A viagem

Foram cinco dias até chegar à base das montanhas, em Domodossola. Os picos brancos pela neve se erguiam belos e assustadores ao redor. As casas de pedra pareciam pequeninos pontos a distância, ameaçados pelos gigantes dos Alpes. Por um dia, o médico resolveu ficar na estalagem, lendo, próximo ao fogo. Sabia que a passagem para a Suíça seria cansativa. Uma família com carroça coberta atravessaria a fenda no dia seguinte. Como já conheciam o caminho, Cardano e seus acompanhantes iriam com eles.

O ar, frio e seco, entrava pelas narinas e deixava a respiração difícil ao enfrentarem a subida das montanhas. Não havia mais homens levando o feno, nem vacas e cabras circulando pela paisagem branca. De vez em quando, um mensageiro vinha em maior velocidade, tendo que contornar a carroça em pontos mais estreitos. Era o único local de passagem naquela época do ano, fazendo o contato entre a Lombardia e as terras que agora eram dominadas por bernenses.

O cantão de Berna passara a ter uma grande força política nos últimos tempos. O que começara, duzentos anos antes, como um povoado de Lucerna e seu lago dos Quatre Cantons, agora era uma nação de treze cantões, habitada em grande parte por germânicos que tinham expulsado os celtas da região. Outra opção para chegar ao seu destino, a partir de Milão, seria ir mais para o sul, entrar na França e tomar o caminho do norte, em direção a Genebra.

Já passava da hora do almoço quando um cavaleiro com uma longa lança chegou em direção contrária, apresentando-se e perguntando pelo doutor Cardano. A carroça também parou, e todos estavam curiosos para saber do que se tratava. Ficaram impressionados quando perceberam o motivo do contato. O jovem com a farda oficial do cantão suíço falava correntemente o italiano da Lombardia.

Dottor Cardano? — Interrompeu a marcha e parou o cavalo bem próximo.

— Sou eu, gentil-homem, ao seu dispor.

— Tenho ordens para escoltá-lo e ajudá-lo em terras de Berna e do Wallis durante a sua passagem. Sou apto a atendê-lo no que for preciso. A nobre família do castelo de Chillon, já no país de Vaud, o aguarda para uma estadia mais prolongada.

— Agradeço a gentileza. Pode seguir caminho às nossas costas. Vou lado a lado com meu servo.

Após algumas horas, faziam o caminho de descida, onde dormiriam à noite. Um letreiro avisava que chegavam próximo à região de Brig.

— Amanhã estaremos em Brig. Hoje ainda dormiremos em um posto de viagem — falou o cavaleiro, quebrando o som ritmado do lento cavalgar. Apontou então para um senhor gordo e de barba, vestido com roupas rústicas, que estava parado na estrada. — Veja aquele homem. Está esperando alguém sem escolta para atacar.

— Sozinho?

— Nunca está sozinho — respondeu o cavaleiro. — Com certeza, há alguém escondido, aguardando um sinal para descer da pedra. Empunhe sua adaga, por favor.

Cardano atendeu ao pedido. O cavaleiro pegou sua arma de fogo do bornal, para que ficasse à vista.

Passaram pelo homem, que retirou o chapéu, cumprimentando-os ironicamente. Deixaram-no para trás, e, logo após, Cardano virou-se para fitá-lo com mais atenção. Não estava mais lá.

Meia hora após, o servo gritou, assustado:

— Vejam! É um homem!

Avistaram um corpo nu, deitado ao lado da trilha, de barriga para baixo. Era de um senhor de meia-idade. Os pés estavam quase pretos. O restante branco-azulado.

— Meu Deus, por que está totalmente sem roupa? — perguntou Cardano, contraindo os olhos.

— Porque é valiosa, assim como o seu meio de condução — respondeu o cavaleiro, descendo da montaria para avaliar o cadáver. — Já está congelado. Vê-se pela cor dos pés que andou algum tempo procurando ajuda após ter sido assaltado. — Observou que não havia sinal de luta, nem de penetração de arma. — Nem se deram ao trabalho de gastar munição. O frio cumpriria o serviço.

Viram que não havia nada mais a fazer. Também não conseguiriam saber de quem se tratava, pois todos os seus papéis tinham sido roubados.

Fizeram o sinal da cruz e seguiram viagem até avistar o vale do rio Ródano, ou Rodenus. Estavam definitivamente no sul da Suíça.

Após mais alguns dias de trajeto, seguindo o rio, chegaram a Sion. Sitten, como estava grafado no mapa, bem no meio da região do Wallis, ou Valais, que tinha como símbolo o escudo dividido em dois, vermelho e branco, com estrelas em ambos os lados. Uma das igrejas da cidade possuía um órgão conhecido em todo o mundo germânico.

Um mensageiro já tinha deixado uma informação destinada a Cardano, na estalagem onde passariam a noite, avisando que os nobres da região aguardavam a chegada do famoso médico para um almoço, no dia seguinte, nas dependências do convento franciscano.

A viagem pelo vale permitia a visão de majestosos picos brancos dos dois lados. Uma cena maravilhosa, principalmente quando percebiam que havia neve fresca no morro. Na encosta, várias áreas de plantação de videiras completavam a paisagem.

No décimo dia, o médico, o servo, os pupilos e o cavaleiro chegaram à entrada do castelo de Chillon. Chi-i-on, como diziam com o som do xis em francês, uma língua que Cardano compreendia bem, apesar de não conseguir falar. Se fosse na língua da Itália, por outro lado, diria Quilón. Sorriu ao imaginar como soaria estranho.

A visão do castelo era esplendorosa. Fora construído em diversas etapas, havia séculos, sobre uma pedra, a poucos metros da borda do imenso lago, permitindo o controle da passagem de quem transitava entre o vale do Ródano e Genebra. A impressão era de que estava flutuando sobre a água.

As paredes de cor cinza que rodeavam o complexo se erguiam até encontrar os telhados escuros, com leve tom avermelhado. A pedra que servira de base ao castelo permitira uma forma arredondada, ao contrário das habituais construções de defesa com linhas retas, e, como não poderia haver assalto com escadas pelo lado do lago, não havia necessidade da borda denteada.

O soberano capitão de Chillon, um senhor sorridente vestido a caráter com as cores do país de Vaud, estava na porta da ponte levadiça, junto com nobres de Berna, dos dois lados. O grupo de músicos se colocava logo atrás e começou a tocar assim que os visitantes apareceram na curva da estrada.

Magnifico e Honorato Hieronymus Cardanus!

— O prazer em estar aqui na presença de gentes tão especiais me reconforta. Já são onze dias que deixei meus filhos em Milão para empreender esta viagem.

— Seus préstimos de médico são muito aguardados, dottore. Posso garantir que serão bem recompensados.

— Ao seu dispor — curvou-se Cardano, de forma polida. Ele não pretendia permanecer muito tempo em um país que tinha abraçado a Reforma Protestante, pois isso poderia lhe trazer problemas quando voltasse ao seu país.

O soberano convidou a todos para entrar e mostrou os setores do castelo. Havia a prisão, a torre, com os aposentos principais, e o pátio central, com alojamentos para o ferreiro, o confeiteiro e o mestre de armas. As latrinas desembocavam diretamente no lago, evitando o acúmulo de excrementos.

O longo salão principal, revestido de madeiras de nogueira, com duas fileiras de assentos, uma de cada lado, permitia que os nobres recebessem a refeição enquanto assistiam a apresentações de artistas que passavam pela região. À noite, houve música, dança e um número de teatro com homens vestidos de mulheres, bruxas que acabavam na fogueira, em meio ao riso da plateia.

Grandes queijos, bastante duros, eram cortados ao meio e colocados junto ao fogo. Os servos esperavam até que borbulhassem para então raspar, ou racler, como diziam em francês, deslizando-os no prato já com pedaços de pão. Uma verdadeira delícia a raclette acompanhada de vinho Dezaley, comentou Cardano. No entanto, desculpou-se com o soberano por não ficar muito mais. Estava cansado da viagem.

Acordou cedo, preparado para bastante trabalho. De fato, a notícia da chegada do médico se espalhou, e donos de terras da região vieram para serem consultados. A surpresa foi constatar que muitos eram italianos que tinham se convertido ao luteranismo e fugido da terra natal. Alguns compareceram apenas por curiosidade, para ter contato com um famoso escritor da Itália.

Mais um dia e retomou o caminho, passando pelo antigo campo militar romano de Lousanna e depois por Nyon, para chegar ao lado oposto do castelo de Chillon, na outra ponta do imenso lago com o formato de uma lua crescente. Contornou pelo norte, sobre a face convexa do Lacu Lemano, como também era conhecido, e preferiu atravessar a cidade de Genèva, antigo assentamento de celtas helvetii, sem se demorar além do tempo de sorver uma boa sopa.

A região, como ele já sabia, era dominada pela doutrina de Calvino, e os ânimos ainda estavam muito exaltados naquele período. Preferiu dormir no próximo posto de descanso após passar pelo portal da cidade na direção de Lyon.

Conforme tinha solicitado o doutor Cassanate, Cardano enviou um mensageiro ao prior antes de chegar à cidade francesa. Quando estava se aproximando da porta principal, uma comitiva com carruagem aberta e nobres cavaleiros veio ao seu encontro. À frente estava o comandante da infantaria real, Ludovico Birago, recepcionando um surpreso médico ao emparelhar seu cavalo.

— Que imenso prazer encontrá-lo, doutor Cardano! Trocamos cumprimentos uma vez, na corte de Francesco Sforza, príncipe de Milão.

— Lembro-me bem, signor Birago. Maior é meu prazer ao perceber que posso falar a língua da minha terra — sorriu Cardano — e ver que conquistou honorável posição entre os franceses.

— Agora sou vice-rei da região. Deus está ao meu lado, eu diria — falou, orgulhoso, Ludovico Birago —, e é minha incumbência trazê-lo para a carruagem e permitir que a massa de pessoas que o aguarda em Lyon possa vê-lo entrar, como convém a um profissional de sua magnitude.

— Entrarei em cortejo? Por acaso sou um príncipe? — O médico arregalou os olhos, incrédulo.

— Vejo que não tem ideia do conhecimento que as gentes fazem de seu nome em terras estrangeiras. Verá com seus próprios olhos. Por favor... — e indicou a posição de Cardano no centro da comitiva.

Era o dia 13 de março, sexto dia do carnaval. Entrar em Lyon como centro das atenções fez Cardano se recordar de seus tempos de criança, quando, aos 9 anos de idade, acompanhou fascinado a chegada de Luís XII a Milão. Dessa vez não havia trombeteiros, mas a experiência foi fascinante.

O médico foi conduzido à casa do nobre Guillaume Choul, um fervoroso católico, conselheiro de Henrique II. O atual rei francês era filho do falecido François I, um monarca que permitia o espalhamento das ideias de Lutero. Henrique II, ao contrário, fechava cada vez mais o cerco contra os protestantes.

Uma das alianças recentes, lembrava Choul, tinha sido justamente com a Escócia, objetivando trazer Maria Stuart para a França. Assim ela escapava de se casar com o jovem rei inglês Eduardo VI. Agora Cardano estava começando a entender os conflitos daquela região da Europa.

Mas um problema lhe pareceu bem mais sério. Constatou, com razoável indignação, que não estavam na cidade nem o médico Cassanate, nem o arcebispo inglês. Havia apenas uma carta, solicitando paciência e assegurando que cada dia seria pago generosamente.

“Talvez não seja necessário ir até Paris. É possível que His Grace the Archbishop John Hamilton”, especulara Cassanate, “venha a Lyon, poupando sua eminência de uma tediosa viagem...”

— Como posso ficar tranquilo com uma demora como esta? E meus pacientes em Milão? — esbravejou Cardano para si próprio.

Ao longo dos dias, no entanto, deu-se conta de que não ficaria ocioso. À casa de Choul chegavam diversas pessoas solicitando seus serviços, fossem cartas astrológicas ou consultas médicas. Até recebeu uma gorda proposta, por intermédio do milanês Birago, para servir ao marechal Brissac como matemático e responsável por máquinas de guerra. Mil coroas anuais seriam destinadas ao médico caso ele aceitasse. Cardano preferiu continuar aguardando seu paciente, como tinha combinado, para depois voltar à sua terra natal.

— É uma pena — lamentou Ludovico Birago. — Pelo menos, poderia honrar o Colégio de Médicos de Lyon com uma exposição de um tema médico?

— Será com muito prazer — respondeu Cardano. — Diga-lhes que falarei sobre bronquite, asma e phthisi, segundo o pensamento de Moses Maimônides. Para quando propõem a data?

— No fim desta semana. Pode ser?

— Está combinado — confirmou Cardano. Escreveu o título da apresentação em uma folha de papel e a deu a Birago. — De qualquer maneira, terei que me aprofundar um pouco mais nesse assunto. Será um bom pretexto.

Aproveitou então a oportunidade para reestudar o Tratado de asma. Interessou-se inclusive pela vida do autor, um hebreu espanhol do século XII, conhecedor profundo da religião dos judeus, que passou a estudar e praticar medicina depois que morreu em um naufrágio seu irmão, a pessoa que efetivamente sustentava todos da família.

— O título do livro é traiçoeiro — começou Cardano, diante da plateia de médicos da região —, pois Maimônides não pregava o mesmo tratamento para todas as pessoas, mas sim o estudo minucioso do paciente, para que a orientação fosse única. Vejam o que o hebreu escreveu.

Cardano pegou o livro para ler um trecho da tradução em latim.

— O regime de saúde deve se adaptar às necessidades específicas do cliente asmático. Afinal, a cura é difícil, ou mesmo impossível, assim como em outras doenças prolongadas e crônicas, como a gota, a artrite e a migrânea. Podagra, sciatica, emigranea et similibus, quorum cura est difficilis aut impossibilis.

“Portanto — continuou o médico de Milão —, a terapêutica depende do temperamento do paciente, das condições da cidade onde mora, época do ano e do clima no momento da avaliação.”

Um revolucionário princípio em que a abordagem dependeria de fatores específicos não era um ideia em voga entre os estudiosos de Medicina. Principalmente quando os hábitos sexuais também eram acrescentados ao raciocínio. A afirmação causou certo burburinho na plateia.

Messer Cardanus, poderia falar então sobre a relação do coito com a asma? — perguntou um médico entre os ouvintes.

Coitum in regimen sanitatis. O ato sexual no regime da saúde é fundamental, com certeza. A pergunta é muito boa. — Cardano animou-se. — Muitos homens têm relações sexuais não porque é necessário, mas por mero prazer, salientou Maimônides. Se há mau temperamento, o sêmen deve ser espalhado. Evacuare semen... in malis complexionibus.

Cardano abriu o capítulo dez.

— Sobre dormir e acordar, banho, massagem e relações sexuais: sompni et vigilie et balnei et fricatione et coitus.

O hebreu afirmava que dormir seria frequentemente nocivo para a doença, especialmente durante um ataque, e a emissão de esperma seria parte excepcional do regime de tratamento. Por outro lado, a relação sexual poderia ser fatal para pessoas idosas.

— Por quê? — perguntou Cardano à plateia, para completar em seguida: — Pois seca os órgãos e exaure o calor remanescente. Senibus autem coitum est mortiferus.Um homem, dessa forma, deve diminuir gradativamente a atividade sexual em anos avançados. Isto é necessário para a pureza da alma e para as qualidades éticas de tranquilidade, modéstia e castidade.

Galeno tinha dito que existia uma disposição corpórea muito negativa, lembrou Cardano, em que o esperma estava tão quente que forçava sua própria saída. A abstinência não seria benéfica para essas pessoas, pois sofreriam de emissão espontânea noturna.

— Eu observei pessoalmente um paciente que teve relação sexual na recuperação de uma febre aguda, gerando imediatamente intensa fraqueza. — Cardano lia o trecho do tratado que tinha selecionado com especial prazer, pois previa o impacto que causaria na audiência. — No fim do dia, houve perda de consciência e ele morreu.

O médico milanês refletiu então como poderiam ser complexas as orientações em torno dessa atividade. Fundamental para uns, nociva para outros.

Da mesma forma, no capítulo sobre bebidas havia o lembrete de que o vinho, em pequenas quantidades, ou seja, três ou quatro copos, seria ótimo para o corpo e para a mente, levando à cura de doenças. Grande quantidade, no entanto, a ponto de causar embriaguez, poderia ser especialmente nocivo para a asma.

— Como o vinho é proibido aos muçulmanos, licet sit prohibitum vinum sarracenis, falar extensivamente dessa forma de tratamento não seria útil, segundo Maimônides, pois eles não consumiam essa bebida. Faz sentido, não é mesmo? — concluiu Cardano.

Após seis semanas, finalmente o médico francês Cassanate chegou à casa onde Cardano estava alojado. Um asseado homem de estatura mediana, barba rente, olhos brilhantes e de fala tão prolixa quanto sua escrita se apresentou e colocou sobre a mesa um pesado saco de moedas. Ao lado, uma carta escrita de próprio punho por John Hamilton, o paciente que ansiava por seu tratamento.

— Leia o senhor mesmo, caro Hieronymus Cardanus — falou Cassanate.

A carta escrita em latim pedia para que Cardano aceitasse a oferta das moedas de ouro levadas pessoalmente por seu médico particular. O arcebispo estava impedido de deixar Edimburgo em virtude de sérios e urgentes assuntos de negócios.

— A verdade é que estão armando um complô para retirar o irmão dele do poder. — Cassanate levantou as sobrancelhas. — Se isso acontecer, toda a sua fortuna seria ameaçada. O conde de Arran é muito inseguro, não têm vínculos políticos fortes. Se John Hamilton sair da cidade por um dia, o irmão cairá.

— Agora entendo a relação entre o conde Arran, que foi citado na carta inicial, e a situação de angústia que ele está vivendo — considerou Cardano.

— Nós médicos, que diligentemente cuidamos do excelentíssimo arcebispo, acreditamos que esta situação possa estar contribuindo para o esfriamento do cérebro. Um cérebro frio resulta na descida de catarros grossos para o pulmão. Por isso temos recomendado que ele não se afaste de ambientes quentes.

A discussão se estendeu pelos dias seguintes, quando os dois médicos tomaram o caminho do vale do rio Loire, onde se localizava a corte francesa. Não foi uma decisão isenta de alguma hesitação. Cardano duvidou da honestidade de seus contratantes, que poderiam tê-lo chamado até Lyon sem avisar que não seria possível para o arcebispo ausentar-se da Escócia.

Se o convite inicial tivesse sido para atravessar toda a Europa, em direção ao norte, certamente teria sido recusado, mas dois fatores pesaram na decisão de acompanhar Cassanate — sem contar a pesada sacola de moedas, evidentemente.

O primeiro foi ter conhecido mais detalhes da trajetória de Maimônides. Uma grande viagem selou o destino do médico mais famoso do século XII, quando aceitou o convite para ir tratar a asma de um rico paciente em Alexandria. Seria difícil não se identificar com a história do hebreu.

O segundo motivo era a curiosidade em conhecer a cidade de Amboise, onde o mestre Da Vinci tinha passado seus últimos dias, e visitar a Capela de Saint-Hubert, onde estava enterrado.

Paolo Paladino e Gaspare Cardano permaneceriam em Lyon para enviar notícias e aguardar a resposta dos filhos de Cardano.

Quando estava saindo da cidade é que se deu conta de que o italiano Ludovico Birago, aquele que se tornara seu amigo durante a estadia em Lyon, era um dos conspiradores que tentaram tomar o poder em Milão, com o apoio dos franceses. A cabeça de seu comparsa, que teve pior sorte, ainda estava pendurada no torreão do castelo. Lembrou-se de que tinha sido sua última visão na capital lombarda, antes de partir. De fato, pensou Cardano, é melhor seguir caminho. Não é hora de voltar à Itália e correr o risco de ser chamado de amigo de um traidor...

A viagem até o vale do rio Loire transcorreu sem problemas. Ao chegarem a Amboise, após dez dias, foram recebidos pelo marquês de Chenoux, que os hospedou, em nome do rei, nos aposentos reservados a hóspedes renomados.

— Agradecemos a hospitalidade, marquês — agradeceu Cardano, em dúvida sobre que língua falar. — Parla la lingua latina? latine loqui?

Oui, oui, latin, sans problème. Mas falo o italiano da Lombardia, se preferir. O rei pediu para que tudo seja maravilhosamente preparado durante sua passagem pela corte.

— Também agradeço, de minha parte — falou Cassanate.

— Fizeram agradável vossa viagem? — perguntou o marquês, mostrando os aposentos.

— Muito tranquila — respondeu Cassanate.

— Fiquei surpreso em constatar que existiam três opções de caminho até Clermont, quando saímos de Lyon — disse Cardano, orientando os servos onde seriam colocadas as arcas de roupas. — Viemos por Billom, que não tinha sinais romanos. Deve ser uma estrada mais recente.

— Às vezes temos até mais opções — falou o marquês, para depois fazer cara de insatisfeito —, mas são quase sempre de terra. Não é como na Itália.

— O principal é a segurança — falou Cassanate. — A escolta enviada pelo rei nos evitou qualquer tipo de apreensão.

— Vejam, doutores, a viagem foi anunciada pelo conde de Arran, regente da Escócia, com quem temos a melhor das relações — adiantou-se o marquês, fazendo uma suave reverência. — Não poderíamos fazer menos que isso. Haverá também escolta para Paris, conforme já determinado. Até quando permanecem?

— Não sabemos. Depende do rei — disse Cassanate.

— Infelizmente, estamos em preparação de guerra. O rei partirá amanhã à tarde para Metz. Poderão assim assistir ao desjejum real e depois encontrá-lo ainda cedo no jardim.

— Nesse caso, partimos depois de amanhã — disse Cardano, olhando para Cassanate. — Estamos com pressa. — Depois pensou, surpreso: — Assistir ao desjejum? Ele está falando de forma séria?

— Então que seja assim — completou o marquês. — Quando desejarem, poderão descer para o jantar. Os servos serão conduzidos para a ala reservada a eles. Lá terão comida e roupa adequada. Um último aviso: prestem atenção aos umbrais das portas. Boa noite.

Os dois médicos se despediram, trocaram as camisas de cima, jantaram bem e, após tantos dias de viagem, dormiram cedo.

Cardano sentiu que era bastante familiar o ambiente do jardim, assim como a fachada do castelo. De fato, Carlos VIII tinha invadido a Itália alguns anos antes da virada do século, tornara-se também rei de Nápoles e trouxera muitos italianos para iniciarem a reconstrução do castelo. Luís XII e depois François I continuaram a propagar o espírito da Itália na França.

Sentindo-se um pouco em casa, Cardano teve uma repousante noite de sono.

O dia seguinte apresentava temperatura excepcionalmente agradável, permitindo o encontro da corte nas dependências externas do castelo.

— Conde Gaspard de Coligny! — O anunciador avisava em alta voz, na entrada do jardim, a chegada de pessoas de importância. — Jurisconsulto Michel Eyquem!

— Sim, é verdade, a Gália respira a cultura italiana por todos os lados. — Aproximou-se sorrindo um senhor de pele bastante queimada, cerca de dez anos mais novo que Cardano, com um longo cabelo preso em forma de crina de cavalo. — Desculpem a intromissão e meu latim insuficiente. Apresento-me. Sou o cavaleiro da ordem de Malta, vice-almirante da Bretanha, Nicolas Durand de Villegagnon. — Pendeu levemente a cabeça. — Soube que viajará para a Escócia...

Monsieur Cardan foi chamado para tratar conosco um paciente — falou o doutor Cassanate.

— Faça atenção aos ingleses! São traiçoeiros. — Villegagnon sorriu mais uma vez mirando Cardano. — Prefiro os escoceses — e apontou para uma linda menina de seus 9 anos entretida com um cavalo de madeira, brincando junto com um garoto. — Vê a mademoiselle de vestido rendado branco?

— Sim, adorável — respondeu Cardano.

— É Maria Stuart, a rainha — falou, orgulhoso, o almirante. — Eu a trouxe a salvo da Escócia até aqui. Irá casar com o rapaz.

Cardano arregalou os olhos.

— Ele é o delfim da França?

As conversas foram interrompidas quando o anunciador real encheu os pulmões com a chegada de Henrique II, rei cristianíssimo, pela graça de Deus.

Par la grâce de Dieu, Roi Très-Chrétien de la France, illustre Henri Seconde.

Todos olharam para o rei e se curvaram ante a sua figura. Magro, com ombros largos e semblante triste, rosto esguio e barba bem aparada, andava sem prestar muita atenção às pessoas à sua volta. Portava uma boina cinza, com pena branca, uma capa escura e meias claras.

Cassanate se afastou um pouco para falar com o rei, e o médico milanês retomou o diálogo com Villegagnon.

— E qual será sua próxima proeza, comandante Villegagnon? — perguntou Cardano.

O comandante pensou um pouco, como se estivesse em dúvida se revelaria seu projeto atual.

Cardano adiantou-se:

— Talvez tenha conhecido um grande amigo meu, Ambrogio Varadei.

Ambròge? Certainement! Um fantástico navegador que vai trabalhar comigo a partir de agora. — Sentiu-se então mais seguro de revelar seu segredo. — Iremos ao País dos Canibais, como chamam, ou seja, à colônia portuguesa do Brasil, um imenso território.

— Para comércio, imagino... — arriscou Cardano.

— Sim, é verdade. Quero fazer um entreposto. Estou de olho no caminho das Índias. Mas antes deverei convencer o rei de que este é um bom negócio.

— Então boa sorte — desejou o médico — e cumprimentos ao meu amigo Ambrogio.

Quando Villegagnon já começava a se afastar, ainda fez mais uma pergunta.

— Comandante?

— Sim?

— Sabe por que devemos tomar cuidado com os umbrais?

— Alguém disse isso? — Villegagnon deu uma gargalhada. — O rei Carlos VIII morreu ao bater a cabeça em um batente de porta do castelo — e deu de ombros. — Dizem...

Cardano ficou em dúvida, mas achou que, por trás de toda a seriedade, o marquês que os recepcionou na noite anterior poderia ter feito um elegante scherzo ao italiano que chegava.

— Não bata a cabeça — falou Villegagnon, indo embora com um sorriso nos lábios.

O rei aproximou-se com sua comitiva. Quatro servos seguravam um grande tecido de proteção, pois o sol já começava a esquentar, mesmo com o frio suave que fazia no vale.

— Lamento não poder ficar um pouco mais, doutor Cardano, mas temos uma guerra que em breve irá começar. Terei que partir. Devo dizer que seus escritos mágicos me encantam.

Cardano agradeceu, fazendo uma reverência prolongada, e aguardou alguma pergunta do rei para que pudesse lhe dirigir a palavra.

— Conhece monsieur Michel Eyquem, do castelo de Montaigne? —questionou o rei. — Tem uma conversa agradabilíssima. Gosto muito quando ele está por perto.

— Terei imenso prazer em conhecê-lo, sua alteza — respondeu Cardano, fazendo uma reverência ao jovem de 19 anos que aparentava ter uma razoável empáfia.

A primeira impressão, no entanto, se desfez quando o rei se afastou e o médico teve a oportunidade de conversar com o jurisconsulto.

— Como devo chamá-lo, signor Eyquem?

— Michel de Montaigne, assim me intitulo. Refere-se ao castelo de nossa família.

— Poucas vezes ouvi um latim tão impecável, devo admitir. Como aprendeu? — perguntou Cardano.

Gratias ipsum. Em meus primeiros anos de vida, foi minha única língua — respondeu Montaigne. — Meu pai trouxe professores da Itália, depois de ter lutado em Pavia.

— Então temos realmente algo em comum, meu jovem — Cardano sorriu. — Meu pai foi meu professor e minha terra é Pavia. Lá também estudei a arte da Medicina.

— Simpatizo com as coincidências, mas confesso que não nutro o mesmo sentimento por médicos... — falou Montaigne. — Mas veja — tentou corrigir o que poderia ser interpretado como uma possível rudeza —, esta é uma falha minha...

— No julgamento de muitos, sou mais um mágico, ou astrólogo. Para outros, um filósofo. Boa parte do tempo, no entanto, sinto-me mais um escritor que um médico. Portanto, não precisa se afastar de mim — disse Cardano com um pouco de ironia.

— Agradar-me-ia a ideia de, um dia, retirar-me para escrever. — Montaigne olhou para o horizonte, como se procurasse um eco às suas palavras.

— Não há escrita sem reflexão — alertou Cardano. — Em metade do tempo se escreve, na outra metade o cérebro deve estar livre para pensar. Eu diria para um jovem o seguinte: deixe suas experiências entrarem em seu texto. Suas fraquezas, suas dúvidas e seus retrocessos podem caminhar junto com os temas principais.

— Seus livros trazem experiências pessoais, não é mesmo, caro doutor?

— Por certo! Assim o leitor se sentirá identificado e rapidamente se tornará um amigo, ou um admirador. Já expus minha impotência, meus calafrios, minhas febres e minha tristeza. Também minha felicidade, por que não?

— Acredita em felicidade? — perguntou Montaigne.

Cardano parou por alguns segundos para pensar. Seu interlocutor estaria à procura da resposta, ou queria apenas vê-lo tropeçar?

— Essa palavra sugere uma noção abstrata, distante do aplicável, longe de nossa natureza. Felicitas nomem à nostra natura longè absit. Mas a verdade é que já me senti feliz. Posso dizer que sim.

— Talvez um senso de gratificação por algo bem realizado... — considerou Montaigne.

— Exato! Ainda assim, pode ser, por outro lado, resultado de uma leveza irresponsável. Já fui muito feliz quando morei em uma pequena cidade chamada Sacco. Jogava, entretinha-me com música, pescava sem preocupação.

— Parece-me que brincava como uma criança — falou Montaigne de forma provocadora. — Às vezes é o que nos falta na infância.

— O magistrado é deveras perspicaz. — Cardano surpreendeu-se, agora entendendo o elogio real. — Diria que a minha felicidade em um momento da vida é sempre comparada ao todo. Entre os mais altos, um será o menor, e entre os pigmeus, um será o maior. Inter gigantes, unus sit necessario minimus & inter pygmeos maximus. Talvez não exista apenas uma felicidade. Cada um faz a sua. O filósofo, por exemplo, não será feliz se não adentrar sua própria mente.

— Pensarei sobre isso, messer Hieronymus — falou Montaigne com sinceridade. — Mas Cícero disse que filosofar não é outra coisa senão aprender a morrer. Neste caso, aproximar-se da felicidade seria aproximar-se da morte?

— Não tinha analisado dessa maneira — Cardano arqueou os lábios —, mas em mio paese as pessoas simples poderiam, em resumo, usar muitas palavras: tranquilidade, modéstia, limpeza, caminhada, meditação, contemplação, temperança... voilà!

Montaigne sorriu.

— Foi um prazer conhecê-lo, Hieronymus Cardanus. Talvez minha rejeição aos médicos fique diminuída com a lembrança de sua pessoa. — Despediu-se, acenando também para Cassanate, que chegava junto a Cardano.

Às 11 horas se fartaram em um almoço servido sem animais, pois a Igreja proibia o consumo de carne às sextas e sábados. Felizmente não era Quaresma, época em que nem mesmo os ovos eram permitidos. De qualquer maneira, peixe fresco, a preferência do médico milanês, seria mais difícil de conseguir nesse período do ano. Só se fosse salgado, ou seco. Maior variedade estaria disponível apenas no verão, quando o mar não era tão hostil, e os dias longos permitiam o transporte de mercadorias para cidades mais distantes da costa.

À tarde visitaram o túmulo de Leonardo da Vinci, foram passear no vilarejo e, pela manhã, partiram para Paris, pelo rio, com uma grande escolta, tomando o rumo de Orleáns, para depois passar por Fontainebleau.Interromperam o curso para conhecer o castelo de Chambord, em fase final de obras, uma magnífica construção com mais de oitocentas colunas esculpidas. O castelo tinha o objetivo de servir de local de repouso real.

Cardano se emocionou com a grandeza do prédio, assim como por sua beleza. Foram informados de que a escadaria central, em hélice dupla, que permitia a subida e descida de cavalos sem que se encontrassem no percurso, teria sido projetada pelo próprio mestre Da Vinci, que morou ali perto.

Henrique VIII, invejoso do projeto, mesmo sem nunca tê-lo visto pessoalmente, tinha exigido uma façanha arquitetônica à altura nos bosques de Hampton Court, próximo a Londres.

Os dias de viagem permitiram que o médico trabalhasse em uma nova obra, baseada em um belo presente que ganhara em Amboise, o livro escrito por Ptolomeu, recheado de julgamentos astrológicos. Registrou em seu diário: Viajando no rio Loire, sem nada para fazer, interim in Ligeri flumine, nec haberem quod facerem, escrevi os Comentários, commentaria in Claudii Ptolomæum conscripti. Escrevi também um tratado sobre música. Tum etiam libro Musicam.

A chegada a Paris era muito aguardada. Uma recepção de médicos fora organizada e eventos cívicos tinham sido agendados. Aimar de Ranconet, advogado da Quarta Câmara de Crédito do Parlamento, preparou um banquete para a noite seguinte, além de uma volta pela cidade.

Estou gostando de minha estadia, sendo bem acolhido, escreveu Cardano em seu diário, mas as ruas estão sempre cheias de pessoas e de sujeira, emitindo um fedor próximo do insuportável.

— Em poucos dias, estaremos frente a frente com o mar, doutor Cardano — Cassanate sorriu. — É sua primeira vez, não é mesmo? Imagino como deva estar ansioso para ver uma massa de água que suplanta a imaginação.

— Tem razão, caro colega. — Entraram na Igreja de Saint Denis.

— Venham, s’il vous plaît — chamou Nicholas LeGrand, um dos médicos do rei francês. — Aqui embaixo, na cripta funerária, verá um especimen raríssimo.

Cassanate e Cardano abaixaram a cabeça e desceram à parte menos iluminada da igreja, portando tochas e observando cada detalhe das câmaras mortuárias.

— O que é isso? — perguntou Cardano.

— Um chifre de unicórnio — explicou LeGrand.

— Meu Deus! — exclamou o médico milanês, misturando latim e italiano graças à emoção. — Nunca vi nenhum tão bem preservado, maximè ob integrum monocerotis cornu; e ainda por cima maior do que eu esperava. Maggiore di quanto aspettava!

— Fico contente que tenham aproveitado o passeio, caros amigos. De nossa parte, agradeço as exposições que fez em Paris. Foram de grande repercussão.

Cardano também agradeceu, acenando de forma elegante com a cabeça.

— Gostei particularmente da palestra sobre o livro De Subtilitate — continuou LeGrand, quando voltaram à rua. — Também concordo que a Terra permanece estável, situada exatamente no centro do Universo. Interessei-me pelo seu conceito do que é Subtilitas, que seria um processo intelectual em que coisas sensíveis são percebidas pelos sentidos e coisas inteligíveis são percebidas pelo intelecto. Estou correto?

— Sim, meu caro, intelligibilia ab intellectu. Mas devo lembrar que esta compreensão escapará a muitos. Difficile comprehenduntur. Defendo que serão quatro os tipos de dificuldades...

— A obscuridade, a perplexidade em lidar com incertezas... — adiantou-se Cassanate.

— Sim, incertorum dubitatione — concordou Cardano.

Causarum inventione — adicionou LeGrand.

— Na descoberta das causas! Perfeito! — Cardano sorriu. — E qual seria a quarta dificuldade?

LeGrand e Cassanate se entreolharam e aguardaram que o médico de Milão completasse.

Rectaque explicatione! — completou Cardano. — A correta explicação dessas causas.

Assim continuaram a discutir os elementos, andando lentamente pelas ruas de Paris enquanto ao lado a carruagem era levada pelo condutor. Falaram sobre a origem e do que era feita a Terra, as coisas inanimadas, as coisas com alma, a matéria transmutável, as máquinas. A afirmação mais surpreendente, no entanto, que deixou Cassanate e LeGrand boquiabertos, disse respeito ao fósseis encontrados longe do mar.

Cochleæ, conchilia e outras conchas, segundo o escritor Agricola, em seu De Natura Fossilium, são formados pela ação do calor em substâncias pegajosas. Na minha opinião — falou com segurança Cardano —, a presença desses fósseis indica que a região onde foram encontrados foi, algum dia no passado, coberta pelo mar.

Continuei minha viagem nos melhores termos, escreveu em seu diário, e deixei Paris com pesar. Sentirei saudades de Jacques de la Böe, o famoso professor de Vesalius, Jean Fernel, o primeiro médico da corte, assim como de LeGrand, Ranconet e tantos outros. Finalmente chegaram de Lyon os dois pupilos que irão me acompanhar até a Escócia: Paolo Paladino e Gaspare Cardano. Trouxeram notícias dos meus filhos. Todos estão bem.

Seguiram até Boulogne, onde foram recebidos pelo governador das províncias da costa norte, príncipe de Sarepont, que forneceu uma escolta de 14 homens a cavalo, além de vinte soldados de infantaria. A próxima parada seria já no território inglês de Calais, antes de atravessar o Canal da Mancha.

No caminho, próximo da divisa, era possível observar os primeiros efeitos da guerra. No fim do dia, já na estalagem, Cardano abriu seu livro e escreveu as cenas que tinha presenciado.

Uma séria guerra estourou entre o imperador Carlos e o rei da França. Por onde passávamos, tudo estava destruído, pelo fogo e pela espada. Crianças e mulheres tinham sido assassinadas. Mesmo sendo escoltado por inimigos do imperador, fui recebido com o melhor espírito por nobres germânicos que cruzaram nosso caminho. Em nenhum momento foi necessário apresentar o laissez-passer. Bastou que os nobres franceses explicassem o motivo de nossa viagem.

Chegamos a Calais sem nenhum incidente. Lá observamos uma construção de Giulio Cesare, ainda de pé! Vidique Caesaris turrim adhuc stantem. A torre de Júlio César!

— Veja, caríssimo Gulielmus Cassanatus, a força da Itália representada nesta torre. Aqui César juntou centenas de barcos, cinco legiões e dois mil cavalos para invadir com sucesso a ilha britânica.

— E foi aqui que Henrique VIII e François I se encontraram, trinta anos atrás — complementou Cassanate.

— É uma pena que não tenham se tornado realmente amigos — lamentou Cardano.

— Teria evitado muitas guerras — concordou Cassanate, quando chegavam ao porto. — Talvez não estivéssemos passando por aquilo que vimos nos dois últimos dias.

— Talvez... — respondeu Cardano, sem prestar atenção ao que dizia, pois sentia um frio na barriga ao observar o barco que atravessaria o mar até a Inglaterra.