A última ceia
Um ano e outro ano transcorreram mais tranquilos na casa de Girolamo, que se desenvolvia solto, alegre, rosado, cheio de vida. Todo fim de tarde sentava-se à beira da cadeira da cozinha para ver a mãe tocar o alaúde, depois de um dia de intensas brincadeiras com soldadinhos e o cavalo de madeira, sem contar as estripulias sobre os muros da casa.
A decisão de Fazio de se mudar definitivamente para lá acabou tendo efeito bastante benéfico na relação entre todos. O ambiente tenso das brigas e discussões deu lugar à calmaria necessária a uma infância saudável, pontilhada, obviamente, com eventuais surras de vara.
Margherita, como sempre, defendia Girolamo e o consolava nesses momentos difíceis. A verdade é que o próprio menino as aceitava e até as achava justificáveis em vista das desobediências próprias de uma nova fase mais inquisidora.
Até esse ponto, uma infância totalmente normal. Isso não significava, no entanto, que ainda não houvesse alguns resquícios da ruptura pela qual o garoto tinha passado. Tinha dificuldade em fazer amigos na vizinhança.
— Fazio, precisamos conversar — chamou-o de lado o senhor Carlo Baronio, professor de filosofia e história bíblica.
— Sim, Carlo, como estão indo as aulas? Já faz mais de um mês.
— É exatamente sobre isso que gostaria de falar. O menino Girolamo é de fato bastante inteligente. Para quem tem 6 anos, ele capta tudo com muita rapidez. Mas eu não tinha sido informado antes... — hesitou um pouco o professor Baronio. — Será difícil continuar. Não sei lidar com um garoto mudo, não tenho essa experiência.
— Mas meu filho não é mudo, Carlo! — surpreendeu-se Fazio, para logo depois se dar conta de que o garoto realmente não conversava na presença de estranhos. — É verdade... Nem pensei sobre isso. Achei que seria um processo natural ele se soltar ao longo das aulas.
— Se não é mudo, então não sei, mas o fato é que ele não falou uma só palavra...
— Está bem, verei isso. De qualquer maneira, agradeço, Carlo — e Fazio se despediu, pensativo.
Mais uma tentativa foi levada a cabo naquele ano, revelando-se infrutífera. Dessa vez o tutor já sabia do detalhe e insistiu por quase dois meses. Restou a Fazio tomar uma decisão importante: ele mesmo assumiria a responsabilidade pela educação do menino.
— Chiara, chegou o momento de Girolamo me ajudar em meus afazeres diários e assim aprender o ofício, além de tudo o que sei.
— Será maravilhoso, marido. Ele já brincou o bastante — concordou Chiara. — Assim será alguém nesta vida de Deus.
— Ele terá a função de meu servo, o que também será bom, pois já estou cansado. O material que carrego começa a pesar um pouco em cima da idade.
— Mas quando ele começa?
— Amanhã mesmo — disse Fazio. — Faço aula no Piattine, na parte da manhã. Ele assistirá e depois já me acompanhará na audiência à tarde.
Inicialmente Girolamo seria apresentado às três vias do conhecimento, o trivium: gramática, lógica e retórica. Todos começam por aí, pensou Fazio. Depois, o quadrivium: geometria, aritmética, astronomia e música.
— Música? Vou aprender música? — perguntou o garoto, ansioso.
— Sim, filho, a música é outra maneira de aprender matemática — uma resposta que deixou Girolamo em dúvida se iria, ou não, pegar em um alaúde.
Talvez fosse melhor conversar com a mãe sobre isso, pensou Girolamo.
— Vamos, garoto, mantenha o passo senão vamos nos atrasar.
Ao chegar ao Piattine, foram inicialmente à sala dos grandes. O professor Fazio deu as instruções iniciais da leitura a ser realizada para em seguida falar sobre adição de números na sala dos pequenos.
As horas passaram rápido para o pequeno Girolamo. Ficou sentado no fundo, sem dizer uma palavra, como se fosse um elemento estranho naquele ambiente de garotos e garotas bastante simples. Percebeu que era chegado o momento de aprender muitas outras coisas que não sabia, entre elas a arte da leitura.
Na hora do almoço, comeram algo com pressa e saíram em direção ao prédio anexo do arcebispado, poucas quadras ao norte do Ospedale Maggiore, próximo à igreja Duomo. Chegaram a tempo. Muitas pessoas se agarravam às grades para saber notícias de seus parentes e amigos encarcerados. Alguns presos passariam em audiência naquela tarde.
Entre gritos e choro, Fazio e seu filho abriram caminho até o controlador, que, vendo o jurisconsulto, abriu os grilhões de ferro. Após entrarem, as lamúrias do exterior foram desvanecendo à medida que avançavam dentro do prédio de paredes e teto brancos.
Chegaram então a uma pequena capela sem imagens religiosas, agora utilizada para as audiências. Fazio explicou, falando baixo no ouvido do surpreso senhor que controlaria o ofício, que o menor Girolamo, apesar de criança, era seu ajudante. Um ajudante que não falaria nada.
Havia apenas três fileiras de bancos, postadas entre o transepto e a diminuta nave, que serviriam para os juristas que estavam para chegar. Foram então chamados, para subir ao local antigamente usado como altar, os dois rapazes acusados de sodomia.
— Messer Gian Antonio Boagaglia di Padova, ourives, e signor Teodoro Gent delle Fiandre, pintor — anunciou o controlador do ofício.
De braços atrás das costas e cabeça baixa, eles subiram os degraus e ficaram em pé, lado a lado. A queixa, apresentada pela dona da pensão onde ficava o pintor nascido nas Terras Baixas da Holanda, era muito grave. Poderia resultar em decapitação ou morte no fogo.
— Signori, façamos atenção! Os magistrados!
Com o anúncio dos magistrados que iriam julgar o caso, fez-se silêncio na sala e entraram três juízes com toda a vestimenta preta, incluindo o manto. O chapéu, também preto, bastante avantajado e quadrado, dava a dimensão da importância do cargo.
Após se sentarem nos bancos, o mais velho, vigário, solicitou a leitura do relatório, que detalhou a possível relação íntima delituosa entre os dois amigos. O que parece ter originado a denúncia teria sido a falta de pagamento do jovem de Flandres. No quarto dele, os guardas encontraram o livro de Ovídio, A arte de amar, condenado pela Igreja, além de um quadro quase terminado com a imagem do amigo.
— Magníficos juristas, caros amigos presentes, admiradores da herança das leis de Roma! — começou Fazio sua exposição, sob o olhar incrédulo do pequeno Girolamo. — Mostrarei brevemente como a denúncia foi mesquinha e equivocada, como dois jovens de boa conduta, que Milão poderia se orgulhar de ter como habitantes, são apenas amigos, aprendizes de artes indispensáveis para a condução da vida na cidade, do sucesso de um centro de excelência que atrai pessoas de todas as províncias da Europa!
Então Fazio Cardano explicou como o jovem dos Países Baixos ainda não havia recebido a parte da herança que lhe cabia e que no momento ainda não tinha possibilidades plenas de pagar o que devia, por ser ainda um estudioso em uma oficina de música.
Por certo pagaria. Até propunha a adição de juros. Além disso, suas atrações físicas e amorosas se pautavam no universo feminino. Prova irrefutável seria o livro de Ovídio, achado em seu aposento.
— Permitam-me, senhores, que sejam lidos os trechos grifados do livro apreendido — continuou Fazio, com pompa. — Foram trechos marcados pelo próprio dono, signor Teodoro de Flandres. Sabemos todos que a posse do livro poderia ser interpretada como uma tendência à luxúria e não seria digna deste tribunal, mas, como se trata de uma prova que pode decidir a vida do jovem réu, peço que se abra uma exceção para a leitura de partes que não atentem contra a pureza dos costumes de nosso país.
Os magistrados se olharam e trocaram comentários por um breve momento, e um deles autorizou o andamento da solicitação extraordinária.
— Prossiga, messer Fazio, com comedimento.
O controlador do ofício leu o primeiro trecho grifado:
— Si doctus videare rudi, petulasnve pudenti, diffidet miserae protinus illa sibi.
— Se se mostrar sábio para uma inexperiente, ou atrevido para uma recatada, logo elas desconfiarão e ficarão na defesa! — Fazio levantou a cabeça. — A todos aqui presentes eu pergunto: quem está preocupado em artimanhas para conquistar mulheres, se não um amante da graça feminina, se não um rapaz que, por ainda não ter as posses a que terá direito, treina sua arte pintando a figura de um amigo? Ou então iremos dizer que todo artista que faz a figura de um homem é amante da sodomia?
Em seguida, mais um trecho marcado foi lido, em que Ovídio escreveu: TRAVE CONHECIMENTO PRIMEIRO COM A CRIADA DA MULHER QUE QUERES SEDUZIR. A afirmação causou um certo incômodo entre os presentes na audiência. Por último, mais uma parte grifada na obra, no livro primeiro.
— Sunt diversa puellis. São diversos os sentimentos das mulheres. Pectora: mille animos excipe mille modis. Para conquistá-las, empregue mil meios, diz o texto — completou Fazio. — Caríssimos, esses fatos deixaram claro, sem sombra de qualquer dúvida, quais são as preferências amorosas de nosso injustamente acusado, um rapaz muito amigo e confidente de Massimiliano Sforza, filho primeiro do magnífico Ludovico Sforza e da querida falecida Beatrice d’Este!
Fazio tinha deixado para o fim a última cartada ao citar a figura de Massimiliano, o filho de Ludovico Il Moro criado em Flandres. O jovem poderia, com apoio dos suíços, reivindicar o Ducado de Milão a qualquer momento. Aliás, a infantaria da Suíça, a mais formidável da Europa, estava sempre pronta a invadir o sul dos Alpes e auxiliar quem pagasse melhor. Agora os franceses estavam no poder, mas quem poderia dizer sobre o dia de amanhã?
A menção do nome Sforza causou mais incômodo que a leitura dos trechos de Ovídio. Mais uma vez os magistrados se entreolharam, e o vigário sugeriu aos outros, em voz baixa, que o processo fosse arquivado, ao que anuiriam sem discutir.
— Que sejam determinados os juros em questão e o processo seja encerrado — disse o vigário ao controlador do ofício, que de pronto anunciou para toda a sala: — Que sejam determinados os juros e seja finalizado o processo de Gian Antonio Boagaglia di Padova e Teodoro Gent delle Fiandre!
Fazio sorriu com prazer, e o pequeno Girolamo percebeu que algo de muito bom tinha acontecido.
Dias após, na volta do mercado, Fazio comprou para o filho, no vendedor ao lado do Molino delle Armi, o livro infantil de Esopo, na edição de Steinhowel, de 1501, com poesia e fábula: Esopi appologi, carminum et fabularum.
As lindas ilustrações fizeram com que Girolamo ficasse apaixonado pelo livro. Assim, passou a folheá-lo diariamente, mesmo que não compreendesse ainda as letras impressas. À noite, antes de dormir, sua tia sempre lia uma das pequenas histórias. “A Raposa e as Uvas”, “Hermes e os Artesãos”, “Diógenes e o Homem do Rio”. Eram pequenos contos que entretinham e prendiam a atenção. Ao contrário da mãe de Girolamo, Margherita tinha algum conhecimento do latim escrito.
— “A Porca e a Cadela” — começou Margherita, sob o olhar atento do sobrinho. — A porca e a cadela discutiam para ver quem era melhor parideira. “Eu sou a melhor”, disse a cadela, “pois eu consigo parir mais rápido”. “Ora, retrucou a porca, mas seus filhotes chegam ao mundo cegos, de olhos fechados. A pressa é inimiga da perfeição!”
— Por quê, tia?
— Como assim? Se o animal faz o filhote mais rápido, não nasce tão bem. É isso.
— Mas como é parir? — continuou o garoto.
— Depois explico. Vamos dormir. Já é tarde. — E se cobriram com a manta de lã.
Pouco a pouco, nos intervalos das caminhadas, nas esperas de audiências, ou assistindo às aulas do pai, Girolamo começou a adquirir rudimentos de álgebra, grego, latim, retórica, filosofia e poesia. O prazer em acumular mais conhecimento era evidente no pequeno aprendiz.
O pai também sabia como entretê-lo com histórias fantásticas, contos de magos, demônios e bruxas, adivinhações, milagres e traições. O medo da inveja alheia fornecia igualmente relatos reais arrepiantes. Nunca se sabia de onde poderia vir um objeto amaldiçoado.
Giovanni d’Áustria, por exemplo, morreu após calçar sapatos envenenados. A mãe de Henrique IV, após entrar em contato com luvas e coletes perfumados dados por Caterina de Medici, teve o mesmo triste fim, e Henrique de Luxemburgo, por sua vez, agonizou em definitivo após comer a hóstia consagrada embebida em vinho maculado.
— O grande mestre Leonardo di Ser Piero, da pequena cidade de Vinci, meu filho, fez estudos de como obter um pêssego venenoso.
— Como ele fez isso, pai?
Fazio explicou, citando as próprias palavras de Da Vinci, como seria instilada, em um buraco feito no pequeno pessegueiro, um bucho dentro un albusciello, uma solução de arsênico e ácido gálico com álcool, arsenico e risigallo chon acquavite, para tornar as frutas venenosas, a forza di fare e sua frutti velenosi...
— E depois, pai?
— Depois? O pessegueiro morreu! — E deu uma gargalhada.
Alguns momentos dessa vida do dia a dia poderiam ser particularmente mágicos. Um deles certamente ficaria gravado na memória de Girolamo.
— Vou mostrar, filho, como o mestre Leonardo não era apenas matador de pessegueiros.
Caminharam então, em uma bela tarde de outono, atravessando a cidade em direção às portas do sol poente. Deixaram para trás a Igreja do Santo Sepulcro e em seguida a de Sant’Agnese. Não era difícil passar em frente de uma igreja quando se caminhava em Milão. Entre os lugares de culto catalogados dentro dos muros havia pelo menos 194 opções para rezar.
Pai e filho chegaram então à entrada lateral da Igreja Santa Maria delle Grazie e, após a permissão do padre, entraram no refeitório. Fazio não tinha contado o que veriam lá. Adentrando o grande e alto salão, bem acima da altura da cabeça, em uma das paredes podia ser vista a enorme obra de tirar o fôlego, a última refeição de Cristo com os apóstolos. Pintada ao longo de vários anos, terminada pouco antes de Girolamo ter nascido, tornou-se motivo de peregrinação na época. Toda Milão quis ver a obra inesquecível, solicitada pelo duque Ludovico Sforza. Todos queriam ver A Última Ceia.
— Ludovico permitiu isto, filho. Ele gostava muito desta igreja. Inclusive sua mulher Beatrice está enterrada aqui — explicou Fazio. — Não é incrível?
— Nossa, pai, é lindo. Parece que nós estamos dentro da sala.
— Isso é perspectiva do ponto de vista atual, no mundo de hoje, filho. É a nova filosofia.
Então citou Peckam, do livro que tinha traduzido:
— A perspectiva deve ser proposta a todas as disciplinas humanas. Nela se encontra a glória da física.
Olharam por um breve tempo em silêncio. Estarem somente os dois no refeitório era um grande privilégio. Depois Fazio começou a chamar a atenção para os detalhes da pintura.
— Veja como as linhas do teto vão para o fundo, dando essa impressão de estarmos dentro, conforme a sua observação. Mas o mestre tinha seus truques. Lembra o que lemos na Bíblia, no livro de Mateus?
— Qual parte? — indagou Girolamo.
— Et accipiens calicem gratias.
— Ele pegou o cálice — repetiu Girolamo.
— Hic est enim sanguis meus novi testamenti in remissionem peccatorum.
— Deu graças e disse que era o sangue para o perdão dos pecados...
— Correto, filho — aquiesceu Fazio, com um sorriso. — Mas o que está faltando na pintura? Pense nesse trecho que falamos.
— Faltando... — Girolamo pensou um pouco. — O cálice?
— Muito bem! — concordou o pai, orgulhoso.
— Mas por que ele não pintou o cálice?
— Esse é mais um dos segredos do mestre. Ele apenas riu quando eu perguntei. Veja também que os apóstolos estão em grupos de três, deixando Jesus sozinho.
— Mas todos gostavam de Jesus, não gostavam?
— Sim, mas um deles vai traí-lo, lembra-se? Jesus falou isso, e a pintura mostra o momento em que todos estão preocupados. Ele está só, pois vai morrer.
— Ele já sabia que ia morrer?
— Sabia inclusive quem era o traidor: dico vobis quia unus vestrum me traditurus est.
— É verdade. É Judas, não é? Mas onde ele está?
— Olhe da esquerda para a direita, filho. No segundo grupo de três, Judas Iscariotes, Iudae Simonis Scariotis, de cabelos brancos, está com a cabeça entre os dois. Jesus deu o pão a ele, Iesus cum intinxisset panem, e assim Satanás entrou no corpo de Judas, dedit et post introivit in illum Satanas...
— Em que parte está escrito isso, pai?
— Em São João. Mas veja bem o rosto de João, do lado da mão direita de Jesus. Parece um menino ou uma menina?
— Nossa...
Nesse momento entrou o padre Carlo no refeitório, e Fazio agradeceu a possibilidade da visita.
— Muito obrigado, padre, estava explicando ao meu filho como a glória de Deus está presente na pintura pelas mãos do mestre. A inspiração do Senhor.
E novamente citou em voz alta, com um pouco de exagero:
— Omne quod in virtute a Deo fit, dicitur eius inspiratione fieri!
— Claro, claro — completou o padre com discreta impaciência. — Todos já vão entrar. Se me permitem... — E mostrou a porta de saída para os dois.
Fora da igreja, Fazio prometeu ao filho que um dia o apresentaria ao mestre que tinha pintado a obra-prima. Depois de ter visitado Mântua, Veneza e Florença, mestre Leonardo participou de campanhas na qualidade de arquiteto e engenheiro militar, sob as ordens do feroz comandante-chefe da armada papal, César Bórgia, filho do falecido Alexandre VI.
Atualmente Da Vinci morava em Florença, mas, no começo do ano, tinha feito uma visita à capital lombarda, a convite do amigo Charles d’Amboise, governador francês de Milão. Ficou pouco tempo, conforme autorizado pela signoria florentina, mas manifestou interesse em retornar.
— Quem sabe definitivamente — explicou Fazio.
Pai e filho tomaram, então, o caminho de casa. Voltaram discutindo o mistério da imagem de João e a astrologia árabe.
Esses raros momentos de contemplação eram preciosos. Ainda assim, a jornada era bastante dura para o garoto, mesmo que agora já contasse com sete anos. Não havia a companhia de outros meninos da sua idade. Além disso, os atrasos e tropeços eram duramente punidos. As dormidas fora de hora também.
Às vezes Girolamo nem sabia ao certo por que recebera novamente a vara em suas pernas finas. Acompanhar o pai pela cidade, carregando livros e relatórios, talvez fosse uma tarefa por demais exaustiva para aquele momento da vida, a ponto de a tia e a mãe pedirem uma folga maior para o garoto, e não apenas quando Fazio saía da cidade.
Uma vez a cada semana, ou a cada quinze dias, seu pai partia com um servo para Pavia, onde apresentava sua aula pública sobre jurisprudência. A faculdade era uma das mais tradicionais da Europa.
Recentemente, o estudo da medicina tinha deixado de fazer parte do curso de direito canônico, aquele relacionado às leis da Igreja, e do direito civil. Mesmo assim, professores que ensinavam artes médicas ainda recebiam muito menos.
Em Pádua, por exemplo, um professor jurista recebia mil ducados por ano; enquanto isso, o professor de retórica Lauro Quirino, primo distante de Fazio, recebia apenas quarenta ducados. Laurentius Valla, este professor da matéria em Pavia, tinha um soldo ao redor de cinquenta pequenas moedas de ouro.
O tempo passou e nada mudou para o pequeno Girolamo. Apenas o dia da ausência do pai era aquele em que podia acordar sem a urgência do horário. Preferia ficar na cama mais uma, duas, até três horas, já acordado, somente vislumbrando as figuras mágicas que dançavam à sua frente.
Imagens de nuvens, fortalezas, casas, animais e cavaleiros, instrumentos musicais e trombeteiros, soldados e bosques. As figuras ascendiam em semicírculo do fundo do leito, à direita, até desaparecerem do lado esquerdo. Agoniada com o que ocorria, a tia perguntava o que ele estaria olhando:
— Mas o que está olhando tão intensamente? — perguntava, angustiada. Depois o enxotava da cama, no meio da manhã, o sol já alto, com receio de que a experiência produzisse um resultado malévolo.
À tarde, Girolamo sentava-se no degrau em frente de casa e via chegar a amiga Lucilla, de quinze anos. Não entendia como uma garota mais velha e bonita se interessava em conversar com ele.
Talvez não fosse o menino mais feio da região, mas Girolamo, com sua cabeça achatada, pescoço comprido, tórax dividido e pernas finas, não era o modelo de atração para uma pessoa do sexo feminino que já estava em idade de se casar e se fixar a alguém com boas posses.
— Mas você tem um furinho no queixo, Girolamo — disse Lucilla, de forma carinhosa. — Eu gosto de furinho no queixo...
Ela sempre sabia dizer algo que fizesse ele se sentir melhor. Aos oito anos, ele nunca tinha dirigido a palavra a alguém que não fosse seu pai, sua mãe, sua tia e... Lucilla.
Quando estava em presença de outras pessoas, cochichava no ouvido do pai, que transmitia a informação a quem estava com eles. Dentro de casa, por outro lado, era uma criança normal; cantava e falava à vontade.
— Existe uma coisa que me chateia bastante, minha amiga. Às vezes meus pais estão no quarto, eu finjo que estou dormindo e ouço quando eles começam a gemer. Então meu pai bate na minha mãe, eu acho. Não sei por que ele faz isso... Sabe de uma coisa?
— O quê? — pergunta Lucilla calmamente.
— Pensei no que eu disse na semana passada. Não vou me casar, nem namorar. Nem ter filhos — falou Girolamo, com a cara fechada.
— Mas você disse que iria se casar. Talvez o destino lhe reserve três filhos...
— Não sei mais... — E Girolamo ficou intrigado com o comentário de Lucilla. — Só tem uma pessoa com quem eu me casaria.
— Eu, não é mesmo? — rebateu Lucilla, com aquele sorriso que deixava Girolamo desconcertado. Ele ficava perplexo como ela sempre adivinhava seus pensamentos. Nem a tia Margherita adivinhava tanto. Mas logo depois ela fez um semblante grave. — O problema, Girolamo, se nos casarmos, será o destino de nossos três filhos.
— Como assim? Vão morrer todos?
— Não posso dizer — respondeu ela.
— Então pode me dizer se sobrará pelo menos um? — perguntou Girolamo. — Um filho homem?
— Está bem. Digo que restará um, mas talvez não seja o filho mais querido. Tenho que ir — despediu-se Lucilla. — E lembre-se sempre: jamais diga o meu nome.
Desde quando apareceu pela primeira vez, Lucilla foi bem clara ao dizer que ele não poderia pronunciar o nome dela. Girolamo não sabia a razão do pedido, mas não se sentia à vontade para perguntar.
Ele virou-se para trás ao ouvir o barulho dos passos de sua mãe. Ao olhar para o lado, Lucilla tinha ido embora. Ela sempre fazia assim, sorrateiramente.
Na semana seguinte, quando questionada sobre o porquê de nunca esperar sua mãe chegar, de não entrar para comer o bolo da tarde, ela foi direta. E suas palavras não foram doces:
— Não posso ser vista falando com você. Dizem que sua mãe é vagabunda.
Girolamo sentiu um frio desagradável na barriga, mas ainda assim conseguiu se conter. Estava bastante acostumado a segurar o que sentia quando acompanhava seu pai. Além disso, sabia que Lucilla não era uma pessoa que faria esse tipo de comentário por mal. Ela estava apenas deixando-o a par do que acontecia à sua volta. Se ninguém vinha chamá-lo para brincar, não era apenas porque ele se portava como um garoto mudo. É porque falavam mal de sua mãe. Agora estava claro. Naquela tarde, ele se dirigiu a Chiara e perguntou sobre o que tinha ouvido. Precisava esclarecer algo que não compreendia.
— Mãe, você é vagabunda?
Chiara soltou a colher de pau que estava usando para mexer o molho e levou as mãos aos olhos. Começou então a chorar, perdendo um pouco o equilíbrio. Margherita chegou na cozinha a tempo de ampará-la, levando-a para a cama.
Chorou por dez dias e dez noites. Não falou uma única palavra. Nada foi dito. O esclarecimento que Girolamo queria não veio. Restara apenas a sensação terrivelmente desagradável de ver a mãe aos prantos pelo que dissera. Ficou claro que a culpa era dele. Mas, dessa vez, não apanhou de ninguém, nem do pai; fato que o deixou ainda mais intrigado.
No décimo primeiro dia, após se trocar e se preparar para sair, Margherita interpelou-a:
— Chiara, por que sair sozinha toda semana? Não é melhor que eu vá junto?
— Entenda, cara irmã, este passeio eu preciso fazer só. Ando pela cidade. Qual é o problema?
— Eu vou junto, está bem? — falou Margherita, preparando-se para sair também.
— Não! — falou Chiara, de forma incisiva. — Eu posso me cuidar. Se não sair, ficarei louca! — E, arregalando propositalmente os olhos, completou: — Minha irmã quer que eu fique louca?
Margherita se encolheu e percebeu que não poderia fazer mais nada. De qualquer maneira, Chiara estava levando uma vida normal, sem crises de insanidade; tinha perfeita consciência de que perdera a razão em situações críticas mas, passados esses momentos, se restabelecera bem. Então surgiu uma ideia.
— Chiara! — chamou Margherita antes de a irmã sair. — O que acha de falar com Fazio para passarmos uns dias no campo? Ele tem falado frequentemente em irmos conhecer o primo dele em Gallarate. Acho que seria bom para todos nós. O que acha?
Chiara parou na porta, pensou um pouco, sorriu e acenou com a cabeça, dando a entender que tinha gostado da sugestão. Fechou a porta e foi ao endereço aonde costumava ir de tempos em tempos. Esse era seu segredo.
O ano de 1509 começou sem grandes novidades. Em janeiro, a neve paralisara boa parte das atividades da cidade e também as escaramuças militares próximas ao rio Adda, a leste de Milão, uma divisa natural que funcionava havia bastante tempo como demarcação de território entre Veneza e o Ducado Milanês.
Todo ano o inverno espantava as trupes teatrais e musicais que procuravam o reino de Nápoles mais ao sul. Não é à toa que se dava o nome a essa época de tempo de hibernação, o tempus hibernus da língua latina, ou seja, o hibernu. Restavam apenas as missas, as cerimônias religiosas, que congregavam praticamente toda a população da cidade.
À noite, Margherita e Chiara preparavam os tijolos quentes no forno. Eles seriam envoltos em pano para serem colocados na extremidade da cama, entre os pés. Às vezes, o frio era tão intenso que tornava difícil até o ato de virar-se embaixo das mantas. Um palmo ao lado, e o colchão, sem o calor do corpo, parecia a superfície de um lago gelado.
Isso era particularmente preocupante no caso de Girolamo, pois suas pernas não aqueciam com facilidade. Várias vezes Margherita se assustara ao encostar no garoto, tendo a impressão de que tocara um cadáver. Nesses casos, a rouxidão da pele se esvaía somente com massagens e aquecimento.
De manhãzinha, quando saía para trabalhar, Girolamo se maravilhava com a água congelada no canal, mas, se o frio apertava, aproveitava alguns momentos em que o pai estava ocupado para se deitar em trechos de grama de onde as vacas tinham acabado de se levantar. Era possível observar até o vapor saindo do solo.
Se alguém perguntasse ao garoto o que era felicidade, ele certamente responderia que felicidade significava poder se deitar na grama quentinha.
Em meados de fevereiro houve uma jornada terrivelmente desgastante para Fazio e seu filho. O frio diminuiu o suficiente para chover, em vez de nevar. Debaixo d’água, percorreram boa parte da cidade para realizar os compromissos necessários. Evitar que os papéis molhassem, desviar das poças e ter que suportar o frio ainda cortante foram fatores adicionais bastante desagradáveis.
Ao chegarem em casa, Girolamo já apresentava febre. Assim foi por toda a madrugada. Pela manhã, apareceu uma diarreia intensa. A febre continuava tão alta que levava o garoto ao delírio.
Os médicos Barnabo Croce e Angelo Gira foram chamados e, após avaliarem Girolamo, não tinham boas notícias.
— Messer Fazio, madonna Chiara, vejam que os lábios do menino estão excessivamente secos, e os olhos, muito fundos. O coração já está bastante fraco. Os vômitos fazem seu papel de limpar as impurezas humorais da febre intestinal, mas não será suficiente. Minha própria opinião, e também do eminente colega doutor Gira, é de que o garoto não tem mais como resistir.
Margherita apoiou-se no leito e começou a rezar, chorando baixinho, mas Chiara explodiu em raiva.
— Não! Outra vez, não! Saiam daqui! — gritou, expulsando os médicos. — Não sabem de nada! Saiam!
Fazio se desculpou da reação irascível de Chiara, que foi compreendida pelos doutores. Acompanhou-os até a porta enquanto ela colocava a mão no rosto, forçando-se a entender o que estava acontecendo e o que poderia fazer, tentativas vãs ante a confusão mental que tomava conta dela. Fazio voltou-se, abraçou Chiara, que então cedeu, deixou-se abraçar e chorou. Depois ele saiu para um canto, ajoelhou-se e pediu a intervenção de São Jerônimo.
— Prometo não castigá-lo mais — rezou. — Meu santo protetor, protetor de meu filho, traga-o de volta...
Girolamo não gemia mais. Com os lábios pálidos como a cera, sem forças para chorar, apenas respirava ofegante. Fazio e Chiara saíram de casa abraçados e dirigiram-se à paróquia que frequentavam para falar com o padre. Ele ainda não tinha chegado. Miraram os túmulos ao lado da igreja, e já decidiam em que local ele poderia ser enterrado quando, nesse momento, como há algum tempo não acontecia, o espírito familiar de Fazio aproximou-se e soprou em seu ouvido: “Ofereça a água livre de impurezas. Quando aceitar, estará curado.”
— Chiara, o que fazemos aqui? Ele precisa de nós em casa, vamos voltar! — E os dois se deram conta de que Girolamo ainda estava vivo.
Ao chegarem, Margherita adiantou-se, animada, explicando o que acontecera:
— De pouquinho em pouquinho, ele está bebendo a água da fonte, Chiara, e não vomitou desde que saíram. Venham ver.
Fazio reconheceu o sinal dado por seu espírito e sorriu. Não perderia seu filho, a razão de sua vida. Dali por diante, pensou, deixaria que dormisse o quanto quisesse, não castigaria suas pernas e não exigiria mais do que pudesse dar. Chamaria um servo para fazer o serviço de peso. Que cada espírito seja em louvor do Senhor, pensou, de olhos fechados, fazendo o sinal da cruz. Aquele que é a fonte de toda virtude.