Roma

Kenneth ajeitou-se com dificuldade, ajudado por um jovem clérigo, no primeiro degrau da praça do Campidoglio. O fim de tarde daquele verão de 1576 estava ameno. O outono já se avizinhava. Além do manuscrito, tinha em mãos um mapa colorido da cidade. Ele mostrava que havia, no local onde estava sentado, a pequena colina do Capitolium, de suma importância na capital do Império Romano séculos antes. Nas últimas décadas tinha se tornado o morro das cabras graças à frequência dos animais que vinham pastar.

Agora era diferente. Michelangelo fizera um projeto para dignificar a praça, que seria completada com a forma trapezoidal, rodeada por três grandes palácios, tendo ao centro a estátua equestre de Marco Aurélio, de frente para a escadaria que se abria para a cidade. O famoso pintor e arquiteto já falecera, mas a reforma continuava.

Admirou a magnificência de Roma. Ao longe podia avistar a cúpula da catedral inacabada, no coração da pequena cidade do Vaticanus, que também ficava dentro dos muros. Roma se reerguia em obras, tornava-se jovem. Kenneth, ao contrário, sentia a força do tempo, pois passara dos 70 anos. Voltara recentemente da Inglaterra. A viagem tinha sido penosa e demorada, principalmente sobre carroças, pois já não conseguia ficar muito tempo em cima de um cavalo.

O sacrifício valera a pena. Em parte por retornar ao coração da Igreja, que tanto amava, e reencontrar alguns amigos que fizera na capital dos Estados Pontifícios. Por outro lado, fora um grande prazer chegar a tempo de ver ainda com vida o grande amigo Girolamo Cardano. O médico, a quem costumava chamar de messer Girò, já não saía mais da cama. Sua última obra escrita tinha sido a autobiografia, ditada a um discípulo. O título, estampado no manuscrito ainda não publicado, era De Vita Propria Liber, ou o Livro da minha vida.

Os sons da cidade subiam os degraus da praça. Eram música para os ouvidos. Kenneth abriu as primeiras páginas a fim de descobrir o que o amigo tinha relatado sobre si próprio. A primeira surpresa foi constatar que o livro não apresentava uma sequência linear. Cardano dividira os capítulos em temas. Natividade, Prudência, Jogo, Felicidade, Casamento, Perigo, Anjos da Guarda...

No Prólogo, já havia, desde o início, um lembrete sobre o porquê da falta de sequência cronológica:

Escrevi seguindo o exemplo de Antonius, o Filósofo, relatou Cardano, aclamado como o mais sábio dos homens, sabendo que nenhuma tarefa humana é perfeita, nec ulla mortalium structura perfecta esse possit, mas também nenhuma é mais prazerosa que o reconhecimento da verdade. Minha autobiografia é sem artifício. Non doctura quemquam. Também não tem a função de instruir ninguém. É apenas uma história, sed pura historia contenta, contando minha vida.

A quadratura de Marte com a Lua poderia ter feito de mim um monstro. Ideò poteram esse monstrosus, escreveu em Natividade, mas o lugar da conjunção precedente foi em Virgem. Sed quia locus conjunctionis praecedentis fui virgin.

Fui o servo de meu pai, em sua teimosia, continuou Cardano. Pater me ut servum ducebat secum mira pertinacia. Depois, no capítulo da breve narrativa da vida, escrevi sobre a amizade com Vesalius, Prelato Archinto, o nascimento dos filhos, os tempos de Gallarate, a morte do primogênito. A partir daí, suportei minha existência, desabafou.

Trabalhei em Bolonha até ser preso. Excetuando a perda da liberdade, fui tratado de forma civilizada. Omnia fuere civiliter administrata. Vim para Roma no dia da celebração da vitória sobre os turcos, em 7 de outubro de 1571. Veni Romam die pugnæ contra Turcas celebratæ. Aqui tenho o patronato do papa, de quem recebo pensão.

Kenneth levantou os olhos por sobre a cidade. Os últimos raios de sol deitavam-se suaves na praça do Campidoglio. Pensou como as palavras recentes de Cardano poderiam ter a influência do momento atual. A pensão do sumo pontífice, a proibição de publicar livros, a necessidade de reafirmar a religiosidade.

Ele manifestara a Kenneth sua vontade de ser enterrado em Milão, ao lado do pai, mas a peste voltou a grassar por lá. Seria muito difícil cumprir esse desejo.

Folheou mais algumas páginas de Vita Propria Liber. O debate que ganhou de Branda Porro, os vícios no jogo, as descrições detalhadas de doenças e sintomas que tivera. Um capítulo chamou a atenção de Kenneth. Meditação sobre a perpetuação de meu nome. Cogitatio de nomine perpetuando.

Não era um livro que tinha pretensão de ser uma obra literária, como tinha feito recentemente Benvenuto Cellini. Não, definitivamente não. Cardano fizera uma obra filosófica e informativa. Por um lado, discutia os anseios do homem; por outro, dava detalhes pouco comuns como, por exemplo, a lista de obras, ou as citações que tinha recebido de outros autores.

Kenneth abriu o capítulo 45, Livros escritos por mim, libri à me conscripti, e contou minuciosamente exatos cem títulos, sendo alguns ainda não publicados. Englobavam assuntos como astronomia, física, moral, matemática, medicina, teologia, além do setor variado, diversorum argumentorum. Curiosamente, na lista de livros estava De Vita Nostra. Seria a própria biografia que estava lendo?

Mais para a frente, um poema: o lamento pela morte do filho.

Onde está o meu caminho?, escreveu Cardano. Que terra agora reivindica o corpo e os membros desfigurados pela morte? Eu o procurei por mares e lugares distantes, meu filho. Encarreguem-se de mim, deuses enfurecidos, se a misericórdia pode ser achada em algum lugar...

Kenneth fechou as páginas do manuscrito. O velho e arqueado Cardano, que acabara de ditar sua autobiografia, visto andando lentamente pelas ruas de Roma, já dava mostras de decaimento mental. Ainda assim dissera, ao encontrar Kenneth, dias antes: “Vecchio è solo colui che fu abbandonato da Dio!”

Se ele se considerava abandonado por Deus ao sentir os sinais da velhice, certamente não manifestava a fé na imortalidade da alma. Pobre amigo!

Com dificuldade, Kenneth se levantou e, junto com seu ajudante, rumaram para o convento. A última claridade deixava Roma já com as horas bem avançadas de uma jornada de fim de verão.

No dia seguinte, Kenneth voltou a visitar Girolamo Cardano. Ao entrar no quarto, lá estava o cartaz de sempre, pregado na parede, com os dizeres na língua latina: EU SOU O SENHOR DO MEU TEMPO.

Cumprimentou o servo de Cardano e se sentou ao lado da cama.

— É sua a carruagem na porta? — perguntou, surpreso, Kenneth.

— Nos últimos anos eu não tinha mais condições de me locomover sobre uma mula, amigo. Menos ainda sobre um cavalo. Felizmente, ainda tive muitos chamados para exercer minha profissão, desde que fui aceito pelo Colégio de Médicos de Roma, mas a verdade é que foi fundamental a pensão do papa. Minha salvação.

— Fico contente que a Igreja tenha entrado na sua vida também como uma bênção, e não só como sofrimento. Gregório XIII tem feito um bom trabalho, muito fervoroso.

— Eu o conheci em Bolonha... — comentou Cardano, virando-se com dificuldade na cama, ajudado pelo servo. — Gosto muito dele, mas não me agrada que o papa mantenha em Roma um bairro fechado só para os hebreus. Aquilo parece o Castelletto... Fiquei também um pouco chocado com a festa que ele fez após o massacre de protestantes na França, alguns anos atrás. Lançou até medalha para comemorar o assassinato de tantos inocentes na Noite de São Bartolomeu...

— Não sabia desse detalhe... Concordo que é lamentável... — falou, constrangido, Kenneth. Ficou um pouco em silêncio até achar algo interessante para dizer sobre Gregório XIII. — Sabe... disseram-me que ele vai acertar o calendário. Fizeram uma comissão para estudar o assunto. O ano deverá começar em janeiro, em lugar do fim de março, e vão cortar alguns dias para ajustar o equinócio. O calendário de Júlio César deve cair mesmo em desuso. Muitos já estão chamando o novo projeto de Calendário Gregoriano.

— Finalmente... — concordou Cardano, sorrindo. — Mas será um pouco tarde para eu aproveitar essa mudança — brincou.

— Outro projeto do papa é o da reconversão da Inglaterra — explicou Kenneth. — Muitos missionários foram para lá nos últimos anos com o objetivo de implantar a religião romana novamente. Parece que Gregório XIII não medirá esforços para isso.

— A Inglaterra também é um pouco seu país, não é mesmo? — comentou Cardano.

Kenneth contraiu os lábios, segurando a emoção ao se lembrar do porquê de aquela terra distante, que já fora possessão do Império Romano, também fazer parte do seu coração.

— Devo dizer — confessou Kenneth — que, na verdade, fui à Britannia em busca de meu pai. Ele abandonou nossa família quando eu tinha 10 anos. Essa era a minha procura.

— Você nunca me contou isso... Ele nasceu em Londres? — perguntou Cardano, com curiosidade.

— Em Stratford. Fica sobre o rio Avon, a noroeste, passando por Oxford — explicou Kenneth. — Lá eu encontrei o túmulo dele. Não foi difícil. Conheci um fazendeiro, Richard Shakespeare, seu grande amigo, que me contou sobre os últimos anos. Quando tive que ir para a Escócia, segui com a sensação de ter cumprido meu dever.

— Então, alguns anos depois, em 1552, nós nos encontramos... — completou Cardano.

— Isso mesmo. O tempo passou, o arcebispo John Hamilton ganhou mais poderes com a chegada de Mary, rainha da Escócia, e a luta contra os partidários de Lutero tomou um novo fôlego, pelo menos momentaneamente. Então, numa bela manhã de 1561, recebi a visita de um nobre luterano. Já dominavam quase toda a Escócia. Ele era o responsável pela fronteira com a Inglaterra. Tinha interceptado uma correspondência com a sua assinatura, Girolamo!

— Meu Deus... era a carta que escrevi na prisão... — Cardano arregalou os olhos.

— Isso mesmo — Kenneth franziu a testa. — A carta iria para o fogo, mas ele reconheceu seu nome, pois participara da palestra que falava da consolação ao sofrimento. Lembra-se daquela conferência? Você discursava e eu traduzia...

— Lembro-me bem — respondeu Cardano, com saudosismo.

— Pois é — continuou Kenneth. — Aquele nobre tinha perdido um filho, se separado da esposa e ficado melancólico, mas refez a vida após ouvir suas palavras.

— Fico feliz em saber que pude ajudar mais uma pessoa em um lugar tão distante — falou Cardano, com uma ponta de satisfação.

— Ele fez questão de trazer sua carta em mãos e, muito importante, permitiu que um mensageiro saísse da Escócia com uma comunicação endereçada ao papa, escrita pelo arcebispo.

— Foi de grande ajuda... E John Hamilton, está vivo? — perguntou Cardano, curioso quanto ao destino de seu antigo paciente.

— Morreu.

— A asma voltou? — perguntou Cardano, preocupado.

— Não! — respondeu Kenneth, enfático. — Nunca mais teve problemas sérios de asma e phthisi. Seu destino foi político. Pouco tempo depois de ter enviado a carta ao papa, Hamilton foi cercado no castelo e enforcado. A verdade é que ele foi muito vingativo com os luteranos. Seus atos voltaram-se contra ele. Mary, por outro lado, fez um casamento desastroso, perdeu poder e foi presa. Você pode imaginar como, para mim, um católico, se tornou impossível permanecer na Escócia. Além disso, eu já estava muito velho. Fui então autorizado a voltar definitivamente para Roma. Antes, porém, passei em Stratford, para dar um último adeus.

— Visitou mais uma vez o túmulo de seu pai?

— Era meu segredo. Meu pai foi um fervoroso luterano. Essa era uma procura particular minha.

— A viagem de Telêmaco — completou Cardano.

— Pode ser... — admitiu Kenneth. — Em Stratford eu conheci o neto do signor Richard Shakespeare, um rapaz chamado William, muito inteligente. Lembrei-me de que você tinha levado da Inglaterra um garoto com o mesmo nome. Então o presenteei com a tradução do seu livro. Ele adorou.

— De qual livro? — perguntou Cardano curioso.

Cardan and his books of Consolation, english’d.

— Meu De Consolatione? Em inglês? — perguntou Cardano, orgulhoso.

— Isso mesmo. Pena que não tenha outro exemplar para trazer aqui.

— Tanto faz. — Cardano suspirou. — Já vou morrer mesmo, amigo. Lamento apenas não ter visto o mural de Da Vinci em Florença, no Palazzo della Signoria. Ver mais uma obra do mestre, estampada na parede, também me faria lembrar de meu pai. É engraçado... Estamos no fim da vida e ainda esperamos um olhar de aprovação dos mais velhos, como se eles estivessem lá no céu, nos observando...

— Entendo... Mas essa pintura foi apagada, Girolamo. Giorgio Vasari e Benvenuto Cellini foram contratados por Cosimo de Medici para fazer afrescos no local, na Sala del Consiglio. Eu estive lá.

— Que pena... Vasari morreu, sabia?

— Sim, foi o que me disseram — respondeu Kenneth.

— O livro dele sobre os pintores saiu dois anos atrás, em nova edição, com imagens de cada um dos biografados. Um livro muito bonito. É de se lamentar que não tenha feito um livro dos escritores...

— Lá estaria Hieronymus Cardanus, não é mesmo? — Kenneth sorriu.

— Provavelmente... Mas isso não me traria a alegria que perdi ao longo da vida... Tenho dúvidas se fui feliz, amigo. Sei que falhei, isso sim. Não fui bom pai, não fui bom marido.

— Você fez o que estava ao seu alcance — Kenneth levantou as sobrancelhas. — Não se pode esquecer que, por sua causa, muitos tiveram uma vida mais rica, com mais saúde. Ninguém escreveu mais livros depois de Aristóteles. Ninguém foi mais lido. Você disse que os surdos deveriam ser educados, pois tinham inteligência, e que os cegos tinham que ler com as mãos; defendeu a ciência, a circulação de ideias, o tratamento médico para quem está escravo do jogo, falou de doenças ainda não descritas, perscrutou os sonhos, a alma, o sofrimento. Fazer outras pessoas felizes é uma grande realização. Colaborar para a humanidade adquirir mais conhecimento também.

— Se eu realizei tantas coisas, como está dizendo — franziu a testa —, então devo ser feliz... É verdade que os deuses estiveram ao meu lado em muitos momentos; tenho que admitir.

— Temos um só Deus, Girolamo! Quem faz o contato divino não são deuses, são os anjos. O livro da Revelação de Jesus, o apokálypsis, lembre-se bem, teve seu conteúdo trazido a São João pelos anjos. Depois, os próprios anjos derramaram as sete taças da ira de Deus.

— E quando o anjo abriu o sétimo selo... — completou Cardano — fez-se silêncio no céu... Lembro-me bem desta parte da Bíblia, amigo. Vou confessar-lhe uma coisa. — Fechou os olhos novamente; respirou fundo: — Esta noite sonhei que jogava xadrez com a morte, atormentado pela revelação do fim. Eu queria tirar Deus de dentro do meu coração, mas ele continuava como uma realidade assustadora. Era um Deus sem religião. Tinha medo da minha alma não ser imortal. Não queria que a minha vida terminasse assim. Eu tentava esconder minha estratégia no jogo, mas a morte lia meus pensamentos, sabia que eu ia atacar com uma combinação de bispos e cavalos, quebrando seu flanco. O barbeiro Achilles também estava lá. Ele me ajudaria. Você o conheceu. Foi ele quem me ensinou as regras do xadrez e me inspirou a ser médico. Se eu vencesse a morte, viveria por mais um tempo.

— Para que viver mais? Você mesmo disse que a vida é um nada...

— Para conviver um pouco mais com meu neto Facio. Ele está um homem. Nós nos amamos muito. Acho que a idade e meu neto me fizeram mais doce do que eu era antes... Sempre tive o coração frio, ao contrário da cabeça. Freddo in cuore e caldo di testa...

— Gostei do seu livro, Girolamo. É diferente dos demais. Não sei dizer ao certo...

Cardano sorriu e fechou os olhos.

— É minha vida...

Kenneth esboçou um sorriso, com uma ponta de tristeza. Perguntou sobre o neto querido do médico.

— Facio não mora mais aqui?

— Não, está fazendo a vida dele. De vez em quando vem me ver. — Cardano respirou com dificuldade, tossiu e voltou a falar vagarosamente: — Quanto a tirar Deus de dentro do meu peito, Kenneth, saiba que foi apenas um pesadelo de um devoto da Igreja de Roma... Mas, diga-me, caro amigo, tenho que perguntar: Deus tem religião?

Kenneth ficou em silêncio por um momento.

— Posso dizer que minha religião é o caminho para Deus. E também o caminho para a ciência. Por isso tantos clérigos fazem descobertas, não é mesmo? Você, que é um homem da ciência, acredita nisso que eu falei?

— Acredito, amigo. Mas também acredito em outras coisas... Refiz meu horóscopo. Minha carta astrológica mostrou que eu vou morrer amanhã. Meu pai morreu após nove dias sem comer. Isso também acontecerá comigo...

— Não está jejuando de propósito, está? — perguntou Kenneth, preocupado.

— Não sei, não tenho vontade de comer.

Kenneth olhou para o servo.

— Ele está recebendo comida adequadamente?

— Há mais de uma semana recusa tudo, padre — respondeu o servo. — Só toma sumo de frutas.

Kenneth levantou a cúpula de metal que repousava sobre a comida.

— Minha nossa, Girolamo! Batatas com o molho da fruta tomate! É por isso que estava sentindo um aroma delicioso. Não tínhamos isso na nossa infância, rapaz! Vai recusar esse banquete?

Girolamo fechou os olhos. Kenneth suspirou, triste por presenciar o fim da vida do amigo, mas com o contentamento de poder compartilhar as lembranças do passado.

— Tenho viva a recordação de quando sua mãe conversou comigo, na época em que passei por Milão — revelou Kenneth, sentando-se novamente ao lado do médico. — Disse que estava guardando dinheiro, pois sabia que entrariam em uma fase difícil. Disse também que, apesar de ser um segredo de confissão, eu poderia revelá-lo quando ela já tivesse partido.

Girolamo se arrepiou ao lembrar de sua mãe falando ao morrer: “Converse com seu amigo, ele sabe o segredo...”

— Contou-me que saía de casa sozinha para se dirigir ao ourives — continuou Kenneth — a cada semana, trocava o dinheiro por moedas de ouro ou joias. Na época, perguntou-me se era pecado esconder uma parte do que recebia do marido. Respondi que, sendo um motivo honesto, em prol da família, não haveria problema.

Cardano ficou em silêncio. Lembrou-se de como a mãe convenceu a todos que guardava terra dentro das arcas e enfrentou o pai para continuar a andar pelas ruas de Milão semanalmente. Depois de um momento, ele confessou a Kenneth que nunca desconfiara de nada.

— Agora percebo como tinha sempre algum dinheiro para as necessidades quando morava em Sacco... Eu só jogava, como se fosse uma criança feliz, mesmo sendo impotente com as mulheres.

— Sim, exatamente como uma criança — analisou Kenneth. — Tinha a pureza do corpo, brincava o tempo todo e sabia que havia uma mãe por trás, zelando por tudo. A infância que não tivera, pelo jeito.

— Lucia e minha mãe foram pessoas importantes na minha vida, Kenneth. Eu não enxerguei.

— Posso estar errado, mas acho que pelo menos uma delas era seu anjo. Talvez as duas. Deus utiliza anjos como protetores e às vezes os envia à Terra.

— Anjos? — Girolamo refletiu um pouco. — Anjos podem assumir a forma corpórea?

— Para Santo Tomás de Aquino isso é impossível, pois anjos seriam apenas criaturas espirituais, mas São Justino disse que os demônios podem ser, por exemplo, filhos de anjos caídos. Os anjos poderiam até ter relações carnais com mulheres, segundo Justino.

— Como não percebi antes? Nem Lucia nem minha mãe falaram nada sobre isso... — Cardano olhou para o vazio.

— Anjos não esperam reconhecimento, amigo. Apenas agem. Só que não têm consciência disso quando estão junto a uma pessoa, a um corpo. No capítulo sobre Anjos da Guarda, você diz que pode ter recebido ajuda de entidades angelicais, não é?

— Não falei nada sobre elas... Lucia e minha mãe foram esquecidas em meus escritos...

— Nem sempre as coisas mais importantes são registradas em um papel, Girolamo, você sabe disso. Lucilla desapareceu da sua vida exatamente quando Lucia nasceu em Sacco. Sua mãe me falou as datas. Foi só juntar as informações. Lembre-se de que Lucilla é luz, assim como Lucia. É o mesmo nome. Pode ser que sejam o mesmo anjo; antes incorpóreo, só existindo nas suas visões; depois desceu à Terra.

— Chiara também traz claridade... Chiara é luz — completou Cardano. — Como fui cego...

— Sua mãe teve que abdicar de três filhos para ter você — revelou Kenneth — e ela não tinha consciência dessa missão. É compreensível que tenha ficado revoltada no início. Estive pensando... Quem sabe você não tenha sido o anjo de outras pessoas, Girolamo? Você se dedicou a escrever, sofreu muito, abdicou de três filhos e influenciou-nos nessa época. Provavelmente influenciará outros que ainda nem nasceram. Estamos em setembro de 1576, amigo. Talvez escrevam sobre você daqui a quatro ou cinco séculos. Sua missão certamente foi muito complexa.

— Em breve acharei que você também é meu anjo — falou com dificuldade Cardano, rindo e tossindo junto. — Estava no momento certo, na Escócia, quando precisei. Está aqui agora, abrindo meus olhos para o que eu não vi...

— Sou apenas um padre, messer Girò.

— Então me dê a última unção, padre. Vejo Lucia em pé à sua direita e Chiara, minha mãe, à sua esquerda. — Cardano fez uma pausa. — Não desapareceram quando falei o nome delas...

Signor Girolamo Cardano, está preparado?

— Estou.

Após a confissão, Kenneth iniciou o último sacramento.

Confíteor Deo omnipoténti, beatæ Maríæ semper Vírgini...

Os sons da cidade entravam pela ampla janela do aposento. Ao longe, era possível avistar o morro do Campidoglio.

A noite caía quando Kenneth deixou a casa de Girolamo Cardano. Foi a última vez que conversou com seu amigo.