Giuliano Manfredini
Meu convívio com meu pai foi breve, mas intenso. Poucos anos que equivalem a séculos. Maior, só a saudade.
Desse período, guardo uma imagem forte: meu pai sentado à mesa, no sofá ou numa poltrona preenchendo cadernos e cadernos com sua letra miúda e metódica. Um dia, intrigado, perguntei: “Pai, por que você escreve tanto?”. “Porque nos próximos cinquenta anos, Giuliano, as pessoas poderão saber o que eu sinto e penso hoje”, respondeu ele.
Criança, não poderia entender o que hoje compreendo com nitidez: Renato Russo escrevia para a posteridade, para a história, visionário que era. Indiferente ao presente e ao seu determinismo biológico, meu pai dialogava com o futuro, de forma transcendental e mágica. Coisa de gênio.
Passados quase vinte anos desde a morte de Renato Russo, seu desejo começa a tomar forma com a publicação deste volume. Trata-se do primeiro de uma série de livros que reunirão diários, poemas, letras, obras de ficção e desenhos que meu pai deixou como legado para os fãs e para todos os que queiram entender a dinâmica criativa de um artista multimídia, perfeccionista e brilhante.
Só por hoje e para sempre é o diário escrito por ele durante a internação numa clínica de recuperação para dependentes químicos no Rio de Janeiro. É um período crucial em sua vida, ao longo do qual ele se dedicou a um profundo (e por vezes doloroso) processo de autoconhecimento, reflexão e busca pela vida. A leitura desses escritos permitirá aos leitores se aproximar de um Renato Russo que poucos tiveram oportunidade de conhecer. Um Renato Russo íntimo: detalhista, sentimental e generoso.
Suas canções e letras e o estilo apaixonado de interpretá-las o transformaram numa lenda da música brasileira. Este diário revela o homem por trás do mito. E aí reside uma das principais motivações para torná-lo público.
É ainda um depoimento que demonstra sua capacidade de superação num momento de dúvidas e incertezas. Estou convicto de que servirá de inspiração para os que buscam forças para vencer crises pessoais das mais diversas origens e sair fortalecidos desse processo.
Meu pai, um humanista em toda a sua plenitude, sempre procurou defender as pessoas a seu redor, como atestam seus manuscritos. A própria decisão de se internar fez parte do esforço em evitar que sua dependência química, de alguma forma, atingisse amigos e parentes. Por isso, para proteger a intimidade das pessoas queridas, decidimos substituir seus nomes por iniciais, sem prejuízo à coragem, sinceridade e transparência que Renato imprimiu a este relato, que, desde sempre, quis dividir com fãs e admiradores. Agora, seu sonho se concretiza.
A obra de Renato Russo, que considero o poeta maior de sua geração, é atemporal. Será atual sempre, como a de Vinicius, de Chico e de Noel. Os netos de nossos netos o descobrirão em bibliotecas ou no ciberespaço, e cantarão seus versos, e lerão esse diário e os que o seguirão, e se emocionarão com sua grandeza e com a beleza de sua obra.
Esses inéditos, que a Companhia das Letras leva ao público, não poderiam continuar (bem) guardados comigo. Agora eles pertencem a todos os que lutam, sofrem, cantam, sonham e, principalmente, aos que amam a vida. Como Renato amou tudo o que fez em sua existência, breve e genial.