Dissecação

As palestras se sucediam de forma intensa, mas os assuntos ligados especificamente ao direito não se mostraram tão interessantes quanto Cardano imaginava. Gradativamente, sua preferência pendeu para as aulas de Medicina, Astrologia e Retórica.

Estudava alucinadamente. Sabia que era sua oportunidade de se destacar entre tantos alunos. Às vezes, consultava os manuscritos da faculdade, apesar das poucas opções que sobraram após os saques ocorridos nos anos anteriores.

Frequentava também, assiduamente, o livreiro Gianmarco, ao lado da ferraria, sempre perguntando o que havia chegado. As editoras mandavam apenas dois ou três exemplares de um livro recente. Quem estava atento conseguia comprar as novidades.

Alguns professores bastante renomados, como Matteo Curzio, Branda Porro e Francesco Fioravanti, estavam escalados para aquele semestre. A maioria das aulas acontecia na língua latina. No salão das exposições principais, Cardano acompanhava sem piscar o curso extracurricular de Angelo Candiano naquele início de setembro de 1520.

— A astrologia nos ajuda a entender a linguagem das estrelas — iniciou o professor Candiano. — E isto sabemos desde os tempos da Babilônia. Quem domina esta arte conhece as regras que permitem decifrar o livro dos céus. E a linguagem das estrelas coincide essencialmente com a linguagem dos seres humanos. Isto teve a chance de confirmar Giovanni Pontano, falecido alguns anos atrás. Estrelas e planetas, em sua órbita ao redor de nossa Terra, formam as letras de um alfabeto cósmico.

Podiam-se ouvir os suspiros de cada aluno no intervalo entre as falas do professor. As penas corriam rápidas, anotando cada detalhe. Às vezes, o som de um vendedor de doces, ou de um afiador, penetrava no ambiente, sem distrair a atenção dos alunos.

— Atributos simples, como aparência externa, velocidade ou direção de movimentos, revelam a influência de cada planeta, individualmente. Quem já não viu no céu a cor vermelha do planeta Marte? — perguntou o professor. — Esse é um bom exemplo de como uma característica externa pode revelar a natureza quente e seca de um astro. Não esqueçam que esse planeta está ligado diretamente às guerras e à violência. Mas essa força não ocorre sozinha. Há a força do oponente. Quem é o oponente de Marte? — Nesse momento, o professor fez silêncio para ouvir a manifestação de algum aluno.

Cardano sentiu seu coração acelerar. Responderia?, pensou. Tomou coragem e arriscou:

— Vênus, signore. — E todos olharam para trás. — Vênus é o oponente principal. Tem a umidade e a frieza que contrabalançam a força de Marte. — Ele notou que suas mãos tremiam bastante após conseguir dizer aquelas poucas palavras.

— Seu nome? — perguntou Candiano, interessado em saber quem era o estudante que respondera corretamente.

— Hieronymus Cardanus, filho de Facio Cardanus, escritor da edição latina dos Comentários de Giovanni Peckam.

Bravo, signor Cardanus. Onde nasceu?

— Nesta mesma cidade, na casa do venerável Isidoro dei Resti.

— Muito bem, um filho da terra... Então continuemos. — E o professor voltou a dissertar enquanto se dirigia novamente para a cátedra: — Todo planeta faz o papel de uma letra com qualidades definidas. Uma verdadeira sequência de letras do cosmo. Aristóteles ampliou o pensamento de Platão e enxergou o universo de outra maneira; um todo dividido em duas partes: o reino superior, das esferas celestiais, e o reino inferior, dos quatro elementos. Uma pergunta fácil: quais são os quatro elementos?

— Terra, ar, fogo e vento — respondeu, rápido, Ottaviano Scotto, sentindo-se bem por receber a brisa que entrava pela janela.

— Vento? — surpreendeu-se o professor Candiano ao mesmo tempo que muitos riam comedidamente. — O senhor já fez Filosofia, Medicina e agora veio para a jurisprudência. Esta é uma pergunta muito básica, não?

— Água, excelentíssimo professor. — Ajeitou-se na cadeira. — Terra, ar, fogo e água. Foi apenas uma distração. Perdoável, acredito — corrigiu a tempo Ottaviano, fazendo uma reverência.

— Sim, claro, está perdoado. Então complete o raciocínio sobre o reino superior, por favor.

— No reino superior, acredita-se que tudo esteja em ordem, obedecendo a uma sucessão plena de beleza, luxo e calma. Esferas cristalinas, incrustadas em planetas e estrelas, compõem a música eterna do universo — finalizou, orgulhoso, Ottaviano.

— Agora, signore, apresente-se, por favor — solicitou o professor.

— Caros, sejam bem-vindos ao Studium Generale di Pavia — em tom de recepção aos mais novos. — Muito me orgulha estudar aqui. Sou Ottaviano Scotto da Brescia, parente degli editori Scotti di Venezia. Continuo vivo apesar do massacre francês à minha cidade, treze anos atrás. A sorte de sobreviver não tiveram meus pais, por isso fui convidado pelo meu tio para continuar a vida em Pavia.

— Precisava contar tudo isso? — cochichou Prospero a Cardano.

— Psst! — sussurrou o amigo. — Fique quieto!

— Grato, signor Scotto. Continuando: a influência dos astros nos vários recônditos da Terra, em suas cidades e em seu povo, pode ser analisada com grande precisão — discorreu o professor, agora andando pela sala. — Para isso, devem ser observadas as posições dos planetas e das estrelas na intersecção da linha do horizonte oriental. O sistema da natividade é particularmente interessante, pois considera de suma importância o conhecimento do ponto exato, o momento do nascimento de uma pessoa, ou seja, aquele átimo em que acontece a relação entre os planetas e as doze constelações, chamadas de casas celestiais.

O professor fez uma pausa para que os alunos tivessem tempo de anotar e depois questionou:

— Como é chamado esse ponto? Alguém arrisca? — E fez sinal para Ottaviano ficar em silêncio, pois era sabido que ele já tinha a resposta.

Il punto dell’eclittica — respondeu Cardano com firmeza —, que é a posizione di natività, ou ascendente do horóscopo.

O professor acenou com a cabeça em discreto elogio e continuou:

— Nenhuma precisão seria atingida se não existisse o astrolábio, um instrumento que vocês já viram algumas vezes. Outra pergunta sem dificuldade. — Olhou para Prospero, que ficou petrificado: — Diga-me, signore... — e esperou que o aluno completasse a frase.

— Prospero Marinone di Pavia.

— Prospero, qual estrela é utilizada para a função do astrolábio?

Ele sabia, mas estava de tal modo amedrontado que não conseguia articular uma palavra. Para seu alívio, o professor desviou a atenção para o rapaz vindo da Etiópia:

— E o seu nome? — perguntou.

— Nagast d’Abissínia — respondeu com o orgulho de pertencer àquele que era considerado o povo mais antigo do mundo; mas não era só isso, também sentia que tinha a adição de sangue europeu em suas veias. — Minha mãe é etíope, mas sou neto, por meu pai, de Giovanni di Padova.

— Vejam só — surpreendeu-se o professor Angelo Candiano. — Com pele cor de carvão, falando nossa língua perfeitamente! Não há mais surpresas neste mundo. — O professor sorriu, para depois continuar: — Signor d’Abissínia, qual é o astro fixo no céu usado para determinar o grau de angulação com o horizonte?

— A Estrela Polar — respondeu, com segurança. — Como ela está exatamente em cima de nós, em ângulo de noventa graus, se formos para o sul, esse ângulo se alterará.

— Uma pergunta que até as crianças do Piattine saberiam responder, não é mesmo?

Cardano não entendeu bem por que o professor tinha se referido àquela escola. Talvez achasse que lá não se aprendia muito.

— Poderia acrescentar, se me permite, professor — adiantou-se Nagast —, que o quadrante também pode ser usado para essa determinação.

Nagast explicou aos colegas que o quadrante era um instrumento no formato de um quarto de roda, daí o nome, dotado de um prumo. O astrolábio, por outro lado, era um círculo de metal pesado, preferido nas medições náuticas. Este último poderia ser usado também para avaliar o ângulo do sol, exatamente ao meio-dia. Ajustava-se o aparelho de tal forma que a luz solar passasse por dois pequenos furos simultaneamente. Seu peso conferia alguma estabilidade, mesmo em alto-mar. Em terra firme, era usado para outras medições, como a altura de um edifício, por exemplo.

Após a discussão, iniciou-se a leitura do trecho mais importante do livro do alquimista Pontano. A tarefa tomaria cinco aulas, aproximadamente, contando com os comentários interpostos pelo professor.

Ao término da primeira aula de leitura, todos se levantaram e, de cabeça baixa, aguardaram o professor sair da sala. Assim que se sentiram liberados, dirigiram-se ao pátio central, com estardalhaço. Alguns deles, como de hábito, rumaram à parte levante da cidade, de onde viajantes iniciavam o caminho para Roma, a fim de ir à taverna tradicionalmente frequentada pelos estudantes, ao lado do moinho cervejeiro.

Pavia tinha pelo menos dez moinhos. Nem era muito. Algumas cidades tinham bem mais. Os moinhos de pisão tinham substituído o pisoamento com os pés, uma técnica antiga em que tecidos, por exemplo, eram pisoados para marcar a tintura. Eixos com ressaltos excêntricos, uma incrível invenção, agora acionavam o pilão, a cada pequena volta da roda empurrada pela força da água, dispensando o uso dos pés.

Os moinhos para cânhamo, uma variação do moinho de pisoamento, extraíam o óleo dessas sementes para alimentar o fogo de lamparinas, ou para fabricar sabões. Já os moinhos para ferro faziam com que o malho batesse o metal e, adicionalmente, outra roda acoplada fazia com que o fole assoprasse a fornalha.

A serra impulsionada pela água era ainda mais sofisticada. Subia na vertical e descia com o próprio peso, após a liberação do excêntrico, cortando ao meio a lenha da floresta. Outro moinho especial destinava-se à feitura do papel. Alguns eram uma adaptação de moinhos mais antigos, construídos para a fabricação do azeite, bastante diferentes dos moinhos para grãos, pois tinha uma mó, a enorme pedra redonda, que rodava dentro de uma grande cuba circular. A pasta de papel formava-se após a trituração dos trapos em água.

Muitos dos moinhos eram acionados por força das mãos dos escravos, alguns com o vento, boa parte com animais. Os mais cobiçados, no entanto, eram os que utilizavam a água, esta uma energia bastante procurada por manter-se constante. Às vezes, a impulsão da água era usada para fazer com que ela própria subisse a alturas maiores, com o objetivo de ser distribuída na cidade. A Itália do norte era bem servida nesse quesito.

As mós que trituravam os grãos de trigo também podiam ser empregadas para fazer a farinha dos grãos usados na fabricação da cerveja, além do lúpulo e do malte. Assim, alguns moinhos cervejeiros se especializaram para atender um mercado em franca ascensão. Cada vez mais, quem frequentava a Universidade acabava se tornando um grande consumidor.

A taverna dos estudantes estava bastante agitada naquele agradável fim de tarde. Cardano, sem muita empolgação, acedeu ao convite de Prospero. O lugar era aconchegante, construído com madeira escura nas paredes, mesas e balcões. Havia mesas também na parte externa, ao lado do moinho, onde alguns jovens discutiam bastante e outros jogavam cartas. Sentaram-se próximo ao aluno que tinha chamado a atenção por sua apresentação na sala de aula duas horas antes.

— Estávamos na aula há pouco. Ottaviano da Brescia, não é mesmo? — tomou a iniciativa Prospero. Os três se cumprimentaram sobre a mesa. — Diga-me, quanto tempo de viagem se gasta até sua cidade?

— Saindo de Milão, é o dobro do tempo até Pavia e um terço da viagem até Veneza. Mas meu tio mora aqui, como tinha dito.

— Somos de Milão — disse Cardano. — Eu apenas nasci em Pavia.

— Percebi que já tinha conhecimento de astrologia e astronomia — comentou Ottaviano.

— Conhecimento? — interrompeu de forma entusiasmada Prospero, adiantando-se a Cardano. — Esse rapaz aqui domina a astrologia de adivinhação. Já fez previsões que deixariam muitos de boca caída!

— Ele está exagerando — disse Cardano. — A verdadeira adivinhação é um dom exclusivo de sábios e prudentes. Ex Aristotelis oraculo: solum ille prudentum, ac sapientum esse veram divinationem.

— Bem — rebateu Ottaviano —, vejo que domina a língua latina, mas o tratado de Aristóteles que conheço tem a seguinte afirmação: “O poder da previsão ocorre em qualquer pessoa simples, e não nas mais sábias.”

Cardano gostou de saber que estava dialogando com alguém à altura de seu conhecimento e sorriu. Talvez estivesse realmente errado em relação à sua citação de Aristóteles.

— Posso dizer que há espíritos que nos enviam mensagens — ponderou Cardano. — Mas, se o reconhecer, nunca deve dizer seu nome, senão ele se esvanecerá imediatamente. Meu pai me ensinou isso. Ontem mesmo recebi em sonho a figura de um querido parente, Niccolò Cardano. Ele me disse que um homem seria em breve condenado à forca, mas antes me procuraria para saber de seu destino. — Então comprimiu os lábios, agora em dúvida se deveria ter fornecido detalhes tão íntimos a uma pessoa que ainda não conhecia.

Uma alegre e sedutora jovem interrompeu a conversa para saber o que eles iriam beber. Avisou que, excepcionalmente naquela semana, tinham recebido pistaches e tâmaras da Pérsia, mas os três pediram somente cerveja e um prato de grão-de-bico.

— Poderia solicitar aos pais dessa moça sua mão em casamento. — Prospero divagou enquanto desviava os olhos para vê-la dirigir-se até o balcão. Subitamente acordou de seu devaneio. — Desculpe, senhores, do que falávamos? Signor Scotto, ouvi dizer que era de Brescia, mas tinha família em Monza, certo? É um longo caminho...

— Sim — respondeu Ottaviano —, tenho parentes em Veneza, como Ottaviano Scotto di Monza, um grande editor. Imagine o orgulho que tenho em ostentar o mesmo nome! — Levantou o queixo. — Estou aqui há mais de dois anos, formando-me em várias artes de letras. Provavelmente, um dia eu irei trabalhar com eles.

— Quem sabe não publicará meu livro? — adiantou-se Cardano.

— Do que se trata? — perguntou Ottaviano, interessado.

— Em breve direi. Primeiro preciso escrevê-lo... O único que escrevi até agora se perdeu com um velhinho que morreu de peste — e todos riram.

— Na aula, ouvimos seu relato do ataque francês a Brescia, não é mesmo? — indagou Prospero.

— É verdade. — Ao lembrar-se do ocorrido, Ottaviano fechou o semblante. — Um momento difícil. Foi no ano de 1512. Por uma semana, a milícia da cidade segurou os franceses. Depois, aconteceu uma tragédia. Mais de quarenta mil foram massacrados. Eu estava no grupo que se refugiou em uma igreja. Eles entraram gritando e golpeando as pessoas de forma inclemente. Um garoto ao meu lado, mesmo agarrado na mãe e na irmã, recebeu um golpe de sabre na boca, caindo ensanguentado no chão. Meus pais foram mortos. Eu sobrevivi por milagre. Não é uma boa lembrança.

Os três ficaram alguns minutos dando goles na cerveja, ouvindo as conversas que corriam paralelas nas mesas ao lado. Cardano rompeu o silêncio:

— Vi em um cartaz que haverá debate amanhã. Como é isso?

— É o debate dos homens de letras, normalmente entre dois professores, mas às vezes ocorre com alunos ou mesmo com alguém de fora da Universidade — respondeu Ottaviano. — Uma boa maneira de ganhar dinheiro e prestígio. Melhor do que lutar com espadas! — Sorriu. — Os debatedores registram um tema no cartório, com o notário, escolhem um prêmio em dinheiro, ou algo de comum acordo, e marcam uma data para o debate.

— Mas como se sabe quem venceu? — perguntou Prospero.

— São escolhidos três juízes, que analisam a retórica, os argumentos e a acolhida das pessoas que comparecem ao anfiteatro — explicou Ottaviano.

— Então a plateia interfere no resultado... — falou Cardano.

— Muito! — afirmou Ottaviano. — Muito mesmo. Há debates que são totalmente decididos pelos ouvintes. Se há uma posição clara dos que estão assistindo, os juízes apenas referendam em ata.

Cardano ficou bastante interessado no assunto. Pensou em programar-se para assistir ao próximo. Então viu que Ottaviano tirava do bolso um belo saco de couro.

— Caros, que acham de jogarmos primero? — perguntou Ottaviano, mostrando as cartas e os dados que tinha trazido.

— Por que não dados? — perguntou Cardano.

— Estes aqui são especiais...

Então Cardano rodou lentamente os dados entre os dedos e percebeu que nos dados de 16 lados havia a repetição dos números 4 e 14. Nos dados de 12 lados havia dois números 5. Arregalou os olhos.

— Também corremos o risco de sermos pegos. Os dados são proibidos nas tavernas de Pavia.

— Está bem, vamos jogar primero... — falou Cardano. — Mas já desconfio quem ganhará...

— Não, não se preocupe — tranquilizou-o Ottaviano. — As cartas não estão marcadas. Estas são virgens. Além disso, estou com pouco dinheiro. Nem poderia apostar muito.

— Certo. Pegamos duas cartas cada. — Prospero embaralhou-as e fez a distribuição. — Depois cada um escolhe mais duas até estar satisfeito, combinado?

— Não — respondeu Ottaviano. — Esta regra é de Milão. Vamos fazer a regra de Pavia, em que cada um só poderá trocar uma vez.

— Que regra esquisita... — estranhou Cardano.

— Isso porque não viram o primero de Veneza! — sorriu Ottaviano.

Depositaram a aposta e iniciaram o jogo. Prospero logo desistiu, pois suas cartas eram pouco promissoras. Cardano dobrou a aposta e anunciou que possuía um flusso em mãos, ou seja, todas as quatro cartas do mesmo naipe.

Ottaviano fez cara de quem não estava satisfeito, descartou uma e pegou outra carta. Continuou descontente, propondo então um acordo, um fare a salvare, isto é, uma maneira de partilhar a aposta proporcionalmente, segundo as possíveis opções de cartas que teriam nas mãos. Cardano concordou. Baixaram as cartas, dividiram a aposta, e o jogo recomeçou.

Ficaram na taverna até o anoitecer. Depois, voltaram para casa tropeçando nas pedras da rua. Prospero vomitou duas vezes durante o caminho, mas conseguiu chegar, com o apoio do amigo.

No dia seguinte, Cardano acompanhou o desafio de matemática entre dois professores da Universidade. Não achou tão empolgante, pois boa parte do tempo eles interrompiam a explanação para resolver problemas que um colocava para o outro. Após quatro horas, os juízes consideraram que tinha havido empate, pois chegaram até a equação de terceiro grau sem que nenhum dos dois tivesse a solução.

As aulas que envolviam temas médicos chamavam cada vez mais a atenção de Cardano. O estudo de Galeno era seu assunto preferido. Claudius Galenus era grego, mas fez sua fama em Roma, nas décadas de 160 a 180. Lá, ele se tornou um profissional contratado pelo imperador Marco Aurélio, inicialmente como médico militar e depois como médico da corte.

Suas dissecações de animais serviram de base para as descrições mais avançadas até então, resultando em uma grande produção de material escrito. Os livros já eram reproduzidos regularmente pelas editoras italianas, um item necessário a qualquer estudante de Medicina e Filosofia.

— Portanto — continuou o professor —, encomendem com o livreiro As faculdades da alma seguem o temperamento do corpo, ou Quod animi mores corporis temperamenta sequantur. Esse tratado é uma pequena obra-prima, um verdadeiro capolavoro. Hoje vamos falar sobre ele e alguns importantes conceitos de Galeno.

A chuva caía pesada lá fora. Era um bom dia para se concentrar totalmente em um dos maiores mestres da humanidade, um médico que condensara os pensamentos de Aristóteles e Hipócrates, trazendo-os a um novo patamar científico.

— Nos primeiros anos de nossa era cristã, os estoicos afirmavam que nosso corpo tenderia naturalmente para a virtude — falou o professor. — Lembrem-se de que os estoicos aceitavam as durezas da vida sem fazer reclamações. Para eles, era o bastante nascer, e nossa força interior faria o direcionamento adequado.

“No entanto, é óbvio que muitos não terão uma vida virtuosa. E por quê? — continuou de forma apaixonada, sendo observado atentamente por seus alunos. — Ora, a influência das pessoas ao redor poderia alterar esse caminho. Mas Galeno se perguntou, nesse momento, o seguinte: e o primeiro homem? Por que ele poderia corromper-se, se não havia ninguém ao lado para influenciá-lo? Ademais, por que dois filhos que recebem a mesma educação têm atitudes tão diferentes? Portanto, com um pouco de reflexão, vocês concordarão comigo que a tendência a uma vida virtuosa é uma teoria falha. — Fez uma pausa, olhou para os alunos e perguntou: — Quem arriscaria dizer a outra tese defendida na época?”

Cardano adiantou-se, com segurança:

— Também se acreditava que ninguém nascia para ser virtuoso. A questão era submeter o indivíduo a uma educação moral primorosa e assim conduzi-lo à virtude.

— Muito bem — concordou o professor. — Nesse caso, bastava que a criança fosse direcionada conforme preceitos rígidos. Para Platão, os homens se tornam maus por causa da má educação, ou uma disposição viciosa. Os humores que erram pelo corpo, disse ele, agitam-se e misturam-se com a alma, perturbando-a. Galeno então adicionou o pensamento de que o regime de vida e a dieta influenciariam diretamente a virtude.

— Professor! — falou o asiático e continuou após receber a autorização com um leve movimento de cabeça. — Mas não há a liberdade do próprio ser humano? Como a comida faria diferença nessas decisões?

— Essa é exatamente a pergunta que Galeno se faz — retomou o professor. — Lembre-se de que não é só a dieta; estamos falando também na maneira de viver, seus hábitos, seu dia a dia. Pois bem, seguindo a linha grega de Posidônio, Galeno atesta que a semente do mal está dentro de nós, assim como, majoritariamente, uma tendência a seguir o bem. A ingestão de alimentos não nocivos, de bebidas bem escolhidas, uma vida regrada e uma educação adequada seriam o adubo necessário à semente da virtude. Está claro?

Alguns fizeram semblante de que a posição de Galeno não estava tão clara assim.

— Vou continuar, e vocês entenderão. — O mestre pigarreou e retomou o discurso: — A alma, ou seja, a psyché, resulta do temperamento do corpo, de sua mistura, das alterações humorais. Do quente ao frio, do úmido ao seco e vice-versa; são estados influenciados pelo que se come e pelo jeito como se vive. Nesse sentido, a alma depende do corpo.

“Nesse momento, Galeno acrescenta uma observação fundamental. Atentem bem para isso — salientou o professor. — Ele diz que é um erro considerar que os humores, e só eles, são a causa natural do corpo. A causa vem de Deus, da inspiração divina. Logo, os humores são o veículo de influência da alma, e nosso corpo é a máquina construída pelo criador.”

A excitação dos alunos ao ouvir a explanação provinha do fato de que esse assunto fazia, de certa forma, parte das conversas cotidianas. Poucos, no entanto, atentavam para a diferenciação formal de cada conceito.

— O coração é a fonte do calor — continuou —, o ar que entra em nosso corpo resfria o sangue e controla a temperatura de forma adequada. O cérebro é a fonte do movimento, da sensibilidade; é a sede de nosso pensamento. Por fim, vamos lembrar que a formação do sangue acontece no fígado. Essa sanguinificação, em que há a aquisição da cor vermelha, vem dos alimentos ingeridos, carregados por pequenas veias até encontrar uma grande veia, a veia porta. Ela é, como o nome diz, a porta de entrada do fígado. Os alimentos trazidos formariam, então, a base dos espíritos animais.

Após uma breve pausa, o professor retomou com uma pergunta:

— O sangue jorrado a partir do fígado, impregnado por alguns desses espíritos, vai para que sistema: direito ou esquerdo?

Ninguém preferiu arriscar. Cardano não respondeu, pois já tinha participado demais. Ele sabia que o sangue formado iria para o lado direito, o sistema sanguíneo, já que o lado esquerdo do coração, chamado de sistema aéreo, bombeava sangue com o ar e a maioria dos espíritos vitais, vindos do próprio coração.

Quando o professor, no entanto, falou sobre a mistura do sangue que ocorreria dentro do coração, Cardano ficou intrigado; essa explicação contradizia um comentário que tinha ouvido anteriormente, feito pelo próprio pai.

— Uma parte do sangue é filtrada pelo septo ventricular poroso e vai de um lado a outro do coração. Faz sentido, não é mesmo? Como o sangue circularia se não houvesse essa comunicação? — concluiu o professor, ao que todos concordaram. Todos, exceto Cardano. Fazio dissera que mestre Leonardo estava intrigado porque não tinha achado, nas autópsias que fizera, nenhuma evidência da passagem do sangue de um lado a outro.

À noite, como frequentemente fazia, Cardano saiu de casa com a adaga na cintura e sua capa preta. Dessa vez, no entanto, o passeio tinha um objetivo definido. Convencera o amigo Prospero a tomarem juntos uma decisão bastante arriscada. Ofereceriam um escudo ao coveiro para que ele permitisse a entrada deles na sala dos defuntos; assim poderiam fazer a investigação da estrutura do coração de alguém pronto para ser enterrado.

As arcadas escuras do necrotério contornavam o prédio de apenas um andar que ficava ao lado da igreja. Ele compreendia duas grandes salas altas, com a base das paredes carcomida pelo tempo. Ao chegarem à porta, deram duas batidas na peculiar aldabra, uma bela peça metálica no formato de martelo, simulando o ferreiro malhando em seu trabalho. O leve toque ecoou dentro do recinto. Um senhor de meia-idade, já curvado, vestido em trajes simples, chamou-os para entrar.

— Senhor, como tínhamos combinado, não mexemos em cadáveres putrefatos, ou que estejam sendo consumidos por vermes. Nosso objetivo é conhecer um pouco mais de nosso corpo, dentro dos preceitos da Igreja, que nos incumbiu de trazer menos sofrimento às pessoas.

O coveiro conduzia os dois jovens pela primeira grande sala enquanto ouvia as explicações pouco convincentes de Cardano. O importante é que recebera um escudo para deixá-los a sós com um morto por duas horas.

— Vejam, este senhor não tem família, foi achado na estrada e trazido para cá por uma pessoa bondosa que não quer ver sua alma em perdição. Vocês têm duas horas — e fechou o ferrolho da porta.

— Ele precisava ter trancado a porta, Cardano? Já estou apavorado com a ideia de explorar o corpo de um morto sem autorização e ainda por cima temos que ficar presos? E se nos acharem? Diga-me, o que vai acontecer?

— Calma, Prospero, a trava nos protege e evita que sejamos descobertos. Quando chegar a hora, ele dará duas batidas. Nós repetimos e ele abre.

— Bem, melhor acabar logo com isso. Como vamos abrir o peito dele?

Cardano tirou da cintura um saco de couro, onde tinha colocado uma grande tesoura. Colocou também a adaga na mesinha ao lado do defunto. Levantou o tecido que o cobria. O velho de cabeça branca que jazia na mesa, à espera de ser enterrado, era bem magro. Tinha um corte da largura de quatro dedos na altura do umbigo. Possivelmente uma investida de assaltantes.

Sua idade não era mais compatível com os duelos mortais, típicos dos jovens. Estava com a boca e os olhos abertos. Prospero ficou impressionado com a cena, fazendo imediatamente o sinal da cruz, na tentativa de afastar algum possível mau espírito.

— Reze por mim, Prospero — falou Cardano enquanto desferia o golpe de adaga que penetrava fundo logo abaixo das costelas, na parte de cima da barriga.

Em seguida, pegou a tesoura, tentando vencer os tecidos na altura da linha média. Encontrou o osso que protegia o coração. Desviou um pouco para o lado, cortando as cartilagens das costelas com enorme esforço. Os dedos doíam de tanto forçar as argolas metálicas.

Ao terminar o corte longo e profundo que corria da barriga até o pescoço, Cardano chamou Prospero para, com as mãos, cada um de um lado, abrirem o tórax, ao som de estalos de costelas se quebrando. Ficou à mostra uma série de membranas ressecadas, grudadas umas às outras. A excitação tomou conta de Cardano, normalmente uma pessoa fria em seu contato com amigos e, principalmente, com quem não conhecia. Nas aulas de investigação do corpo humano, por exemplo, fazia anotações enquanto alguns colegas vomitavam e outros ficavam brancos como cera, sentados, sem se mexer.

Afastaram e cortaram as escuras membranas que encontravam até vislumbrarem o coração, o órgão nobre, o último do corpo a parar de funcionar. Prospero estava firme em seu papel de ajudante. Se chegara até ali, gostaria então de satisfazer o impulso de curiosidade que se mostrava mais forte que o medo de ser enforcado como herege.

Cardano cortou os grandes vasos que estavam ligados ao coração, retirando-o para analisá-lo na mesa ao lado. Com cuidado, tirou duas fatias do músculo cardíaco até observar o septo que separava as duas grandes câmaras. Passou o dedo com firmeza e convidou Prospero a fazer o mesmo.

— Como é grossa esta parede, Girolamo! Será que o sangue passa mesmo por aqui?

— Não sei — respondeu Cardano, com cara de dúvida. — Galeno poderia estar errado...

— Não conte isso para ninguém, Girolamo, pelo amor de Deus! — Prospero se assustou.

— Fique tranquilo, não sairei alardeando nossas dúvidas por aí. Mestre Galeno é o maior de todos. Sabemos disso. — Olhou então para o tórax aberto, pensando no que faria depois. — Temos tempo. Vamos abrir o pulmão, quero ver mais de perto os condutos respiratórios por onde passa o ar resfriador do sangue.

O pulmão estava bastante escuro, com pontos pretos. Cortou o tecido esponjoso em fatias. Encontrou um tecido de consistência mais firme, da largura de um polegar, no meio do pulmão direito.

— Olhe, Prospero, se ele não morresse de um punhal, morreria deste tumor! Lindo, não?

— Só quem é médico considera bonita uma coisa dessas... — discordou Prospero. — Acho que a jurisprudência não é seu destino, Girolamo.

Ao continuar sua investigação, Cardano escorregou a mão pela traqueia e descortinou os anéis de músculos que envolviam o tubo respiratório.

— Interessante... Isto aqui parecem músculos. Será que estes músculos, ao se contraírem, esmagam a traqueia e fazem a pessoa sentir falta de ar? — Cardano perguntou baixinho a si mesmo, pensando em sua própria experiência, que misturava crises súbitas ao ar frio e em momentos de muita angústia. Lembrou-se então do médico Areteu da Capadócia, que tinha descrito crises de asma, aquela sensação de gatos no peito, que ocorriam em pessoas que corriam muito ou eram submetidas a um golpe de ar gelado.

— Por que está colocando o coração no saco? Está maluco, Girolamo? Devolva isso!

— Calma, Prospero. Amanhã teremos a investigação do corpo de um ser humano, não é mesmo? Vamos mostrar a todos o septo do coração que estamos levando. Diremos que compramos de um viajante.

Prospero fez cara de contrariedade, mas admitiu que poderia ser uma boa ideia.

— Está bem. Só não diga que eu estava junto...

Ao ouvirem as batidas na porta, os dois amigos já amarravam a pele ao redor do tórax, e os grossos barbantes fecharam o peito aberto. Alguns panos ficaram molhados de sangue, exceto um deles, que foi colocado sobre o corpo. A blusa surrada com babados, fechada até o pescoço, cuidadosamente colocada pelo coveiro, escondeu os últimos sinais da intervenção.

No dia seguinte, estavam os dois amigos ansiosos para participar da necrópsia que iria discutir especificamente o coração, sua função e suas câmaras, sob o comando do professor de Filosofia e Medicina.

O anfiteatro, em forma oval, tinha degraus mais altos ao redor, com beiral para o apoio dos alunos que ficavam em pé. A grande janela, de um dos lados, permitia a entrada de bastante luz. Todo o ambiente cheirava forte a um álcool destilado.

No centro, no nível mais baixo, uma mesa pesada de madeira, cuidadosamente talhada, permitia que líquidos do corpo escorressem para um orifício em um dos lados, quando, por sua vez, eram recolhidos em um balde.

A aula de necrópsia era um fato raro e observado de perto pelo cardeal da região. Havia a notícia de que algumas faculdades, como a de Bolonha e a de Pádua, já tinham realizado esse tipo de apresentação. Mesmo assim, as críticas eram muito severas, pois gastaria horas de aula que poderiam ser aproveitadas com a leitura de um livro de Hipócrates, por exemplo. Até porque já aconteciam aulas concorridíssimas de anatomia e de cirurgia, que duravam mais de um mês, todo início de ano.

Ao ser retirada a lona pelo ajudante, os alunos se surpreenderam, pois se tratava de um menino, de cerca de 4 anos de idade.

— Como vamos ver o coração de alguém desse tamanho? Será mais difícil — sussurrou Cardano, que tinha aos seus pés um pacote contendo o órgão recolhido naquela madrugada.

O menino ainda estava com a pele bastante arroxeada. Teria morrido naquela noite, provavelmente. A mãe, então, foi apresentada aos alunos. Era um fato bastante incomum, pois nas raras necrópsias normalmente eram autorizados estudos apenas de corpos de criminosos. O professor destacou a bondade dela, que teria permitido o exame do filho para o bem do conhecimento.

A criança já estava doente desde que nascera. Apresentava falta de ar e ficava azulada frequentemente, explicou o professor Giulio. Por fim, não resistiu. Na verdade, não se esperava que fosse durar muito. A mãe despediu-se dos alunos e saiu da sala, calmamente, conduzida pelo segundo servo.

— Que estranho — comentou baixinho Prospero —, ela não parece uma mãe triste, como seria de se esperar, mesmo para quem tivera um filho doente desde o nascimento.

— É verdade — concordou Cardano. — Além disso, o garoto tem a ponta da língua exposta bastante preta. Estranho, não?

— Acha que foi envenenado? — perguntou Prospero, falando mais alto do que deveria.

O etíope, que estava em pé ao lado deles, olhou de forma severa, repreendendo com os olhos a conversa dos dois amigos. Prospero deu uma risadinha sem graça, como que se desculpando, engoliu em seco e decidiu ficar em silêncio. Já estava preocupado demais com as emoções da noite anterior. Não queria chamar a atenção dos outros colegas.

O tórax do garoto foi aberto sem dificuldade. O barbeiro cortou as costelas, junto com a pele, de cada lado, retirando uma enorme tampa, deixando à vista as membranas dos pulmões e do coração. Com as mãos, afastou as mucosas internas e descortinou o coração dilatado, do tamanho de um punho aberto de adulto.

— Vejam, senhores — o professor Giulio Luttizi interrompeu a leitura do texto clássico e apontou para dentro do tórax do menino —, vejam como as duas circulações acontecem lado a lado. As câmaras se conectam verticalmente com válvulas que se abrem e se fecham em perfeita consonância, impulsionando o sistema sanguíneo de um lado e o sistema espirituoso, ou aéreo, de outro.

“A respiração extrai o pneuma da alma do mundo por meio da traqueia artéria, para jogá-lo no coração — explicou Luttizi, enquanto o barbeiro apresentava o coração em sua mão. — Vamos ver agora por onde ocorre a passagem do sangue de um lado para outro. Alguns alunos têm manifestado certa descrença em relação aos conceitos de Galeno, o que é muito grave — olhou discretamente para onde estavam Prospero e Cardano.”

Prospero se encolheu ainda mais. Cardano encheu o peito, como que se estivesse se preparando para o enfrentamento. Com uma faca afiada, a parte frontal do coração foi retirada.

— Agora, cada um de vocês, aos poucos, virá aqui para sentir a comunicação entre os dois sistemas — solicitou o professor.

Cardano desceu desconfiado e ficou na fila para colocar o dedo nas câmaras cardíacas e sentir os septos internos. Para sua surpresa, seu dedo sentiu um buraco. Passou com folga. Não queria acreditar. Abriu cuidadosamente com as duas mãos a câmara cardíaca principal e pôde observar, com seus próprios olhos, a enorme fenda que permitia a mistura dos dois sangues. O professor percebeu que o aluno tinha ficado chocado com o que constatara.

— Surpreso, signore?

Cardano fez um meio sorriso e saiu da fila, deixando a vez para seu colega.

Voltou arrasado para seu lugar. Não conseguiu prestar atenção em mais nada do que foi falado na aula. Sua mente divagava para necrópsias distantes.

Giulio Luttizi se despediu dos alunos, e todos saíram da sala. Permaneceram Cardano e Prospero.

— Vamos, amigo. Galeno, como sempre, estava com a razão — disse Prospero, tentando animar o amigo.

Ao sair, jogaram em um canto o embrulho que tinham trazido. Deixaram o salão bem depois dos outros colegas. Observaram, em um dos cantos das arcadas, o professor conversando com a mãe do garoto que tinha sido necropsiado. Antes de perderem-nos de vista, viram a mãe recebendo moedas de Giulio.

Cardano achou estranho tudo aquilo, mas não estava em condições, naquele momento, de discutir o assunto; muito menos de criar animosidades sem ter algum trunfo em que se apoiar. Atravessaram a rua para comer em uma casa bastante simples que fazia refeições para alunos da faculdade. O chão permanecia sempre sujo, com muito feno espalhado e fezes de galinhas. As paredes eram verdes de tanto musgo, mas o aroma da comida enchia todo o ambiente.

— Muito suspeito o professor ao dar dinheiro à mãe, não é mesmo? — perguntou Cardano.

— É verdade, mas ele poderia estar apenas ajudando uma mãe simples que perdeu um filho e, ainda por cima, estava lá colaborando — ponderou Prospero.

— Talvez sim — concordou Cardano, desanimado por perceber que Prospero poderia estar com a razão.

Prospero nem se preocupou tanto com a decepção do amigo, pois logo o prato em sua frente recebeu uma larga concha de papa de granoturco e ovo misturada com pedaços de carne branca. Comeram com gosto e repetiram, acrescentando lascas de pão de centeio.

— Nesse caso — voltou ao tema Cardano —, temos que admitir que o mestre Giulio estava certo, que Galeno não tinha se equivocado e que nossa noite na sala dos defuntos não valeu para nada...