Primeiro email para Margot

Meu amor,

Quando aqui não estás, tenho vontade de escrever poesia e adotaria os animais abandonados do mundo inteiro; no conjugado, todos os objetos da casa se puseram a murchar como se fossem plantas saudosistas. Não sei explicar ainda esta nova ausência, saber que não estarás aqui, nesta cama, noite atrás de noite.

Em breve o teu avião aterrará em Lisboa, talvez seja uma dessas manhãs de outono que ainda trazem brisas africanas de verão, e ficarás feliz quando entrares no táxi e cruzares a cidade. Vais abraçar a tua mãe, o tio Virgílio estará melhor, vai sorrir para ti, mesmo com uma boca torta, assim que entrares no quarto do hospital.

Imagino-te diante do computador lendo este email, e espero que as palavras te cheguem com a mesma pujança com que as teclo no computador, e que depois da força do abraço te sintas beijada, cada frase um pedaço de mim encostando-se a ti na cama e, no final deste email, o meu corpo inteiro pegado ao teu, a minha boca colada na tua nuca, respirando através da tua pele.

És o meu amor, espero-te.

Dias nublados

Digamos que a higiene pessoal e a qualidade da minha dieta não foram as prioridades nos dias que se seguiram à partida de Margot. Lá fora, além da chuva, a luz era tão cinzenta como a minha barba de vários dias, tão bucólica como um bilhete de despedida. Saía pouco de casa, escrevendo poemas e emails para Margot, comendo o que sobrava nos armários, dormindo e fumando muita erva para, mais uma vez, anestesiar a dor e habitar um casulo de fumo em vez de dar o corpo ao manifesto.

Um dia bateram à porta como se quisessem mandá-la abaixo.

(Quando eu te encontrar)

Espreitei pelo buraco e vi-lhe o cabelo crepitando como uma fogueira de São João. Era Benedita. Abri a porta.

“Foste criada num estábulo? É preciso bater dessa maneira?”

“Boa tarde boa disposição.”

Ela entrou no conjugado, admirou a rebaldaria, os pratos e os cinzeiros no chão. Foi abrir as cortinas e as janelas. Uma brisa de ar limpo aliviou o peso das paredes da casa.

“Não te habitues porque não tenho jeito para empregada doméstica.” Benedita ia sentar-se na cama mas arrependeu-se: “Nestas condições de insalubridade, nem sequer me apetece provocar-te.”

Eu estava de cuecas. Fui vestir umas calças. Disse: “Miúda, põe-te fina. Não sou teu paizinho mas tens um, que está lá em Portugal. Talvez devesse telefonar-lhe, dizer-lhe o que andas a fazer.”

“Deixa de ser careta. Tanta hostilidade para quê? O que se passa, ela deixou-te, foi?”

“O que é que vieste aqui fazer? E limita-te a responder à pergunta.”

“Vais castigar-me, dar um tau-tau?”

“Baza daqui.”

A brutalidade das minhas palavras – não apenas o que queriam dizer, mas a forma como as gritei – desativou a agente provocadora e trouxe a garota de volta, pelo menos por uns instantes. Respirei fundo, meti a mão na consciência. Chegava de dias nublados e sonetos de desamor e baixa luminosidade no apartamento.

(Margot apenas me escrevera um email, rápido, dizendo que tinha chegado e que, quando tudo acalmasse, escreveria outra vez.)

Benedita caminhou para a porta. Segurei-a por um braço, docemente, e puxei-a para mim. Afastei-lhe o cabelo da cara com ambas as mãos, tocando-lhe nas bochechas e depois nas têmporas. Pensei em Ricky. Pensei em Carlos. Queria ser o homem bom, o tipo que faz o que está certo. Em vez de beijá-la na boca, dei-lhe um beijo na testa (senti-me um padre paternalista). Benedita disse:

“Meu, isso também é demais.”

“Desculpa.”

“É melhor esperar-te lá em baixo. Mas toma um duche antes.”

“Vamos a algum lado?”, perguntei.

“Foi por isso que vim aqui.”

Uma hora mais tarde, estava com Ricky e Benedita na Rua Marquês de São Vicente, dentro de um carro, diante do shopping da Gávea.

“De quem é esta viatura?”, perguntei.

“Isso agora não interessa. Presta atenção”, respondeu Ricky.

Nos últimos minutos, o meu amigo explicara-me o plano para assaltar um banco no outro lado da rua. Como eu não estava a levar a palestra a sério, fui incapaz de registar os detalhes da operação. Mas envolvia um guarda que era amigo de 26 e que, a troco de uma propina, não puxaria da pistola. Ricky falou ainda do contributo de Benedita para aquela operação amadora – muito amadora. Ela estaria no banco como cliente e serviria de falsa refém se alguma coisa corresse mal.

Eu estava enjoado com a humidade que se acumulara dentro do pequeno carro de duas portas, as janelas embaciadas, o fumo dos cigarros de Ricky contaminando tudo.

“Tenho de vomitar, deixem-me sair”, disse.

“Fica quieto. Não podemos dar nas vistas”, disse Ricky. “Benedita, vê se há aí um saco de plástico no porta-luvas.”

“Nem pensar”, disse ela. “Este gajo não vai vomitar aqui dentro.”

Ricky abriu a janela do seu lado e o ar da rua aliviou-me. Ficaram calados, a olhar para mim. Ricky tinha um saco de supermercado na mão: “Queres?”

Sentia-me melhor. Disse: “Deixa-me convencer-te a não fazer isto.”

Ricky não esperou que continuasse: “Eu é que tenho de convencer-te de alguma coisa, por isso estás aqui.”

“Só te quero fazer duas perguntas.”

“OK, cowboy.”

“Quantas pessoas estariam envolvidas?”

“Cinco. Eu e o meu brother 26, mais um amigo dele. A Benedita como pseudo-refém. E tu ao volante. Foi por isso que te chamei. Sempre foste o melhor condutor do nosso grupo. Sempre tiveste mãozinhas de piloto de Fórmula 1. Fazes isto na boa.”

Depois de um momento em que a lisonja se apoderou do meu juízo, descartei os elogios de Ricky e prossegui:

“E vais usar este carro?”

“Sim, é desportivo, anda bem.”

“Estamos a falar de quatro pessoas aqui dentro, três delas com armas, mais sacos de dinheiro. Num carro de duas portas? Isso parece-te um plano bem pensado?”

“Preciso da guita, estou entalado com os mexicanos”, justificou Ricky.

“Volta para Portugal.”

“Achas que não há voos do México para Lisboa? Achas que eles não me encontram em Portugal?”

“Entendo que queiras salvar o coiro. Mas assaltar um banco? Não foste feito para as prisões brasileiras. Tenho de ir, Ricky, isto é um disparate.”

Dei-lhe um beijo na cara e um abraço. Aquela criatura era bizarra e disparatada e, no entanto, o meu afeto por Ricky subsistia aos anos e aos prejuízos provocados pela sua passagem. Ele abriu a porta, saiu para a calçada, puxou o banco do condutor e ajudou-me a sair.

“Não queres que te leve a casa?”

“Não, preciso de andar.”

“Mas está a chover.”

“Eu sei.”

Ricky fechou a porta e ligou o motor. Debrucei-me na janela:

“Estás a pensar fazer isto quando?”

“Antes do Natal. Tenho tempo para me preparar.”

“Não te metas nisso. E não metas a miúda nisso.”

“Ela é pior do que eu.”

O carro entrou na corrente do trânsito e caminhei até casa debaixo de chuva. Ao ver-me encharcado, o porteiro do prédio disse: “Amanhã vai ter sol e calor, é a primavera chegando.”

Nessa noite, escrevi mais um email para Margot. Na manhã seguinte corri oito quilómetros. Decidi ainda que iria acordar todos os dias às sete da manhã. Queria disciplina e foco. Iria dedicar-me apenas à escrita e à investigação. Não haveria mais festas, nem ressacas, nem palestras sobre assaltos de bancos.

Iria ser um homem diferente.

Tantas vezes repetira essa frase, ao longo dos anos, que já me custava acreditar nela. E, no entanto, continuei a fantasiar com a vida desse homem que nunca cheguei a ser. Nessa vida imaginada, Margot não estava a milhares de quilómetros de distância.

Bacalhau com batata a murro

A caminho do Bairro Peixoto, tentei ligar a Mikel Madariaga, como ele me pedira, caso decidisse visitar Pedro Cabral. Mas o basco não atendeu e deixei uma mensagem. Mikel avisara-me, sem especificar porquê, que o português não era de confiança. E uma vizinha de Pedro Cabral já me revelara a antipatia do português por animais e crianças. Mas, chegado ao Bairro Peixoto, fui encontrar outro Pedro Cabral: um gordo prazenteiro, com uma camiseta do Vasco da Gama, que parecia muito mais novo do que a sua idade – 65 anos, disse-me, quando bebíamos chá gelado no jardim. Estava tão feliz de ver um patrício que mandou a empregada fazer bacalhau assado com batatas a murro para o almoço. Falámos muito de futebol, de comida e de Lisboa. Esperei pela sobremesa para regressar ao assunto que ali me levara. Pedro Cabral, que fumava uma cigarrilha e tinha dentadura postiça, peidou-se, riu-se e disse:

“Então, quer que lhe fale de Lázaro, que foi Estácio.”

Já lhe tinha explicado a história do livro, deixando de fora o detalhe da PIDE. Pedro Cabral ergueu-se da cadeira e, no interior da sua pança, boiavam duas postas de bacalhau, meio quilo de batatas, mais meia garrafa de vinho. Perguntou:

“Tem alguma coisa para fazer esta tarde? Não? Ainda bem. E, se em vez de lhe falar de Lázaro, o levasse até Lázaro?”

“Onde é que ele está?”, perguntei.

“Na Ilha Grande. Há anos que se mudou para lá, a fim de ter sossego. Pegamos no meu carro e vamos. Chegamos antes do anoitecer. Escusa de falar comigo, ele pode contar-lhe tudo o que quer saber.”

Lembro-me de que ainda lhe perguntei: “Você está em condições para guiar? Eu só bebi água. Se calhar é melhor trocarmos.”

Entrei para o banco do passageiro. Não tenho memória sequer de chegar ao fim da rua. O que fosse que havia naquela água servia para tranquilizar equídeos insones. Foi como se deixasse de existir, um sono imediato, o oblívio. Se a morte fosse assim, não custaria nada.

Ilha

Era de noite quando abri os olhos. Estava numa espécie de cabana com uma só divisão. Havia vários caixotes e objetos sem uso há muito tempo: ferramentas, garrafas vazias, uma geladeira com pele de ferrugem, jornais de outra década. Ouvi o estertor das ondas do mar. Corri lá para fora como se fugisse de uma onça, empurrando galhos e arfando pânico. O regozijo de sair da escuridão, entrar no areal e molhar os pés desapareceu assim que me dei conta de que estava numa ilha e não podia sair dali. Olhei para a casa principal, uns 50 metros afastada da praia. Fragmentos de antanho espalhavam-se em redor dessa habitação rústica, em tempos acolhedora, agora apenas uma carcaça. Vi sapatos, brinquedos, talheres, uma poltrona, uma placa que dizia: “Vendo.”

Fumando uma cigarrilha, sentado na poltrona, estava Pedro Cabral, sem camisa e bebendo cerveja. Tinha um balde de gelo com várias latas a seus pés. Disse: “Puxa uma cadeira e senta-te no chão.” Tirou uma cerveja do balde: “Queres?”

Peguei na lata e o barulho gaseificado da abertura relaxou-me um pouco.

“Estás a precisar de calorias, fizeste uma longa soneca. O paizinho esteve a ver-te dormir.” Pedro Cabral antecipou a minha vontade de lhe esmagar a lata contra o nariz e puxou de um revólver. “Senta-te e bebe.”

Ao fundo, no horizonte negro, vi uma plataforma petrolífera, iluminada como se fosse um monumento antigo numa cidade europeia. Vi outra ilha, muito maior, e alguns barcos piscando na ondulação. Cheirava a mato húmido e a praia. Não devia haver nada mais tropical do que aquilo. Eu disse:

“Pedro Cabral, Estácio de Sá, e também havia mais um tipo da PIDE, que era amigo de Lázaro, um tal Viriato, que trabalhava numa fazenda. São tudo nomes de heróis lusitanos. Vocês só podiam estar a gozar, certo?”

“Vocês quem?”, perguntou Pedro Cabral.

“Vocês, da PIDE. Não me diga que vinham para o Brasil e adotavam nomes de mitos da História de Portugal, uma espécie de clube secreto, uma sociedade patriótica e clandestina que organiza combates de paintball contra a Maçonaria?”

“Quem te disse que fui da PIDE?”

“Com essa pinta de molestador, e tendo em conta as suas amizades, tenho a certeza de que torturou uns quantos.”

“És muito perspicaz. Mas não há sociedade secreta ou conspirações. Escolhíamos estes nomes como hoje os pretos escolhem os nomes dos rappers americanos para dar aos filhos. Cada qual tem orgulho naquilo em que acredita.”

Procurei uma arma ao meu alcance. Vi um chinelo e um livro de capa dura. Não ia muito longe com aquilo. Vi que um bote se aproximava da costa. O meu sequestrador disse:

“Fica calmo, ainda temos uns minutos. Vamos conversar, criar um clima.”

Pedro Cabral estava apenas de cuecas. Os seus dentes postiços mordiam a ponta da cigarrilha, a boca babava, as banhas suadas transbordavam da poltrona. Sorriu com a fleuma dos que seguram um revólver e estão prestes a realizar uma fantasia sexual. Apontou para o mar e vi a luzinha do bote a aproximar-se.

“Vem aí um amigo meu, vais gostar de o conhecer, trabalhamos muito bem juntos.”

“Pode explicar-me porque sinto que estou prestes a ser sodomizado e cortado às postas?”

“Só quero divertir-me umas horinhas.”

O amigo de Pedro Cabral saltou do bote a motor e puxou-o para a areia. Era um tipo com a testa obtusa. Observei a sua postura de corcunda e a falta de pescoço. Virei-me para Pedro Cabral e disse: “Pensava que já não faziam este modelo desde o neandertal.”

Estava prestes a iniciar-se a matança. Ele apagou a cigarrilha e usou o celular para dar música à festa. Olhou para o amigo deformado e disse-me: “Ele vai gostar mais de ti do que tu dele. Chamam-lhe o Chupa-Cabras.”

Tocava Little Drumer Boy, com um arranjo de sinos e coros natalícios, e eu estava prestes a ser maltratado de inúmeras e desagradáveis maneiras por um ex-PIDE e uma criatura que questionaria a certeza dos cientistas sobre a validade da teoria da evolução das espécies.

Escutei a música e perguntei: “Isto é o Sinatra?”

Old Blue Eyes”, suspirou o monte de banhas. E a música propagou-se pela praia.

(“Come they told me pa ram pam pam pam.”)

Pensei: e se aquele fosse o meu último momento de prazer, o vislumbre do oceano, a maresia embrulhando-se nas árvores, o coro de vozes na canção?

(“Our finest gifts we bring pa ram pam pam pam.”)

Houve um segundo de absoluta felicidade, tão intensa que poderia ter sido a última. Se a verdade não libertava (andava atrás dela e até então nada), então talvez a violência se apresentasse a melhor alternativa.

(The ox and the lamb kept time pa ram pam pam pam.)

Antes que Pedro Cabral se pudesse levantar da poltrona preguei-lhe um pontapé no peito e o velho rebolou para trás como uma almôndega. Queria sacar-lhe a pistola, mas Chupa-Cabras já estava no meu cangote. Espetei-lhe uma cabeçada, acertei-lhe mal e começámos ambos a espichar sangue. Ele, bastante menos afetado com o choque, cresceu para mim e catapultou-se, caindo sobre o meu peito com todo o seu peso de criatura ancestral, entalando-me contra o chão.

(“I played my drum for him pa ram pam pam.”)

Pensei: duas costelas já foram. Para não desmaiar, mordi-lhe uma bochecha. O sangue caiu sobre a minha cara e o horror do momento impediu-me que perdesse os sentidos por causa da dor.

(“I played best for him pa ram pam pam.”)

Chupa-Cabras desatou a correr pelo areal, guinchando como um caniche. Levantei-me para terminar o serviço. Mas Pedro Cabral ergueu-se primeiro e segurava a pistola. Aproximou-se, começou a dar-me bofetadas desdenhosas, quase sem força, sempre com a arma encostada à minha cabeça. De repente, deu-me um bofetão que, além de me castigar o nariz, o deixou excitado. Senti a coronha da pistola na minha têmpora, depois socos e pontapés. Ouvi um barco aproximar-se. Tinha a cara coberta de sangue (nem todo meu) e de areia. Mal conseguia respirar. Chupa-Cabras atou-me os pés e as mãos, arrastou-me e deixou-me cair. Não havia maneira de o barco chegar.

(“Then he smiled at me pa ram pam pam pam.”)

Os dois carrascos falaram alguma coisa mas já não percebia nada. E a canção soava como as botas marchando para um fuzilamento.

Breve conversa com Mister Sinatra

“Isto é um sonho?”

“Sim.”

“O senhor é o Frank Sinatra?”

“És um rapaz esperto.”

“Mas fala português?”

“O teu subconsciente emprega muitos intérpretes e tradutores.”

“Que estranho, lembro-me de si velho, e agora está aqui, mais jovem do que eu.”

“Isto é um sonho, vamos assumir que aqui se ignoram os princípios da lógica, do tempo e do espaço.”

“Está a tocar outra vez o Little Drummer Boy.”

“Gostas?”

“Não esperava que essa fosse a última música. Estou zangado consigo. Toda a minha admiração por si e depois deixa que eu seja sacrificado ao som de uma cançoneta de Natal… O senhor, que gostava tanto de levantar os punhos para a pancada, não foi capaz de fazer nada para me ajudar.”

“Preferias que tivesse tocado One more for the road?”

“Onde é que estamos?”

“Na rua.”

“Que rua?”

“A praceta onde cresceste.”

“Porque que é que o prédio está a ruir?”

“Para que possas salvá-los.”

“Quem?”

“A tua família, a tua mãe.”

“A minha mãe morreu.”

“Não te consegues mexer?”

“Não. Por favor, vá avisá-los de que a casa está a ruir.”

“Vai tu.”

“Não consigo.”

“Que conveniente.”

“Estou cansado, Mister Sinatra.”

“De não fazer nada? De fugir?”

“Vou morrer?”

“Isto é um sonho, não é uma profecia.”

“O que é que eles me fizeram?

“Terás de acordar para saber.”

“Tenho medo.”

“Eu sei.”

O terceiro homem

Depois do balde de água lançado contra a minha cara, Chupa-Cabras aproximou-se. Cheirava a alho, a couves, a latrina. Abriu-me as pálpebras com força. Como eu não parecia despertar, deu-me dois tabefes de seguida.

Sentia a dor nas costelas. Tinha partes do rosto entumecidas, mas nem podia definir quais, como se a minha cara fosse uma massa de sangue, suor, matéria deformada. Cuspi uma baba pastosa e vermelha. Estava outra vez na cabana, mas agora amarrado a uma cadeira. Pedro Cabral tapava a luz da Lua, na ombreira da porta. Chupa-Cabras afastara-se para um canto escuro. Um terceiro homem encontrava-se de pé diante de mim. Tinha corpo de quem passa a vida a escalar rochas e a comprar bicicletas para trepar cordilheiras. Um relógio opulento brilhava no pulso. Tinha pouco mais de trinta anos e, tenho a certeza, atravessara a adolescência como o mais bonito da escola. Falou com bons modos, como se me quisesse ajudar a resolver um problema.

“Boa noite. Lamento que esteja nesse estado. Parece que as coisas se descontrolaram um pouco. Mas vamos consertar o que está errado e continuar com nossa semana tranquilamente. Você me diz quem escreveu o tal livro, quem está na posse desse livro, e eu mesmo levarei você em um hospital e pagarei as contas.”

Falei, babando sangue: “Esses dois não podem andar à solta.”

“Você parece um rapaz esperto…”

“Não é assim tão esperto”, interrompeu Pedro Cabral. “Foi seguido durante dias e não topou nada.”

“Seguido por quem?”, perguntei. De cada vez que falava, a dor começava na boca e propagava-se a todo o sistema nervoso. Precisava de um hospital ou, pelo menos, de um analgésico.

O terceiro homem prosseguiu: “Não preciso explicar que você está aí, preso nessa cadeira, e eu estou aqui, de pé, livre.”

Chupa-Cabras soltou um sorrisinho guloso, o grito de um roedor.

Não há negociação ou alternativas. Ou você me dá o livro, e o nome de quem escreveu o livro, ou sairei por aquela porta e você ficará sozinho com esses dois senhores.”

“É preciso tudo isto por causa de um livro? Podiam ter dito logo no Rio de Janeiro, escusávamos de vir aqui parar. Quero lá saber do livro. Levem o livro.”

Mentia com os dentes que me restavam.

“Quem escreveu e onde está?”, perguntou o terceiro homem.

Tentava ganhar tempo: “Está em minha casa.”

“E quem escreveu?”

“Uma mulher, mas essa você já não vai apanhar.”

Esperando as drogas bater16

O terceiro homem pilotava uma lancha veloz que saltava sobre a água. Segurando-se com afinco para acondicionar a gordura do corpo em desequilíbrio, Pedro Cabral embranquecia nas faces adiposas, uma cara de enjoo, ainda mais repulsiva, expelindo suores frios. Para trás, ficou Chupa-Cabras, uma silhueta atarracada diminuindo de tamanho no pontão de madeira.

Entrámos com a lancha na marina. Já no parque de estacionamento, o terceiro homem mandou-me para o banco do pendura de um carro desportivo e Pedro Cabral pegou no automóvel que nos levara ali, seguindo-nos até ao Rio de Janeiro.

“De quem é a ilha onde estávamos?”, perguntei, tentando aliviar o aborrecimento da viagem.

“Pensei que tinha ficado claro que não me faria perguntas. Vamos fazer com que tudo seja simples e rápido.”

“Você até parece um tipo mais ou menos civilizado, como é que lida com aqueles dois abusadores?”, perguntei.

“Não vou avisar outra vez.”

“Quem é que me andou a seguir? Porque é que um livro vale um sequestro? Onde está Lázaro? Como é que você se chama?”

O terceiro homem agarrou-me pelos cabelos e espetou-me a cabeça contra a porta do carro. Por momentos, perdeu o controlo do veículo e entrámos na faixa contrária. Nunca largando mão de mim – primeiro, os cabelos, depois, uma orelha –, conseguiu recuperar a trajetória e deu-me uma bofetada olhando para a estrada.

“Vai ficar calado?”

Não respondi. Pensei o que pensava em criança sempre que me batiam: “Um dia vou apanhar-te e estás fodido.”

Era o prazer da vingança sem ter de mexer uma navalha. Era uma fantasia. Um dia (pelo menos na minha cabeça) espancaria Pedro Cabral, humilharia Chupa-Cabras, esbofetearia, com as costas da mão, o terceiro homem. Elaborei planos sanguinários, que implicavam uma complexa teia de punições e um crescendo de dor física e psicológica. Sabia que, provavelmente, não teria coragem ou destreza para ir adiante com esses planos. Mas reproduzi-los na cabeça era o único consolo permitido naquele momento, um analgésico para a humilhação. Tinha a cara coberta de altos e cortes, o nariz inchado, a cada movimento as minhas costelas pareciam rasgar um pedaço de músculo, aproximando-se cada vez mais dos pulmões.

Lembrei-me de quando parti um braço na escola, toda a noite a soluçar (a minha mãe já não estava), a dor agravando-se até que de madrugada os gemidos passaram a gritos. O meu pai pegou em mim ao colo e levou-me ao centro de saúde (também pegou na minha mãe ao colo no dia da ambulância e da casa intermitente de luzes vermelhas rodando nas paredes).

“Você está chorando?”, perguntou o terceiro homem.

“Não.”

Ele abriu o porta-luvas, procurou alguma coisa, sacou um frasco com comprimidos.

Vicodin, conhece? Estava em Miami, há uns meses, e tive de arrancar um dente do siso. Me receitaram isso.”

Vicodin tem cocaína e morfina. Procurem-se os efeitos secundários em qualquer motor de busca da Internet: megalomania, esquecimento, mudanças súbitas de humor, ninfomania, sem-vergonhice, crueldade e desconsideração, enfim, nada de novo na minha vida.

Mas Vicodin também é um dos mais lúdicos eliminadores de sofrimento físico. Não só adormece a dor, como dá onda, e até alucinações se tomado em excesso.

Abri o frasco e engoli dois comprimidos. Guardei outro no bolso.

Como todos os medicamentos americanos que exigem prescrição, aquele frasco tinha o nome do paciente numa tira branca de papel: “Vasco da Gama.”

Tudo me parecia cada vez mais absurdo. Não fiz perguntas, não tentei decifrar o que me estava a acontecer, quem eram aquelas pessoas.

Recostei o banco para trás e fiquei a olhar pela janela, nuvens e estrelas e copas de árvores passando diante dos meus olhos, que se foram fechando, aguardando qualquer tipo de alívio. Pensei: que o meu sangue se contamine depressa e arranque este espartilho das costelas, este medo criando nódulos nos pulmões.

Onde estás, Margot? Eu estou aqui, esperando as drogas bater.

Poção mágica

O botão do elevador era um círculo com um número, uma luzinha que se acendeu quando lhe toquei. Deu-me prazer tocar no plástico com o número incrustado e fi-lo repetidas vezes. Pedro Cabral disse: “Fica quieto, pareces uma criança.”

Vi-me ao espelho. O terceiro homem também estava no reflexo. Perguntou: “Quantos comprimidos tomaste?”

“Bué”, e comecei a fazer caretas para o espelho.

“Bué?”

“É uma palavra angolana, quer dizer muito”, disse Pedro Cabral.

O sonzinho do elevador, anunciando que tínhamos chegado, criou em mim uma intensa sensação de bem-estar. Entrámos no conjugado.

O terceiro homem, aliás, Vasco da Gama disse:

“Onde está o livro?”

Vasco da Gama olhou para o computador portátil em cima da minha mesa de trabalho. Fui mais rápido e peguei nele. Pus o braço de fora da janela e disse: “Se te aproximas, deixo cair esta merda.”

“Acha que isso vai resultar? Se você quebrar esse computador, destrói o texto, o que me convém. E, no final, porque foi idiota, ainda vai levar mais porrada.”

Pedro Cabral preparava-se para me obrigar a entregar o aparelho, mas a pequenez do conjugado dificultou-lhe os movimentos. Segurei o computador como um recluso segura num tabuleiro da cantina quando quer atacar um rival. Eis a minha vingança, o sacrifício necessário para recuperar a minha dignidade. Todos os meus textos, o livro de Marília, ideias para romances, tudo, mesmo tudo desfeito em peças quebradas no focinho de Pedro Cabral. Dei-lhe com o computador na cabeça várias vezes. Ele tombou de joelhos, ficando entalado entre duas paredes, impedindo o caminho. Vasco da Gama veio na minha direção e larguei o que restava do computador, comecei aos gritos, pulando como um macaco enlouquecido, tentando encontrar uma saída. Pisei o corpo caído de Pedro Cabral e saltei sobre a cama. Vasco da Gama ainda me agarrou pela t-shirt, mas o Vicodin era a minha poção mágica e a sobrevivência, a minha maior motivação. Livrei-me da manápula de Vasco da Gama e consegui esgueirar-me pela porta do conjugado. Os vizinhos já saíam dos seus apartamentos para ver o que se passava. Gritei, enquanto descia escadas abaixo: “Fogo, fogo.”

Na rua, ia largar a correr mas um homem impediu-me o caminho, saindo de trás de uma árvore:

“Vem comigo.”

Era Mikel Madariaga, que abriu a porta de um carro com o gancho metálico que substituía a mão e ordenou: “Entra, rápido.”

Vasco da Gama, saído do meu prédio, vinha na nossa direção. Pedro Cabral ficara quieto, com um lenço de pano sustendo a hemorragia do nariz. Queria pedir a Mikel que fizesse marcha-atrás e atropelasse o gordo. Mas o carro arrancou para diante, veloz, o gancho segurando o volante e a mão sobrevivente de Mikel sobre a manete das mudanças.

Entrámos na Prudente de Morais e seguimos para o Leblon. Começava a amanhecer, uma névoa azulada trepava pelas grades de metal dos edifícios, os primeiros atletas moviam-se para a orla, havia menos ônibus no alcatrão. Parámos num semáforo no fim do Leblon. Eu merecia algo de bom, algum prémio ou capricho satisfeito, queria sentir-me bem após tanto sofrimento físico.

“Posso guiar?”, perguntei.

“Oi?”

“Posso dirigir um pouco? Há meses que não pego num carro. Tenho saudades.”

Mikel olhou para o meu rosto maltratado, para o sangue ressequido na roupa, para as falanges esfoladas. Deve ter percebido o farrapo da minha alma ondulando ao vento. Pela primeira vez, abandonou a dureza habitual e as sobrancelhas relaxaram. Estava preocupado comigo. Abriu a porta, saiu e disse: “Vamos dar um passeio?”

Trocámos de lugar e apontei para a orla, as janelas abertas e o braço esquerdo de fora. Talvez fosse o Vicodin, as feridas agora mais expostas do que nunca, o pus, a humilhação e o cansaço vertendo dos rasgões abertos, toda a matéria podre querendo sair através dos inchaços na cara, da fratura no nariz, do meu torso em colapso; talvez sofresse de distância – Margot, Lisboa, o meu pai, o meu irmão, os poucos amigos que me acolheriam se voltasse; talvez tivesse chegado ao fundo, onde já não há mais reservas de coragem ou proteções para aparar as quedas; talvez, quiçá, se calhar, de repente, porventura. O que interessa?

Nada mais importava. O mundo podia foder-se por inteiro, com toda a gente lá dentro. O globo terrestre podia implodir, incendiando Pedro Cabral, Chupa-Cabras e Vasco da Gama, sacrificando o livro de Marília e os meus textos no computador em pedaços, obliterando Filipe e Lázaro, pulverizando Viking e Portugal.

Nada mais me interessava. Não senti medo, nem angústia, nem preocupação com o dia seguinte. Não quis saber quem me seguia, porque me batiam, onde estava Lázaro ou se Ricky iria acabar com um tiro na cabeça num quarto de motel.

Nada corria bem e eu estava a cagar-me para isso.

Tinha as mãos no volante, o Sol levantava-se, o oceano soprava manhãs de praia para dentro do carro. Carreguei no acelerador, a emoção da velocidade empurrando o estômago contra o banco. Lisboa podia ruir, incendiada por credores e revoltosos, e o Rio de Janeiro flamejaria fogos de orgia de fim de mundo. Só precisava de uma estrada junto ao mar, uma marginal cheia de curvas, um caminho que me levasse para fora dali, ladeado por bosques, falésias, sombras onde pudesse parar e dormir. Só precisava daquele carro, daquela madrugada, daquela estrada no limite da terra firme. Só precisava de um horizonte de mar e o depósito atestado de gasolina.

Ia a 120 km/hora na Vieira Souto.

Perdera o medo.

Se Frank Sinatra ali estivesse, diria:

“Perdeste tudo.”

Eu teria perguntado: “Então agora estou finalmente livre?”

Ele acenderia um cigarro e decretaria:

“Para a frente é que é caminho.”

E eu carregaria ainda mais no pedal do acelerador.

Promessas

O médico chamado por Jacob Dordogne a sua casa decretou, embora sem recurso a raio X, que eu não tinha partido as costelas, mas sofrera uma luxação que exigia descanso, analgésicos e relaxantes musculares. Desinfetou-me o rosto, suturou dois cortes – um no escalpe, outro no sobrolho –, endireitou-me a cana do nariz e perguntou-me: “Tinha sangue na sua urina?”

Quando o doutor se foi embora, aconselhando, na despedida, uma visita ao hospital, Jacob Dordogne e Mikel Madariaga prostraram-se na cabeceira da cama como se preparados para uma reunião de trabalho. Jacob pedira a uma empregada para aviar a receita na farmácia. Mas não havia maneira de vê-la entrar pela porta do quarto de hóspedes. O efeito do Vicodin desaparecera e não queria mais dor, perseguições ou medo. Precisava de uma nova couraça química para me proteger do mundo exterior.

Mikel aproximou-se, tinha informações sobre o que se passara nas últimas 24 horas e queria partilhá-las comigo. Talvez estivesse a reviver sonhos de guerras passadas, movimentos de resistência, planos secretos, uma forma de ajustar contas com o que correra mal na sua vida de guerrilheiro nacionalista.

Disse-lhe, delirando com as dores que me atormentavam as costelas: “A juventude é desperdiçada nos jovens.”

“Oi?”, perguntou Mikel.

“Se pudesse, dava-vos o que resta da minha juventude para que levassem a cabo todos os vossos planos para mudar o mundo e libertar os oprimidos. Eu não quero mais lutas. Prefiro dormir e desaparecer.”

Chegou a empregada com os remédios e ingeri tudo aquilo a que tinha direito. Pedi que fechassem as cortinas e saíssem.

“Preciso de dormir. Mereço dormir.”

Virei-me para o outro lado e fechei os olhos.

Imaginei-me num carro descapotável, entrando na marginal da Costa do Sol, passando pelas antigas fortalezas do império português, com Margot a meu lado e a certeza de que estávamos a caminho da praia do Guincho. Ela tinha um lenço na cabeça, óculos escuros e, em determinado momento, pareceu-me uma vedeta do cinema, com eyeliner da Mesopotâmia e cabelo tão negro como os xailes das fadistas.

E se eu voltasse para Lisboa? E se fosse atrás de Margot?

O efeito dos remédios interrompeu-me as interrogações, elevou-me docemente, o corpo flutuando acima do colchão, mantendo-me num lugar agradável, protegido de ataques. Há quanto tempo não estava realmente sóbrio? Há quantos meses? Há quantos anos? Há quanto tempo precisava de todo o tipo de drogas para suportar a aspereza e o aborrecimento do mundo? Há quanto tempo durava a minha fuga?

Pensei aquilo que pensara tantas outras vezes, quando chegava à cama de madrugada e em muito mau estado:

“A partir de amanhã vai ser diferente.”

Nada me faria crer que, por uma vez, a decisão fosse adiante. Mas lembrei-me de que tinha ficado sem todos os textos escritos desde que conhecera Marília. Meses de trabalho apagados para sempre, jornadas diárias de escrita, vários livros em desenvolvimento, ideias, rascunhos e tantos, mas tantos textos para Margot e sobre a minha infância. Não tinha feito cópias, não enviara nada para o meu email por preguiça, deixando sempre a tarefa de armazenamento de textos para o dia seguinte. O meu descaso pelo que era importante fora-se intensificando ao longo dos anos, e agora provocava uma perda insuportável. O meu desleixo permanente pagava-se caro, doía mais do que todas as ressacas e tareias.

“A partir de amanhã vai ser diferente.”

Só me restava escrever, escrever para salvar a vida, escrever para ocupar os dias, ter alguma coisa que fazer, algo a que me agarrar e ficar quieto.

Iria escrever como quem faz pão todas as manhãs. Escrever com brio de profissional assíduo e entrega de militante.

Escrever todos os dias. Escrever para tapar o poço. Escrever para não me drogar. Escrever para trazer Margot de volta ou para criar uma história onde fossemos felizes sem a ansiedade de sermos felizes.

Não peço mais do que isso: escrever.

Escrever-te, Margot.

Traje de super-herói, corpo de escritor espancado

Despertei devagar, deixando a cabeça afundada no travesseiro e percebendo, através da mancha de baba na fronha, que desfrutara de um sono fundo. Longas horas de descanso, por fim, antes de começar tudo outra vez: escrever. Não me esquecera da promessa.

Entre as cortinas do quarto havia uma língua de luz. Era impossível dizer as horas do dia. Tentei levantar-me e senti as primeiras dores. Sem o efeito dos analgésicos, tudo machucava mais. Ergui-me, cerrando os dentes, mas largando gemidos a cada passo. Ouvi uma estação de rádio e segui a música. Numa sala com as janelas abertas, Jacob Dordogne, vestido como se para uma cerimónia filmada por Fellini, lia um jornal estrangeiro com Branca olhando as páginas, pousada no seu ombro, talvez verificando os resultados de críquete.

Vi-me no espelho e pensei: tende piedade de mim. Estava apenas de cuecas, a carne sumindo dos ossos, lanhos secos, hematomas, golpes suturados e olheiras de todas as reencarnações passadas. Fui outra vez assolado por uma sensação de absurdo, agravada pela minha quase nudez. Estava mais magro e encolhido, em trajes menores e diante de um homem com um pássaro como dama de companhia. Disse:

“Preciso da minha roupa e de ir para casa.”

“Calma, senta, come qualquer coisa. Temos muito que falar.”

“Agradeço a sua ajuda e não esqueço o que o senhor e o Mikel fizeram por mim. Mas quero ir para casa. Tenho de escrever.”

“Você acha aconselhável ir no seu apartamento depois do que aconteceu? Eles andavam seguindo você fazia mais de uma semana. Pode ter alguém lá, vigiando o prédio.”

“Eles quem? Sabe uma coisa, não me interessa. Vou buscar a minha roupa e pôr-me a andar daqui para fora.”

Jacob Dordogne tocou uma sineta de prata e uma mulher de jeans e top curto – a mesma que fora buscar os meus remédios – apareceu diante de nós, alta como a chefe de uma tribo, ágil como um espadachim em movimento.

“Minha querida”, disse Jacob, “traga um roupão para o nosso convidado e sirva o café da manhã, por favor”.

Quando ela saiu, Jacob explicou-me que acolhera Eloise após o terramoto no Haiti. Fora para o Brasil como refugiada, de Port-au-Prince, e, após vários erros da burocracia nacional, acabara sem casa ou sustento. Jacob lera a notícia do caso num jornal e procurara a garota. Eloise estava ali havia seis meses, recebia um ordenado como ajudante pessoal e auxiliar doméstica. Ele incentivava-a a sair de casa e a conhecer rapazes, fazer amigos, dançar em festas. Eloise regressava sempre com notícias do exterior. E era assim que, através de Eloise, de mim, de Mikel e de (imagino) outros, o velho franco-brasileiro ia vivendo o mundo lá fora. Não era nada de condenável. Sabia que ele tinha boas intenções. Mas eu queria escrever e ele, já suspeitava, não iria parar de falar durante horas.

“Gosto de ajudar as pessoas, de me envolver”, disse Jacob.

“Já sei, a evolução da espécie. Desculpe, mas hoje não tenho mesmo tempo para lições.”

Jacob bateu com a mão na mesa. Branca levantou voo aos berros, fazendo rodar as asas em redor da mesa de jantar, roçando-as nas paredes, até desaparecer no corredor.

Como numa peça de teatro bem ensaiada, a saída de Branca coincidiu com o regresso de Eloise. Trazia um tabuleiro com comida e, pendurado no ombro, um roupão de veludo negro. Jacob escondeu, por momentos, o desagrado com a minha insistência em partir. Sorriu para Eloise enquanto ela servia o café. Em seguida, a haitiana veio ajudar-me a vestir o roupão. Parecia justo, mas acomodava-se elegantemente no meu esqueleto. Era como se pudesse esconder o corpo ferido numa armadura macia. Olhou para mim:

“Parece um super-herói.”

O toque do veludo do roupão na pele reconfortou-me as dores. As palavras de Eloise ergueram o meu amor-próprio da poça de lama. Ela saiu de cena e Jacob recuperou a cara de confronto.

“Senta, come e escuta. Depois vá fazer o que você quiser. Pode até escrever uma enciclopédia ou ficar em casa escrevendo até ficar cego. Mas pare de fugir e enfrente a verdade.”

“A verdade não liberta. Eu tentei, acredite.”

Olhei para a comida, para o suco de laranja recém-espremido. Havia ovos mexidos com cebolinho. A fome, já se sabe, não é boa conselheira, e eu não comia há muito tempo. Sentei-me, esganado, querendo mastigar tudo, falando de boca cheia (desculpa, mãe), entregando-me a Jacob sem resistência. Escreveria mais tarde, de barriga aconchegada e calorias restabelecidas. Um escritor também precisa de sustento para a carne. Nem só de analgésicos vive o paciente. Ouviria o velho durante o tempo que leva um esfomeado a retraçar três pequenos-almoços.

“Dormi quantas horas?”, perguntei.

“Um dia e meio.”

“Que horas são agora?”

“Seis da manhã. Eu sou velho. Durmo pouco, acordo com a primeira luz.”

“É fodido ser velho?”

Dessa vez, Jacob Dordogne foi direto ao assunto: tanto ele como Mikel ficaram atentos quando souberam da minha investigação. Não iriam impedir-me de levar o livro até Lázaro, bem pelo contrário, mas temiam que alguma coisa ruim acontecesse no caminho.

“Uma coisa como Pedro Cabral?”, perguntei.

Jacob acenou que sim e prosseguiu o relato dos últimos dias. Mikel passara a vigiar-me.

“Para sua proteção”, justificou Jacob.

Mikel sabia que eu me encontrara com Mariana, na Barra, e que também visitara Pedro Cabral, sem sucesso, uma primeira vez, no Bairro Peixoto. O basco deu-se conta de que, a determinado momento, não era a única pessoa que me acompanhava de longe na última semana – um homem que conduzia um carro blindado, com vidros escuros, também rondara o meu prédio e fizera perguntas aos vizinhos. Mikel seguiu esse indivíduo. Tratava-se do motorista e segurança de Vasco da Gama. Mikel focou-se então em Vasco da Gama e descobriu que este namorava com Mariana e que viviam numa cobertura no Leblon. Viu também como Vasco da Gama visitou Pedro Cabral, um dia antes de eu entrar naquela casa do Bairro Peixoto para ser drogado, sequestrado e sovado.

“A ver se o entendo”, disse depois de engolir meio pão francês. “Vasco da Gama foi a casa de Pedro Cabral para o avisar da investigação?”

“É bem possível. Segundo soubemos, Pedro Cabral não abre a porta para muita gente. Não me parece apenas coincidência que esse Vasco fosse falar com o português depois de você visitar a namorada dele, a tal Mariana. Você levantou poeira, falou do livro, as coisas vão-se sabendo, essa cidade é muito menor do que parece.”

“Nunca supus que o livro originasse tanta confusão.”

“Talvez se você tivesse sido mais prudente, se soubesse melhor com quem estava lidando. Me sinto culpado, devia ter explicado que Pedro Cabral era um indivíduo bizarro. É por isso que quero ajudar você. Eu e Mikel.”

Jacob contou ainda que Mikel me tinha seguido do Bairro Peixoto até à Ilha Grande. Esperara horas na marina, sem saber o que tinha acontecido. Depois voltara a seguir-me quando eu regressara com Vasco da Gama ao Rio de Janeiro.

“Mikel está tentando apurar mais informações sobre esse Vasco da Gama. Até agora sabemos que é namorado de Mariana, cuja família tinha relações próximas com Lázaro. E que conhece Pedro Cabral, que também era amigo de Lázaro. Uma dessas pessoas tem interesse em que a verdade não se descubra e que o livro não seja publicado.”

No rádio, que tocava baixinho, uma voz disse a data e a hora. A agenda mental que calendariza as minhas deslocações pelo planeta ativou um alerta vermelho. Lembrei-me do dia e do mês de entrada no Brasil, a data escrita no meu passaporte. Estava ilegal no país havia uma semana e nem tinha dado conta. Se saísse do Brasil, se fosse em busca de Margot, não poderia regressar tão cedo.

Precisava de falar com ela. Procurei o telemóvel. Pela primeira vez em muito tempo quis ligar-me ao mundo.

“Tenho de ir a casa. Está lá o meu celular. E o meu computador. O que resta dele.”

“Não seja pateta. Nesse estado? E sozinho? Eles podem estar lá, esperando você.”

“Tenho de ir.” Levantei-me e tentei gritar, embora as dores apenas me tenham permitido uma amostra de voz: “Eloise, preciso da minha roupa.”

“Deitámos tudo no lixo, estava imprestável. Eloise preparou um dos meus ternos para você. Somos mais ou menos do mesmo tamanho. É um presente. Vou ligar para Mikel. Ele vai com você em casa.”

O basco apanhou-me na calçada. Olhou para o meu traje de gala, para a minha cara túmida:

“Que estilo é esse? Uma mistura entre Homem Elefante e James Bond de Copacabana?”

Foi a primeira vez que vi o seu sorriso.

Lar despedaçado

Os remédios, tomados antes de sair da casa de Jacob, começaram a fazer efeito e senti-me mais seguro. Queria enfrentar os estragos resultantes das minhas ações e, ingenuamente, esperava que o computador ainda lá estivesse, que fosse possível, por algum milagre da informática, recuperar os textos.

Pedro Cabral e Vasco da Gama não deixaram nada por partir no conjugado. Os cacos do computador desapareceram e o telemóvel deve ter sido tirado das minhas calças quando estava inconsciente, na ilha. Lembrei-me de todas as mensagens lá armazenadas. As sms de amor ridículas para Margot. (Todas as sms de amor são ridículas.) E as mensagens trocadas com Filipe sobre o livro.

“Temos de ir a Santa Teresa”, disse.

Tirei a roupa que pude para sacos de lixo. Não havia muito para levar. Aquela já não era a nossa casa, Margot, era um reflexo da ruína desses dias, objetos partidos pelo chão, loiça acumulada na pia, uma memória de felicidade corrompendo-se diante de mim.

Bati a porta e informei Mikel de que deveríamos visitar Filipe, uma vez que, caso tivessem lido as mensagens trocadas entre nós, podiam associá-lo facilmente ao livro.

Chegámos a Santa Teresa e, estacionados diante da casa de Filipe, esperámos um pouco. Pela janela aberta assobiei e chamei os cães:

“Boogie. Fera.”

O jardim, atrás dos muros, continuou silencioso. O portão estava encostado e entrámos. Tudo se mantinha igual, mas, olhando pelas portas envidraçadas da casa, via-se o alvoroço da sala – não o desconcerto de uma festa que perdeu o controlo, em vez disso, a destruição das coisas como forma de ameaça. Filipe não estava. Quase de certeza que Pedro Cabral e Vasco da Gama tinham passado por ali.

Dei-me conta de que, além de ilegal, me encontrava também sem abrigo.

Estávamos na rua, encostados ao carro, fumando um cigarro, e Mikel disse: “Pode ficar na suite do velho Jacob. Mesmo em minha casa se arruma alguma coisa. Na rua você não dorme.”

O bairro estava tranquilo. Os analgésicos almofadavam os ruídos. Eu era ilegal, não tinha casa e, de repente, num táxi que passou diante de nós, julguei ver Viking. Talvez fosse efeito dos remédios ou do desespero, mas não era a primeira vez, desde que chegara ao Rio, que julgava ver o meu perseguidor nas ruas da cidade.

Disse: “Vou dar o fora.”

“Para onde?”, perguntou Mikel.

“Isso não lhe posso dizer.”

Décimo terceiro email para Margot

Meu amor,

Gostei muito de receber o teu email. Fico feliz que o tio Virgílio esteja melhor e tenho cada vez mais curiosidade de conhecer a tua mãe. Sabes, ando cansado do Rio, pensei visitar Lisboa, ficar aí uns tempos, quem sabe uns meses. Imagino os domingos contigo, junto ao Tejo, comendo gelados (em vez de sorvetes), as almoçaradas no Meco, a bipolaridade da Rua da Rosa, tão plácida e campestre durante o dia e tão alvoroçada de boémia e vomitado noite dentro. Mas vamos a coisas práticas: gostavas que fosse a Lisboa?

Décimo quarto email para Margot

Meu amor,

Não respondes? Por favor diz alguma coisa, começo a ficar preocupado, já lá vai quase uma semana desde que te escrevi. Diz-me só se estás bem.

Décimo quinto email para Margot

Querida Margot,

Desculpa se te sentiste pressionada. Sei que tens muitas coisas com que lidar aí neste momento. Talvez tenhas razão e não seja a melhor altura para eu ir a Portugal. Por aqui tudo bem, nada de importante que valha a pena relatar. Prometo que dou um mergulho por ti. Saudades.

Primeiro email de Filipe

Meu caro,

Não é seguro falarmos. É melhor manter-se quieto e escondido durante uns tempos. É o que estou a fazer. Quando achar conveniente volto a contactá-lo. Cuide de si.

Abraços, Filipe.

01 vai de cana

Li o email de Filipe várias vezes. Há algum tempo que eu cancelara a investigação e o prejuízo que me causara. O meu corpo endireitara-se, as feridas sararam. Eu já não pedia analgésicos, deixara de tomar drogas, mesmo maconha. Fazia flexões e abdominais logo pela manhã. Esquecera o livro de Marília e a sua verdade. Não era um homem de causas. Conformei-me com o meu egoísmo – e com o meu instinto de sobrevivência – para me dedicar apenas a escrever.

Após ler o email de Filipe, levantei a cabeça, olhei à minha volta e reparei que, além da dona do bar, eu era o único adulto naquela divisão. Não era bem um bar, era uma espécie de garagem onde havia várias arcas frigoríficas, garrafas vazias de Coca-Cola arrumadas nos cantos do balcão, calendários fora do prazo de validade nas paredes. Podia ser um desses bares no meio do deserto ou no âmago da selva. Parco mas confuso na decoração, gasto pela distância, longe de tudo, mas ligado ao mundo por wi-fi. Além do serviço de bar, dona Nereusa, a proprietária, investira em computadores após a morte do marido (ajuste de contas entre traficantes) e após a morte do filho (ajuste de contas entre polícias e traficantes).

Nas horas que se seguiam ao jantar, dona Nereusa vendia cerveja e cachaça aos graúdos enquanto um grupo de crianças ocupava os computadores. Todos eles manobravam personagens de videojogo que saíam pela cidade para matar velhinhas e explodir prédios com tiros de tanque. Percebi que jogavam online, uns contra os outros. Só um deles se entretinha com algo distinto. Levantei-me para pagar os minutos de Internet, espreitei e vi que na telinha do rapaz corria o vídeo de um tsunami.

Perguntei-me se, com a idade dele, já sabia o que era um tsunami. Duvido. As coisas andavam cada vez mais depressa. E se antes queria ir junto com elas, tão faminto de emoção e entretenimento como os garotos que jogavam online, agora as coisas (o mundo lá fora) passavam por mim e eu nem virava a cara para olhar.

Fechei-me num abrigo antibomba, quis ser o monge franciscano da escrita, desintoxiquei o sangue, mudei-me para um lugar onde ninguém, esperava eu, me procuraria.

Entreguei o dinheiro a dona Nereusa, que me disse: “Está tristinho, filho?”

Sorri para lhe mostrar uma alegria que não tinha.

“Toma”, disse, entregando-me um copo de cachaça. “Bebe essa para espantar o capeta. Hoje está sendo um dia muito estranho, mas o santo me diz que amanhã vai ser pior.”

Saí para a rua e olhei o morro, as árvores, inspirei um cheiro de campo, de férias, senti o mesmo calor que me incitava a dormir na varanda de uma casa no Algarve quando era criança. A minha mãe punha um colchão de praia sobre a tijoleira e deixava-me ficar ali, ouvindo as histórias da rua, gente que subia e descia, diálogos de bêbedos, o meu espanto de criança que achava que tudo o que acontecia depois da meia-noite tinha sempre mais apelo.

Passou por mim um mototáxi com o seu rasto de flatulência, um odor a combustível que se podia sentir por toda a cidade, por vezes misturado com gás, a contínua promessa de uma explosão.

No outro lado da rua, paredes-meias com um boteco, estava uma boca de fumo. Vi 26, conversando com soldados de metralhadora. Cumprimentei-o de longe. Subi a calçada e, antes de ir para casa, fui ver a cidade no mirante da Rua 3.

Estava no Vidigal havia duas semanas. Primeiro mudara-me para o apartamento de Ricky. Fiquei no quarto onde se encontrava toda a parafernália para o assalto ao banco. Mas, logo na primeira noite, a sonoridade das práticas sexuais arrojadas de Ricky-a-Jato & Dita Incendiária impediu-me de pregar olho.

Na manhã seguinte, encontrei Kay na rua e ela convidou-me para tomar café no terraço. Ouvindo as minhas queixas sobre a falta de sono, propôs-me ficar no outro quarto de sua casa. Só precisava de rachar as contas.

Eu sofria de fadiga de viajante e queria descanso. Disse-lhe que sim, aliviado, e contemplei as ilhas no mar e o casario desconcertado da favela. Havia, naquela decisão, um comodismo justificável: estava fodido por dentro e por fora. Queria sossego. Mas havia também um desejo de conhecer melhor Kay, tanto para lhe sugar histórias como para perceber se tinha dormido com a minha namorada (eras ainda minha namorada, Margot?).

Não se tratava apenas do típico masoquismo dos homens – “quero saber o que se passou” – se confrontados com uma alegada traição. Eu tinha também outras motivações, mais animais. Mas isso, confesso, ainda não percebera. Hoje, porém, posso dizer que me meti, voluntariamente, na toca e na boca da loba.

Dona Nereusa tinha avisado: o dia seguinte seria mais estranho. “Nem”, nome de rua de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o 01 da organização criminosa Amigos dos Amigos, a quem os membros da comunidade e associados tratavam por “presidente” ou “mestre”, foi apanhado pela Polícia na bagageira de um carro. Nem chefiava o grupo que dominava a Rocinha e o Vidigal e nessa noite, na favela, não se falava de outra coisa.

O comportamento da Polícia, que recusou o suborno do traficante (um milhão de reais) no momento da detenção, foi comentado em toda a cidade, dos barracos de Manguinhos aos triplexes da Lagoa, e celebrado por colunistas de jornal e políticos.

Embora ansiando por uma mudança, os habitantes da comunidade não acreditavam que aquele ato – um polícia recusar um suborno – fosse suficiente para mudar o relacionamento dos bandidos com as autoridades. Para eles, os polícias continuariam a receber dinheiro dos traficantes, a roubar casas sempre que houvesse uma invasão da favela, não estariam ali para servir, mas para extorquir. Mão pronta para esbofetear e dedo leve no gatilho.

Kay estava sentada no sofá da sala, procurando informação online sobre a prisão de Nem.

Pedi-lhe: “Conta-me a história desse Nem.”

Kay virou-se para mim, cruzou as pernas como se fosse meditar, entrelaçou os pés atrás dos joelhos, mantendo as costas direitas e os mamilos firmes – eram cor-de-rosa, o círculo pequeno, o topo do bico erguia-se alto, como a ponta de um dedo. Uma ou duas vezes se inclinou para diante, durante a conversa, e pude ver, através da t-shirt lassa na gola, o seu peito nu, mais pequeno que a minha mão em copa, e a transgressão do metal que atravessava os seus mamilos.

Tive de me concentrar para ouvir a biografia de Nem.

Durante a década de 70 do século xx, misturaram-se na mesma cadeia os criminosos de delito comum com os presos políticos da ditadura. O convívio criou uma espécie de seres mutantes: bandidos que aprenderam táticas de guerrilha, que foram ensinados a montar uma estrutura, a manter uma organização, uma hierarquia, funcionando como um exército, um negócio, um empreendimento a longo prazo. Na década de 80, por causa das múltiplas evasões e libertações daquela cadeia, várias favelas cariocas já eram controladas pelo Comando Vermelho – um grupo organizado de traficantes que trocou os assaltos violentos, a tiro de pistola e soco na cara, pela mais rentável indústria do tráfico de droga e de armas. Nos anos seguintes, aproveitando o desarrumo de becos, escadinhas e porcaria nas favelas, o Comando Vermelho tirou vantagem das características do território, mas também da ausência da Polícia. Por esses tempos, os carros-patrulha deixaram de subir a favela.

O morro tinha seus donos, armados e prontos para gerir a comunidade. Nada mais nada menos do que uma máfia. E, como seria de esperar, onde há droga, armas, dinheiro e muita testosterona há sempre alguém que mata pelo poder. O Comando Vermelho foi dando origem a dissidentes e grupos rivais.

Um desses grupos, os Amigos dos Amigos, dominava a Rocinha e o Vidigal havia já alguns anos, mas antes, contara-me Kay, o Vidigal chegara a estar divido em parte baixa e parte alta, cada território dominado por um grupo. Nessa altura, a barra ficou pesada para os civis: balas perdidas, supostos delatores executados, um permanente estado de alerta e o medo diário da morte de um familiar a caminho do trabalho.

“Nem tinha uns trinta anos quando entrou para o tráfico. Era faxineiro num salão de beleza em Ipanema. Imagina? O grande senhor do tráfico varrendo cabelo? Diz a lenda que o cara pediu dinheiro emprestado para um traficante – falava-se de 400 mil reais – para poder operar a filha que tinha uma doença rara.”

Kay disse que, de facto, Nem trocara a vassoura de faxineiro pelo tráfico a fim de conseguir pagar o tratamento da filha, mas que nunca pedira 400 mil pratas emprestadas.

“O que importa é que em pouco tempo ele mudou o tráfico na Zona Sul e chegou a 01 dos Amigos dos Amigos. Como líder, não só conseguiu impedir guerras com fações rivais, como começou aplicando princípios de gestão no negócio das drogas e contratou um profissional para botar ordem nos livros e nas contas.”

Kay explicou ainda que Nem passou a refinar a cocaína na Rocinha, cortando assim nos custos e controlando a qualidade do produto nos seus laboratórios. Pagava aos associados todas as sextas-feiras. Em vez de ter um armazém com armas que, durante uma invasão policial, poderiam ser aprendidas, cada soldado era responsável pelo seu fuzil.

“Conheceste o Nem?”, perguntei. “Como era ele?”

“Nos cruzámos umas quantas vezes. Conhecia pessoas que o conheciam. Vi ele passeando com a mãe, lá na Rocinha. Era muito chegado na mãe.”

Kay contou-me que Nem tinha cinco filhos biológicos e que adotou outros dois. Dizia, em entrevistas, que acreditava em Deus e apregoava que fazia mais bem do que mal.

“É verdade que os traficantes ajudam a comunidade. No outro dia, por exemplo, um menino teve um acidente feio, foi atropelado por um mototáxi, e eles levaram o garoto para o hospital e se comprometeram a pagar as contas médicas.”

“Eles quem?”

“Eles, a firma, o tráfico. Mas depois deram uma surra no rapaz do mototáxi.”

Nem não era tão magnânimo ou benfeitor como queria parecer. Era normal, como aconteceu com o motociclista que atropelou o menino, que o chefe do tráfico ordenasse sovas, algumas públicas, para que a lição fosse aprendia pela comunidade. Delatores e ladrões também eram severamente punidos.

Kay levantou-se. Não era a primeira vez que respondia às perguntas de um visitante gringo contaminado por toda a cultura favela pop. E Kay, embora sendo estrangeira, estava ali havia mais de dez anos, vivera sob o reinado de vários traficantes e fações. Sabia do que falava.

Fui mais longe:

“Viste algum homicídio?”

“Se é para falar dessas coisas, vamos beber.”

Kay foi buscar uma cerveja. Na volta, contou que, num baile funk, no Vidigal, viu como um moleque foi espancado por roubar uma bolsa de mulher e como um homem bêbedo, que várias vezes tinha roçado a braguilha e as mãos nas garotas que passavam, se declarou tio do moleque espancado e elemento importante na hierarquia dos Amigos dos Amigos lá na Rocinha, exigindo o couro dos agressores do seu sobrinho. Mas os traficantes que tinham castigado o rapaz também pertenciam aos Amigos dos Amigos, embora atuassem no Vidigal. Gerou-se ali um problema, cuja resolução ficou suspensa no momento em que todos sacaram das pistolas.

“O que aconteceu?”, perguntei.

“O que é que você acha?”

Um dos homens do Vidigal disparara a arma contra o peito do tio bêbedo do moleque. O seu parceiro fizera o mesmo.

“Eu vi”, disse Kay. “Mas do que me lembro melhor é do som dos tiros e dos gritos das pessoas.”

O corpo foi pendurado de pernas para o ar, num barraco, drenado de sangue, cortado aos pedaços e lançado aos porcos. Os dois assassinos esconderam-se ou fugiram da favela. Caso ficassem, seriam punidos pela cúpula da Rocinha. Nunca mais se soube nada deles.

“Ninguém foi castigado?”, perguntei.

“Não chega?”

Kay parecia irritada com a minha curiosidade mórbida. Disse: “Sabe aquele terreno no topo do morro, onde rolou a festa? Tem ideia de quantos corpos estão lá enterrados?”

Vidi, vidi, vidigal

Eu nada tinha a ver com o Vidigal, não posso dizer que entendi o morro como Kay e muito menos como 26 ou dona Nereusa. Não tinha vivido os tempos de violência bárbara, não percebi na prática aquilo que ouvia daqueles que ali nasceram e foram criados. Nas semanas que ali passei, o que mais me ficou foi a sensação de ter subido ao Morro Mágico, onde o ar (apesar do lixo e dos vapores de gasolina) tinha as qualidades das águas termais. No Vidigal fui feliz, espreitando a cidade muitos metros acima do nível do mar, longe do ininterrupto arroto da metrópole.

Se o Super-Homem tinha a Fortaleza da Solidão, no Ártico, se o Batman dispunha da Batcave no subsolo da sua propriedade nos arrabaldes de Gotham, se o Homem-Aranha recorria ao cume dos arranha-céus de Nova Iorque em momentos de calamidade espiritual e de contas em atraso, também eu teria o meu lugar de retiro e fortalecimento.

No Vidigal convalesci e, sem me dar conta, preparei-me para o combate que se aproximava. O corpo ganhou peso e a cabeça andava mais centrada entre os ombros, ocupando-se apenas com a escrita, à mão, e com as funções vitais, com o quotidiano do morro. Deixara a maconha e fumava apenas cigarros de enrolar. Todos os dias subia e descia a ladeira várias vezes, miscigenava-me, almoçava carne guisada com arroz e feijão, ficava sentado na esplanada de dona Nereusa, escutando o rádio e a voz da proprietária, que se sentava a meu lado e fazia as vezes do jornal da aldeia.

Não esquecia os homens armados nas ruas ou as crianças – os “aviõezinhos” – que serviam para transportar pequenas doses de droga. O tráfico entranhara-se em tudo. Mandava nos negócios de mototáxis e no serviço ilegal de Internet e TV cabo. Substituía, de uma forma perversa, chantagista, mas também humanitária, o Estado e a Polícia. Ainda assim, havia uma outra vida além dos laboratórios de refinação de cocaína e dos oficiais da Polícia que compravam carros com o dinheiro do arrego17. E foi com essa vida, feita de uma rotina, foi nessa placidez quase campestre, composta pelo canto dos pássaros e pela música dentro das casas, que recuperei forças para escrever sem parar e fui restabelecendo o lado esquerdo do peito. Foi por causa do Vidigal, das suas mulheres e dos seus homens, foi por causa do casario na encosta e dos passeios noturnos com vista para as rotas dos navios, foi por causa do vigor do morro e da informalidade entre vizinhos, foi por causa da criatividade que pulsa em cada recanto – uma prova dos poderes feiticeiros do morro Dois Irmãos – que consegui, pela primeira vez em muito tempo, simplificar a logística da minha existência e parar a cavalgada rumo ao desastre.

Por esses dias conheci outro português – havia vários no Vidigal. Gustavo era ilustrador e dividia casa com Boris, um pintor alemão que, constava a lenda entre as meninas do morro, tinha deixado prole pelos vários portos onde passara. Boris rodara o globo em circum-navegação e, havia meia dúzia de anos, chegara ao Vidigal para ficar. Gustavo e Boris estavam para a paquera como a dupla Garrincha e Pelé para o futebol ou Butch Cassidy e Sundance Kid para as coboiadas.

Gustavo fazia ilustrações para jornais e revistas de vários países, Boris preparava uma exposição em São Paulo. Mas todos os momentos livres eram dedicados a fumar maconha, a beber cerveja e a falar do mais importante de todos os temas, aquele que mais os consumia e aliciava: boceta.

Comecei a visitá-los ao final da tarde. Gustavo, que fazia um café filho da mãe, recebia-me sempre com uma xícara e um baseado. Eu aceitava o café, recusava a maconha. Eles gostavam de esfumaçar no mirante, com vista para a praia, e ali decorriam grandes debates sobre o tema central das suas vidas.

Boris falava de um trio sexual em que participara. Gustavo largou o fumo pela boca e disse: “Este é o alemão mais carioca que vais conhecer. Se a menina vacila, ele triunfa. No ano passado, no meu aniversário, ofereceu-me uma garota.”

“Profissional?”, indaguei.

“Népia, mano, a minha forma sustentável de viver não permite que pague por boceta se por estas paragens ela é abundante e de graça. Para quê perverter a natureza grátis das coisas? Que se foda a economia contemporânea. Eu viveria muito bem com a troca direta e o amor livre.”

Riram-se muito, por causa da maconha. Por um instante quis revisitar o sabor adocicado da erva, senti saudades de um mundo mais macio e gracioso.

Não cedi, não fumei, mas ouvi a conversa dos rapazes, um regresso aos tempos de liceu e das férias com amigos, horas de conversa disparatada, entretenimento gratuito.

“Mas explica lá como é que ele te ofereceu uma miúda”, perguntei.

“Estávamos os três num bar. Ela até estava a fim dele, mas fui ao banheiro e, quando voltei, o alemão já não estava lá, só ela, que me disse: ‘Sou o presente de aniversário do Boris para você.’”

“E o que é que tu lhe disseste para ela ir na conversa?”, perguntei ao alemão.

Ele pensou, encolheu os ombros e confessou: “Não me lembro.”

Gustavo e Boris riram-se tanto, durante tanto tempo, que me apeteceu fumar o maior baseado jamais fabricado no Vidigal.

Com aquela dupla eu era outra vez rapazote, partilhava com eles o desassossego da testosterona, o prazer das conversas sobre mulheres. Havia, no nosso convívio, um regresso aos tempos em que fora feliz em Portugal, antes que a idade adulta se metesse no caminho.

O Vidigal, senhor Proust, era a minha inesperada madalena.

Hoje tem showzinho

O grupo tocava sambas e as mulheres dançavam na rua, em redor das mesas do bar do Chicão, fazendo com o corpo aquilo que poetas não fazem numa vida inteira de sonetos. Gustavo, Kay e outros moradores do Vidigal dedilhavam violões e tocavam pandeiros, um espetáculo que começara de improviso, mas que foi juntando mais músicos, instrumentos e assistência. A invasão do Vidigal e da Rocinha aconteceria na noite seguinte: Polícia, exército, BOPE e fuzileiros estavam prontos para tomar o morro, naquela que seria a primeira fase de pacificação da favela. A informação tinha saído nos jornais e corria de boca em boca. O Batalhão de Choque já controlava as entradas e saídas havia alguns dias, fazia revistas a carros e pessoas, apanhou uns quantos traficantes em debandada18.

Os bandidos que não tinham mandado de captura, e que podiam circular livremente, abandonaram as bocas de fumo e os esquemas, foram estender-se na praia ou passear nos shoppings da Barra e da Zona Sul.

Kay tocava violão e estava feliz, misturada com os seus. Ela não iria sair dali durante a ocupação, como alguns fizeram, mudando-se provisoriamente para casa de amigos fora da favela, temendo a brutalidade da Polícia e os tiroteios com traficantes.

Ricky, que também apareceu no show improvisado, chamou-me à parte e disse:

“Tenho de bazar daqui hoje. Vou para casa de um amigo, na Lagoa.”

“Vais levar os planos do assalto contigo? Não podes deixar aquilo aqui, imagina se a Polícia, durante a invasão, entra pela casa adentro?”

“Não, mano. Escondi tudo bem escondidinho.”

Boris apareceu no fundo da rua, vinha na sua moto, sem capacete, tal como a mulher que chegou com ele. Era alta e negra. Era Eloise. Não esperei ser apresentado à haitiana que conhecera na casa de Jacob. Antes que ela me visse e fosse dar com a língua nos dentes sobre o meu paradeiro, pirei-me e fui para casa. Não queria que mais ninguém soubesse o meu novo endereço. Nem mesmo aqueles que me queriam ajudar. Enquanto andasse fora do radar, podia escrever sem medo.

Horas mais tarde, Kay entrou em casa acompanhada. Do meu quarto, ouvi uma voz de mulher com sotaque francófono. Kay e Eloise dedicaram-se, com entrega e muito fôlego, ao amor sáfico. Ao contrário do que acontecera no apartamento de Ricky, quando o meu sono foi transtornado pelos grunhidos e insultos pornográficos do casal, na noite em que Kay deitou Eloise na cama, deixei que o som das gargantas instigasse a minha imaginação. Presumi a brancura de Kay roçando-se na negritude de Eloise, os lábios carnudos da haitiana engolindo o peito mínimo da gringa integralmente depilada e abundantemente encharcada. Pressionei-me contra o colchão. Escutei tudo, sustendo a respiração para ouvir melhor. Kay tinha posto Eloise de joelhos. Com uma mão apertou-lhe um pouco o pescoço e deslizou os dedos para dentro dela, controlando-a a partir de dois pontos vitais. Os meus ouvidos, em parceria com a minha imaginação, podem garantir que Kay a beijou na boca, ficando assim presa a Eloise pela língua, pela mão no pescoço e pelos dedos dobrados como um gancho dentro da haitiana de corpo seco e orgasmos tão prolongados que forraram a casa de um som cheio, de contrabaixo, de animal.

Ela gozou, veio-se, saiu do corpo muitas vezes.

E depois adormecemos os três.

Quarto email de Margot

Têm sido dias difíceis, o meu tio piorou e a minha mãe não anda bem. Por aqui as coisas continuam na mesma, quase todas as minhas amigas perderam o emprego, mas agora o tempo piorou e a neura, já se sabe, instala-se com mais força no inverno. Curiosamente, as noites de Lisboa continuam a bombar e no outro dia encontrei o Duda, aquele músico que conhecemos no Vidigal. Está cá com a banda dele para uns concertos e andei a mostrar-lhe a cidade. Também serviu para desanuviar do hospital. Fez-me bem sair e dançar até de madrugada. Penso ficar aqui até ao Natal e talvez viaje para aí depois do Ano Novo. Quanto a todas as perguntas que me fazes, e ainda que tenhas direito a fazê-las, não te sei responder. O tempo o dirá. Muitas coisas mudaram, tu estás aí e eu aqui. Teremos de falar disto ao vivo, não sou muito amiga de emails, não têm tom nem expressão. E, não me leves a mal isto, mas tu és escritor e os emails são mais uma ferramenta para a tua mente criativa. Temos ambos tendência a idealizar, mas esta, por agora, é a realidade que temos: tu estás aí e eu aqui.

Um beijo, cuida de ti.

Invasão

Ouviam-se os helicópteros da Polícia e das estações de TV sobrevoando o morro, mas as ruas do Vidigal estavam em sossego. Nas televisões de suas casas, os habitantes viam, em direto, o que se passava lá fora, escutavam as declarações do governador do Estado, de especialistas em assuntos de segurança, dos moradores que ainda se atreviam a sair e a entrar na favela.

Kay desligou o computador, que passava um canal de notícias 24 horas, e disse: “Há um mundo na comunicação social e na Internet e depois há o mundo real. São muito diferentes, no primeiro há sempre mais ruído e drama. Tudo parece mais espetacular e importante. Um filme com efeitos especiais.”

Kay não se mostrava nervosa com a chegada de um aparato militar às ruas do Vidigal, mas estava zangada com alguma coisa, um temperamento de ciclo menstrual doloroso ou de alguém que tenta deixar de fumar.

“No Complexo do Alemão, no ano passado, a invasão deu merda. Morreu gente, muitos traficantes fugiram e a Polícia ainda roubou os moradores. E depois a comunicação social fica sangrando o porco, tornando aquilo um show mediático, oferecendo para a galera o que ela mais gosta de ver: neguinho pobre se fodendo.”

Lá fora, os helicópteros filmavam o que se passava no Vidigal, e as imagens passavam nos iPads do Leblon e nas televisões da favela do Rato Molhado19. Kay acendeu um béque e fumou-o com se bebesse um copo de água de uma só vez. Ficou calma e os olhos, cobertos pela nuvem da maconha, pareciam mais lânguidos.

“O que é que fazes da vida?”, perguntei, aproveitando o seu estado de felicidade nublada.

“Se você fumar um comigo, te conto. Não pode ser careta. Temos de ficar na mesma onda.”

Em breve, talvez uma bala perdida me arrancasse o osso parietal do crânio, Viking me encontrasse no Rio e me partisse o pescoço ou Margot nunca mais enviasse um email. Tinha escrito durante semanas como um estivador. Nunca fui material para a escola dos ascetas. Disse: “Venha de lá esse fumo.”

Kay enrolou o baseado. Fui buscar a cachaça. Ela disse: “Meu pai e minha mãe são da Letónia. Cresci em Berlim Ocidental e Amesterdã. Mas passei muito tempo em Londres.”

Durante a ocupação nazi da Letónia, o pai de Kay, ainda uma criança, fugira com a família para o Uzbequistão, onde permanecera até terminar a guerra. Do lado da mãe, decidiram ficar, e o avô materno de Kay foi preso após interferir numa disputa entre um letão e um oficial nazi. O avô regressou a casa uma semana mais tarde, depois de ter estado preso, e suicidou-se no dia seguinte, deixando um bilhete que apenas dizia: “Fui destruído.”

Muitos anos mais tarde, quando os pais de Kay já tinham casado e ela era um bebé num apartamento daquele pequeno país então dominado pela União Soviética, começou a montar-se um plano de partida.

“Meus pais não queriam que eu vivesse naquela pobreza, mas o que mais desejavam era que crescesse livre.”

A família conhecia bem a pata militar da ocupação. Primeiro foram os nazis, depois, terminada a guerra, os soviéticos. O pai de Kay queixou-se a vida inteira do serviço militar prestado em Vladivostok, onde demorou mais de um mês a chegar e onde ficou estacionado dois anos sem ir a casa. Não tinha qualquer orgulho de ter pertencido ao Exército Vermelho, apenas ressentimento.

“Meu pai dizia que as ideologias eram como a religião, uma forma de controlo do povo, uma ferramenta para os sociopatas que quase sempre mandam nos destinos do mundo.”

Kay estava bêbeda e entorpecida pela maconha. Quis provocá-la. Estava gira, enrolara-se numa canga, improvisando um vestido, e apanhara o cabelo num pequeno carrapito, deixando a nuca descoberta. Ela entendeu o meu desejo de provocação e aproveitou para me tocar. Estávamos os dois no sofá, um em cada ponta. Kay esticou o pé, encaixou-o no meu peito. Tinha as unhas pintadas de azul metalizado. Quis morder aquele pé. Não era ainda o momento.

“É curioso, o país que nos invadiu foi aquele que nos resgatou décadas mais tarde.” Kay falava da Alemanha, mais precisamente da República Federal Alemã, que concedeu asilo político a toda a família no final da década de 70, e que os ajudou com dinheiro, empregos, documentos e casa.

Os pais de Kay mudaram-se depois para Amesterdão, onde ela passou a adolescência.

“Sempre foste assim, avariada?”, apontei para os piercings nos mamilos.

Ela desamarrou a canga, revelou o tronco nu.

“Está falando disso?”, e puxou a tacha, fazendo o mamilo esticar um pouco.

Não era ainda o momento. Kay testava a minha capacidade de concentração: não voltou a vestir a canga. Disse-me que, aos 15 anos, já tinha duas tatuagens, feitas às escondidas por um amigo, e um piercing num lugar a que os pais não tinham acesso visual. Aos 16 já dormira com rapazes e garotas.

Estudara música, fora com uma namorada, cantora, para Londres. Viveu de ecstasy e amor livre, até que a namorada se cansara dos trios e das ressacas, desopilando para uma clínica de desintoxicação. Kay tinha vinte e poucos anos e vivera quase sempre à custa dos pais e do Estado.

“O meu estilo de vida exigia um mecenas”, disse.

Durante mais dois anos conseguiu receber bolsas, subsídios e ajudas do Estado Alemão para financiar a sua viagem pela América do Sul. Na Bolívia, conheceu uns ingleses que, após uma semana de convívio a cheirar pó, lhe propuseram um negócio. Ela viajaria para o Brasil e daí, com cocaína, para a Europa. Kay estava descontrolada pelo pó dessa noite e disse que sim, achou que se tratava de uma aventura e que o dinheiro permitiria financiar a sua existência de viajante.

Deram-lhe a droga em São Paulo. Kay não foi capaz de engolir os pequenos pacotes e transportá-los nas entranhas. Esperaram mais uns dias e entregaram-lhe toalhas, nas quais a cocaína fora dissolvida. Nessa mesma tarde, o táxi onde Kay viajava com a droga foi assaltado num semáforo. Um dos bandidos encostou a pistola na cara de Kay:

“O que é que a madame tem nessa mala?”, abriu o fecho, sempre com o revólver apontado a Kay. “Pô, que merda é essa, só tem toalha?”

O bandido tirou algumas toalhas para cima do banco, tentando perceber o que mais estava na bagagem. Roupa de mulher, recordações do Brasil, um computador.

“Já é”, disse o assaltante, levando com ele a mala e o computador, deixando a roupa e algumas toalhas no banco do táxi e na estrada.

Num dos prédios alguém viu o que se passava e chamou a Polícia. O taxista ainda se recompunha e Kay tentava apanhar as toalhas que tinham ficado para trás, quando um carro-patrulha chegou e os agentes repararam na pasta branca que se soltava das toalhas para as mãos da gringa.

“Tive sorte. Primeiro porque o bandido, sem saber o que levava, carregou com ele grande parte das toalhas, deixando para trás uma quantidade menor de droga. Imagina se a Polícia me apanhasse com a carga completa? E tive sorte porque ainda não tinha passagem de avião. Ia a caminho do hotel, onde ficaria mais uns dias. Se fosse pega no aeroporto, seria indiciada por tráfico internacional. E aí não ficaria apenas dois anos na cadeia.”

Na prisão, teve várias namoradas. A mais importante, Miss Vidigal, como era chamada no xilindró, saiu antes de Kay. Mas, terminada a pena da gringa, Miss Vidigal recebeu-a no morro com um apartamento e uma mesada. Miss Vidigal era mandante do tráfico, como os irmãos. E se, na cadeia, as suas palavras e o seu tamanho impunham respeito, no morro Miss Vidigal era uma imperatriz com capangas armados e bunda de primeira página de tablóide.

“Gostas de mulheres fortes, estou a ver”, disse-lhe.

“E de mulheres casadas.”

Pensei que havia ali uma insinuação sobre Margot.

Kay prosseguiu, dizendo que, quando saiu da cadeia e foi viver para o Vidigal, a sua amante contou que era casada e que tinha duas filhas. Kay aceitou o trato. E assim viveram, na clandestinidade, até que o marido de Miss Vidigal disparou contra o homem errado.

“Você se lembra de perguntar se eu tinha visto algum homicídio? E de eu ter contado a história do cara bêbado da Rocinha, tio do moleque que tinha sido espancado, um cara que depois foi apagado por elementos do Vidigal? Pois é, um dos assassinos era o marido da minha amante.”

Kay colaborou na fuga do marido da amante, hospedou o casal e as filhas em segredo, durante alguns dias. Até que os conseguiu levar para fora da favela num carro emprestado.

“E ela?”, perguntei.

“Nunca mais soube nada. Mas ela me deixou esses dois apartamentos e um saco de dinheiro. Você não queria saber o que faço? Vivo da caridade de uma mulher que teve de me deixar para trás. Também dou aulas de violão.”

“Ainda gostas dela?”

Os helicópteros faziam voos cada vez mais rasantes e ouvimos os blindados escalando a ladeira. Os traficantes tinham deixado barricadas de lixo, pneus, móveis e despejado óleo nas ruas íngremes da favela. Era muito mais um ato de rebeldia do que uma tática de defesa. Os bandidos que tinham ficado sabiam que não havia nada a fazer.

Lá fora, homens gritavam ordens militares. Os blindados desfaziam carros na subida. Não se ouvia um tiro, mas temia-se o primeiro disparo.

Kay levantou-se e deixou a canga cair. Era de madrugada e, com as luzes apagadas, a sua pele tinha a cor do fogo das velas acesas na sala. O corpo era elegante, de cavalo de corrida, o púbis era liso e musculado, uma concha, um chamamento.

“Gostas de mulheres casadas?”, perguntei.

“E de alguns homens casados.”

“Dormiste com Margot?”

Ela agarrou-me pelo cabelo e puxou-me para dentro das suas coxas.

“Há quanto tempo querias fazer isto?”, perguntei.

“E você, há quanto tempo?”

“Isto está errado.”

“E, no entanto, não podia fazer mais sentido. O triângulo se fecha.”

Ato falhado

Estava muito bêbedo e fumado. Isso, claro, não é desculpa. Ou talvez seja, porque misturei demasiada cachaça e maconha, a minha tensão arterial desmoronou outra vez, senti os pingos frios de suor lavrando as costas, o peito ensopou a t-shirt e fui-me abaixo.

O que a cabeça pedia, o corpo não foi capaz de oferecer.

Os helicópteros pareciam ter parado sobre o edifício. A qualquer momento, temia, os soldados entrariam pelas janelas. A minha boca estava colada no púbis de Kay, quase não podia respirar. Os helicópteros pareciam estar dentro de casa e eu dentro deles, vendo a sala rodar. Corri para a casa de banho e caí de joelhos.

Não tivesse desmaiado, acordando com Kay tentando verificar a gravidade da minha condição, e teria feito com ela muito pior (muito melhor) do que Kay supostamente fizera com Margot. Mas não havia, em mim, energia suficiente para atividades físicas arriscadas, apenas me restava uma cómica noção de ridículo. Disse, sorrindo para denunciar a mentira e apontando para as partes baixas em descanso:

“Isto nunca me aconteceu antes.”

Kay sorriu, limpou-me a testa com uma toalha, deu-me um pouco de água com açúcar e disse:

“Vamos dormir, que está quase amanhecendo. Vou para o meu quarto. Qualquer coisa você me chama.”

Passadas as tonturas, ficou apenas a leveza da maconha. Aos poucos os sons da rua foram-se calando. Não se disparou um tiro durante a invasão. Os pássaros anunciavam o raiar do dia. O Vidigal seria a minha casa. Não correria mais.

Antes de adormecer, ainda ouvi a respiração de Kay enquanto se masturbava.

Domingo de pacificação

Quando acordei não havia ninguém no apartamento. Tomei um duche e saí. Eram duas da tarde e ouvi as trompetes dos militares enquanto hasteavam uma bandeira do Brasil. Nos dias seguintes, mais bandeiras apareceram nas janelas das casas. Desci devagar, aproveitando a melancolia de domingo que também chegava ao morro. Havia muito menos carros, mototáxis e pessoas. Os despojos das barricadas acumulavam-se nas bermas da rua principal, polícias do Batalhão de Choque, armados como soldados do futuro, por vezes cavalgando motos aladas de grande potência, passavam para cima e para baixo enquanto os jornalistas filmavam e tentavam fazer perguntas aos moradores.

Fui revistado pela Polícia, na saída do Vidigal, e desci a Niemeyer em direção ao Leblon. Caminhei até ao Arpoador. Era um domingo de céu cinza e chuva que não chega a cair. Baixei a guarda, esquecendo a lição que diz que o Rio é demasiado pequeno e que há certos lugares da Zona Sul onde todos acabam por se encontrar. O calçadão, num domingo, é um desses lugares. Sentei-me na esplanada de um quiosque, observando o mar, quem passava, o jogo de futevólei praticado por indivíduos musculados com cara de quem sabe acabar uma porrada rapidamente.

Não cheguei a pedir um coco gelado. Um desses indíviduos musculados era Vasco da Gama: olhou-me da areia e, vendo que eu me levantava para fugir, chutou a bola na direção das mesas, mas eu já estava na Delfim Moreira a dar corda aos pés descalços. Com as havaianas na mão, corri mais depressa do que ciclistas, skaters e Vasco da Gama. Saltei para o meio da rua e comecei a correr ao lado de uma van:

“Abre a porta, abre a merda da porta. Dou-te vinte reais.”

Vasco da Gama tentava atravessar a rua, mas o trânsito deteve-o. O cobrador abriu a porta. Entrei e disse: “Não pare no semáforo.”

Sentei-me, afundei a cabeça entre os joelhos, respirei fundo. O cobrador tocou-me no ombro e perguntou:

“Meus vinte pau, parceiro?”

A fuga é toda para diante

Nessa noite já não dormi em casa de Kay. Não era apenas medo de que Vasco da Gama descobrisse, de alguma maneira, o meu endereço. Na noite anterior, quando decidi que permaneceria no Vidigal, pensara também em arranjar um apartamento só para mim ou alugar o quarto livre no cafofo de Gustavo e Boris, com vista para o mar – na casa de Kay a minha janela dava para as traseiras. Além disso, havia o desconforto provocado pelos acontecimentos da madrugada anterior: 1) uma pergunta ainda sem resposta: “Dormiste com Margot?” 2) a calamidade do meu desempenho. Havia também um pouco de arrependimento e vergonha. Pensei enviar um email a Margot contando tudo, tentando provocar-lhe uma reação, uma emoção que fosse. Talvez me respondesse confessando que, ao contrário de mim, ela não falhara quando posta diante da nudez de Kay.

Mas, em vez de descer até ao bar de dona Nereusa para escrever um email a Margot, arrumei as minhas coisas e guardei todos os cadernos escritos nas últimas semanas.

Kay estava na sala, ouvindo música. Expliquei-lhe que encontrara um elemento pernicioso que não me queria bem e que não era seguro estar ali.

“Se quiser, falo com meus amigos do tráfico, eles podem falar com os policiais. Aqui ninguém te toca”, disse Kay, levantando-se, sem desconfiar que havia mais razões para a minha partida.

“Muito obrigado, mas acho melhor não criar mais confusão. Além disso, os próximos dias vão ser estranhos aqui no Vidigal, a Polícia vai andar em cima de toda a gente. Não quero mais confusões.”

Disse-lhe para onde ia, demos um abraço. Depois saí porta fora.

Mais um apartamento, mais uma etapa da fuga que começara muitos meses antes, em Lisboa, e que, por mais que quisesse, não parecia ter fim.

Mudei-me para um quarto com vista. Gustavo e Boris eram bichos noturnos e levantavam-se quando eu já preparava o almoço e tinha escrito dezenas de páginas. Gustavo fazia o tal café de prémio internacional e Boris apertava um canhão de maconha. Nas horas seguintes, e até que se fossem deitar, a casa tinha sempre a ambiência de uma sala de fumo.

Sobrava-me pouco dinheiro e, em breve, procuraria um emprego. Nos primeiros dias evitei sair do apartamento, mas, como todos os fugitivos cansados e esperançosos de paz, considerei improvável que Vasco da Gama soubesse do meu paradeiro. Estava farto de estar em casa e saí para o bar do Chicão. Sentei-me a olhar para as atrizes de novela, na TV de plasma, sem fazer caso do que diziam. Chicão verteu cachaça para o copo até que derramasse sobre a mesa.

“Essa é feita pelo meu cunhado lá em Minas”, disse Chicão.

Queria preocupar-me com o futuro do Vidigal, discutir a pacificação com os meus companheiros de casa, o que vinha aí – aquele, afinal, seria o meu bairro. Mas o afinco de Vasco da Gama durante a perseguição, expresso na carantonha de gorila, não me permitia outros pensamentos. Talvez fosse mais indicado pegar nas minhas coisas e sair dali, não arriscar, mudar de Estado, de país.

Chicão apareceu por entre a fumaça dos hambúrgueres que grelhava na chapa, coçando a pança, e disse: “Teve aí uns cara procurando você.”

Levantei-me.

Chicão percebeu o meu pânico e ficou sério: “Não disse nada para os cara. Relaxa. Aqui você está em casa.”

Não, casa teria de ser agora outro lugar. Despedi-me de Chicão e iniciei, novamente, o protocolo da fuga. Roupa, despedidas, procurar uma cama para dormir. Não iria arriscar mais.

Kay apareceu no apartamento de Gustavo, que lhe ligara, e perguntou-me:

“Já sabe para onde vai?”

“Sei e preciso da tua ajuda para sair daqui.”

Tinha cada vez menos coisas, a bagagem era mais leve. Gustavo preparou-me um termo de café. Boris ofereceu-me três baseados. Kay deu-me a mão quando saímos.

Romance intercontinental contemporâneo

Esperei na portaria do edifício. Kay e o seu amigo (era polícia ou traficante?) quiseram manter-se no carro que nos transportara até ali, vigiando do outro lado da rua. Eram os meus seguranças privados. O homem estava ao volante e, quase de certeza, carregava uma arma. Kay fumava baseados no banco do pendura. Levantei-me do sofá e fui falar com eles. Debrucei-me na janela do condutor: “Já podem ir embora. Ela deve estar a chegar. Muito obrigado por tudo.” Nesse momento, apareceu Júlia, subindo pela calçada, chegando da praia, o biquíni molhado manchando a t-shirt. Kay percebeu a chegada de Júlia e tocou na perna do homem, que ligou o carro e deslizou rua abaixo.

Júlia abraçou-me, olhando para mim como se eu fosse um primo havia muito emigrado na Europa: “Você está mais magro.”

Depois de largar as coisas no quarto de hóspedes (mais uma mudança, outra cama), sentei-me a conversar com Júlia. Ela contou que conhecera um carioca que vivia em Roma e que ia visitá-lo na manhã seguinte. Tinham estado juntos alguns dias no Rio, e depois que ele se fora embora passaram duas semanas de intensa atividade amorosa através da Internet, trocando emails, vídeos, poemas e declarações de amor nas redes sociais.

“Acho que estou finalmente apaixonada.”

Tendo em conta o silêncio de Margot, a ausência de emails, eu não era a melhor pessoa para celebrar o romantismo virtual contemporâneo de Júlia. Fiquei calado enquanto ela descrevia, com o exagero e a felicidade dos apaixonados, as coincidências que certificavam aquele amor, os gostos comuns, a compatibilidade da pele.

Onde Júlia via esperança, eu via ingenuidade. Quando ela se empolgava, eu sentia pena. Mas disse:

“Estou muito contente por ti.”

“Você parece cansado, porque não vai dormir um pouco? Tenho de fazer a mala, saio de madrugada, mas você fique à vontade. Volto em duas semanas. Só não traz o Ricky para cá.”

Fui deitar-me e apaguei.

Júlia apareceu no quarto, era de noite, sentou-se e deu-me um beijo na cabeça.

“Pode usar minha bicicleta. Já avisei os porteiros. Deixei um papel com meu email e meu número na mesa da cozinha. Vou pegar um táxi para o aeroporto.”

“Não queres saber porque estou aqui, porque precisei de recorrer a ti?”

“Confio em você.”

Não me lembrava da última vez que alguém me dissera aquelas palavras.

A arte de pedalar nas ruas do Rio de Janeiro

(durante a noite)

Voltas a montar a garupa de uma bicicleta. Tocas-lhe como se fosse um animal. Sentiste falta da velocidade e do vento no tronco nu. Não precisas de pedalar quando desces as íngremes ruas do Alto Leblon. É noite escura, com poucos automóveis na estrada e famílias dormindo nos condomínios fechados. Cruzas o canal e entras na Ataulfo de Paiva, ignorando o vermelho dos semáforos, aproveitando a ausência dos ônibus predadores. Passas pelos bares e restaurantes fechados, pensas meter-te pelas ruas laterais, mais escuras, e manter a distância da luminosidade artificial do calçadão ou da balbúrdia notívaga de Copa City.

Porque precisas de sair de casa, onde passas os dias a escrever e esperando emails ou mensagens de Margot (compraste um telemóvel, mandaste o número, ainda não tocou), tentas convencer-te de que uma noite de semana é a melhor altura para evitar a pequenez do Rio e os encontros indesejados.

Mas não te fias de nada e estás sempre alerta, tentando conservar os ossos inteiros. É um jogo, uma brincadeira (ainda que te pudesses foder de forma séria se te apanhassem), é também a melhor recompensa, como o brinquedo que o teu pai trouxe quando regressou do hospital e já sabias que a tua mãe tinha ——— e passaste as semanas seguintes agarrado a esse brinquedo, na entrada do quarto dela, esperando que tudo se tratasse de uma partida da família, certo de que ela regressaria do hospital, as luzes vermelhas deixariam de rodar nas paredes da casa todas as noites e poderias enfiar-te, outra vez, na cama enquanto esperavas pelos desenhos animados.

Pensas na tua mãe e, ainda que não acredites que haja um post mortem, um quarto ato além deste mundo, a verdade é que gostarias que houvesse – não tanto por ti, mas por ela. O que ela não fez, o que não visitou ou descobriu, a impossibilidade de ver os filhos crescer. O orgulho e as desilusões maternais.

E se ela estivesse a ver tudo o que fizeste até agora? Todas as heresias sexuais, as parcerias com a bandidagem, a sem-vergonhice das drogas, a poluição contínua do que ela deixou inocente?

É nisso que pensas quando passas devagar pela cafetaria Rio-Lisboa e um dos empregados, portuga como tu, chegado ao Rio há mais de trinta anos, acena e grita: “Boa noite, patrício.”

E é então que percebes melhor aquilo que foste e aquilo que te tornaste, os raspões da viagem, a cicatrização em permanente andamento. Olhas-te nas janelas de um edifício espelhado do Leblon. E aqui estamos outra vez, neste jogo de espelhos onde melhor nos entendemos.

Estás mais velho e mais cansado. Não te recuperas tão depressa das quedas e os falhanços pesam mais. Uma noite de bebedeira leva três dias a curar. Estás só. E talvez por isso te preocupem tanto os afetos, essa saudade de Portugal (de Margot?, da ideia de Margot?), essa morrinha que por vezes te leva a encontrar no Rio de Janeiro alguma coisa de Lisboa e até mesmo das praias do Algarve onde a tua mãe te comprava bolas-de-berlim e as meninas cheiravam a creme Nívea.

És português, como és um pouco das cidades por onde passaste. Sempre soubeste que a nacionalidade não é um orgulho nem uma vergonha. É um acaso. Muitas vezes pensaste como seria a tua vida se tivesses nascido na Dinamarca, no Suriname, na Somália, nos Estados Unidos ou no Irão. Não era um desejo, era apenas um jogo de ficcionista adiado. Por mais que tivesses viajado, defendendo, como Kay, a mistura de tudo e todos, no Rio de Janeiro, enquanto imigrante ilegal, percebeste que tinhas em ti um portugalidade crónica, séculos de transmissão genética e séculos maculados pelo nevoeiro da esperança. Percebeste também que tudo aquilo que mais te incomodava em Portugal sempre procriou dentro de ti e deu à luz nos teus atos: o desleixo, a bonomia, o chico-espertismo, anos a confundir consumo com felicidade.

És o filho da democracia, a criança mimada da família, a geração portuguesa mais europeia de sempre, e mais educada, mais preparada, e agora mais deprimida. És um lisboeta que se enternece quando em vez de castanhas se vendem morangos e cerejas na Praça do Rossio. És judeu e árabe e magrebino e preto e celta e lusitano e ibérico e transatlântico. O teu avô emigrou, o teu pai também. És parte da torrente do sangue que circula pelo mundo. Ficas ereto com Nova Iorque, quase te mataste em Londres, lembras-te pouco de Amsterdão, pisaste o risco em Madrid, querias parar nos braços do Rio (nos braços de Margot) e ficar por aí. Mas já não dá. És um puto fadista, o vadio que chega tarde. Não tens uma casa há quanto tempo?

És tantas coisas e não consegues ser nada.

Pedalas há meia hora, perfuras a escuridão do Humaitá. Mesmo de noite, os prédios lançam uma sombra pesada sobre quem passa, traumatizados pelo desespero daqueles que agonizam no trânsito durante as horas de ponta. Mas agora é tarde na noite e as ruas largas permitem-te fazer ziguezagues. Olhas as poucas janelas com luzes e pensas em todas as vidas que nunca tiveste porque acordaste tarde naquela manhã, porque não apareceste quando precisavam de ti, porque sempre tiveste uma longa lista de princípios que jamais seguiste mas que exigias nos outros.

Entras na ciclovia da Lagoa, pedalas cada vez mais rápido, queres sentir o ardor nas coxas e os pulmões em capacidade máxima. Olhas a superfície brilhante da água, o Cristo é apenas uma mancha de luz atrás das nuvens, a cidade parece só para ti. Já não queres que a vida seja toda para diante. Estás cansado, uma fadiga que temes não ter cura.

Estás de partida, uma última vez, prometes. Mas estás de partida.

Sais da ciclovia da Lagoa e entras na Maria Quitéria, rasgas Ipanema na direção da praia. Largas a bicicleta sem cadeado e saltas para a areia, caminhas para o mar. O estrondo das ondas de dois metros propaga-se na maresia e traz consigo uma espuma revolta, capaz de levar desesperados na correnteza.

Por tua conta e risco tiras a roupa toda (proibido por lei) e entras no mar de tempestade (estúpido por razões óbvias). Talvez aquela fosse a última oportunidade de mergulhar ali, admirando as luzinhas do Vidigal como vaga-lumes descansando no horizonte. És apanhado pelo golfada de espuma que dispara assim que uma onda rebenta, ficas sem pé, sentes a corrente puxar-te para fora, podias ir, deixar-te, ver o que acontecia, talvez dormisses por muito tempo, um descanso subaquático.

Tocas com os pés na areia e disparas como um foguete para a superfície, respiras, nadas, lutas contra a maré. E se morresses agora, quem daria pela tua falta, quem saberia de ti? Engoles água e voltas a ir ao fundo, onde cravas os pés com força na areia molhada e te inclinas na direção contrária da corrente. A água passa por ti, levando a massa de espuma. Tens poucos segundos antes que a próxima onda quebre. Esforças-te para sair, cais, levantas-te, foges do cacete que aí vem como fugiste de Vasco da Gama, do teu passado, da tua família. Lanças-te para a areia e ficas ali, mártir crucificado na praia de Ipanema.

Tens o corpo molhado e a pele com sal.

Não adianta continuar a fugir.

Segundo email de Filipe

Meu caro,

Encontre-se comigo assim que puder. Estou com o meu amigo Uzi. Precisamos de falar com urgência. A minha vida depende disso.

Filipe.

P.S. Apague este email.

Últimos desejos do moço de recados

Mikel estava sentado num banco da cozinha no apartamento de Júlia, lendo um matutino enquanto mordia uma maçã descascada com o seu canivete pessoal. Eu arrumava os meus pertences – cada vez menos bagagem, dentro em pouco teria nada. Quando apareci junto de Mikel, ele levantou os olhos do jornal e, com ar de pastor de ovelhas que foi interrompido a meio da bucha da manhã, perguntou-me:

“Você quer ir mesmo para lá?”

“Não tenho dúvidas.”

“Que contundência. Também não tinha dúvidas e olha o que me aconteceu?” Mikel mostrou-me o gancho prateado. “O militantismo pode causar muitos estragos em quem o pratica, mas também nos outros. Não ter dúvidas é mau presságio.”

“Julguei que você era um fanático da sua causa.”

“Sabe, sou ruim causando primeiras impressões, foram muitos anos preocupado com os meus perseguidores, sempre olhando por cima do ombro, com medo de que me pegassem. Não sou de abraçar alguém que acabo de conhecer, mas também não sou um monstro.”

“E eu, sou um monstro?”

Mikel levantou-se e atirou o resto da maçã para o lixo: “Nada disso.”

“Porquê?”, perguntei.

“Porque suas intenções são boas, seus atos, porém, por vezes desastrosos. Você tem uma fúria, uma entrega, um romantismo que me fazem lembrar de mim.”

“Quando você tinha a minha idade?”

“Não, quando tinha vinte anos.”

Mikel sorriu, era a segunda vez que o via sorrir. Tive a certeza de que fizera bem em ligar-lhe para que me levasse dali para fora. Contemplei a casa como fazia sempre que abandonava mais um endereço carioca. Adeus apartamento, hasta la pasta, Alto Leblon, bye bye, Rio de Janeiro.

Mikel tirou-me os sacos de lixo com roupa e a mochila das mãos.

“Vamos, me dê isso, não foi para ajudar que você me chamou?”

Ricky estava de cuecas, vendo um concurso com chefes de cozinha no computador e fumando hidropónica num cachimbo de água. Estava doidaço. Fui fazer-lhe um café sem açúcar. Mikel esperava na rua, por precaução.

Perguntei: “E a Benedita?”

Man, já imaginaste que se não tivéssemos polegares não podíamos jogar Playstation?”

Ricky bebeu o café. Dei-lhe uma bofetada: “Concentra-te. É importante.”

Ricky iniciou um ataque de riso que receei terminar em trombose. Arrastei-o para o duche e obriguei-o a ficar debaixo de água. Cantou várias músicas dos anos 80 e 90. Meteu a cara cá fora e disse: “Estou fodido, mano, estou fodido à séria.”

Na sala, enrolado numa toalha, Ricky já não era dominado pelas gargalhadas. Falou-me do pai e chorou e soluçou como se tivesse entalado a mão na porta do carro e não estivesse lá ninguém para cuidar do ferimento. Disse-me que o pai tinha fugido de Portugal depois de ter sido informado, através de contactos no governo, que ia ser emitido um mandado de captura em seu nome. Havia semanas que Ricky não sabia nada dele, a não ser pelo que saía nos jornais, artigos sobre corrupção, tráfico de influências, lavagem de dinheiro.

“Já se escreveram coisas horríveis nos jornais. Eu estou a cagar-me para o que eles dizem, mas o velho, sabes como é, outra geração, a cena do respeito e da dignidade.”

Pensei que, quando o pai de Ricky andava a fugir aos impostos ou a corromper funcionários do Estado para construir em zonas protegidas, não se tinha preocupado com o pundonor.

Ricky limpou o ranho e as lágrimas com a t-shirt, parecia uma criança, a erva hidropónica tinha ampliado todas as suas emoções.

“Diz-se que ele veio para o Brasil, mas não sei onde está. Estou preocupado, mano, bué de preocupado.”

Levei as xícaras de café para a pia e aproveitei para espreitar para o quarto de hóspedes. Não havia vestígios dos planos de assalto ao banco.

“Já não vais levar o tal plano adiante?”

“O banco?”

“Sim.”

“Achas que tenho condições psicológicas para executar um esquema destes? Népia. Não vai rolar. Tenho de me safar de outra maneira. Sempre me safei.”

Era verdade, mas antes havia o respaldo do pai caso tudo falhasse. E agora, sem saber do seu anjo da guarda e tesoureiro, Ricky estava, mais do que nunca, sem saídas. Entre as pessoas que eu ia deixar para trás, no Rio, era ele que mais me preocupava. Estava certo de que o seu descontrolo seria cada vez maior. Tinha uma cúmplice dedicada. Perguntei outra vez: “E a Benedita?”

“Está lá em cima, com a Kay.”

Despedimo-nos. Temi que não mais nos voltássemos a ver. Talvez por isso tenha confessado para onde ia, embora tivesse prometido que, além de Mikel, ninguém ficaria a saber do meu destino. Fosse eu um agente secreto (nem investigador amateur conseguira ser) e diria que estava na altura de sair da grelha, saltar fora do mapa, ir para longe e desligar todos os aparelhos de comunicação.

“Tens a certeza de que é isso que queres fazer?”, perguntou-me.

“Tenho, é o que preciso. Senão, isto vai acabar mal.”

“Achas que vai acabar mal para mim?”

“Espero que não.” (Mas temia que sim.) “E por favor não contes a ninguém onde estou.”

“Nem sob tortura”, garantiu Ricky.

“Se um dia precisares de alguma coisa, mano, sabes que podes sempre contar comigo.”

(Quem faz promessas nem sempre julga que terá de cumpri-las.)

“O mesmo vale para ti, és o meu brother”, respondeu Ricky.

Informei Mikel que iria descer o morro a pé. Pedi um açaí numa das barracas e sentei-me na entrada do Vidigal apenas um minuto. Outra barraca servia comida e li: “Extra big duplo com tudo.” Cheirava a carne, a óleo dos churros, a pipocas, a gasolina. O céu começava a escurecer e o Vidigal recebia, com alarido e comoção, aqueles que regressavam do trabalho.

Quando entrei no carro, Mikel disse:

“Chega de nostalgia?”

“Vamos”, respondi.

Lembrei-me de um amigo que, certa noite, me disse: “Tu, que tens a mania de que és escritor, devias começar uma história com esta frase: ‘Não vou olhar para trás.’”

Se o meu relato se iniciasse naquele momento, no carro com Mikel, entrando na Niemeyer e depois na Lagoa e na escuridão do túnel, poderia começar assim mesmo:

“Não vou olhar para trás.”

Mas eu já estava habituado a quebrar promessas.

16 Esperando as drogas bater é o título de uma canção imaginária de uma banda que não existe. A banda, efabulada por amigos cariocas e paulistas ao longo de anos, chama-se: Oh la la. Outro dos seus grandes êxitos: Eu me apaixono por qualquer uma. Nunca gravaram um disco. Mas têm grouppies e dão autógrafos.

17 Nem, líder do grupo criminoso organizado Amigos dos Amigos, garantiu, após ser preso, que metade dos ganhos mensais do tráfico eram para o arrego – prática muito comum em várias favelas e bairros do Rio. Polícia pago é polícia quieto. O mesmo vale para políticos.

18 Entre os colaboradores de Nem que foram detidos, de uma só cajadada, estava a dupla Coelho e Peixe. Desde que cheguei ao Rio que comecei a reparar nos estranhos nomes dos traficantes cariocas. Tomei notas, nos meus cadernos, e comprei tablóides com o fim de procurar nomes para acrescentar à lista. Aqui ficam alguns: Elias Maluco, Escadinha, Uê, Orlando Jogador, Dudu & Lulu da Rocinha, o Mão, o Mate­mático (também conhecido como Cabeça ou Batman), Manteiguinha da Vila Kennedy, Carré, Polegar, Playboy, Piloto, Chupetinha, Dinho Porquinho, Filé, Metra­lha, Scooby dos Macacos, Aline Popozuda, Odir Bocão, Canelão, Bebezão e Sandra Sapatão.

19 Tal como aconteceu com os traficantes, também fui apontando no caderno os nomes das favelas cariocas: Ladeira dos Funcionários, Parque Proletário, Favela da Foice, Aço, Zinco, Querosene, Manilha, 9 Galo, Parque Alegria, Parque Boa Esperança, Bastião, Favela Serra Pelada, Caixa d’água, Caracol, Cachorro Sentado, Cavalo de Aço, Cosme da Onça, Pedra do Sapo, Ponte do Rio dos Cachorros, Lagartixa, Periquito, Pica-Pau, Morro dos Macacos, Urubuzinho, Morro da Baiana, Baronesa, Fazendinha, Morrão, Casinhas, Canitar, Buraco Quente, Boca do Buraco, Cambalacho, Caminho Furado, Caminho do Padre, Caminho do Urubu, Chapadão, Mata Quatro, Morro do Adeus, Morro Azul, Raio do Sol, Prazeres, Baixa do Sapateiro, Chapéu Mangueira, Pôr-do-Sol, Sossego, Conjunto Esperança, Pecado, Deus é Amor, Morro da Fé, Paz, Pára-Paz, Sereno, Liberdade, Sangue e Areia, Karatê, Quieto, Árvore Seca, Pé Sujo, Bacia, Encontro, Amor, Favela da Playboy, Barro Preto, Barro Vermelho, Fumacê, Amália, Bacalhau, Portugal Pequeno, Cabo Verde (em Benfica), Ucrânia, Disneylândia, Kinder Ovo, Budapeste, Evereste, Madagáscar, Reta Nova, Reta Velha, Carlos Drummond de Andrade, João Paulo II, Jeff, White Martins, Xuxa, Seu Pedro, Te Contei e Uga Uga.