Posfácio
Como especialista em Alergia e Asma, deparei-me com um artigo científico da década de 1940 que comentava o que poderia ter sido o primeiro registro histórico de uma intervenção terapêutica antialérgica eficiente, a chamada higiene ambiental, em relação a um paciente asmático: afastar as penas do quarto. O médico em questão chamava-se Girolamo Cardano. O paciente, John Hamilton.
Achei interessante a citação e, a título de curiosidade, fiz sua inclusão nas aulas que dava para colegas em várias regiões do Brasil. Percebi que o nome do médico renascentista era completamente desconhecido em meu meio profissional. Mesmo especialistas de reputação internacional nunca tinham ouvido falar sobre aquele relato.
Ampliei minha pesquisa e gradativamente me apaixonei pelo tema, que tinha interface com várias áreas do conhecimento humano. História, Filosofia, Artes, Matemática, Psicologia, Medicina... Mais incrível foi conhecer a trajetória de um médico que chegou ao fundo do poço quando jovem, atingiu o ápice e teve nova queda. Uma sequência digna de um épico hollywoodiano de quatro horas de duração.
Para o historiador especialista em Renascença Anthony Grafton, Cardano reviveu o mito de Narciso, ao reler seus livros inúmeras vezes, recontar sua vida em várias versões e se perder no prazer da inspiração de seus próprios escritos.
Mesmo não sendo italiano, eu contava, a meu favor, minha experiência familiar, que incluía uma mãe especialista em Matemática, um pai ateu, uma tia freira, um tio professor de História e um avô barbeiro-cirurgião (que nos tempos de Getúlio Vargas tinha o título de técnico em farmácia).
Também deu-me confiança em encarar este projeto a vivência que tive na Europa. Morei e trabalhei na França, na Inglaterra, na Suíça e fiz retiro espiritual em conventos de Assis e Milão, onde aprendi um pouco da língua italiana. Fiquei mais surpreso ainda em descobrir que tinha passado exatamente pelos mesmos lugares que Cardano conheceu em sua viagem à Escócia.
Escrever outra biografia seria restringir um thriller tão palpitante. Decidi-me então por enfrentar o fio da navalha do romance histórico, com o calcanhar de Aquiles de não ser um historiador.
Com uma agenda cheia entre compromissos profissionais e intensa participação familiar, tive que subtrair duas horas de sono e, por mais de um ano, escrever durante a madrugada.
Para a empreitada, utilizei um narrador que, à exceção do capítulo final, funcionou como uma sombra do protagonista. Importante: não tinha conhecimento do futuro. Dessa forma, compartilhava os mesmos conceitos da época e não poderia dispor de um linguajar contemporâneo. Para não comprometer a fluidez, evitei parênteses, aspas e notas de rodapé. Não resisti à tentação, no entanto, de inserir três referências posteriores ao século XVI: uma peça de teatro, um romance histórico e uma obra cinematográfica, que emprestaram algumas palavras à narrativa.
Quatro personagens foram criados. O primeiro foi Lucilla, a versão incorpórea de Lucia. A vidente Di Filippi representou os inúmeros relatos premonitórios registrados que chegaram até nós, os chamados “portentos”. O barbeiro-cirurgião Achilles deu sentido à preferência do protagonista pela Medicina, em detrimento do caminho natural para o Direito. Cardano não relata em seus escritos a razão para a decisão. Por fim, e mais importante, o anglo-italiano Kenneth, que acompanhou a vida do médico, colaborando para o entendimento do contexto britânico, para a tradução da palestra sobre o livro De Consolatione e participando da fictícia revelação final.
Um quinto personagem merece menção: o amigo de infância Ambrogio Varadei. Não existe praticamente nada sobre ele, apenas um comentário na autobiografia: “meu amigo de juventude. Juntos jogamos xadrez e nos divertimos ouvindo música”. Tomei a liberdade de criar uma trajetória de aventura, que unisse a Europa às novas terras do além-mar.
Não há registro do encontro de Cardano com Aldo Manuzio, Nostradamus, Villegagnon, Ambroise Paré, ou Montaigne. É certo que estiveram nos mesmos lugares no mesmo período. Podem ter se encontrado. Ademais, o círculo de pessoas letradas na época era muitíssimo mais restrito do que hoje e Girolamo Cardano tornou-se uma figura bastante conhecida nas cortes de diversos países.
O nome Andreas Vesalius é familiar aos médicos, pois representa o olhar moderno da Anatomia. Correspondeu-se com Cardano, que, no entanto, relatou não conhecê-lo pessoalmente. Desta forma, não há o encontro dos dois neste livro.
O debate com Branda Porro e a surpresa geral por ele ter errado uma determinada palavra foram relatados pelo próprio Cardano, mas a discussão sobre a obra de Homero é fictícia. Apenas alguns trechos da tradução de Livius Andronicus para a Odisseia chegaram aos nossos dias.
Exemplos de escritos e desenhos retirados de livros da época compõem as ilustrações, com exceção do rascunho feito à mão de um eixo do tipo cardã. Não se sabe com certeza que figura inspirou a criação da junta automotiva atual.
Durante o processo de criação, utilizei De Vita Propria Liber, a autobiografia do protagonista, checando simultaneamente as traduções em inglês e italiano com o original em latim, do qual selecionei algumas frases. O ostracismo no qual caiu a figura de Cardano pode ser explicado, pelo menos em parte, pelas acusações de irreligiosidade que proliferaram nos séculos seguintes e pelo prefácio escrito por Gabriel Naudé para o livro, em 1643, que considerou o médico louco e, possivelmente, possuído pelo diabo.
Além dos livros que serviram de base para a ambientação histórica, também reli e comparei, em cada etapa do projeto, seis das biografias disponíveis.
O livro de Henry Morley, em edição inglesa de 1854, é ponderado e informativo. Contém a tradução de muitos trechos do livro de preceitos para os filhos, escrito por Cardano. Pode ser lido no Google books.
O estudo biográfico do britânico William George Waters, do final do século XIX, é, no geral, mais envolvente, excetuando alguns longos trechos da autobiografia de Cardano que são inseridos no decorrer do livro. A Forgotten Books fez uma reimpressão recente, que pode também ser encontrado gratuitamente na internet (Projeto Gutenberg) e no Kindle.
A obra de Angelo Bellini, de 1947, é rica em detalhes e julgamentos morais. Curiosamente, contém muitos diálogos, compondo, dessa forma, uma ficção dentro da biografia, tarefa que dificilmente um historiador atual veria com bons olhos.
As três biografias citadas caem em um pós-clímax, após os eventos principais da derrocada de Cardano, que é difícil de transpor.
Oyster Ore, em 1953, recontou a história de Cardano, do ponto de vista dos matemáticos, no livro The Gambling Scholar. A grata surpresa fica por conta da segunda parte, em que foi acrescentado, na íntegra, traduzido para o inglês, o livro De Ludo Aleae, sobre os jogos de azar.
Em 1969, Alan Wykes escreveu uma biografia mais sucinta, bastante agradável de se ler. Discute a sexualidade de Cardano, uma questão não abordada anteriormente (para a qual não há uma certeza definitiva) e cita Maimônides como uma fonte importante para o médico em sua tarefa de tratar a asma do arcebispo escocês. Wykes comete, no entanto, uma falha imperdoável: coloca a figura de Tartaglia como um inimigo atormentador até o fim da vida de Cardano. O problema é que o matemático de Brescia tinha morrido muito antes.
A biografia escrita por Anthony Grafton, publicada em 1999, é espantosa. Focando do ponto de vista astrológico, Cardano’s Cosmos é baseada em uma pesquisa longa e aprofundada. Trouxe à luz vários aspectos novos e interessantes do médico que tinha banners com a inscrição Tempus Mea Possessio em seu gabinete de trabalho. O tempo está em minha posse, acreditava.
Entre aqueles escritos pelo próprio Cardano, foram importantes em minha pesquisa consultar os livros Imortalidade da Alma, em espanhol (um PDF gratuito que pode ser encontrado no site italiano do Projeto Cardano – cardano.unimi.it), De Consolatione, De subtilitate e os já citados Ars Magna, De Ludo Aleae e Praeceptorum ad filios. Para quem deseja mais informações sobre a bibliografia, acessar o site www.raulemerich.com.br, no setor “livros”.
Aqui valem parênteses: quase todos os livros de Cardano são encontrados no conjunto das obras completas (Opera Omnia) que foi publicado no século XVII, disponível na internet, mas muitos ainda estão em latim, não traduzidos. Devido a isso, pode-se especular que ninguém até hoje tenha dominado toda a obra do genial escritor.
Uma edição de 500 exemplares do livro de preceitos foi editada na Itália (Precetti ai figli, em lâminas de papel vergê) em comemoração ao quinto centenário do nascimento do médico de Pavia.
O livro da Consolação (Three books of Consolation, Londres, B. Aylmer) vale a leitura, apesar de ser (ou exatamente devido a isso) uma tradução de 1683. A grafia e a construção de frases em um inglês do século XVII foi emprestada e adaptada para a fala de Kenneth, no momento em que coloquei Girolamo Cardano fazendo uma palestra na Escócia.
Para quem deseja o prazer (e tem a possibilidade) de portar uma edição original, publicada bem perto da época de Cardano, a Amazon.com disponibiliza um exemplar do livro De Subtilitate, de 1611, por 17 mil dólares. Uma bagatela.
Raul Emerich.
São Paulo, maio de 2012.