América
O jovem Girolamo já tinha absorvido os seis livros de geometria de Euclides e as histórias de Homero. Desejava a nova edição do Livro das maravilhas, que narrava a fantástica viagem de Marco Polo, a poética de Aristóteles e, sem que ninguém soubesse, A arte de amar, de Ovídio.
Lembrava-se também do livro sobre as coisas celestes, De rebvs coelestibvs, de Giovanni Pontano, muito falado pelo tio dom Giacomo. Ele dizia, e repetia, que desde a primeira linha já havia referência ao genial Aristóteles, o questionador incansável sobre o significado das coisas da natureza: Aristoteles rerum naturae indagator...
Girolamo gostava particularmente dos livros impressos na versão octavo, aqueles que tinham um palmo de altura. Eram mais práticos de ler e de carregar, os chamados libri portabili.
Seu pai, ao contrário, gostava dos tradicionais fólios. As edições de fólio eram livros menos grossos, fáceis de empilhar, mas tinham páginas grandes demais para as mãos pequenas de Girolamo.
Dizia-se que o editor Aldo Manuzio, de Veneza, tinha inventado o octavo. Ele não confirmava, mas também não negava, aproveitando a fama em seu benefício.
Outra invenção sua, esta plenamente aceita, foi a mudança da letra, que, na sua gráfica, se tornou bem mais fina e delicada, permitindo mais palavras serem colocadas em uma página, resultando em diminuição dos custos.
Alguns passaram a chamar a escritura de “aldina”, outros de “letra d’Itália”. Para a maioria, no entanto, o tipo inovador era chamado de “itálico”.
Naquela semana, Aldo Manuzio ficou hospedado na casa da família Cardano. Girolamo, como acontecia nessas situações, foi dormir no chão, ao lado da cama dos pais. Mas não se importava. Adorava presenciar as conversas de Aldo com o pai. Ele sempre tinha algo interessante a dizer.
— O dia que vier a Veneza eu mostro nossa sala de impressão — explicava Aldo. — É magnífica — disse, empolgado, um falante de voz grossa e impostada, barriga volumosa e um raminho de romã sendo invariavelmente mastigado no canto da boca.
— Octavo? São 16 páginas impressas em um papel. Mudam-se os tipos e depois imprime-se do outro lado. Assim temos uma folha com frente e verso.
Fazio abria o vinho e observava o interesse do filho na conversa. Girolamo não piscava. Aldo pegou um papel e dobrou uma vez, ao meio. Dobrou novamente.
— Se pararmos por aqui, teríamos um fólio, mas vou dobrar novamente. — Aldo ajeitou com cuidado a dobradura. — Veja, a terceira dobra diminui bastante o papel e nos dá 16 folhas. Agora é só cortar para deixá-las todas de maneira uniforme.
Girolamo estava impressionado, mas Aldo Manuzio tinha mais trunfos a mostrar. Pegou um livro que estava em cima da arca, folheou um pouco e encontrou a parte que procurava.
— Está vendo este símbolo aqui? A vírgula com um ponto em cima?
— Sim, vejo, mas o que há de interessante? — perguntou Girolamo.
— O que há de interessante? — Aldo sorriu. — Pois fui eu que inventei! Notei que a vírgula era insuficiente para algumas interrupções em que o ponto era excessivo. Vírgula mais ponto, minha inovação; o símbolo que representa a visão do futuro. Quando vir este símbolo, poderá lembrar-se de mim.
— Mas assim vai tirar minha concentração da leitura — queixou-se, de forma amigável, Girolamo. Fazio continuava a observar, sem querer interromper o diálogo do editor com o filho.
— Vai logo se acostumar, não se preocupe... — emendou Aldo. — No fim, é só colocar um ponto. Nós fizemos isso também. No fim do pensamento, um ponto.
— Qual livro foi feito no seu escritório de impressão? — perguntou Girolamo.
— Muitos! Gregos, latinos e até edições italianas! — Aldo sorriu. — Os livros impressos estão tomando o lugar dos manuscritos. É só constatar com qualquer vendedor de livros, mas a verdade é que interrompemos momentaneamente nossa produção por causa da maldita guerra. Agora que a Liga Santa é contra a França — Aldo levantou as sobrancelhas —, e não contra a Sereníssima, podemos retomar nosso trabalho. Abaixo os franceses! — E ergueu o copo para um brinde, sendo acompanhado pelo pai de Girolamo.
— Quem encontrará aqui em Milão? — perguntou Fazio, tomando o primeiro gole do delicioso vinho moscatel da região de Asti.
— Milão não é mais como antigamente, mas aqui ainda circulam pessoas interessantes. Vou me encontrar com o livreiro Niccolò Gorgonzola, jovenzinho que herdou o comércio do pai, e também com o padre Basílio. Ele fará o contato com um professor de Wittenberg. — Aldo colocou a mão no queixo, puxando pela memória. — Lembra-se de quando falei daquele teólogo da Germânia, Martin Luther, que em nosso país começaram a chamar de Lutero?
— Não sei se me lembro... — respondeu Fazio.
— Ele estava de passagem por Milão, há alguns anos, na mesma semana em que eu ia para Pavia. Dormiu no convento da Igreja de San Marco. Fiquei impressionado com o domínio que ele tinha da Bíblia. Além disso, era fluente no latim eclesiástico. O fato é que talvez façamos algum trabalho juntos. — Aldo fez uma pausa. — Lembro-me de que ele estava um pouco indignado com a Igreja daqui. Luxúria, lassidão, comércio de absolvições, aquela coisa toda.
— Isso é porque ele ainda não tinha ido até Roma... — completou Fazio.
— É verdade! — Aldo deu uma gargalhada que ressonou por toda a casa.
— E o Arentino di Perugia? Vai fazer um livro dele? — deixou escapar Girolamo, para logo depois se arrepender do comentário.
Fazio nunca tinha ouvido falar, mas Aldo arregalou os olhos. Arentino era um jovem que tinha espalhado manuscritos de poesias eróticas, que circulavam de mão em mão. O pai de Ambrogio tinha trazido um exemplar após uma viagem a Veneza.
— Bons, esses escritos. — Aldo deu uma risada maliciosa. — Algum dia, quem sabe, farei, sim, um livro com o material dele.
Chiara chegou com a compra de farinha, cumprimentou a todos e preparou, junto com a criada, uma deliciosa papa de grão-de-bico, acompanhada de pedaços de carne de carneiro por cima de grossas fatias de pão preto. A pimenta em pó deu um sabor especial ao modesto banquete, bastante elogiado pelo visitante.
No dia seguinte, Aldo iria de tarde à taverna do GianCarlo para presenciar a leitura das cartas de Américo Vespúcio. Eram textos que descreviam suas viagens e o contato com índios em terra desconhecida, considerada a quarta parte do mundo. Pediu permissão aos pais e fez o convite a Girolamo, que prontamente aceitou.
Nenhuma história de viagem estimulava o imaginário tanto quanto o relato de Marco Polo, mas havia uma certa curiosidade em relação ao que o aventureiro de Florença teria visto em terras novas. Em parte porque já circulara a carta que tinha recebido em Veneza o título de Mundus Novus, um razoável sucesso editorial, publicada em diversos países.
Girolamo acordou com grande expectativa e contou o fato ao amigo Ambrogio, que implorou para acompanhá-los, conseguindo igualmente a autorização da mãe. Os dois amigos comeram algo antes de partir. Na hora do almoço, saíram os três, Aldo Manuzio, Girolamo Cardano e Ambrogio Varadei, em direção à Porta Argentea, uma entrada que continuava na estrada para Veneza. Tinham tempo, então decidiram ir a pé.
No caminho, Aldo perguntou a Girolamo como ele adquirira as duas marcas fundas na cabeça, do lado esquerdo das têmporas, e ouviu o relato dos eventos que faziam com que o garoto interpretasse a casa onde moravam como amaldiçoada.
Primeiro foi a queda da escada, com o martelo na mão. O ferimento no lado esquerdo da cabeça produziu séria lesão no crânio, além de uma escara que nunca mais permitiu a pele voltar ao normal. Um mês após, quando estava sentado no umbral da porta da rua, uma pedra do tamanho de uma noz rolou do beiral do telhado de uma altíssima casa ao lado e acertou-o em cheio na cabeça, produzindo uma volumosa descarga de sangue. Parecia que ele estava fadado a ter que usar uma touca na cabeça, assim como seu pai.
Mas nem todos os eventos que circundavam a vida de Girolamo eram trágicos. Ele contou a Aldo como, no último verão, em Gallarate, interrompeu o caminhar, atravessando imediatamente a rua e obrigando os amigos a seguirem o mesmo percurso. Exatamente naquele momento em que atravessavam desabou parte do segundo andar da casa, esmagando a traseira da carroça que estava parada em frente. Todos ficaram impressionadíssimos.
— Diríamos, desta forma, que o senhor tem alguns poderes premonitórios, estou correto? — perguntou de forma bem-humorada o editor veneziano, quase chegando à taverna.
— Pode-se dizer que sim — respondeu o garoto, inabalável.
Penetraram na barulhenta e escura taverna, sendo logo recebidos por um dos servos, que ofereceu três lugares na bancada já quase cheia. Aldo foi à cozinha escolher a comida e discutir o preço do almoço. Como sempre, ficava bravo quando tentavam cobrar mais pelo fato de ele não ser da região. Pediu três cervejas e divertiu-se ao observar os dois garotos tomarem a bebida fazendo cara feia.
Menos de uma hora depois chegou Massimo, com a roupa própria de moleiro, ou seja, lã branca, em capuz e capa. Acompanhado de GianCarlo, o coletor de dízimos da paróquia, apresentaram o material que seria lido. Certo silêncio se fez no recinto quando explicaram que tipo de relato seria.
— Caros amigos e admiradores das letras e das histórias de nossa terra. Agradeço ao grande Massimo por podermos estar aqui — começou o moleiro. — Vou ler a chamada Lettera a Soderini, ou seja, a Quatuor Americi Vesputii Navigationes. Isso mesmo: quatro navegações feitas por nosso conterrâneo de Florença, representando a casa bancária de Lorenzo dei Medici, amigo de Piero Soderini e descobridor do novo mundo. Podemos nos orgulhar, povos da Itália, por termos o nome de um italiano gravado para sempre nas novas terras, agora chamadas de América...
— América? — sussurrou Girolamo para Aldo. — Não é Índia?
— Índia já conhecemos, rapaz, esse é um lugar desconhecido.
— Ah...
— ... E partimmo del porto di Calis a di 10 di maggio 1497, e pigliammo nostro cammino per el gran golfo del Mare Oceano, partimos em 10 de maio e tomamos o caminho do Mar Oceano — continuou Massimo, sob o olhar atento de todos na taverna, relatando como em 27 dias o grupo de naus chegou a certa terra julgada firme, distante mil léguas das Ilhas da Grande Canária, para lá do que se conhecia na zona tórrida, fora do Ocidente habitado.
Esse fato, por si só, já causaria estupefação. Devido ao calor, conforme afirmação de Ptolomeu, a zona tórrida não permitiria a presença de vida.
A audiência tinha uma grande parte de pessoas simples. Aldo adorava eventos como esse, pois poderia sentir, bem próximo, o impacto de publicações que caíam no gosto do público.
O relato continuou até o ponto de as naus chegarem à orla da praia, avistando uma multidão, muitos dos quais, desnudos, foram nadando até encontrar os navegantes.
— Tutti disnudi, uomini comme le donne, homens e mulheres, senza coprire vergogna nessuna, sem cobrir as vergonhas...
— Todos sem roupa, messer Aldo? — assustou-se Ambrogio.
— Sim, isso mesmo, partes pudendas à mostra. Continue prestando atenção. — Aldo fez sinal para que os dois meninos ficassem em silêncio.
O texto falava sobre o tipo físico das pessoas encontradas por Vespúcio, com estatura mediana, pele tendendo ao vermelho, belas cabeleiras, corpo totalmente sem pelos e face larga, como a dos tártaros. A comparação com os habitantes do Oriente causou outro burburinho entre os presentes.
Mais adiante a carta dava detalhes dos novos povos, dizendo que não observavam nenhuma justiça, pois não puniam os malfeitores. Os pais não educavam e não repreendiam os pequenos. Apesar disso, não se viam discussões entre eles. Alimentavam-se quando tinham vontade, sem horas precisas, sentando-se no chão, sem toalhas ou guardanapos.
Essa parte deixou Girolamo extremamente interessado. Imaginou como o mundo seria perfeito se os pais não punissem os filhos, se não houvesse hora para acordar ou para comer. O relato deixava claro que aquela maneira simples de vida era verdadeiramente a ideal. Uma vida repleta de paz.
Mas o moleiro continuava sua leitura, explicando que não havia matrimônio, non usano infra loro matrimoni. Os homens poderiam ter quantas mulheres desejassem, ciascuno piglia quante donn’e’ vuole, para depois repudiá-las, se quisessem, sem haver desonra, quando le vuole repudiare, le repudia, senza che gli sia tenuto ad ingiuria o alla donna vergogna.
Se antes Girolamo estava interessado, agora seu grau de excitação estava no auge. La loro vita giudico esser epicurea, dizia o texto. Sendo a vida dos nativos julgada como epicúria, ele se imaginou sentado à beira do mar, recebendo o carinho de lindas mulheres, cercado de livros, uvas, pão branco e moedas de ouro. Que maravilhosa conjunção!
O prazer do amor físico junto ao prazer da boa comida e dos bons livros à hora que quisesse.
Não era exatamente o que o filósofo Epicuro tinha pregado em seus escritos, nem o exemplo que dera ao viver comedidamente em uma comunidade perto de Atenas muitos séculos antes. Não importava. O que contava era vislumbrar a possibilidade de uma nova vida.
Ambrogio, de olhos arregalados, também dava mostras de estar singrando os mares com a força do pensamento. Surpreendente também era constatar que no Novo Mundo não havia os animais que conheciam.
— Non tengono cavalli, né muli, né asini, né cani, né di sorte alcuna vaccino.
— Nem gado? — sussurrou Girolamo. — Que estranho...
Mas logo o registro de Vespúcio deu uma guinada repentina, ao relatar que os selvagens comiam carne de homens e mulheres de maneira animalesca. Mangion poca carne, salvo che carne di uomo, si femine come maschi. Ambrogio e Girolamo ficaram embrulhados e engoliram em seco a imagem dourada que tinham feito daquele lugar. A desumanidade transporia qualquer costume conhecido.
— Sono tanto inumani che trapassano ogni bestial costume.
O burburinho aumentou, com sinais de desgosto na plateia, que nem por isso desejava perder cada detalhe.
Então a história tomou ares de aventura, quando os europeus encontraram mais adiante outra população, hostil, que os atacou de surpresa. Jovens que tinham se aproximado em pequenos barquinhos feitos de troncos de árvore subitamente levantaram as lanças que estavam escondidas e investiram sem piedade.
O grupo das naus se defendeu com valentia, afundando os barcos e promovendo uma grande matança. Vários entre eles morreram e muitos se feriram. Moriron di loro circa 15 o 20, e molti restoron feriti. Duas moças e três homens foram feitos prisioneiros.
Mais adiante, Vespúcio e seus companheiros se maravilharam ao encontrar uma pequena embarcação que restou da fuga de outros indígenas, assustados com o som do disparo das bombardas.
No barco estavam rapazes que tinham sido capados e apresentavam a ferida ainda fresca. Li avevano cappati, dizia o relato, chi tutti eron senza membro virile e con la piaga fresca. Nesse momento, a idílica terra criada na imaginação dos dois amigos sentados na mesa da taverna desvaneceu-se completamente.
Circular entre lindas mulheres sem o membro masculino, ver filhos copulando com a mãe, ser atacado por clavas pontiagudas pelas costas, engalfinhar-se com bestas de unhas cortantes e comer a carne de outras pessoas não estava nos planos deles, exceto pelo fato de que, ao contrário de Girolamo, Ambrogio tinha ficado atraído pela aventura de atravessar o Mar Oceano.
Aldus Manutius, como ele se intitulava em suas edições, trouxe os garotos para casa antes de encontrar-se com padre Basílio. No caminho, discutiram sobre o que tinham ouvido. Girolamo achara interessante a explicação preliminar de que, como já existiam três continentes com nomes de mulheres — Europa, Ásia e África, derivados de deusas mitológicas —, nada mais natural que batizar de forma feminina o quarto mundo.
Vespúcio, Amerigo Vespucci, seu descobridor, deveria, naturalmente, receber a honra. Vespúcia seria muito estranho, não soaria bem, tinha salientado o moleiro naquela tarde. Melhor mesmo América, como foi escolhido por geógrafos franceses. Mas Aldo torceu o nariz para as explicações.
— Rapazes, muita atenção com o que se ouve por aí — ponderou. — Primeira coisa: provavelmente os nomes dos continentes não são derivados de mulheres, mas termos que vêm de línguas antigas que designam lugares do nascer e do pôr do sol, se não me engano.
Ambrogio e Girolamo ouviam com atenção. A opinião de Aldo, um conhecedor das letras impressas, tinha um peso razoável. Eles sabiam disso.
— Mas não é só isso. É possível que tenha sido um italiano, ou mesmo um espanhol, quem descobriu o novo mundo. Já me disseram que o nome América foi até retirado dos novos mapas que fizeram na França. Podem ter certeza: a palavra América vai cair em desuso.
— Nossa, messer Aldo — espantou-se Ambrogio —, e como vai se chamar então?
— Talvez Ambrògia, talvez Giròlama — e deu uma boa gargalhada. — Não tenho a mínima ideia, senhores. O tempo dirá.
— Mas a carta a Soderini foi incrível — admitiu Girolamo. — Que viagens perigosas, não é mesmo? Quantas pessoas diferentes, quantos animais que Plínio não tinha nem ideia que existiam.
— É verdade — concordou Aldo Manuzio. — O relato é muito bom. Digno de um livro de grandes vendas, como de fato tem sido. E é uma pena que o tenham lançado nessa versão de pequeno panfleto. Só tem um detalhe — continuou, fazendo cara de dúvida: — O texto é uma mistura de escritos novos com partes copiadas do Livro das maravilhas, de Marco Polo, e de outra carta do próprio Vespúcio, a Mundus Novus. Fica difícil saber quem a escreveu realmente e quanto daquilo é verdade.
Poucos estavam preocupados com os detalhes levantados por Aldo Manuzio. Queriam aventura, emoção e divertimento. A Lettera a Soderini trazia os elementos necessários ao estímulo da imaginação, uma maneira de ir a um lugar distante e fugir, pelo menos um pouco, das agruras do cotidiano.
A vida não era fácil para os pedreiros, diaristas agrícolas, cardadores e operários tintureiros. O endividamento era crônico. Aqueles que não conseguiam pagar suas dívidas eram chamados de impotenti. Muitos passavam necessidades. Pelo menos havia as festas para alegrar os que já não tinham esperanças de sair daquela situação.
Corria o ano de 1518. As escaramuças eventuais, bem próximas a Milão, entre tropas francesas e suíças — estas provisoriamente leais a Massimiliano —, não colaboravam para o cenário melhorar. Menos ainda os eventos recentes. O papa Júlio II tinha acabado de morrer, algum tempo após iniciar o Concílio de Ferrara, uma medida inicial para tentar reverter os abusos da Igreja.
Os povos da Itália tinham total ciência dos excessos, mas também se orgulhavam de a Igreja de Roma ter seu coração fixado lá. Houve algumas décadas em que o papado tinha se transferido para Avignon, é verdade, mas já tinham se passado dois séculos do que muitos consideraram uma espécie de exílio.
Além disso, havia um grupo grande de cardeais propensos a acreditar que a partir de agora o chefe da Igreja deveria ser um italiano e tão somente um italiano.
O cardeal Giovanni Lorenzo di Medici, filho de Lourenço, o Magnífico, pertencia à poderosa família responsável por alçar Florença ao seu auge econômico e artístico um pouco antes da nau de Vespúcio ter singrado os mares.
Giovanni tornou-se o novo papa em 1513, passando a chamar-se Leão X. Contava a lenda que uma família de famosos médicos do século XIV, ou seja, i medici, tinha ajudado as vítimas da peste negra em sua fase mais terrível e fundado em Florença um hospital.
O fato é que foram as artes das finanças e da política que alavancaram o poder entre os membros da família, tornando-os riquíssimos banqueiros e astutos controladores da sucessão das senhorias. O regime republicano, em suma, ficava nas mãos dos Medici. Era um processo complexo, sempre sujeito à interferência de clãs opositores, mas habilmente dominado pela poderosa família.
Mas, recentemente, os Medici tinham perdido o poder e o recuperado de volta a duras penas, com Piero Soderini designado gonfaloneiro vitalício. Niccolò dei Machiavelli detivera um cargo de decisão nas mãos por alguns anos, mas acabara acusado de um complô. Foi preso, torturado e expulso da cidade. Uma sensação de retrocesso estava no ar. A produção de manufaturas apresentava nítido declínio. O último navio enviado para a Inglaterra tinha partido em 1480. Muitos bancos florentinos tinham transferido suas sedes para Lyon.
Um dos produtores conhecidos em Milão, e que também tinha ido à falência nesse período, era um Cardano, pai do garoto Niccolò, um primo conhecido de Girolamo. No meio do ano, em pleno verão, um mensageiro chegou esbaforido trazendo a notícia que Niccolò Cardano tinha morrido durante a madrugada. Chiara gostava bastante do garoto. Girolamo também tinha afeição por seu pequeno primo. Geralmente encontravam-se na missa, a que assistiam juntos.
Aprontaram-se todos e foram à casa onde Niccolò estava sendo velado. Chiara chegou com olhos inchados de choro; foi junto Evangelista, filho da irmã falecida de Fazio, que o convidou a morar com eles. Ter em casa um clérigo tão correto e afetuoso como Evangelista era muito bom para estimular Girolamo a, quem sabe, fazer as escolhas certas.
A primeira coisa que chamou a atenção de Girolamo, quando chegaram, era a movimentação. Tanto do lado de fora como de dentro da casa. Não parecia estar relacionada a um velório. Pessoas conversavam animadamente, alguns bebiam e contavam piadas. Uma deliciosa sopa estava sendo servida para todos os presentes.
Outro detalhe: à parte o preto das roupas, havia muitos tecidos de um maravilhoso vermelho vivo, do mesmo tom usado pelos cardeais. Estavam sobre o corpo do menino, envolvendo o sofá e sobre as cadeiras.
O pai de Niccolò Cardano tinha uma tinturaria que pintava os tecidos vindos do norte para depois revendê-los por toda a Europa. Até a queda de Ludovico Sforza, poucas cidades possuíam uma indústria de tingimento do vermelho tão reconhecida como as de Milão e Florença.
A derrocada do negócio resultou em um empobrecimento rápido, com muitas dívidas. O orgulho permanecia. Poder ostentar um velório abastado e concorrido era importante para a imagem da família, que tentava se reerguer comercialmente. O vermelho era o símbolo dessa esvaída riqueza.
Nos últimos séculos, o que estava por trás do sucesso dos povos da Itália do norte, além das viagens dos homens de Gênova e de Veneza, era um adstringente bastante conhecido pelos médicos: o alume. Era usado em remédios, mas também evitava o apodrecimento precoce de produtos animais; daí ser igualmente usado na indústria do couro. Mais que isso, sua função de mordente, de fixador do corante, permitia um produto inigualável.
A rocha alunita, matéria-prima do alume, era importada de Castela, da Ásia Menor e extraída em vários pontos da península italiana. A invasão turco-otomana no Levante, alguns anos atrás, tinha atrapalhado o abastecimento do material nobre. Anatólia, Rumeli, Wallachia e Belgrado, esta banhada pelo Danúbio, faziam parte do novo império. Uma cunha penetrava fundo na Europa. O mar Egeu estava quase completamente controlado pelos turcos.
Seguiram-se as guerras dentro da Itália para controle de jazidas, a redução da importação de lã inglesa, a quebra de bancos, a decadência de Veneza e a invasão de forasteiros.
Até a Igreja lutou contra Florença, precipitando a falência de muitos. Em 1478, a filial dos Medici em Milão foi fechada. Terminava um ciclo. Alguns ainda sobreviviam a duras penas. Ali, sobre o corpo do menino, estava o símbolo de uma era que se fora.
Girolamo se aproximou do caixão aberto, recheado de flores, e estranhou aquele corpo imóvel, pálido. Por que não se mexia? Conhecia aquele rosto, lembrava-se da voz que saía daqueles lábios agora sem cor. O som alto das conversas ao redor desaparecera dos ouvidos do rapaz, que se via estupefato pela evidência da morte.
Aguardou mais um pouco. Talvez os olhos fossem se mexer, revelar o castanho-claro da sua cor. Talvez um sopro de vida. Talvez um sinal da alma pudesse aparecer naquele momento, algo que desse a certeza de que Niccolò ainda continuasse, ainda que transparente, ainda que sobrenatural.
O jovem Girolamo voltou para casa absorvido pelo pensamento sobre a finitude humana. A visão que teve de Niccolò, deitado e imóvel, sem proferir mais nenhuma palavra nem fazer as birras e as brincadeiras, mesmo que fossem um pouco estúpidas e próprias da idade, foi um choque e tanto, também pelo fato de perceber que os pais dele estavam mais preocupados com a recepção aos convidados do que com a memória do falecido.
As semanas se passaram, e ninguém mais falava de Niccolò. Ele não produzira nenhuma obra, nenhum escrito, nenhuma pintura, nada. Não deixara sua imagem registrada em tela, ou gravada em uma moeda. Estava desaparecendo para sempre, sem deixar rastros. Era uma realidade que não estava sendo notada por ninguém. Não se falava dele. Não era mais lembrado. Em breve, não faria parte nem mesmo do passado, e essa perspectiva assustou Girolamo.
Pela primeira vez, escreveu em seu livro o motivo da angústia: como farei para emergir sobre os outros, eu, que não tenho riqueza, saúde, robusteza ou excelência em algum dote pessoal? Não tentaram isso também César, Alexandre e Aníbal, sed tamen Cæsar, Alexander, Annibal, mesmo enfentando o risco da infâmia, o preço da tortura, cum summa infamia, cum cruciatu maximo, e pagando com a própria vida? Etiam cum vitæ dispendio?
Saberei escrever algo digno de ser lido em virtude de um estilo polido e elegante, ou por um conteúdo que chame a atenção e leve ao estupor os leitores? Quo stylo, qua sermonis elegantia, ut legere sustinenat?
A vida tem os dois lados, continuou rápido sua pena, duplicem essem intelligebam vitam, a existência sólida e comum dos animais e plantas, solidam, & communem animalibus ac stirpibus, e a existência do homem, que deseja glória e grandes realizações. Et propriam homini gloriæ atque actorum studioso.
Eu também vou desaparecer?, pensou.
Chiara comentara, ao perceber sua angústia, que três irmãos também já tinham morrido.
— Esse é nosso destino — completou Chiara, de forma grave, para Girolamo.
Ele, atônito, refletia: Como assim? Tivera três irmãos e era a primeira vez que sabia disso? Aqueles três irmãos também não significavam nada? Não, não vou desaparecer como os outros! E assim se decidiu a escrever um livro.
Tinha conhecimentos razoáveis de música, astrologia, literatura grega, álgebra e filosofia. Música, por sinal, o atraía bastante, mesmo que não fosse um exímio instrumentista.
Maestro Leone Uglioni, um velho excêntrico musicista, passeava pela cidade dando aulas. Aproveitava para comer, aqui e ali, na casa de seus alunos. Signor Leone circulava com uma bizarra manta verde sobre os ombros, que não largava nunca, e eventualmente ocupava algumas tardes livres de Girolamo ensinando-o a tocar flauta e entender as notações musicais. Esta arte, afinal, simbolizava a ligação que ele tinha com a sua mãe.
O pai achava qualquer gasto com música um desperdício. Por essa razão, as aulas eram pagas pela mãe sem o conhecimento de Fazio.
Mas Girolamo optou pela matemática. Um amigo da família, o ancião Agostino Lanizario di Como, incentivou-o nessa empreitada, pois conhecia um editor que era amante de álgebra, a ciência da matemática que acolhia as letras em suas equações. Era uma pessoa-chave, alguém que poderia dar seguimento ao projeto.
Foram três semanas de trabalho duro. Pesquisa e escrita. No libretto, expunha a maneira de se calcular a distância entre duas localidades diferentes conhecendo-se a latitude e a longitude. Entregou o material e aguardou.
Aguardou um mês, ansioso por ouvir a opinião de uma pessoa que considerava plena de sabedoria. Na falta de interesse do pai em fazer uma leitura crítica do material, os comentários do signor Lanizario poderiam norteá-lo em seus próximos livros.
Como não obtivesse uma resposta, tomou coragem e decidiu ir à casa dele. Lá encontrou apenas um servo, já de saída.
— Signor Lanizario? Morreu de peste. A família já se mudou para Como, levando tudo.
— E meu manuscrito? Alguém deixou algo para mim? — perguntou Girolamo, angustiado.
— Que manuscrito? — rebateu o servo, surpreso. — A casa está limpa. Se quiser, pode entrar e conferir.
Lástima. Desânimo. Perder um trabalho como aquele, seu primeiro livro, foi arrasador. Voltou para casa sem defesas para enfrentar a tensão que se propagava no ar.
Naquele exato momento, Chiara ouvia de Evangelista como ele tinha feito para doar toda a herança do irmão, Ottone Cantoni, ao Lazzaretto. Ela engoliu em seco. A recusa de Fazio em permitir que seu filho recebesse a herança do tio ficara engasgada na garganta. Ainda viria o pior. O pai de Girolamo tinha anunciado que dois aprendizes receberiam sua herança em caso de morte do filho. Ao ficar sabendo da decisão, a indignação de Chiara alcançou um novo patamar. Assim que Evangelista saiu para a missa noturna, pouco antes de Girolamo retornar a casa, ela iniciou a discussão.
— Você não pensou antes de colocar em risco a vida de nosso filho? — gritava, do fundo de seus pulmões.
— Puro giuoco! — respondeu Fazio, dando de ombros. Ele sabia que chamar aquela decisão de uma piada, de um scherzo, iria deixá-la ainda mais irritada.
O argumento de Chiara parecia muito justo aos ouvidos de Girolamo, pois ninguém poderia garantir que não preparassem uma armadilha contra ele.
— Quem garante que os pais daqueles rapazes não investirão contra a vida de nosso filho para ganhar a herança? — esbravejou Chiara ainda mais forte, até começar a se debater convulsivamente, caindo sem proteção, dando um forte golpe no chão com a parte de trás da cabeça.
Fazio saiu da sala, duvidando da gravidade da situação, enquanto Girolamo, extremamente angustiado, acudiu a mãe.
As querelas entre seus pais eram frequentes, porém estavam cada vez mais intensas. Chiara perdeu os sentidos e assim continuou durante a hora seguinte, em um ataque provavelmente desencadeado pelo movimento do sangue no útero, a hystèra, segundo Hipócrates. Foi assim que o filho, assíduo leitor de temas médicos, tinha interpretado o sofrimento da mãe.
Fazio considerou que a discussão tinha ultrapassado os limites do razoável. Tomou a decisão de separar-se. Foi recebido por um colega, também professor do Piattine, que se dispôs a abrigá-lo.
O desenrolar da crise instalou-se de forma tão desgastante para Girolamo que ele também decidiu sair de casa. Iria tocar a própria vida. Escolheu entrar em um convento. Um ambiente mais recente, em que os Frades Menores, como foi chamada a ordem, inspirados pela simplicidade de São Francisco, estavam em constante contato com a comunidade, em uma mescla de clérigos que ia além do modelo de mosteiro dos séculos anteriores.
A instituição monástica, mais antiga, parecia muito fechada para ele. Entrar em um monastério significava abdicar da família.
No dia em que se decidiu ir para o convento, sofreu um ataque em que divagou, sem perceber, por três dias. Não tocou em comida. Caminhou pela periferia da cidade, sem rumo certo, atravessando jardins e imaginando que tinha jantado na casa de Agostino Lanizario.
Seu pai pensava que ele estivesse com Chiara e vice-versa. No terceiro dia, voltou à casa da mãe e a febre atacou-o. Gritava que estaria sobre outra cama. Sono sul letto d’Asclepiade... d’Asclepiade!, em referência ao médico que estudara em Alexandria e tinha trabalhado em Roma na época do império.
O corpo de Girolamo tremia e parecia ser jogado para cima e para baixo. Chiara pensou que ele não passaria daquela noite. Um dos tratamentos de Asclepíades, Girolamo explicou depois à mãe, consistia em erguer e abaixar violentamente uma espécie de grande berço em que estava o paciente, com o auxílio de quatro escravos. Não era uma forma de tratamento recomendada pelo Colegiado de Milão.
No último dia ocorreu um fato inesperado. Um enorme carbúnculo na lateral da última falsa costela, à direita, rasgou-se espontaneamente, deixando purgar um líquido preto e viscoso. O suor sobreveio, molhando copiosamente os lençóis, a ponto de pingar no chão.
Dois dias depois Girolamo estava completamente curado. Considerou que o ataque de divagação sofrido naqueles dias tinha sido um sinal de renovação, um indício de que estava no caminho certo para a vida religiosa. Havia muitas opções de conventos à escolha, claro. Conventi dei Santi Cosma e Damiano, dei Servi, della Rosa e di Sant’Ambrogio eram alguns exemplos. Preferiu seguir os passos do tio Evangelista, que o apresentou ao frade do Convento Sant’Angelo, frade Emanuele. Sant’Angelo era interessante por ficar fora dos limites cercados da cidade, ou seja, fuori le mura. Havia um frescor do campo, do isolamento.
É bem verdade que estar fora dos muros vinha trazendo problemas nos últimos anos, pois a cada investida estrangeira, a cada tentativa de invasão da cidade, o Convento de Sant’Angelo era o primeiro a ser tomado; um ponto de apoio antes do assalto. Mas Girolamo ficou cativado pelo modo de vida franciscano.
Os aposentos simples, remetendo à introspecção, o acordar cedo, a reza na diminuta capela, antes do sol nascer, o cuidado com as videiras, a discussão do Evangelho. Pela primeira vez, percebeu como era o lado profissional da vida religiosa, que o ato de rezar fazia parte da atividade diária, não apenas a pregação no púlpito.
Ao passear pelo jardim que ficava ao redor do convento, admirou-se com a atenção que davam às roseiras, próximas aos pés de uva. As rosas tornavam o entorno ainda mais belo.
— Não é beleza, não, meu caro — disse um frade. — As rosas são mais sensíveis. Se aparecer uma praga, elas serão as primeiras a serem afetadas, e assim conseguiremos proteger as videiras.
Com o passar dos dias, sentiu-se mais à vontade entre seus companheiros de convento. Confidenciou com frade Emanuele sua fragilidade física, que resultava em diversos sintomas diferentes. Contou como as pernas ficavam extremamente frias do joelho para baixo, da hora de dormir até a meia-noite. Além disso, falou sobre as crises de insônia, que duravam oito dias, sempre oito dias, nem mais nem menos, e que aconteciam uma vez a cada estação. Girolamo ocupava esse tempo lendo, do contrário ficaria insano.
Outra preocupação dizia respeito ao vento frio. Sempre que respirava o ar gelado da manhã de inverno tinha uma falta de ar intensa que o impedia de caminhar. Se segurasse a respiração por um tempo razoável, porém, a normalidade sobrevinha e assim ele podia voltar às atividades.
Cada vez mais, Girolamo acreditava que o prazer consistia na ausência de dor, na indolentia, um termo inventado por Cícero, o grande filósofo romano. Quietude, esta seria a verdadeira felicidade.
Três semanas tinham se passado, quando frade Emanuele o chamou a sua sala.
— Caro Girolamo Cardano, ficamos bastante impressionados com suas capacidades mentais. Seu domínio de álgebra, astronomia e filosofia é muito superior aos jovens da sua idade; sem contar o conhecimento de línguas. Deixa-nos contentes saber que tenha tido aqui seu primeiro contato com os escritos do Santo Tomás de Aquino. Isso vai enriquecer sua mente e mantê-lo devoto às palavras do Senhor.
— Agradeço o elogio, frade — respondeu Girolamo, sem saber exatamente o motivo da conversa.
— A sua pergunta, Girolamo, inquirindo o porquê da existência de injustiça no mundo, já que Deus faz tudo, vê tudo e conhece tudo, é respondida exatamente por Tomás de Aquino. Basta ler um pouco mais e conhecerá a explicação.
— O senhor me chamou... — titubeou Girolamo. — Pensei que teria algo muito importante a dizer.
— Sim, de fato. — Esperou um pouco, como se escolhesse as palavras mais adequadas; mordeu levemente os lábios. — Sei que provavelmente ficará chocado com o que tenho a dizer, mas sou obrigado a fazê-lo.
Girolamo sentiu um frio na espinha e um súbito tremor, como se um golpe de ar frio entrasse pela janela. Frade Emanuele, já experiente nesse tipo de comunicado, visto que era grande a procura pela vida religiosa para se ter uma oportunidade de ascensão social, ou de profissão segura, continuou, no mesmo tom de voz:
— Consideramos que seu perfil não é compatível com a formação religiosa. — Fez mais uma pausa. — Veja, não é por falta de inteligência, de conhecimento ou de postura. Seus anseios filosóficos são profundos e sua ambição é natural; só não se encaixam com esta vida que levamos aqui. Algum dia verá que impedimos uma grande perda de tempo. O mundo é grande, cheio de desafios. Ele espera sua participação. Seu lugar não é aqui.
Girolamo pediu licença e retirou-se aos seus aposentos. As palavras do frade ecoavam em sua cabeça. Meu lugar não é aqui? Como ele pode saber?, refletiu Girolamo. Ou será que ele sabe?, ponderou, e chegou à conclusão de que frade Emanuele não tinha nenhuma razão específica, aparentemente, para boicotar seu futuro dentro da Igreja. Talvez ele saiba..., considerou finalmente.
Girolamo arrumou suas coisas e combinou uma carona com um carroceiro que fornecia legumes para o convento e que em breve iria para o centro de Milão. Ele o aguardaria logo à entrada.
Observava com certa tristeza os vãos das portas, tão baixos que obrigavam que cada um se curvasse para passar. Os franciscanos eram lembrados, a cada momento, que o gesto de se abaixar, de se curvar, não era nenhuma vergonha. Antes, era uma necessidade do cotidiano. Não esquecer a humildade, nunca.
Enquanto seu pensamento viajava livre, ouviu uma voz a chamá-lo animadamente:
— Messer Girò!
Virou-se e viu um rapaz mais jovem que ele, mas com o corpo bastante desenvolvido.
— Não me reconhece? Sou Kenneth, de Gallarate. Ouvíamos suas histórias sobre cavaleiros, reis e ninfas, lembra-se?
— Kenneth? — surpreendeu-se Girolamo. — Agora me lembro... você era o pequeno Kenneth e me chamava de messer Girò, claro... Demorei para fazer a associação, pois você já está um homem — cumprimentaram-se afetuosamente. — Vejo que está entrando para a Ordem. Desejo boa sorte.
— Obrigado. Mas para onde está indo? — perguntou Kenneth, curioso.
— Para onde devo ir, para a Universidade. — A carroça parou em frente da entrada do convento, Girolamo ajeitou seu saco de roupas na parte de trás e acenou para Kenneth. — Até breve!
— Anseio por vê-lo dando palestras. Serão incríveis, tenho certeza — completou Kenneth enquanto observava a carroça se distanciar pouco a pouco.