais rápido. Um de seus servos o seguiria, dando mais segurança e permitindo o transporte de livros e roupa. Os pupilos Paolo Paladino e Gaspare Cardano também acompanhariam o mestre.

Fazia muito frio, mas, felizmente, não havia neve. A lama que se formava nessa situação deixaria a viagem impraticável. Seus sapatos de pele de ovelha e as grossas meias de lã conseguiam manter o calor por mais tempo. Seu manto preto também.

Despediu-se da família e seguiu em direção ao castelo. Parou em frente por um momento para mirar a imponente construção de tijolos vermelhos, antes de aventurar-se por terras que não conhecia. Seu último trecho familiar seria a estrada até Gallarate. A partir dali, seguiriam em direção à cadeia dos Alpes.

Pendurada em uma das torres do Castelo de Milão continuava a cabeça de um conspirador que fora pego e esquartejado alguns meses antes. O movimento da feira de frutas e carnes já era intenso, mesmo que o sol ainda estivesse tímido em aparecer. Cardano absorveu os diferentes aromas, ouviu os sons da cidade e guardou-os em seus sentidos. Não sabia quando estaria de volta. Talvez demorasse mais de três meses para cumprir sua tarefa, um desafio que poderia alavancar seu nome na França e, quem sabe, no norte da Europa.

Sentiu um frio na barriga. O mesmo que sentira quando saiu da Lombardia pela primeira vez para estudar em Pádua. Recordou-se de Telêmaco, seu herói que partira para o descobrimento de si próprio.

Adeus, Milão, pensou. Minha grande viagem começa agora.