A morte de Cardano
Cardano apressou sua saída de Basileia. A ocorrência de alguns casos de peste poderia ser usada como uma boa desculpa. Seguiu o conselho de Grataroli, dirigindo-se para Zurique, Berna e depois atravessando os Alpes mais a leste, margeando o lago de Como.
No dia 3 de janeiro de 1553, após quase um ano da partida, Cardano passou pelos portões da cidade de Milão, retornando à sua casa.
Sua chegada não poderia ser mais tumultuada. Aldo desaparecera havia alguns dias, como sempre fazia, seguindo um grupo de amigos baderneiros. Ainda era, a rigor, uma criança, mas seu corpo já estava se tornando parrudo e resistente.
O que mais preocupava, no entanto, era a condição de saúde de Clara. Tinha perdido muito sangue e estava deitada na cama, bastante pálida.
Cardano não conseguiu cumprimentar direito GianBattista, nem apresentar o garoto William e já teve que dirigir suas atenções para a filha.
— O que aconteceu, Taddea? — perguntou à sogra.
— Ela soltou sangue pela casa e deitou-se ontem. Está assim, sem comer e sem falar.
— Minha filha, o que sente? — perguntou Cardano, aproximando-se de seu leito.
— Quero morrer... — respondeu Clara, sem prestar muita atenção ao pai.
— Por que está dizendo isso?
— Deixe-me em paz — respondeu ela.
Cardano considerou o pulso estável, apesar de um pouco fraco. O sangramento, aparentemente, estava estancado.
— Faremos compressas de água fria na barriga, Taddea. Trarei uma fórmula com agárico, polipódio e eufórbia. Ela deverá ficar bem.
De fato, o sangramento não aconteceu mais, mas no terceiro dia a barriga começou a inchar e sobreveio a febre. Cardano nem pôde aproveitar a glória do retorno à sua própria cidade. Ficou ao lado de Clara, culpando-se por não ter voltado mais cedo. Sabia que tinha cedido à tentação de ser recebido com pompa em quase toda cidade que passara.
Com a febre começou o vazamento de pus por sua vagina. O odor fétido, junto com inchaço na barriga, traziam uma má notícia. Se conseguisse sobreviver, teria uma lesão no útero tão séria que provavelmente não poderia mais ter filhos.
— Quem disse que eu quero ter filhos? — respondeu Clara, com a empáfia de sempre.
Cardano continuou ao seu lado nos dias subsequentes, até se certificar de que a febre cedera, o ventre desinchara e as forças estavam retornando à filha. GianBattista, vendo o sofrimento pelo qual passava a irmã, tinha ficado sério, calado e melancólico. Perdera algumas aulas. Não estava com ânimo de voltar à Universidade de Medicina em Pavia.
O menino William apenas observava tudo, sem compreender uma única palavra. Aceitava calado as refeições que lhe ofereciam e dormia na cama, junto com Cardano. Apesar de ser quase da mesma idade de Aldo, era mais baixo e mirrado.
— Não deve interromper seus estudos, Gian. Sabe disso. Está tudo preparado?
— Não tenho vontade de ir — falou o filho, de cabeça baixa.
— O que quer? — Cardano exasperou-se. — Ficar vagabundeando por aí? Ser um ninguém?
— Não quero nada... — Ele olhou para os sacos de roupas e livros.
— Pegue suas coisas, e iremos juntos. Só Deus sabe se terá outra oportunidade — falou Cardano de forma firme. — Eu aproveitei as que se apresentaram para mim. Espero que você faça o mesmo.
Escolheram um novo local com boas acomodações que ficasse dentro dos muros de Pavia, próximo à Universidade. Com tudo arranjado, Cardano voltou a Milão para retomar sua vida profissional.
Excetuando o formato de seu corpo, que é onde lhe falta a graça da perfeição, escreveu Cardano, meu filho GianBattista está apto a grandes realizações.
Nos meses subsequentes o ritmo de trabalho se reacendeu. Voltou a ser procurado para dar aulas e palestras. Consultas não faltavam. Da viagem, retornara com as arcas cheias de moedas. Nunca tivera tanto dinheiro.
E fizera bem ao partir logo da Inglaterra. Desde então, Eduardo VI tossiu e definhou à vista de todos. Seis meses após a chegada de Cardano a Milão, o rei menino morreu. O máximo que o duque de Northumberland conseguiu foram nove dias de reinado para sua nora Joana Grey.
Mary Tudor, aclamada pela população, subiu ao poder e tentou impor a religião católica. Começou a perder popularidade, sendo chamada de Bloody Mary, uma rainha sangrenta em sua ânsia de banir o luteranismo.
Outros acontecimentos se sucederam de forma rápida. Henrique II morreu na França e Carlos V abdicou do império, deixando as terras da península itálica para seu filho.
Villegagnon começou seu projeto de instituir a França Antártida. Tornou-se protestante, invadiu o Brasil na região sul para fazer uma colônia e começou a receber os dissidentes religiosos franceses, os huguenotes.
Enquanto isso, os estados germânicos viviam a paz de poderem escolher, em cada cidade, a religião que lhes aprouvesse, escreveu Grataroli. E foi exatamente em Basileia que o próprio Cardano, sem querer, envolveu-se na querela entre católicos e protestantes.
Em uma das versões de Rerum Varietate lá produzida, o editor inseriu, no capítulo LXXX, algumas considerações contra os padres dominicanos que poderiam gerar problemas com o Santo Ofício. São lobos vorazes que perseguem bruxas não por seus crimes, mas pela possibilidade de possuir mais riqueza, estava escrito. Alertado por um pupilo, o médico de Milão arregalou os olhos:
— Escreverei, pedindo que não se repita em outras edições — depois deu de ombros. — É pouca coisa, contanto que não chegue nas terras da Itália...
A pintura é a mais refinada de todas as artes; e a mais nobre. Cria coisas mais admiráveis que a poesia e a escultura. O pintor adiciona sombras, cores e junta a isso um preceito especulativo. É necessário para o pintor ter o conhecimento de tudo, porque tudo é de seu interesse. O pintor é um filósofo cientista, um arquiteto, um dissecador habilidoso. A excelência da representação do corpo humano, por exemplo, depende disso. Essa tendência teve início há alguns anos com Leonardo da Vinci, o florentino. Esse trabalho, no entanto, nunca teve um investigador das partes naturais como Andreas Vesalius.
— Meus caros, este trecho é do livro De Subtilitate, em que estou trabalhando para a nova edição. Tenho o prazer de citar Vesalius, um grande amigo, mas o que acabo de ler é, na verdade, uma homenagem ao meu pai, Fazio Cardano, avô de GianBattista, Aldo e Clara, aqui presentes. Ele ajudou mestre Leonardo a ver o mundo da ótica da nova perspectiva — falou Cardano, emocionado —, e este trabalho terá continuidade com os filhos de Clara e na obra de GianBattista. Recebo de portas abertas os amigos aqui presentes em nossa casa e proponho um brinde aos dois irmãos!
Todos levantaram os copos e brindaram os dois recentes eventos de significativa importância na família: a aquisição do título de doutor por GianBattista e o matrimônio da filha Clara com um próspero e distinto jovem cidadão de Milão, Bartolomeo Sacco.
— Agradeço especialmente a presença de meu brilhante ex-pupilo Ludovico Ferrari — que sorriu com orgulho — e do senador Filippo Archinto, meu patrono por tantos anos e quem realmente me apoiou quando eu lutava para fazer parte do Colegiado dos Médicos. Ele voltou a Milão como um distintíssimo arcebispo, o que muito nos honra.
Archinto fez sinal de reverência com a cabeça, agradecendo as palmas dos presentes ao seleto encontro. Apesar de nunca ter tido tanto dinheiro em sua vida, nem tanto sucesso, os hábitos de Cardano continuavam essencialmente os mesmos. Escrevia incessantemente, dava aulas, atendia os doentes, orientava pupilos, cuidava de gatos, cachorros e passarinhos, recebia diariamente os artistas da música e se correspondia com amigos por toda Europa, alguns dos quais nunca tinha visto pessoalmente. Quando escrevia, Cardano era elegante, sem impulsividade ou arrogância.
Nos eventos familiares, por outro lado, preferia reuniões com poucos convidados. Aprendera com seu pai que os amigos se contavam nos dedos de uma mão.
Cardano chamou os convidados a entrarem em um aposento todo escuro, fechado com pesadas cortinas pretas, para ver sua nova invenção. Apenas um pequeno furo, onde havia uma lente biconvexa, permitia a entrada da luz, que projetava na parede branca oposta a imagem invertida da sala com notável nitidez. Quando um dos servos passou em frente, o susto de ver a figura em movimento foi geral. Ao saírem da câmara escura, tiveram a certeza de que a criatividade do anfitrião realmente não tinha rédeas.
Taddea anunciou a refeição. Todos se serviram com gosto. Aldo, como sempre, mantinha-se desconfiado em reuniões como aquela e pouco falava. William se soltava gradativamente, dominando pouco a pouco a língua da Lombardia. GianBattista estava chateado, pois, apesar de finalmente ter conseguido o título e a aprovação do Colegiado de Médicos, fora proibido por seu pai de trazer a mulher com quem vinha se relacionando. Informações seguras davam conta de que ela não era digna de se tornar a esposa de seu filho. Conversariam sobre isso após os convidados se retirarem.
Ferrari, ao lado do anfitrião, ouvia Archinto inquirir mais um pouco sobre os detalhes emocionantes da viagem ao exterior. Cardano salientou o prazer de passar por uma praça italiana, como a Piazza Fontana, que atravessaram pela manhã, após a missa. Era um espaço que permitia o encontro das pessoas. Na Inglaterra, ao contrário, isso acontecia na rua, ou nas public houses.
— E a cidade de Basileia — perguntou Archinto —, é mesmo bonita como falam?
— Praticamente não conheci Basileia — respondeu Cardano. — A passagem pela cidade foi carregada de tensão. Para falar a verdade, meu amigo Grataroli me salvou duas vezes. Na primeira, disse que eu não deveria me fixar na locanda programada, nem mesmo os servos, pois recebera informações de que lá havia casos de peste negra.
— Não sabia que a peste circulava por lá — comentou o arcebispo.
— Eu também não. Grataroli, de todo modo, tem muita afeição pela cidade, pois goza de certa liberdade para escrever.
— Mas ele é herético, meu amigo — avisou Archinto. — Cuidado ao fornecer a outras pessoas a informação de que foi à casa dele.
— Sim, claro, mas ouça isso. Um desafeto meu, Tartaglia, estava atento aos meus passos e avisou à Inquisição na Suíça que eu tinha ficado na corte calvinista de Eduardo VI. Esta foi a razão da segunda intervenção de Grataroli. Ele me escondeu na casa dele enquanto um homem chamado Peter Titelman me procurava. Assim consegui sair da cidade a tempo.
“Não sabia que Grataroli tinha sido condenado pelo tribunal de Bergamo — continuou Cardano, desculpando-se. — Veja, ele é um acadêmico extraordinário. Está estudando fisiognômica e publicou Depredictione ex inspectione partium corporis. Um dia isso será usado para analisar os traços de criminosos antes que eles possam agir. É a predição pela inspeção, pelas rugas, pelo formato das sobrancelhas, tamanho da testa e outros detalhes. É um assunto intimamente relacionado ao que já estudei, a metoposcopia.”
— Entendo sua empolgação acadêmica, Cardano, mas dizer que não sabia que ele era herético pode ser uma resposta pouco convincente em um tribunal. Além disso, preste bem atenção ao que tem enviado para análise, pois ninguém produz tanto quanto o doutor...
— Não entendo, Filippo. O que isso quer dizer?
— Quero dizer que nenhum funcionário conseguirá ler tudo o que escreve.
— Pode ser. — Cardano considerou, parando um momento para pensar. — Desde que voltei de viagem, deixe-me ver — e começou a contar nos dedos —, publiquei uma obra de Astrologia, com o horóscopo de Cristo; um tratado enciclopédico, De Rerum Varietate; outro sobre a água; outro chamado De Dedicatione, quando fiquei doente; e depois Ars Curandi Parva, um livro médico. Também os comentários sobre Ptolomeu; uma oração a Francesco Gaddi, meu antigo paciente e amigo que está preso; e a Declaração do Tamanho da Arca de Noé. Poderiam ser acrescentados mais uma versão da minha biografia, a lista de meus livros, e os que acabo de iniciar, como um volume de dialética e outro sobre os usos da adversidade. Depois poderíamos falar dos ensaios...
— Está bem, está bem! — interrompeu Archinto, dando risada. — Ferrari, estamos diante de um moinho escritor movido pela força das águas! A energia é inesgotável. Ele não interrompe nunca... — Voltou-se para Cardano. — E este é o ponto em que eu queria chegar: ser aprovado para publicação não garante que não possa ter problemas depois, principalmente quando alguém envia cartas a vários tribunais falando de detalhes que tinham passado despercebidos.
— Tartaglia fez isso? — perguntou Cardano, desconfiado.
— Parece que sim — respondeu Archinto —, mas tenho uma boa notícia para lhe dar. — Fez uma pausa, para dar mais suspense: — Acabo de saber, quando vinha para cá, que Niccolò Fontana Tartaglia da Brescia... está morto.
Ferrari, ouvindo a notícia, deixou escapar um grito de alegria.
— Abençoada justiça divina! Por certo devem tê-lo envenenado.
Cardano, por outro lado, ficou triste. Não encarava a disputa por ideias uma justificativa para a vingança. A divergência de posições deixava o mundo mais rico, e não o contrário. Lembrou que, ao escrever Ars Magna, recebeu dele informações para fazer o primeiro capítulo. Tartalea, à quo primum acceperam capitulum.
— Apesar disso, ele preferiu me ver como um rival — falou Cardano, com semblante baixo —, não um associado cheio de gratidão e, de todos os homens, o mais devoto em amizade. É uma pena.
— Eu não ficaria tão triste. — Archinto levantou as sobrancelhas. — Seguramente as cartas que ele enviou à Inquisição perderão a força e serão arquivadas, considerando que o acusador não está mais aqui.
Nesse momento, Ferrari e Archinto começaram a divagar sobre a importância da nova Inquisição.
Bartolomeo, o marido de Clara, aproveitou e pediu discretamente para conversar a sós com Cardano. O problema era sério. Saíram da mesa e foram para dentro da casa.
— Não sei como lidar com a questão, excelência, é um tema muito delicado... — falou Bartolomeo com certo constrangimento.
— Diga, rapaz! O que há?
— Já falei com ela. Talvez como médico, quem sabe com o seu conhecimento... Está relacionado à função do marido com a mulher, de quantas vezes acontece essa intimidade...
— Ela acha que você a procura demais? É isso? — perguntou Cardano com certa impaciência.
— Não, é o contrário! — falou Bartolomeo, agora mais seguro em relação à sua queixa.
— Está acusando minha filha de leviandade em sua posição de esposa? — perguntou, perplexo.
— Como posso ficar com uma mulher que acha que uma vez ao dia não é o suficiente? O que ela espera de um homem? — Bartolomeo levantou a voz, sendo ouvido pelas pessoas que estavam na parte de fora da casa.
Cardano ficou em silêncio, tentando entender se era realmente aquilo o que tinha ouvido.
— Pela admiração que tenho por sua pessoa, fingirei que nada foi dito — falou Cardano. — Sua afronta será esquecida, pois sua queixa é estapafúrdia e perigosa. Lembre-se de que recebeu um dote vultoso. Se está tentando manchar a reputação de minha filha, não deixarei que tenha filhos com ela, está entendendo?
— Acho que é o doutor que não está entendendo — rebateu Bartolomeo. — Ela não pode ter filhos... Converse com ela, por favor — disse ele e saiu.
Momentos depois, Clara também foi embora, sem despedir-se de ninguém.
Cardano se recompôs e foi encontrar os presentes na reunião. GianBattista falou que também precisavam conversar, mas o pai respondeu que deveria ser em outro dia. Já bastavam tantas preocupações.
No início da noite, um mensageiro vindo da cidade francesa de Agen, perto de Carcassone, trouxe um embrulho. Tratava-se de um livro de Julius Scaliger que chegara aos livreiros dois ou três meses antes. Amigos tinham comentado o lançamento, pois falava mal do famoso médico milanês, que preferira fingir que o livro não existia. Evitara até folheá-lo para não ficar irritado.
Na época do lançamento, Scaliger escrevera uma carta a Cardano, solenemente ignorada. Dessa vez, ele fez questão de enviar sua publicação junto com um mensageiro, pois desta forma estava certo de que teria uma resposta, assim como o relato do impacto que o livro causaria no médico de Milão. Afinal, era um ataque frontal, de grande ferocidade, ao livro De Subtilitate.
O professor Scaliger, um homenzarrão de nariz adunco e voz possante, ex-militar do falecido imperador Maximiliano, terrível com seus servos e implacável com seus alunos, tinha expulsado Michel Nostradamus de sua casa alguns anos antes.
Nostradamus seguiu seu rumo e agora já era conhecido como um médico alquimista de dons proféticos. Lançara recentemente Les propheties, versos que permitiam ampla possibilidade de interpretações. Na época do aparecimento do livro, ademais, abandonou definitivamente o nome francês Nostredame.
Alguns comentavam que a verdadeira razão da fúria de Scaliger era porque o médico profeta, famoso por tratar da peste em tantas pessoas, estava em viagem justamente quando a sua companheira, que seria a filha de Scaliger, adoeceu. Nostradamus não teria voltado a tempo, ficando então sem mulher e filhas. Scaliger, por sua vez, que perdera a filha e as netas, não teria perdoado o genro. Portanto, isso explicaria o início da fase mais agressiva do professor, diziam.
De fato, o acadêmico que nascera dezesseis anos antes da virada do século, com o nome de Giulio Cesare della Scala, começou sua carreira literária com um violento ataque a Erasmo de Roterdã, já bastante conhecido dos leitores milaneses. Ao enfrentar gigantes da erudição, poderia ser equiparado a eles. Assim, amealharia muitos seguidores com a exposição, pensava Julius Scaliger. A tática, pelo menos por enquanto, dera resultado.
Dessa vez, escolheu outro entre os escritores mais lidos na Europa: Hieronymus Cardanus. Prefirou utilizar uma edição mais antiga do De Subtilitate, que continha uma grande quantidade de erros. Assim sua tarefa seria facilitada.
— Sua excelência deseja que aguarde para levar uma resposta? — O mensageiro fez a pergunta de praxe sob o olhar do pupilo Giuseppe Amati.
— Sim — respondeu Cardano, sem fitá-lo —, acomode-se ali. — Mostrou o canto da sala.
Abriu o embrulho e surpreendeu-se com o tamanho do livro Exotericae exercitationes de subtilitate adversus Cardanum, por volta de 1.200 páginas. Em cada uma — e Cardano folheou várias — havia comentários que o ridicularizavam. Leu um trecho.
— Abominável composição com um latim em estilo execrável. — Como alguém pode escrever isso?, pensou. Grosseria após grosseria...
Levantou-se, exasperado, e imediatamente passou mal. Um véu preto cobriu seus olhos. Caiu no chão sem sentidos, pesadamente, mesmo com a tentativa de Giuseppe de ampará-lo. O pupilo começou a gritar, pedindo ajuda. Vieram dois servos. Faziam tentativas de reanimá-lo, em vão.
O mensageiro de Scaliger, assustado com o que tinha presenciado, tomou a estrada na mesma hora. Poucos dias após estava em Agen, relatando a notícia da morte de Cardano a um estupefato professor que imaginara tudo, menos ser responsabilizado pelo fim trágico de uma famosíssima figura literária. Sua reputação corria o risco de ser abalada.
A solução seria produzir uma peça oratória que poderia ser lida e comentada. Assim reverteria o impacto negativo e ganharia ainda mais notoriedade.
Quando a crueldade do destino me pressionou de forma que minha glória privada foi combinada com a amargura da dor pública e meus esforços foram seguidos por uma calamidade tão lúgubre, começou Scaliger, em tom de lamento, senti que deveria deixar um testemunho à posteridade de que o infortúnio ocasionado a Hieronymus Cardanus não foi maior que meu sofrimento por sua morte, pois tão grande foi seu mérito no departamento das letras.
Era um homem incomparável, continuou Scaliger. Os séculos posteriores não conseguirão reparar essa perda. Perdi um juiz e até (oh, deuses imortais!) aquele que aplaudia minhas elucubrações, eu que sou apenas um homem simples e privado.
Lamento minha sina, terminava a longa oração de Scaliger, apesar de ter tido claras razões de me engajar em uma disputa com um colega tão nobre. Mesmo que eu tenha saído vitorioso da contenda, lamento a falta que Cardanus fará. Dificilmente conseguirão medir os méritos de sua real divindade. Nenhum homem foi mais humano e cortês, grande em sua indulgência, popular na elevação de sua mente e conhecedor dos mistérios da natureza e de Deus...
Uma semana após a calculada distribuição das cópias de seu réquiem literário, Scaliger recebeu a notícia de que Cardano apenas tinha passado mal naquele dia. Sofreu depois com um ciclo de oito noites com insônia, mas agora estava perfeitamente bem, trabalhando como sempre. Pior: nem tinha comentado o livro que recebera. Indiretamente, e sem se dar conta do fato, Cardano vingara o colega Nostradamus.
— Meu Deus. — Scaliger fechou os olhos e se sentou, colocando a mão na testa. — Estou acabado...