Hampton Court
No caminho para Londres, passaram por Warblington e Cowdray.
Ao chegarem à capital do reino, depois de alguns dias de viagem, foram diretamente à luxuosa casa de sir John Cheke, recentemente elevado à condição de tesoureiro das finanças da corte. Treze anos mais novo que Cardano, John Cheke fez crescer, como poucos, sua reputação como homem de letras.
Em seu diário, Cardano escreveu que ele tinha um ar gracioso, sardas amarelas, pele fina corada pelo sol, cabelo moderadamente longo e olhos decentes. Sua estatura era elevada, seus braços fracos, seu temperamento seco. Os sinais precoces de perda de cabelo demonstravam que, em breve, ficaria calvo. Bastante ocupado, grave, liberal, sábio, humano, em suma, um exemplo da glória do povo inglês.
Sir Cheke tinha a incumbência de apresentar Cardano à corte do rei Eduardo VI. A audiência real estava marcada para a semana seguinte em Hampton Court, um castelo que teve seu projeto enormemente aumentado nos tempos de Henrique VIII.
— Caro doutor, prepare-se, pois vamos a Hampton Court amanhã.
— Será a audiência com o rei Eduardo? — perguntou Cardano ansioso.
— Ainda não — respondeu Cheke. — Permaneceremos lá por alguns dias até sermos recebidos no salão real. Mas será bom, pois poderá sentir mais de perto como é a corte e estudar a genitura do rei.
— Ele quer que eu faça um horóscopo dele? — perguntou Cardano, surpreso.
— Já é o momento de sermos claros em relação a isso, doutor — disse Cheeke, cruzando os braços e escolhendo as palavras. — Cranmer não o chamou para tratar da saúde do rei. Ele tem seus médicos. Sua presença aqui é necessária para estudar a carta astrológica e analisar por quanto tempo ainda teremos sua majestade, Eduardo VI, em nossa presença.
Cheke andou um pouco pela sala, como se estivesse pensando a maneira mais adequada de dar detalhes sobre a situação.
— Veja, doutor Cardano, há tempos ele está bastante fraco, mas sobreviveu às duas graves doenças febris que teve neste ano. Pode ser que dure muito mais do que parece. Ademais, voltou a ler e escrever como antes.
— Ele é um rei letrado, como o pai?
— Sim, mas é ainda bastante jovem — respondeu Cheke. — Completará 16 anos no mês que vem. Subiu ao poder com 9, após a morte do pai, Henrique VIII, como o doutor já sabe. Na verdade, a mãe morreu quando ele tinha apenas doze dias de vida. No entanto, não faltou carinho ao garoto. Catherine Parr, a última mulher de Henrique VIII, era bastante atenciosa.
— E também inteligente, não? Ouvi dizer que ela até escreveu um livro — falou Cardano, mostrando sua admiração e surpresa.
— Mais de um, na verdade — respondeu Cheke. — Pode-se dizer que é a primeira rainha escritora.
— Foram tantas as rainhas... — falou com leve ironia Cardano.
— De fato. As crianças do povo até brincam de lembrar a sequência das seis esposas de Henrique VIII: Divorced, beheaded, died... divorced, beheaded, survived!
Cardano levantou as sobrancelhas. Achou a quadrinha sonoramente bonita, mas não tinha compreendido exatamente o significado.
— Traduzindo — completou John Cheke: — Divorciada, decapitada, morta...
— Já entendi. Died é a mãe do rei Eduardo, que morreu de doença. E Survived? Quer dizer que sobreviveu ao rei?
— Sim — respondeu Cheke sorrindo. — Foi a Catherine. A rigor, foi uma das duas únicas esposas, pois houve quatro anulações. Portanto, estritamente falando, ele nunca se divorciou. A, digamos, quase esposa Anne van Kleef, a germânica, ainda está viva. Infelizmente Catherine sobreviveu pouco ao rei. Digo isso com pesar, pois era uma peça importante em nossa transição para o luteranismo. Morreu quatro anos atrás.
— Então, quem governa de fato? — perguntou Cardano.
— Essa é uma boa pergunta. Existe um conselho...
— Mas? — O médico levantou as sobrancelhas.
— Digamos que o primeiro-ministro John Dudley, duque de Northumberland, tem exercido bastante influência, extrapolando suas funções. Parece que casará o filho com a prima de Eduardo. Ele está contando com uma vida curta do rei, não sem antes convencê-lo a tirar Mary e Elizabeth da linha sucessória.
— Entendo — falou Cardano, pensativo. — Com a morte de Eduardo, ele colocaria a nora no trono, com o filho dele sentado ao lado... Minha nossa, o tempo de vida do monarca tornou-se a questão principal do momento!
— Agradeço sua compreensão em perceber a importância do tema, doutor — falou John Cheke, aliviado. — Muito sangue pode correr caso o trono caia em mãos erradas. Se o duque de Northumberland souber que o rei não vai viver muito, usará seu poder atual para agilizar o processo e fará da futura nora a sucessora, como o doutor disse.
— Agilizar? Como assim?
— Veja — explicou Cheke. — Quando todos já acreditam que o rei vai sucumbir em breve, ninguém achará estranho se ele morrer logo, certo?
— E se isso acontecer? — perguntou Cardano.
— Meu Deus, nem quero pensar. — Cheke fez o sinal da cruz. — Em alguns meses conseguiremos contrabalançar a força política de Dudley, mas não agora. Note que a princesa Mary, em princípio, herdaria o poder. Mesmo havendo um golpe de Dudley, acho que ela conseguiria subir, pois é bem-vista por muitos. O problema é que ela é uma católica fervorosa. Tem se desentendido com Cranmer. Além disso, o afeto de Mary por Elizabeth é conflituoso. Mary viu a irmã crescer, mas sabe que a mãe dela, Ana Bolena, foi a causa do caos que se seguiu em sua vida. E Elizabeth é claramente protestante.
— Vejo que tem relações fortes com o arcebispo Thomas Cranmer, não é mesmo? — comentou com tato Cardano.
— Sim, tenho sua confiança. Fui designado para verter para o latim o livro de orações criado por ele. Veja que curioso, doutor — instigou Cheke —, começamos por um livro em inglês, The Book of Common Prayer, e depois o vertemos para a língua latina. Não é incrível esse caminho inverso? É uma nova era!
— De fato... E esse livro já é usado em todas as igrejas? — perguntou Cardano.
— Por toda parte... Vamos dormir, doutor, já é tarde. — Cheke cortou a conversa de forma amigável. — Amanhã bem cedo pegaremos o barco. — Curvou-se de forma respeitosa. — Boa noite.
Antes de adormecer, Cardano recordou a experiência que tivera no dia anterior ao entrar em uma igrejinha muito graciosa de nome St. Lawrence Silversleeves. O interior, ao contrário da aparência externa, mostrava sinais de abandono. As paredes estavam pintadas de branco, os vitrais originais tinham sido retirados, assim como o altar. Ficou triste com a cena. Não teve coragem de relatar a impressão ao seu anfitrião.Estamos em um período de transição, imaginou que seria a resposta de John Cheke.
O mais interessante foi conversar com uma mulher que estava sentada, sozinha, no primeiro banco. Um dos cavaleiros da escolta sabia um pouco de espanhol e ajudou Cardano a compreender que ela se chamava Susan Bull, estava perto de seus 50 anos e, quando criança, em um desses momentos de sorte na vida de uma pessoa, foi pega nos braços por Henrique VIII.
Ela contou, no único átimo em que esboçou o sorriso, que o rei era um homem forte, grande, de ombros largos, e usava uma calça justa com enchimento em suas partes pudendas, para mostrar virilidade.
Susan vinha todos os dias à Igreja de St Lawrence Silversleeves para lembrar da época em que assistia à missa celebrada pelo irmão. O tempo tinha passado para ela e não voltaria mais.
A estrada real, a King’s Road, que ia até Hampton Court, era bem menos confortável que a viagem rio acima. Por isso, Cheke optara pelo barco. O tráfego no Tâmisa era intenso. Os barqueiros sempre tinham bastante trabalho, mesmo que fosse apenas para levar as pessoas de uma margem à outra. A ponte de Londres não era suficiente para o grande volume daqueles que queriam cruzar o rio.
Cardano e Cheke escolheram uma embarcação de boa aparência, em que pudessem se deitar nas almofadas e fazer agradavelmente o caminho de 11 milhas a partir do cruzamento das ruas Strand e Whitehall, o Charing Cross. Felizmente, o cheiro do rio estava aceitável. Bem antes de chegar à parada, próxima à entrada, já avistavam os jardins reais.
— Veja, caro Cardano — falou o anfitrião, apontando para a vegetação na margem direita —, tudo isso faz parte do complexo. O castelo teve suas primeiras reformas com o cardeal Wolsey. Henrique VIII tomou-o dele e continuou as obras — explicou Cheke. — Verá que o estilo italiano está presente em parte da decoração e em suas janelas pontiagudas.
A fachada em tijolos vermelhos do palácio real de Hampton Court impressionava, mas ainda assim escondia uma enormidade que não estava ao alcance dos olhos. Após sair das mãos do cardeal Wolsey e se tornar mais um palácio real, a obra de ampliação foi em grande parte financiada pela pilhagem dos tesouros da Igreja, quando os mosteiros foram fechados e as terras, confiscadas. Durante o reinado de Eduardo VI não era mais necessário gastar dinheiro em obras. O problema estava em sua manutenção.
— São mais de mil quartos. Só a cozinha tem cinquenta salas — explicava, orgulhoso, Cheke quando se aproximavam da entrada —, onde mais de duzentas pessoas trabalham para produzir centenas de refeições diariamente. As despensas acumulam iguarias de toda parte do mundo conhecido, e a adega tem uma grande quantidade de tonéis de vinho e de cerveja.
Cardano apenas arregalava os olhos enquanto ouvia os números reais.
— Não vou entediá-lo com mais dados — completou Cheke. — Terminarei por dizer apenas o que vi na lista das carnes consumidas no mês passado: cem bois, seiscentos carneiros, duzentos veados, além de muitos porcos, novilhos, javalis e pássaros selvagens. O que acha?
— Acho que estou com fome... — respondeu Cardano, e ambos riram enquanto penetravam pelo portão principal.
Após o almoço, Cardano teve uma audiência reservada com Cranmer, que explicou oficialmente o motivo da visita do médico italiano.
— Excelentíssimo Cardano! — Thomas Cranmer, o arcebispo dez anos mais velho, com uma longa barba, falando um italiano razoável, que misturava por vezes com o latim, recebeu-o de braços abertos. — Por favor, sente-se.
A sala de Cranmer era magnificamente decorada com motivos de madeira trabalhada. Uma pesada estante de livros sobressaía na parede oposta à sua mesa. Astrolábios e simulações de planetas rodando ao redor da Terra ficavam em grossos pedestais de nogueira esculpida. O sol entrava pelos vitrais como fachos de luz colorida, iluminando o fino pó que se levantava, dando uma aparência mágica ao recinto.
— Observo que fala um pouco da minha língua — falou Cardano. — Esteve na Itália?
— Principalmente em Roma. Tratava das questões do divórcio real. Mas não passei por Milão. Era uma época muito conturbada.
Nesse período, Cranmer tinha declarado o casamento de Henrique VIII como ilegal. Na volta de Roma, conheceu sua segunda mulher, em Nuremberg. Também por isso, opôs-se ao rei, que defendia o celibato clerical. Mas soube ser discreto, tanto que foi o padrinho da segunda filha de Ana Bolena, a princesa Elizabeth. Após a morte do rei, Cranmer passou a ser o principal conselheiro de Eduardo VI. Com o tempo, tornou-se mais radical, encorajando a destruição de imagens, seguindo os preceitos de Calvino.
— Interessante — disse Cardano. — Ouvindo as notícias que chegavam da Inglaterra, eu tinha a impressão que Henrique VIII tinha se tornado protestante.
— Não exatamente... A mudança se iniciou em seu reinado, é verdade, mas há ainda muita coisa por completar. Trabalhei na primeira versão oficial da Bíblia em inglês, por exemplo, atendendo à solicitação de sua majestade. Lembre-se de que, na época, poderia ser sentenciado à morte quem portasse algum evangelho em uma língua que não fosse o latim.
— John Cheke me falou que o livro de orações, atualmente, é em inglês...
— Sim, claro — falou, animado, Cranmer. — Estamos fazendo uma extensa revisão. Incluirá as rezas a serem feitas em ocasiões de batismo, matrimônio, enterro, assim como em atividade de catecismo com crianças.
Então Cranmer enrugou a testa, fornecendo um papel com inscrições detalhadas da genitura do rei.
— Bem, vamos ao ponto, doutor. John Cheke já deve ter falado que estamos em um momento crucial de solidificação de nossa fé. Sua presença aqui é importante. Deve fazer o horóscopo de sua majestade Eduardo VI, estamos de acordo?
— Percebi que todos desejam saber quanto tempo ele vai viver.
— Se os astros disserem que ele vai morrer logo — disse Cranmer, aproximando as mãos e tocando-as com a ponta dos dedos —, a notícia correrá como um raio. Talvez o doutor nem consiga sair da ilha, pois será envolvido pelos acontecimentos. Lembre-se de que a sua apresentação será pública, provavelmente no Grande Salão.
— Por certo seria muito desagradável...
— Não dê ouvidos a pessoas da corte que alimentam intrigas — avisou Cranmer. — Mas lembre-se de que receberá cem coroas de ouro pelos seus serviços. Se achar que o rei merece o título de defensor da fé, ou seja, Defender of Faith, seu estipêndio será um pouco maior, evidentemente. Talvez quinhentas ou mil coroas...
— Não tenho a autorização de Roma para fazer esse tipo de declaração, sir Cranmer — avisou Cardano. — Isso pode me trazer sérios problemas.
— Como desejar. — Crammer deu de ombros. — O fundamental é fazer um bom trabalho com a genitura do rei. — Despediu-se do médico milanês com um sorriso irônico. — Conto com sua habilidade astrológica...
A tarde estava agradável. Cardano caminhou até encontrar um grupo de cortesãos que tomava vinho em uma das tendas. Sabendo de sua presença, uma mulher aproximou-se, ladeada por dois servos.
— Siñor Cardano? Sou a princesa Mary, muito prazer — abordou-o, perguntando se podia falar em espanhol. Ele se lembrou então de que a mãe de Mary, Catarina, viera de Aragão e tinha sido a primeira esposa de Henrique VIII.
— Sua presença aqui foi muito falada, doutor — continuou Mary.
— Majestade — curvou-se em larga reverência —, entendo a língua espanhola, mas, se puder, me comunicarei em língua latina.
— Vamos caminhar um pouco?
— Como desejar.
— Acho que poderemos ser sinceros um com o outro — falou a princesa. — Partilhamos a mesma fé na religião de Roma, não é mesmo?
— Certamente — respondeu Cardano.
— E todos nós, que somos unidos pelo batismo, estamos preocupados com o rumo dos acontecimentos. Por isso serei direta. Até porque nunca conseguimos ficar sozinhos nesta corte por mais do que alguns breves momentos. — Ele escutava atentamente, querendo saber aonde a princesa Mary Tudor gostaria de chegar. — Algum dia esta ilha poderia ser dirigida por duas rainhas de nome Mary, já pensou nisso? Mary Tudor na Inglaterra, Mary Stuart na Escócia. As duas com o mesmo pensamento cristão.
— Mas isso aconteceria somente se o rei Eduardo VI não vivesse muito... — falou Cardano, fingindo-se de ingênuo.
— Ele tem uma saúde frágil. A questão não é se ele viverá pouco. Sabemos que isso vai acontecer. A pergunta é até quando viverá — disse Mary Tudor, caminhando lentamente ao lado de Cardano, sendo protegida do sol pelo servo. — Tenho certeza de que os astros dirão que o tempo dele é curto. Afinal, qualquer um pode notar essa evidência com os próprios olhos, não é mesmo, doutor Cardano? — Sorriu de forma sutil. — Imagine como seria desagradável se a Igreja de Roma questionasse o doutor sobre uma manifestação pública favorável à vida longa de um monarca calvinista...
— No caso então de um reinado muito breve, Sua Majestade acredita que poderia haver derramamento de sangue? — perguntou Cardano, fingindo não ter ouvido o último comentário.
— Acho que não — respondeu a princesa Mary, parecendo segura de si. — Até porque não me atraem as decapitações. Para os hereges, acho mais conveniente retomar o costume da fogueira...
— Entendo... — disse Cardano, aliviado quando a princesa, percebendo que se aproximava John Cheke, se despediu.
O tesoureiro da corte chegou acompanhado do embaixador francês Claude Laval. Ambos levaram Cardano até a biblioteca, onde o médico poderia trabalhar com total liberdade. Antes de chegar ao local, explicaram por que John Dudley, o duque de Northumberland, simulava ter afeto pelo rei, mas, no fundo, desejava sua derrocada.
— Henrique VIII decapitou o pai dele — disse Cheke —, que, por sua vez, mandou executar os tios de Eduardo VI.
Cardano levantou as sobrancelhas e dessa vez não disse nada. Desejou apenas não se ver envolvido em uma teia real de intrigas. Lembrou-se de Ascletarion, um vidente tolo o suficiente para predizer a morte de um príncipe.
Não havia escolha. Teria que se empenhar. Foram dois dias seguidos de pesquisa e avaliação da genitura real. Ao fim da tarefa, ele não estava completamente seguro do seu resultado.
— São muitos fatores interferindo no processo — disse Cardano, com o maço de papéis embaixo do braço, enquanto se dirigiam à sala de audiências, um magnífico salão com afrescos nas paredes e no teto, circundados por molduras douradas em três dimensões.
Quando seu nome foi anunciado, Cardano atravessou o tapete vermelho ladeado por um grande número de cortesãos. Impossível não ser atraído pela visão do teto trabalhado do Great Hall. Cheke e Laval se postaram bem na frente. Do outro lado estavam as princesas Mary e sua meia-irmã Elizabeth. Ao chegar diante do trono real, que ficava em uma plataforma elevada, fez uma acentuada reverência.
— Sua Majestade... — falou Cardano enquanto se abaixava.
— Excellentiam, é imenso o prazer de recebê-lo em nossa corte — falou o rei na língua latina, tendo ao seu lado, em pé, o duque de Northumberland. — Temos ouvido seus feitos. Aguardamos ansiosamente o relato do meu futuro. Depois conversaremos um pouco sobre seus livros.
Eduardo VI, de estatura um pouco abaixo da mediana, tinha face pálida, olhos castanhos e que fitavam com aparência grave e decorosa. Apesar de seus ombros se projetarem um pouco para a frente, mostrava-se um jovem bonito e frágil. Não apenas isso. Era letrado como poucos e versado em dialética. Falava fluentemente latim e francês e tinha conhecimento de outras cinco línguas, assim como grego, ensinado por Cheke.
— Trabalhei com afinco para trazer estas informações, Majestade — disse Cardano, sentando-se em uma cadeira que foi trazida para que também acomodasse o livro especialmente preparado, junto com suas anotações.
De forma pomposa, Cardano abriu o manuscrito, que pedira para ser encadernado na oficina real, e iniciou a leitura do horóscopo. Foi o momento em que o salão ficou em absoluto silêncio.
— As predições realizadas para Eduardo VI, rei da Inglaterra! Artem quae in consiglio Regis Edoardis VI. Como foram discernidas as calamidades do reino, quomodo calamites ejus Regni impendere e conhecida sua magnificência.
“Sua vinda ao mundo revestiu-se de extraordinários fatos, como a necessidade de uma investida cirúrgica para que o rebento passasse a sorver o ar que respiramos. Mas, a partir do momento em que o crescimento mental e físico aconteceu, ele foi educado e treinado nas habilidades mais sofisticadas de nosso mundo. Seria um bem para a humanidade se ele tivesse uma vida longa, já que todas as graças estariam do seu lado. O primeiro olhar sobre a carta cósmica de Eduardo VI mostra, no entanto, que o poder vital é baixo, pois o maligno planeta Saturno aparece na primeira casa, aquela que define as chances de vida de uma pessoa — falou Cardano de forma tensa, ouvindo-se em seguida um murmúrio entre os presentes. — Felizmente, senhores, Saturno não dominará o resto.”
Por meia hora todos prestaram atenção à descrição da interação dos planetas com as casas astrológicas e entre si, seus possíveis significados e seus riscos. Eduardo VI abriu um sorriso quando ouviu o relato de que teria uma vida suficientemente longa.
— Vivat Rex! — E outros vivas à figura real foram ouvidos no salão, interrompendo a explanação do médico milanês.
— Aos 23 anos, nove meses e vinte e dois dias, uma languidez se abaterá. Corpo e mente sofrerão com a extrema fraqueza.
Cardano fez uma breve pausa e continuou.
— Na idade de 34 anos, nove meses e vinte dias, sofrerá de uma desagradável doença de pele febril. Após os cinquenta anos, várias afecções consumirão sua saúde. A duração completa de sua vida será de pelo menos 56 anos. Além disso, não é possível precisar.
O médico em sua função de astrólogo agora se sentia mais à vontade. Abriu outra página do manuscrito para finalizar sua exposição, falando das qualidades da mente.
— De animi qualitatibus. Com o correr do tempo, será constante, rígido, severo, inteligente, guardião dos direitos e paciente no trabalho. Provará ser sábio além do esperado, prudente e com mente elevada. Dessa maneira, ganhará a admiração do mundo. Será, afortunadamente, um segundo Salomão.
Palmas irromperam por todo o salão. John Dudley aplaudia comedidamente, ao contrário da alegria de Cheke e Cranmer. A princesa Elizabeth, com 19 anos, quebrou o protocolo, fazendo uma reverência diante do rei para depois dar-lhe um carinhoso beijo na face e sentar-se ao seu lado.
Passado o alvoroço da comunicação do horóscopo, Eduardo VI interpelou o médico milanês.
— Agora que já temos a certeza de minha longevidade, diga-me, doutor, qual é o conteúdo do seu novo livro, De Rerum Varietate? Minha curiosidade é ainda maior, pois soube que será dedicado a mim — falou o jovem rei, sorrindo.
— Majestade, inicialmente, no primeiro capítulo, eu revelo a causa dos cometas, algo que há muito tempo tem sido questionado.
— E qual é?
— O concurso da luz dos planetas.
— Mas — retrucou o rei — as estrelas se movem em diferentes direções. Como pode acontecer de os cometas não se partirem ou serem desviados?
— Eles se movem, só que bem mais rápido que os planetas, graças à diferença de aspecto, da mesma forma que a combinação de um cristal e um raio de sol produz um arco-íris na parede. Uma pequena modificação no prisma resultará em uma enorme diferença de lugar nas cores refletidas.
— Sem existir uma matéria sujeita a isso, no caso do exemplo, uma parede? Afinal, a parede serve de matéria para o arco-íris.
— Isso acontece da mesma forma como vemos na Via Láctea a reflexão de luzes — explicou o médico. — Por exemplo, observe quando muitas velas são acesas ao mesmo tempo em uma missa; elas produzem uma certa luz branca em seu interior.
Cardano ficou impressionado com a erudição do frágil soberano e indignado ao presenciar as conjecturas relacionadas à sucessão. Aproveitou a oportunidade para anunciar a todos que estava de partida. Seus filhos precisavam de sua presença. Desculpou-se por não poder participar do jantar em que a vida longa do rei Eduardo seria comemorada. Dormiu cedo. Urgia partir, o quanto antes.
Estrasburgo, 1º de dezembro de 1552
Caríssimo amigo Kenneth di Gallarate,
São mais de nove meses que estou fora de casa. Escrevo-lhe nestes dias em que me sinto mais tranquilo, descansando um pouco antes de retomar meu caminho.
Sobre minha passagem pela Inglaterra, e a visita ao rei, contarei em detalhes em uma outra oportunidade. Apenas confirmo seu comentário de que não encontraríamos lobos por terras anglo-saxãs. É verdade, não vimos absolutamente nenhum. John Cheke, o tesoureiro de Hampton Court, me disse que a última determinação real com instruções para a caça desses animais tinha sido, acredite, quase trezentos anos antes!
Além disso, fiquei surpreso como os ingleses se parecem com os italianos do norte. São apenas ligeiramente mais altos e têm a pele um pouco mais clara, com o peito mais bem formado. Vestem-se como nós e, na corte, tomam como modelo de conduta Il Cortigiano, di Baldassare Castiglioni, o livro que ensina como se portar nas mansões dei signori. Não me interessei por palácios, construções ou muralhas, mas por pessoas. Boas construções habitadas por tolos são como belos corpos e nenhuma alma.
Tenho sido recebido como um príncipe em todos os lugares, Kenneth. Minha fama correu o império, por onde resolvi tomar a estrada em virtude da condição lamentável em que está a França. Infelizmente, tive que recusar consultas de nobres parisienses que propuseram até mil coroas, além de um encontro em que quarenta médicos iriam se reunir para me ouvir. Entre eles estaria o grande amigo Aimar de Ranconet, que conheci quando por lá passei. Ele mesmo, no entanto, com sinceridade, me alertou dos riscos que poderia enfrentar.
Desci em Antuérpia, conheci a Universidade Católica de Louvain, a Katholieke Universiteit Leuven, e depois fui a Bruges, uma cidade toda de canais de água, tijolos alaranjados e gente com muita cultura. É uma atrocidade dizer que são bárbaros os habitantes de Flandres. Em Colônia, por outro lado, estão construindo uma catedral que será a mais alta do mundo, com torres que ultrapassarão os 150 metros!
Com grandes ofertas, vários nobres e príncipes têm tentado me seduzir a trabalhar em outros lugares e abandonar minha amada terra. Não aceitarei.
Ao meu lado está deitado um garoto, de nome William, que conheci antes de atravessar o canal da Inglaterra. Deve ter por volta de 10 a 12 anos, não se sabe bem ao certo. Afeiçoamo-nos um pelo outro imediatamente. Seus pais, de origem italiana, pobres da Liguria, fizeram questão de que eu o trouxesse a fim de proporcionar-lhe a educação de um homem de letras. Ele costumava trabalhar esvaziando latrinas na periferia da cidade e depois em pequenos serviços para as embarcações que chegavam ao porto. Poucos nobres têm ideia de como a vida pode ser dura, Kenneth.
Minha grande surpresa foi constatar que ele não fala uma única palavra em nossa língua. Tentei até colocá-lo em uma galé que retornava à ilha britânica, açoitei-o com gosto e deixei-o sem comer, mas era tarde demais. Aqui estamos nós dois, a caminho da minha cidade.
Recebi carta de Taddea, reclamando, como sempre, dos meus filhos. Mas eles estão bem. Outra correspondência veio do governador de Milão, Ferrante Gonzaga, oferecendo trinta mil scudi de honorários para que eu me torne médico exclusivo do irmão dele, o duque de Mantova. Ferrante relatou que, nem bem começava minha viagem de retorno e todos em Milão, Brescia e Veneza já comentavam meu sucesso na Escócia e na corte inglesa. Quem pensaria que um dia o Colégio de Milão recusou este ilustre membro!
Estou partindo para Basileia. Hoje pela manhã recebi o mensageiro de um nobre, ao que parece, distintíssimo, de nome Peter Titelman. Ele propôs me receber com toda a cerimônia. Disse que nenhuma outra casa na cidade estaria à minha altura. Foi tamanha a insistência que resolvi aceitar o convite. Respondi que apenas visitaria primeiro Grataroli di Bergamo, meu amigo de letras.
Espero receber notícias suas e do arcebispo John Hamilton.
Com estima,
Hieronymus Cardanus, messer Girò.
A chegada em Basileia aconteceu dentro do previsto, já no meio da tarde. Ficou acordado que seus servos dormiriam em uma das tavernas da cidade, junto com os dois cavaleiros. Deslocou-se sozinho, então, para a casa do amigo Grataroli, que não encontrava havia mais de dez anos.
— Grande mestre Girolamo Cardano! Que imensurável prazer em vê-lo — recepcionou na porta com carinho o professor Grataroli, um homem de barba cerrada, voz mansa e gestos suaves. — Minha casa está aberta à sua presença. Deixe seu cavalo na parte de trás, onde o pasto está fresco.
Basileia era a cidade em que o médico e alquimista Paracelso, morto havia alguns anos, dera palestras por um longo período, chamando a atenção de eruditos por toda a Europa. Além da liberdade religiosa, esta fora mais uma razão que atraíra para lá Grataroli.
O acadêmico vestia um gorro, calça bufante e um escuro gibão, uma espécie de colete fechado até o pescoço, que terminava em uma gola grossa branca. Ele era formado em Medicina também em Pádua, alguns anos depois de Cardano. Chegou a começar a vida profissional em Milão, onde se conheceram.
— Posso dizer que sua presença me traz boas recordações — disse Cardano. — Foi na época em que receberia na minha casa o matemático de Brescia, Niccolò Tartaglia.
— Lembro-me bem — frisou Grataroli. — Depois eu fui para Bergamo e nunca mais nos encontramos.
— Ouvi dizer que teve problemas com a Inquisição, é verdade?
— O tribunal de Bergamo me declarou herético!
Cardano ficou pasmo.
— Quer ver o que anunciaram? — Grataroli tirou uma folha de papel que tinha sido impressa e distribuída pela cidade quando ele fugiu. — Ouça que preciosidade: O tribunal eclesiástico de Bergamo declarou herético Guglielmi Grataroli Bergomatis... de negar o purgatório, negar as indulgências, negar a veneração dos santos, negar a presença do corpo de Cristo na Eucaristia... un heretico scandaloso... una peste contra la fede...
— Uma praga contra a fé? Nossa... Não abjurou, Grataroli?
O acadêmico de Bergamo abriu os braços, sorriu e negou com a cabeça.
— Foi preso?
— Claro!
— E como é ser preso? — perguntou Cardano, sentindo um misto de terror e curiosidade.
— As semanas passam e não se tem ideia se será julgado, torturado ou simplesmente liberado para seguir sua vida. Em determinado dia, sem aviso, levam-no para conhecer as dependências onde acontece a tortura. Ou melhor, a sala de confissões, como a chamam. Sempre há uma ou duas pessoas acorrentadas, no limite das forças, sangrando e gemendo, aguardando a retomada da sessão.
“Mostraram-me tudo com detalhe — continuou Grataroli, sob o olhar atento do amigo —, e saliento que foi de maneira gentil, apenas para que eu ficasse informado sobre esse tipo de atividade. Afinal, eu estava, como foi dito, ocioso na cela, sem ter o que fazer. Obviamente, essa apresentação faz parte do processo mental que instilam em cada condenado. Tendo sorte, receberá um procedimento suave, como chicotada, dedos apertados em um sistema que parece um grande parafuso, ou o estiramento por cordas em uma cama de madeira, levando ao desmembramento gradativo. A língua é arrancada antes de o réu confesso ser levado ao público, claro, para evitar que algo impróprio seja dito.”
Cardano se lembrou então da queima do herege na fogueira, presenciada em Pavia, e a agonia do carrasco ao ver que o condenado gritava heresias a plenos pulmões.
— E os piores procedimentos? — perguntou Cardano, quase se arrependendo de ter colocado a questão.
— Lenta queima com madeira verde, arrancamento das pálpebras e mamilos com pinças de metal e fatiamento do abdome enquanto o corpo é içado com pesos atados aos pés. Depois o condenado sai para o auto de fé, em que o salmo cinquenta e um é cantado diante de nobres, magistrados e clérigos. O corpo é queimado, e a multidão segue para a catedral com o intuito de venerar a Deus.
— Acho que é suficiente — disse o amigo milanês, começando a ficar nauseado. — São imagens fortes...
— Dormirá aqui em casa, não é mesmo, Cardano?
— Já me comprometi a dormir na casa de um distinto nobre chamado Peter Titelman.
Grataroli arregalou os olhos e prendeu a respiração, para em seguida soltar um brado.
— Peter Titelman? Está louco? Ele é da Inquisição! Está fazendo tamanhas atrocidades que têm levantado a ira tanto de católicos quanto de protestantes!
— Mas onde ele vive? — perguntou Cardano, terrificado.
— Deve ter vindo à cidade especialmente para pegá-lo. O governador de Basileia não deixaria Titelman colocar a mão em um cidadão daqui, mas você está sem jurisdição, amigo.
Ouviram então o som de alguns cavalos parando em frente da casa. Seguiram-se batidas à porta.
— Ordeno que abram! — gritaram lá de fora.
Grataroli sussurrou para que um perplexo e agitado Cardano se escondesse atrás da estante de armas e caminhou calmamente para abrir a porta, deixando dois soldados entrarem, acompanhados de um clérigo. Os outros aguardariam do lado de fora.
— Guglielmo Grataroli?
— Sim, ao dispor.
— Temos ordens para levar o médico Girolamo Cardano a título de averiguação.
— Quem denuncia? — perguntou Grataroli, fazendo expressão de surpresa calculada.
— Um matemático de Brescia. Não posso dar mais detalhes. Diga-me, conhece pessoalmente o médico Girolamo Cardano?
— Há muitos anos não o vejo...
— O que é isso? — perguntou o clérigo, pegando o papel que Grataroli tinha deixado sobre a mesa. — Il tribunale ecclesiastico...
Um átimo de silêncio foi necessário para que a pergunta fosse respondida.
— Estou escrevendo textos contra os hereges... — consertou Grataroli.
— Una peste contra la fede... Interessante. — Jogou o papel de volta à mesa. — Sinto, mas precisaremos revistar a casa.
Cardano ouviu o que se passava e engoliu em seco. Decidiu então se entregar para não comprometer o amigo.
— Estão vendo algum cavalo na frente da minha casa? — questionou Grataroli, agora de maneira incisiva.
O médico milanês segurou seu impulso e voltou para o local onde estava escondido.
Os soldados se entreolharam. A pergunta fazia sentido.
— Acham que um médico viria de um país distante a pé?
Pensaram mais um momento e resolveram se despedir.
— Agradecemos sua colaboração — disse um dos guardas, fazendo uma reverência.
Após alguns minutos, Grataroli fez a volta na estante e deparou com Cardano, imóvel e branco, como uma estátua de mármore.
— Acho melhor tomarmos um vinho. Depois você pegará a estrada para casa.
Cardano sentou-se à mesa, recobrando a cor.
— Infelizmente, aqui não é seguro ficar, amigo — completou Grataroli, levantando as sobrancelhas. — Se não sabia, agora já sabe: tem um inimigo na cidade de Brescia.
— Tartaglia... — falou Cardano por entre os dentes.